Tenho acompanhado, com perplexidade,
uma espécie de cruzada elitista que desfraldou bandeiras durante o presente
processo eleitoral, caçando postulantes a cargos eletivos portadores de baixa
escolaridade, a estes apontando o epíteto depreciativo de analfabeto.
Num país onde faltam escolas e onde as
crianças são destas arrancadas para lavourar ou
trabalhar em carvoarias, é bem comum a escravidão do
analfabetismo. E quando alguém alcança a luz das letras incipientes, deveria
ser louvado e elogiado, e não ser perseguido para que não exerça uma porção da
sua cidadania, que é justamente a exposição ao julgamento popular, via voto.
Penso que melhor seria,
ao invés de ser procurada a execração de quem não é “doutor em letras”, fosse
dada contribuição ao soerguimento de trabalhos educacionais como o que foi
feito pelo Professor Paulo Freire, diminuindo a necessidade de gritos de
rebeldia, a exemplo daqueles entoados por Zé Ramalho, sobre os versos de Livardo Alves, Orlando Tejo e Gilvan
Chaves, assim gizados:
“UM PAÍS ONDE AS LEIS SÃO DESCARTÁVEIS
/ POR AUSÊNCIA DE CÓDIGOS CORRETOS / COM QUARENTA MILHÕES DE ANALFABETOS / E
MAIOR MULTIDÃO DE MISERÁVEIS / UM PAÍS ONDE OS HOMENS CONFIÁVEIS / NÃO TÊM VOZ,
NÃO TÊM VEZ, NEM DIRETRIZ / MAS CORRUPTOS TÊM VOZ E VEZ E BIS / E O RESPALDO DE
ESTÍMULO INCOMUM / PODE SER O PAÍS DE QUALQUER UM / MAS NÃO É, COM CERTEZA, O
MEU PAÍS.”(Encarte do compact
disc Nação Nordestina, nº
7432175467-2, São Paulo: BMG do Brasil Ltda, 2000).
Sem qualquer menoscabo ao homem que
aqui vive, mas considerando que a eleição que se controverte não ocorrerá em um Cantão
da Suíça, mas sim no interior do Nordeste brasileiro, acho que seria exigir
muito de alguém que quer representar o seu povo um escorreito domínio da língua
pátria. O que o pretendente a candidato diz saber e o que o seu
impugnante quase nunca consegue provar são bases mais do que jurídicas
para o deferimento do registro.
Sim, porque apesar de a maioria das
impugnações manejar, com destreza, o adjetivo de apedeuta, geralmente nada provam nesse sentido. E aí?
Haveria a odiosa inversão do onus probandi? Onde ficaria o milenar princípio de que quem
acusa tem o dever de provar, salvo honrosas e não aqui cabíveis exceções?
Aliás, acho até que não provam porque é dificílima uma definição laica do que é
“analfabeto”, imagine dar color jurídico a essa
assertiva!
Só para fazer um teste, saí a
perguntar, a pessoas que labutam fora do círculo das profissões jurídicas, o
que é “ser analfabeto”. Quando, em conversa amistosa, dirigi a indagação a
Vicente Serejo, professor, jornalista, escritor e
membro da Academia Norte-Riograndense de Letras,
recebi deste, ao invés de uma resposta, um outro questionamento: “Será um
ágrafo?”, esclarecendo que este é o qualificativo de quem não escreve e
confessando as suas limitações em atender ao que eu investigava.
Além da crua realidade nordestina,
ingrediente ideológico que graças a Deus continuo a inserir nas minhas
reflexões e nos meus julgados, lembro, para mim e para
os que divergem do meu pensamento, que Jean Jaques Russeau, aquele mesmo que brindou a humanidade com “Do
Contrato Social”, foi analfabeto até os trinta anos de idade e somente aos
trinta e cinco começou a escrever, conforme atesta Graça Aranha em “A Estética
da Vida”, página 194.
Juiz Federal em Natal (RN)
Professor da Universidade Federal do RN e da Escola Superior da Magistratura
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