Capitalismo Contemporâneo e Democracia: uma avaliação institucional

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Resumo: Este artigo teve objetivo analisar os princípios básicos da democracia e do capitalismo, de forma a descobrir se no mundo contemporâneo é possível uma concepção em que esses dois institutos possam coexistir. O resultado dessa abordagem revelou que diante das mudanças materiais e estruturais que ocorreram no mundo, o capitalismo não tolera a “democracia popular”, clássica, uma vez que esta ameaça os seus domínios. No entanto, dentro de uma perspectiva mais realista, nada impede que esses institutos convivam.


Palavras-chave: Democracia, Capitalismo, mundo contemporâneo, coexistência


Sumário: 1. Pressupostos da democracia versus pressupostos do capitalismo. 2. As transformações democráticas no mundo capitalista contemporâneo. 4. Conclusão. Referências bibliográficas.


1. Pressupostos da democracia versus pressupostos do capitalismo


O conceito clássico de democracia engloba um regime cujos anseios de seus cidadãos, diretamente, ou dos seus representantes, eleitos através do voto da maioria, são garantidos e respeitados. A democracia, segundo o discurso da filosofia Aristotélica, é o governo do povo, um regime através do qual todos, desde que sejam simplesmente cidadãos, controlam o governo.


O fundamental nesse conceito é que os homens sejam tratados como iguais, e que o Estado tenha a obrigação de se dedicar à manutenção e proteção dos direitos dos cidadãos.


Segundo Schumpeter, essa filosofia pode ser enunciada como “o arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realizam o bem comum fazendo o povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo” (1977, p.313). Isso significa que o povo tem o controle sobre o governo, o que implica uma submissão das elites às massas.


Robert Dahl complementa essa idéia ao afirmar que para que um governo seja considerado democrático ele deve “continuar sendo responsivo durante certo tempo, às preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais. Todos os cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas: de formular suas preferências; de expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e coletiva e; de ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação do conteúdo ou da fonte da preferência” (1997, p. 26).


O capitalismo, por sua vez, é comumente definido como um sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção e na relativa liberdade de contrato sobre estes bens.


Outro conceito atribuído ao capitalismo é o de que ele é um sistema de governo vinculado ao Estado, que delega aos seus agentes o poder econômico para celebrar transações de natureza monetária. Um mecanismo em que a formação de preços coordena a oferta e a demanda, enquanto o governo põe o sistema em prática e o mantém atualizado.


Para a teria política marxista “no capitalismo, todos os governos devem respeitar e proteger as demandas essenciais daqueles que possuem a riqueza produtiva da sociedade” (Przeworsky, 1995, p. 87).


Considerados, portanto, a partir de seus conceitos fundamentais, democracia e capitalismo apresentam conteúdos aparentemente incompatíveis entre si. Todavia, de acordo com Schumpeter, historicamente, “a democracia moderna cresceu com o capitalismo e em conexão casual com ele” (1977, p.369).


O desenvolvimento econômico foi o objetivo político principal que a sociedade democrática definiu para o Estado. Assim, ainda que o capitalismo partisse do pressuposto de que era preciso uma relativa liberdade para se desenvolver e se tornar eficiente, o Estado possuía o papel de definir as instituições políticas e econômicas para sanar as deficiências do mercado.


Para Przeworsky, a legitimidade é uma condição imprescindível ao capitalismo, e esta só é alcançada quando o capitalismo anda ao lado da democracia “seja porque o apoio popular é exigido pelas regras da democracia ou pelo menos porque o consentimento é necessário para desarmar a onipresente ameaça revolucionária.” (1985, p. 90).


Dessa forma, democracia e capitalismo, ao longo do tempo, apresentaram-se entrelaçados, de maneira que, ao passo que as sociedades capitalistas acrescentaram novas dimensões à idéia de democracia, o capitalismo não teria sobrevivido sem o suporte do Estado.


Ocorre, todavia que, após a segunda guerra mundial, uma série de fatores, tais como a chegada da social democracia ao poder em alguns países, e o desenvolvimento de uma esfera econômica e política praticamente autônoma pelo capitalismo, trouxeram a tona uma tensão, antes inexistente, entre o capitalismo e a “democracia popular”.


Para Ellen Meiksins Wood, após a Segunda Grande Guerra, o “capitalismo criou uma relação inteiramente nova entre poder político e econômico, o que torna impossível que a dominação de classe se mantenha coexistindo com os direitos políticos universais” (2006, p.396).


A burguesia utilizou-se da democracia para promover a sua ascensão, entretanto, o seu modelo clássico não poderia continuar a existir, sob o risco de se transformar em uma ameaça real ao capitalismo.


Apesar de conservar a sua base intacta, o capitalismo é uma força em constante mutação, ou seja, o capitalismo não modificou a relação entre proprietários e não proprietários dos meios de produção. Todavia a predominância do capital financeiro ganhou corpo, de forma que certos valores que ele amparava no passado foram substituídos por valores que acentuam o individualismo exacerbado. Isso significa que a atual produção capitalista implica numa mudança cultural geral, que corresponda aos novos anseios do regime de acumulação flexível.


O capitalismo, mais do que nunca, tem objetivado a apropriação privada de recursos escassos. “O princípio fundamental da economia-mundo capitalista é a acumulação incessante de capital” (Wallerstein , 2007, p.88).


De acordo com Bobbio, “na posse dos meios de produção reside uma enorme fonte de poder por parte daqueles que os possuem em relação àqueles que não os possuem: o poder do chefe de uma empresa deriva da possibilidade que a posse ou disponibilidade dos meios de produção lhe dá de obter a venda da força de trabalho em troca de um salário. Em geral qualquer um que possua abundância de bens é capaz de condicionar o comportamento de quem se encontra em condições de penúria” (2000, p. 162).


Há no mundo contemporâneo, portanto, “uma tensão permanente entre o mercado e o Estado. A democracia na esfera política exacerba essa tensão. O mercado é um mecanismo em que agentes individuais decidem alocações com os recursos que possuem, recursos esses que são sempre desigualmente distribuídos. Na democracia, as pessoas, como cidadãos, podem expressar preferências quanto a alocação de recursos que elas não possuem, num contexto de maior igualdade. Só por mágica os dois mecanismos podem levar a um mesmo resultado.” (Pzerorsky, 1995, p. 07)


2. As transformações democráticas no mundo capitalista contemporâneo


Nas últimas décadas o mundo sofreu uma série de transformações que propiciaram ao capitalismo um novo padrão de acumulação de capital e possibilitaram aos seus representantes a retomada do controle social. A época atual é descrita por muitos como um período dominado pelas necessidades e requisitos do capital financeiro.


Ante essas mudanças na estrutura global de dominação, a teoria clássica da democracia passa a conferir um grau completamente irrealista de iniciativa aos cidadãos. “Não existe um capitalismo governado pelo poder popular no qual o desejo das pessoas seja privilegiado aos dos imperativos do ganho e da acumulação e, no qual, os requisitos da maximização do benefício não ditem as condições mais básicas de vida. O capitalismo é estruturalmente antiético em relação à democracia, em princípio, pela razão histórica mais óbvia: não existiu nunca uma sociedade capitalista na qual não tenha sido atribuído à riqueza um acesso privilegiado ao poder. Capitalismo e democracia são incompatíveis também, e principalmente, porque a existência do capitalismo depende da sujeição aos ditames da acumulação capitalista e às “leis” do mercado das condições de vida mais básicas e dos requisitos de reprodução social mais elementares, e esta é uma condição irredutível. Isso significa que o capitalismo necessariamente situa cada vez mais esferas da vida cotidiana fora do parâmetro no qual a democracia deve prestar conta de seus atos e assumir responsabilidades. Toda prática humana que possa ser convertida em mercadoria deixa de ser acessível ao poder democrático. Isso quer dizer que a democratização deve ir da mão da ‘desmercantilização’”. (WOOD,2006. p.396)


Resta claro, portanto, que os preceitos da democracia clássica e do capitalismo contemporâneo não podem coexistir, pois “o controle privado dos meios de produção está na base tanto da capacidade da classe capitalista de explorar o trabalho como de sua capacidade de impor os ditames de seu interesse de classe sobre a administração dos negócios políticos da comunidade; o poder político da classe capitalista aparece então como apenas uma forma particular de seu poder econômico. Intere-se daí que, por um lado não pode haver democracia enquanto esse poder existir (Schumpeter 1977, p.295 ).


O discurso defendido pela democracia clássica, em que todos os cidadãos participam ativamente da vida política da nação, além de utópico, fere os interesses capitalistas, pois “o poder social passou às mãos do capital, não só em razão de sua influência direta na política, mas também por sua incidência na fabrica, na distribuição do trabalho e dos recursos, assim como também via os ditames do mercado. Isto significa que a maioria das atividades da vida humana fica fora da esfera do poder democrático e da prestação de contas” (WOOD, 2006. p.41)


Consequentemente, diante das mudanças materiais e estruturais que ocorreram no mundo, pode-se dizer que o capitalismo não tolera a “democracia popular”, clássica, uma vez que esta ameaça os seus domínios.


Todavia, seria um equívoco afirmar que democracia e capitalismo não podem coexistir, pois nada impede que, dentro de uma perspectiva mais realista, esses institutos convivam.


A democracia apenas foi deslegitimada de seus conceitos elementares, pois o capitalismo contemporâneo somente “pretende desvencilhar-se do abraço mortal do Estado” (Bobbio, 2000, p.226). Isso significa que “as pessoas ainda podem exercitar seus direitos como cidadãos, desde que isso não interfira de forma direta no âmbito econômico” ( Pzerorsky 1995, p.87).


Os direitos políticos podem, inclusive, ser ampliados, mas os poderes de exploração do capital devem permanecer, de certa forma, intactos. “Existiram mudanças materiais e estruturais que modificaram o significado e conseqüências da democracia. Precisamente estas mudanças asseguraram que, quando a democratização moderna teve lugar – especialmente sob a forma do sufrágio universal – não representasse tanta diferença como a que poderia ter provocado previamente, ou como quem lutou por ela tivessem esperado. (…) o capitalismo possibilitou que os direitos políticos se convertessem em universais sem afetar fundamentalmente à classe dominante (WOOD, 2006, p. 400).


A discussão contemporânea sobre a democracia mudou com o desenvolvimento do capitalismo. De um modo geral, as sociedades capitalistas acrescentaram uma nova dimensão ao ideal capitalista. “Democracia não significa nem pode significar que o povo realmente governe, em qualquer sentido mais óbvio dos termos ‘povo’ e ‘governe’” (Schumpeter, 1995, p. 355).


Pouco a pouco, as chamadas “democracias populares”, foram substituídas por uma democracia liberal, cuja forma de organização corresponde aos interesses do capital financeiro e à ideologia neoliberal.


A democracia contemporânea deve ser entendida em termos de cidadania passiva, ou seja, aquela em que não há a efetiva participação popular nas políticas implantadas pelo Estado.  “O povo pode ter direitos políticos, pode votar, e os governos podem ter interesses e concepções próprias (…) mas a capacidade efetiva de qualquer governo para atingir qualquer objetivo é circunscrita pelo poder público do capital” (Pzerorsky, 1995, p.87)


A nova face do capitalismo, em especial nas esferas política e econômica, desencadeou todas essas mudanças no conceito de democracia. “É óbvio que a democracia nas sociedades capitalistas significa algo muito diferente do que foi originalmente – não simplesmente porque o significado da palavra mudou, mas sim porque também o fez o mapa social em sua totalidade. As relações sociais, a natureza do poder político e sua relação com o poder econômico, e a forma da propriedade mudaram. Agora é possível ter um novo tipo de democracia que está confinada a uma esfera puramente política e judicial – aquilo que alguns denominam democracia formal – sem destruir os alicerces do poder de classe. O poder social passou às mãos do capital, não só em razão de sua influência direta na política, mas também por sua incidência na fabrica, na distribuição do trabalho e dos recursos, assim como também via os ditames do mercado. Isto significa que a maioria das atividades da vida humana fica fora da esfera do poder democrático e da prestação de contas” (WOOD, 2006, p. 401).


A sociedade contemporânea, tão pródiga na promoção do poder econômico, espera que a democracia busque novos parâmetros para acompanhar o patamar criado pelo capitalismo. “De uma maneira ou de outra, então, as concepções dominantes de democracia tendem a: substituir a ação política com cidadania passiva; enfatizar os direitos passivos em lugar dos poderes ativos; evitar qualquer confrontação com concentrações de poder social, particularmente se for com as classes dominantes, e finalmente, despolitizar a política” (WOOD, 2006, p. 398).


O conceito de igualdade foi relativizado e a democracia deixou de ser o governo do povo para ser considerada o sinônimo de cidadania passiva. Hoje ela é vista como a responsável por zelar pelos direitos do cidadão.


A globalização promoveu uma reestruturação social e “uma das mudanças mais impressionantes deste século tem o virtual desaparecimento de uma total negação da legitimidade da participação popular no governo”(DAHL, 1997, p.28). O capitalismo criou uma campo político separado, ao qual corresponde um tipo de democracia cujo exercício pleno praticamente não atinge as esferas de interesse do capitalismo.


3. Conclusão


O presente trabalho teve como objetivo esclarecer acerca da compatibilidade ou incompatibilidade entre a democracia e o capitalismo na atualidade, buscando fazer um reexame dos princípios básicos desses dois institutos. Para isso, foi necessário recorrer a conceitos fundamentais sobre o tema, de forma a vislumbrar uma concepção realista para o impasse.


Infere-se dos estudos realizados que o conceito literal de democracia vincula a sua legitimidade aos anseios diretos de seus cidadãos, ao passo que o capitalismo hoje, mais do que nunca, busca impor os seus interesses econômicos sobre a administração política da sociedade.


Nos últimos anos o capitalismo se tornou um sistema econômico praticamente universal. Todavia, este instituto, cujo pressuposto é a apropriação privada de recursos escassos, tem como sua marca fundamental a desigualdade. Fato esse que entra em conflito com uma característica chave da democracia clássica que é “a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais” (DAHL, 1997, p.25).


A democracia clássica é impraticável numa sociedade como a nossa, mas ignorar o novo panorama global e deixar de qualificá-la, através de uma nova perspectiva, seria um equívoco, pois nada impede que, com os devidos ajustes, democracia e capitalismo convivam.


No atual contexto, a essência da democracia foi reduzida a um sistema jurídico onde não há a efetiva participação popular nas políticas Estatais. Esse novo panorama, todavia, não significa que o capitalismo tenha passado a prescindir do Estado, ou que a democracia perdeu a sua importância.


Hoje, a democracia possui um significado muito diferente do original. A democracia que foi legitimada reside na separação e independência dos poderes fundamentais do estado. O governo continua a, indiretamente, pertencer ao povo, uma vez que os cidadãos são os responsáveis por eleger os seus representantes – ao menos, na esfera legislativa. Contudo, a participação popular foi drasticamente reduzida da esfera econômica.


No mundo contemporâneo, a essência de qualquer governo para atingir os seus objetivos é circunscrita pelo poder do capital. Por isso, o que tem se presenciado é a adequação da democracia a esse sistema.


Assim sendo, conclui-se que, democracia e ordem capitalista podem conviver em perfeita harmonia desde que haja a devida separação das esferas política e econômica. Para que capitalismo e democracia possam coexistir, um desses institutos não tem que aderir aos ditames do outro, mas simplesmente se adaptar.


 


Referências bibliográficas:

ARISTÓTELES, Política.  Trad. Mário da Gama Kury, UnB Brasília:, 1989.

BOBIO, Noberto, Teoria Geral da Política. Campus, Rio de Janeiro, 2000.

DAHL, Robert. Poliarquia. Edusp, São Paulo, 1997.

PRZEWORSKY, Adam, Estado e economia no capitalismo. Relumé Dumará, Rio de Janeiro, 1995.

SCHUMPETER, Joseph, Capitalismo, Socialismo e Democracia. Zahar Rio de Janeiro, 1977.

WALLERSTEIN, Immanuel, O universalismo europeu. A retórica do poder. Boitempo Editorial ,São Paulo, 2007

WOOD, Ellen Meiksins. Estado, Democracia y globalización. En publicacion: La Teoria Marxista Hoy: Problemas y perspectivas Boron, Atilio A.; Amadeo, Javier; Gonzalez, Sabrina. 1ª ed.: Consejo Latino de Ciências Sociales. GLACSO, Buenos Aires, 2006.

Informações Sobre o Autor

Lívia Paula de Almeida Lamas

Advogada. Licenciada em Letras. Estudante regular do Curso Intensivo de Doutorado – UBA. Professora Universitária. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Especialista em Direito Público


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Equipe Âmbito Jurídico

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