Resumo: A presente monografia analisou como o Supremo Tribunal Federal, instância judiciária máxima e corte constitucional, aprecia casos de colisão de direitos fundamentais, harmonizando-os. Para tanto, utilizou exemplos de recentes julgamentos pertinentes ao tema, com a análise dos motivos que levaram a tais decisões, além da visão doutrinária a respeito.[1]
Palavras-chave: princípios – direitos fundamentais – conflitos – Supremo Tribunal Federal– Constituição Federal de 1988.
Abstract: This monograph analyzed how the Supreme Court, highest court of law and the constitutional court, assesses cases of collision of fundamental rights, and harmonizing them. For such purpose, has used examples of recent trials relevant to the topic, with the analysis of the reasons that led to these decisions, as well as doctrinal views on the subject.
Keywords: principles – fundamental rights – conflicts – Supreme Court – the Constitution of 1988.
Sumário: Introdução. Considerações iniciais e conceito dos princípios fundamentais. Antinomia entre princípios, elevados a direitos fundamentais pela Constituição. Análise de casos concretos de contraposição de direitos fundamentais e sua apreciação pelo STF. 4. Conflito entre o direito à intimidade e vida privada e o direito à honra e imagem. 5. Conflito entre o direito à imagem e honra e o direito à liberdade de informação e imprensa. 6. Apreciação da chama “Lei de Imprensa” (que limitava a extensão da reparação dos danos causados à honra e imagem) e o direito à livre manifestação do pensamento e liberdade de expressão. 7. Conflito entre direito à liberdade e o direito à propriedade. Conclusão. Referências.
Introdução
Visa o presente estudo discorrer sobre a colisão de direitos fundamentais e como tal acontecimento é apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, guardião da Carta Maior, envolvendo temas atuais e de grande valia tanto nos nossos Pretórios, quanto em nossa sociedade, visando, através de pesquisa nas melhores e atuais doutrinas (afora os referidos julgados), demonstrar como age nosso pretório máximo quando instado a dirimir conflitos entre direitos fundamentais.
Afinal, na concretização dos direitos fundamentais se busca a aplicação na vida cotidiana dos juridiscionados o escopo maior da Constituição Federal: a proteção à dignidade da pessoa humana, a fim desta alcançar o máximo de sua plenitude em sua existência.
Neste sentido, é imprescindível se verificar como o Pretório Excelso atua quando há colisão de dois ou mais destes direitos fundamentais, razão do presente artigo.
Tal escopo se realiza através de pesquisa nas melhores doutrinas e julgados do STF, trazendo à baila este pertinente e palpitante tema.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS E CONCEITO DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
O Estado Democrático de Direito, visto sob a moderna ótica dos direitos de primeira à quinta gerações busca, sob todos os prismas e formas, lograr o desenvolvimento integral da pessoa humana.
Para tanto, além dos postulados legais que pululam na órbita jurídica, lança mão, pelo legislador constituinte, de princípios gerais a serem por todos observados e elevados à fundamentais, posto que inseridos na Carta Magna (em seu artigo 5º) e com o grau de cláusula pétrea (artigo 60, §4º, IV, da Constituição Federal).
Portanto, tais princípios são a base, o fundamento não apenas do ordenamento jurídico em si, mas, além, das relações entre as pessoas e diretores do planejamento futuro da nação em todos seus aspectos.
Diferem das normas, pois estas, apesar de serem regras gerais, visam enfrentar determinadas situações da vida, aplicando-lhas. Já os princípios, ante sua abertura e generalidade, visam uma miríade de situações e formas jurídicas, previstas ou imprevistas, presentes ou futuras, sendo, portanto normas generalíssimas.
Conceituando tal distinção, o jurista alemão Robert Alexy assim preleciona:
Princípios são mandamentos de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, sendo que a medida devida de seu cumprimento depende não apenas das possibilidades reais, mas também das jurídicas, cujo âmbito é determinado por princípios e regras opostos. Já as regras, são normas que só pode ser cumpridas ou não. Se uma regra é valida, então há que se fazer exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Portanto, as regras contem determinações no âmbito do fático e juridicamente possível.[2]
Assim, ante tais especificidades, salta aos olhos sua força jurídica, que não pode ser menor que de uma regra jurídica qualquer, senão ao contrário.
Neste sentido, mister utilizar, para iniciar a trilha no estudo deste instituto, a explicação de Celso Antonio Bandeira de Mello, demonstrando a força jurídica dos princípios:
“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada”. [3]
Assim, alguns destes princípios – por si só alicerces do arcabouço jurídico – ganharam mais força ainda ao serem guindados pelo legislador constituinte a direitos fundamentais, transformados em norma materialmente constitucional, reforçando-os ainda mais.
2. ANTINOMIA ENTRE PRINCÍPIOS, ELEVADOS A DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO
A atual Constituição, promulgada em 05/10/1988 é fruto das mais diversas tendências políticas e sociais, sendo um amálgama destes mais distintos antagonismos.
Tal diversidade, por óbvio, carreia ao texto constitucional diversos princípios fundamentais no intuito de, sob a ótica do legislador, promover e aprofundar a dignidade da pessoa humana em seus mais variados e profundos aspectos.
Portanto, é mais do que plausível a possibilidade de choques entre um ou mais destes princípios, gerando o fenômeno jurídico da antinomia, que, para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, é:
“A oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcial), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhes uma saída nos quadros de um ordenamento dado “[4]
No direito, para se dirimir a antinomia, se usa, via de regra, os seguintes critérios:
1. Critério Hierárquico (norma superior revogando norma inferior): no conflito entre uma norma inferior e outra superior, esta deve prevalecer sobre aquela.
2. Critério Cronológico (lei posterior revoga anterior): havendo conflito entre duas normas de igual hierarquia prevalece a editada posteriormente, consoante dispõe o artigo 2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil.
3. Critério da Especialidade (norma especial revoga a geral): assim, cotejando-se duas normas de mesma hierarquia, a norma especial prevalece sobre a norma geral, visto que o legislador, ao tratar de um determinado tema de maneira especifica, procede, ao menos presumidamente, com mais acuidade.
Ora, tais critérios – quando do choque de princípios que foram elevados a direitos fundamentais na Constituição Federal – são absolutamente inócuos.
Com efeito, os princípios elevados a direitos fundamentais são todos parte de uma mesma norma (Constituição), superior a todas as outras no ordenamento; foram promulgadas, salvo pouquíssimas exceções, ao mesmo tempo (05/10/1988) e são, como visto acima, generalíssimas por sua natureza.
Portanto, o desafio do intérprete constitucional (função por excelência do Supremo Tribunal Federal) é, em vez de preferir determinado direito fundamental a outro, realizar a ponderação, razoabilidade, proporcionalidade e harmonia entre os mesmos, visando seus fins maiores: a consecução da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito.
Afinal “uma vez verificada a ocorrência de uma autêntica colisão de direitos, consiste (a resolução) na ponderação dos bens jurídicos envolvidos, almejando a solução do conflito com o sacrifício mínimo dos direitos fundamentais e dos valores constitucionais em jogo, devendo o intérprete, para tanto, utilizar-se dos princípios da unidade da Constituição, da concordância prática e da razoabilidade”. [5]
Percuciente, também para orientar tal caminhar, o escólio de conflito de direitos fundamentais, da lavra do jurista português José Carlos Vieira de Andrade:
“Haverá colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição concreta. A esfera de proteção de um certo direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de colidir com uma norma ou princípio constitucional. O problema agora é outro: é o de saber como vai resolver-se esta contradição no caso concreto, como é que se vai dar solução ao conflito entre bens, quanto ambos (todos) se apresentam efectivamente protegidos como fundamentais (…).
Terá, pois, de respeitar-se a proteção constitucional dos diferentes direitos ou valores, procurando a solução no quadro da unidade da Constituição, Isto é, tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes.” [6]
Assim, serão analisados neste artigo alguns casos apreciados pela Suprema Corte brasileira quando há direitos fundamentais contrapostos, observando-se como tal elevado pretório laborou no intuito de harmonizar os direitos em tela.
3. ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS DE CONTRAPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA APRECIAÇÃO PELO STF
Com efeito, serão narrados abaixo diversos casos de conflito de direitos fundamentais e o ingente esforço do Supremo Tribunal Federal em harmonizá-los e mantê-los no intuito da prevalência da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito.
Uma vez no texto constitucional, havendo em conflito dois ou mais destes princípios fundamentais, não se pode alcançar o resultado simplista de se privilegiar um em detrimento de outro sob a alegação de “invalidade” do renegado.
4. CONFLITO ENTRE O DIREITO À INTIMIDADE E VIDA PRIVADA E O DIREITO À HONRA E À IMAGEM
Em 1997, Gloria de los Angeles Treviño Ruiz, cantora mexicana conhecida como Gloria Trevi, fugiu do México, ao ser acusada de abuso sexual em menores, restando decretada sua prisão pelas leis daquele país.
Três anos depois, em Janeiro de 2000, a mesma foi presa no Brasil e mantida sob custódia na carceragem da Polícia Federal em Brasília, aguardando o trâmite do processo de extradição.
Neste ínterim, Gloria Trevi ficou grávida, dizendo ter sido vítima de contínuos estupros supostamente perpetrados por mais de 60 pessoas (entre policiais federais e ex-detentos) que, visando dirimir tal dúvida, espontaneamente forneceram material para feitura de exame de DNA.
Indagada sobre quem seria o pai de seu filho, a mesma voltou às acusações e negou-se a fazer o elucidativo exame de DNA, suscitando reclamação[7] perante o Supremo Tribunal Federal para evitar cumprimento de decisão de instância inferior fosse colhido sangue da placenta, durante o parto e de seu recém-nascido, para tal intento.
Para tanto, alegou estar em risco seu direito à vida privada e intimidade, alegando in verbis:
“Não é preciso dizer que, justamente por isso, a suplicante, enquanto pessoa humana e mãe, goza do direito exclusivo de autorizar, ou não, a realização de exame de material genético dela e de seu filho, ao passo que este terá, no futuro, o direito de propor a investigação de paternidade, se assim o desejar, no moldes do que prescrever a Lei civil.
Neste contexto, afora ela mãe, ninguém tem o direito de promover a coleta de material dela ou de seu filho, para a realização de ditos exames, pouco importando, para isso, o fato de ter sido concebido o nascituro enquanto se encontrava ela, mãe, presa nas dependências da Polícia Federal.
Mais grave, ainda, é o fato de se querer colher o material à revelia dela suplicante, com flagrante violação e intromissão na sua intimidade e vida privada, direitos estes protegidos pela Lei maior.”[8]
A tais direitos se antagonizaram o direito à honra e à imagem dos acusados que viram-se, além de serem indigitados como estupradores, objeto de reportagens, expondo-os e procedimentos buscando à persecução penal pelos supostos estupros.
Em sede de inquérito policial, alguns deles, de tão aviltados, chegaram a não apenas pedir pela realização do teste de DNA, mas sim exigir tal feitura, dizendo “sou um homem digno”.
Outros acusados moveram queixa-crime contra jornalistas que os acusaram de tais relações sexuais sob a alegação de que estes “fulminaram a (honra objetiva) reputação dos requerentes, tipificando os crimes de calúnia e difamação e, (honra subjetiva) auto-estima tipificando o crime de injúria.”
Em suma, de um lado uma pessoa lutando por seu direito à intimidade e vida privada e de outro, pelo menos 60 inocentes, buscando a preservação de seu direito à honra e imagem.
O Pretório Excelso, vencido o ministro Marco Aurélio, deferiu a realização do exame de DNA com a utilização do material biológico da placenta retirada de Glória Trevi, determinando ao juízo de primeira instância adotar as providências necessárias para tanto.
Ponderou o Supremo Tribunal que a realização de tal exame não feriria qualquer direito à intimidade ou vida privada da mesma posto não haver qualquer procedimento invasivo na coleta da placenta (que é descartada após o parto) e que a coleta de cabelo ou sangue da criança não lhe traria qualquer prejuízo, sendo certo que tal procedimento é feito, inclusive, para outros exames (como o “teste do pezinho”).
Ademais, restaria violado o direito à personalidade do recém-nascido, privado de saber quem é seu pai…
O voto vencedor, proferido pelo Ministro Néri da Silveira, relator da Reclamação, abordou o cerne da controvérsia, nos seguintes termos:
“Em realidade, assim, de um lado, a extraditanda, ora reclamante, com base no art. 5º, inciso X, da Constituição, alega como o faz na inicial seu direito fundamental à intimidade, à vida privada, em não concordando com qualquer exame de “material genético dela e de seu filho” (fls. 3), e, de outra parte, os Policiais Federais (fls. 186), atingidos, consoante alegam, em sua honra, pelas acusações da reclamante, juntamente com o Delegado Federal que preside o Inquérito Policial em que se apuram os fatos ligados à origem da gravidez da requerente, e o Ministério Público Federal, invocando, por igual, o direito à honra e à imagem, ut art. 52, x, da Constituição, sustentam a imprescindibilidade da prova do DNA do filho da reclamante, recém nascido, o que se pode obter por meio da placenta retirada da reclamante.
“Põem-se, aqui, portanto, em confronto alegações de direitos fundamentais à intimidade, de um lado, e à honra e imagem de outro lado, previstos no art. 5º, inciso X, da Lei Magna da República.
“Edílson Pereira de Farias, in Colisão de Direitos, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2ª ed., p. 130, referindo-se à honra, à intimida- de, à vida privada e à imagem, anota: “Os direitos em epígrafe possuem duplo caráter: além de constituírem direitos fundamentais (com sua especial proteção pelo ordenamento jurídico) são ao mesmo tempo direitos da personalidade, isto é, essenciais à pessoa, inerentes à mesma e em princípio extra patrimoniais. Na verdade, os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem foram paulatinamente sendo perfilados, primeiramente, como direitos subjetivos da personalidade, com eficácia prevalente no âmbito inter privato para só mais tarde alcançar a estatura constitucional”. Não há, em linha de princípio, precedência de um desses direitos sobre os demais, constantes do inciso X, do art. 5º, da Constituição, não cabendo, assim, considerar um deles superior a outro; decerto, todos estão vinculados ao princípio da igualdade da pessoa humana, reconhecido como um dos funda- mentos da própria ordem constitucional (Constituição Federal, art. 1º II).
“Observa, de outra parte, Gilmar Ferreira Mendes, in Colisão de Direitos Individuais (Anotações a propósito da obra de Edilson Pereira de Farias), Revista dos Tribunais – Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n 18, p. 390:
‘A Corte Constitucional alemã reconheceu, expressamente, que, tendo em vista a unidade da Constituição e a defesa da ordem global de valores por ela pretendida, a colisão entre direitos individuais de terceiros e outros valores jurídicos de hierarquia constitucional pode legitimar, em casos excepcionais, a imposição de limitações a direitos individuais não sub- metidos explicitamente à restrição legal expressa. Ressalte- se, porém, que tal como apontado no presente trabalho, o Tribunal não se limita a proceder a uma simplificada ponderação entre princípios conflitantes, atribuindo precedência ao de maior hierarquia ou significado. Até porque, como observado, dificilmente logra-se estabelecer uma hierarquia precisa entre direitos individuais e outros valores constitucional- mente contemplados. Ao revés, no juízo de ponderação, in- dispensável entre os valores em conflito, contempla a Corte as circunstâncias peculiares de cada caso. Daí afirmar se, correntemente, que a solução desses conflitos há de se fazer me- diante a utilização do recurso à concordância prática (Praktesche Konhordanz), de modo que cada um dos valores jurídicos em conflito ganhe realidade.’
Em suma, cotejando os direitos fundamentais acima expostos (e, conflitantes, neste caso concreto ora apresentado), o Supremo Tribunal Federal preponderou a prevalência do esclarecimento da verdade quanto à participação dos acusados no suposto estupro, ressaltando que a realização do exame de DNA não afetaria a intimidade ou a vida privada de Gloria Trevi ou de seu filho.
5. CONFLITO ENTRE O DIREITO À IMAGEM E HONRA E O DIREITO DE LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E IMPRENSA
Em 2004, o chinês naturalizado brasileiro Law Kin Chong manejou, perante a Suprema Corte, mandado de segurança a fim de não ter sua imagem veiculada pela imprensa quando de seu depoimento à CPI da Pirataria, no Congresso Nacional.
A liminar concedida pelo ministro Cezar Peluso não lograra referendo, manejando Law Kin Chong um segundo mandamus[9], alegando que a liminar anterior fora violada a partir do momento em que a TV Câmara transmitiu o depoimento de Kin Chong, sendo as imagens aproveitadas e retransmitidas pelas demais redes televisivas.
Determinando tal conflito, o relator narrou em seu voto o tênue liame entre o direito à imagem e o direito à informação:
Trata-se, em tese, de violação a direitos individuais: direitos à honra objetiva e direitos à própria imagem.
Depois, a mim me parece evidente – aliás, isso ficou claro em minhas decisões (…) que a decisão não obstava nem obsta a publicidade das sessões, mas apenas limita a exposição perniciosa da imagem de quem não se sabe se é testemunha ou é indiciado, porque a Comissão Parlamentar de Inquérito não predefine a condição em que o cidadão intimado deva comparecer e depor perante ela. Isto é, o cidadão não sabe se comparecerá na condição debuxada de indiciado ou se comparece como testemunha. Pode ser apresentado, sem julgamento nem recurso, como um criminoso execrável, com ofensa irreparável à sua honra objetiva e imagem pública. Todos os poderes da comissão estão intactos, e também os da imprensa, que pode assistir ao ato, fazer anotações, publicações, noticiar, etc.
(…) Nem sei, Sr. Presidente, se me excedo em trazer fato que é público e notório, que qualquer pessoa do povo é capaz de verificar: relembrar os excessos que (…) podem ser cometidos por Comissões Parlamentares de Inquérito. Mas vou citar uma, sem identificá-la, porque acho que não é o caso, e a que assisti antes de ter tido a honra de ser nomeado Ministro desta Corte, apenas como magistrado do Poder Judiciário de São Paulo, estarrecido.
Tratava-se de sessão de Comissão Parlamentar de Inquérito, em que um dos parlamentares, velho e experimentado, fez em relação a um diretor de banco, que ali se encontrava na mera condição de testemunha, não diria uma catilinária (porque Cícero, perto daquilo, foi muito suave), mais do que uma catilinária contra o cidadão. Ele foi, ali, pública e ostensivamente, ofendido, processado e condenado, tudo sem recurso!
Terminada a Comissão Parlamentar de Inquérito, o cidadão não foi indiciado, não foi processado, não foi nada… Mas a sua imagem…
Entretanto, seu ponto de vista não logrou obter maioria, restando preponderante o direito à informação e a liberdade de imprensa ante a imagem e honra objetiva.
Basearam-se os ministros vencedores, no disposto no artigo 220, da Constituição Federal e no fato do próprio constituinte prever que a imagem poderia sofrer lesão, sendo outro direito fundamental a garantia de indenização e direito de resposta pelos danos à imagem porventura causados.
Assim, consagrou-se a liberdade de imprensa, estabelecendo a “idade mídia”, nas palavras do ministro Carlos Ayres Britto:
“Nós estamos vivendo uma Idade “Mídia”, por paráfrase com a Idade Média. Nessa Idade “Mídia” é natural que tudo venha a lume, porque é próprio da democracia que todos se tomem dessa curiosidade santa curiosidade pelas coisas do Poder, pelas coisas que dizem respeito à toda coletividade. A democracia é um regime de informação por excelência e, por isso mesmo, prima pela excelência da informação, e é claro que a informação televisada ganha essa tonalidade de excelência, de transparência. No caso, eu entendo que não houve prejuízo ao direito líquido e certo do impetrante de ver sua imagem subtraída do televisamento direto.”
6. APRECIAÇÃO DA CHAMADA “LEI DE IMPRENSA” (QUE LIMITAVA A EXTENSÃO DA REPARAÇÃO DOS DANOS CAUSADOS À HONRA E IMAGEM) E O DIREITO À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O governo militar, em 09/02/1967, promulgou a Lei n. 5.250, a pretexto de regular “a liberdade de manifestação do pensamento e de informação”.
Tal diploma, dentre outras normas, delimitava tanto os valores de indenização por danos causados à imagem e à honra de pessoas por veículos de comunicação, quanto estabelecia curtíssimos prazos prescricionais para o exercício do direito de ação.
Irresignado com tal fato, o Partido Democrático Trabalhista manejou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 130, a fim de retirar a eficácia de tal norma na órbita jurídica nacional.
E o Pretório Excelso, como fez no caso acima relatado, o fez cotejando-se os diversos direitos fundamentais envolvidos.
Como se vê no voto do relator ministro Carlos Ayres Britto, que liderou tal entendimento, ao minudenciar o artigo 220, da Constituição:
“É precisamente isto: no último dispositivo transcrito (o artigo 220), a Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. Requinte de proteção que bem espelha a proposição de que a imprensa é o espaço institucional que melhor se disponibiliza para o uso articulado do pensamento e do sentimento humanos como fatores de defesa e promoção do indivíduo, tanto quanto da organização do Estado e da sociedade.
(…) É de se perguntar, naturalmente: mas a que disposições constitucionais se refere o precitado art. 220 como de obrigatória observância no desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pela imprensa? Resposta: àquelas disposições do art. 5º, versantes sobre vedação do anonimato (parte final do inciso IV); direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV).
(…)Mas o exercício de tais liberdades não implica uma fuga do dever de observar todos os incisos igualmente constitucionais que citamos no tópico anterior, relacionados com a liberdade de imprensa.
(…) Mas é claro que os dois blocos de dispositivos constitucionais só podem incidir mediante calibração temporal ou cronológica: primeiro, assegura-se o gozo dos sobredireitos (falemos assim) de personalidade, que são a manifestação do pensamento, a criação, a informação, etc. (…) Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais sobre-situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios.”
Assim, mais uma vez a Corte Maior calibrou direitos fundamentais em conflito, agindo com proporcionalidade e razoabilidade, como exarado em artigo da lavra do ministro Gilmar Mendes, pertinente ao tema ora vertente:
“No processo de ‘ponderação’ desenvolvido para solucionar o conflito de direitos individuais não se deve atribuir primazia absoluta a um ou a outro princípio ou direito. Ao revés, esforça-se o Tribunal para assegurar a aplicação das normas conflitantes, ainda que, no caso concreto, uma delas sofra atenuação.
[…]. Como demonstrado, a Constituição brasileira […] conferiu significado especial aos direitos da personalidade, consagrando o princípio da dignidade humana como postulado essencial da ordem constitucional, estabelecendo a inviolabilidade do direito à honra e à privacidade e fixando que a liberdade de expressão e de informação haveria de observar o disposto na Constituição, especialmente o estabelecido no art. 5.º, X. Portanto, tal como no direito alemão, afigura-se legítima a outorga de tutela judicial contra a violação dos direitos de personalidade, especialmente do direito à honra e à imagem, ameaçados pelo exercício abusivo da liberdade de expressão e de informação.”[10]
E, sobretudo, o Supremo Tribunal Federal deu o norte para as instâncias inferiores e para os jurisdicionados: cotejando-se liberdade de informação com imagem e honra, aquela prevalecerá, devendo buscar o prejudicado o competente reparo “a posteriori”.
7. CONFLITO ENTRE DIREITO À LIBERDADE E O DIREITO À PROPRIEDADE
A própria Constituição Federal assegurou, no inciso LXVII, do artigo 5º, a legitimidade da prisão do depositário infiel.
Contudo, anos após, o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, cujo artigo 7º garante que “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
Assim, tal direito à liberdade passou a fazer parte do status do depositário infiel, ante o disposto na parte final do inciso LXVII e do § 3º, ambos do art. 5º, da Carta Magna.
Restando enorme insegurança jurídica na sociedade, com decisões pró e contra a liberdade dos depositários infiéis, o Supremo Tribunal Federal, através do Recurso Extraordinário n. 466.343, foi instado a decidir definitivamente sobre o tema.
Neste sentido, cotejou o direito de propriedade dos credores ao direito de liberdade dos devedores (depositários infiéis), ante a razoabilidade e proporcionalidade da medida até então vigente (prisão ante o não pagamento).
Debruçando-se sobre tal questão, o ministro Gilmar Mendes, primeiramente citando Waldírio Bulgarelli, assim declinou seu parecer a respeito, seguido unanimemente por seus pares:
“Ao infeliz fiduciante (devedor) resta bem pouco, posto que nunca se viu tão grande aparato legal concedido em favor de alguém contra o devedor. Assim, não pode discutir os termos do contrato, posto que, embora ‘disfarçado’ em contrato-tipo, o contrato de financiamento com garantia fiduciária é efetivamente contrato de adesão, com as cláusulas redigidas pela financeira, impressas, e por ela impostas ao financiado; não é sequer, o devedor, um comprador que está em atraso, posto que, por ‘um passe de mágica’ do legislador, foi convertido em DEPOSITÁRIO (naturalmente, foi mais fácil enquadrá-lo, por um Decreto-Lei, entre os depositários, do que reformar a Constituição, admitindo mais um caso de prisão por dívidas), terá direito, se já pagou mais de 40% (quarenta por cento) do preço financiado, a requerer a purgação da mora, em três dias; terá direito ao saldo do bem vendido pela financeira depois de descontado todo o rol de despesas, taxas, custas, comissões etc., fato que dificilmente virá a ocorrer; trate, por isso, o devedor de jamais se atrasar e nunca, mas nunca, pense em não pagar sua dívida, posto que o mundo inteiro ruirá sobre si, e fique feliz se não for preso.
Diante desse quadro, não há dúvida de que a prisão civil é uma medida executória extrema de coerção do devedor-fiduciante inadimplente, que não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot), em sua tríplice configuração: adequação (Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito.”
Portanto, colidindo-se o direito de liberdade do devedor (depositário infiel) e o direito de propriedade do credor deve prevalecer, no caso concreto, aquele em detrimento deste, posto que tal medida – ao contrário da prisão do devedor alimentício – visa uma mera recomposição patrimonial do credor, constrangendo a liberdade individual, novamente prestigiada e assegurada pelo Supremo Tribunal Federal.
CONCLUSÃO
Como visto nos exemplos acima narrados, o Supremo Tribunal Federal vem, ao longo do tempo e graças ao elevado estribo intelectual e sensibilidade de seus ministros, cotejar, com proporção e razoabilidade, os conflitos entre os direitos fundamentais.
A Suprema Corte, como vimos, dá plena preferência à liberdade em todos os seus aspectos, devendo, por exemplo, alguém que se sinta prejudicado, ir buscar a competente reparação, em vez de restringir ou vedar a realização de determinado ato.
Assim, está dado o norte, tanto para os jurisdicionados, quanto às autoridades, primando-se os conflitos entre direitos fundamentais pela ponderação e harmonia dos mesmos, com especial predileção pela liberdade em todos os seus prismas.
Advogada e Professora.
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