Comentários iniciais à súmula 492 do STJ: adolescentes e internação no tráfico de drogas

Conforme veiculado pelo Informativo 501 STJ, a Terceira Seção daquele E. Tribunal Superior editou a Súmula 492 com o seguinte teor:

 “O ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente”.  

Como bem demonstram precedentes julgados do mesmo Tribunal acerca do tema, já vem de longa data a interpretação daquela corte no sentido de que para atos infracionais perpetrados sem violência ou grave ameaça não há possibilidade de adoção da medida de internação, a não ser em casos de gravidade e ainda considerando a reiteração da conduta pelo adolescente em questão.

Na realidade, tanto a Súmula 492 STJ como as decisões que vêm sendo tomadas pelo E. Tribunal nada mais são do que o reconhecimento da necessidade do cumprimento das regras e princípios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) no trato da matéria.

É sabido que o ECA impõe a medida de internação como “ultima ratio” do sistema, deixando bem clara a característica de sua “brevidade” e “excepcionalidade” na letra do artigo 121 daquele diploma legal. Portanto, quando o STJ proclama em sua Súmula que a prática do tráfico de drogas ou mesmo de qualquer ato infracional não implica, obrigatoriamente, na imposição de medida socioeducativa de internação, está apenas ecoando o Princípio da Excepcionalidade estabelecido pela legislação a que deve dar efetivo cumprimento.

É preciso ter em conta que mesmo em se tratando do tráfico de drogas, crime de suma gravidade e até equiparado a hediondo (artigo 2º., da Lei 8.072/90 c/c artigo 5º., XLIII, CF), é fato que essa prática delitiva não conta com o elemento da violência ou da grave ameaça. É bem verdade que no entorno do tráfico há muita violência, mas a conduta específica de traficar drogas não passa de um comércio ilícito que, em si, não comporta violência alguma.

A falta desses elementos da violência ou da grave ameaça tem sido interpretada pela jurisprudência do STJ, que agora se cristaliza na Súmula 492, como óbice à decretação da medida de internação pelo E. Juízo da Infância e Juventude nos estritos termos do artigo 122, I, da Lei 8.069/90.  Somente se poderá cogitar de internação em tráfico havendo reiteração da conduta pelo adolescente, vez que esta é inegavelmente grave, embora não revestida das características da violência ou grave ameaça. É o que estabelece com clareza solar o artigo 122, II, da Lei 8.069/90.

Não obstante, mesmo em casos de reiteração, caberá ao Juiz individualizar a medida socioeducativa de acordo com cada caso concreto e sempre observando a excepcionalidade ou “ultima ratio” da internação disposta pela lei (artigo 121, ECA). Ora, a Súmula 492, STJ é apenas o reflexo da legislação e, mais que isso, de toda uma conformação dessa legislação a um modelo de matriz humanitário – garantista a estabelecer as medidas privativas de liberdade como último recurso e jamais como obrigatórias ou mesmo como primeira opção ao magistrado.

Sabe-se que a edição dessa Súmula poderá gerar na denominada “opinião pública”, normalmente dirigida e ampliada pelos recursos midiáticos, um inconformismo e uma falsa impressão de que o Tribunal estaria a “liberar” a prática de tráfico para menores. Isso deriva obviamente da mais profunda e obscura ignorância das mais comezinhas regras jurídicas, inclusive aquela da divisão dos poderes, em que o Judiciário não legisla, mas dá cumprimento às normas legais.

Como já explicitado o STJ vem apenas fazendo isso, que é sua missão. Vem garantindo a aplicação das normas estabelecidas pelo regular processo legislativo e que culminaram com a edição do ECA (Lei 8.069/90). Essa função de garante da lei, ora bem exercitada pelo STJ, o converte naquilo que realmente deve ser, ou seja, em também garante das liberdades individuais. Desde antanho já ensinava Cícero (106 a.C.) que “servi legis sumus,ut libri possumus” (“para sermos livres devemos ser escravos da lei”).

Sabe-se que não mais é defensável uma função judicial de mera “boca da lei”. Um judiciário autômato, que apenas repete acriticamente textos legislativos sem levar em conta princípios caros à humanidade, à sociedade e mesmo a adequação mais correta ao caso concreto sob sua apreciação. A vetusta escola da exegese e as lições de um positivismo jurídico chapado já não exercem qualquer espécie de atrativo intelectual.

Fala-se hoje, com acerto, de duas fontes de legitimação da jurisdição, uma formal, decorrente do Princípio da Legalidade e da submissão do Juiz à lei e outra substancial, segundo a qual deve o Judiciário fazer valer os direitos fundamentais dos indivíduos, podendo inclusive questionar a validade de uma lei, declarando-a inconstitucional ou aplicando-a de acordo com a Constituição. [1]   

Mas, essa margem de liberdade conferida à jurisdição não pode extrapolar determinados limites para permitir decisões “contra ou extra legem” sem fundamentação adequada. É por isso que ao STJ ou a qualquer tribunal, ainda que superior, não caberia questionar as regras e princípios estabelecidos pelo ECA (Lei 8.069/90), as quais, inclusive, derivam da própria conformação constitucionalmente erigida para o trato da infância e da juventude (inteligência do artigo 227, V, CF). Observe-se agora que a excepcionalidade das medidas mais restritivas não é apenas oriunda de norma ordinária (artigo 121, ECA), mas está incrustada na própria Carta Magna.

Vale transcrever a lição de Cambi:

“Porém, a concretização judicial dos princípios jurídicos não deve ser destituída de critérios racionais e objetivos. Não deve dar ensejo ao voluntarismo judicial, pelo qualquer valoração imposta pelo Judiciário deve ser considerada válida. Se o neopositivismo propugna a não – identificação do texto com a norma, a maior valorização dos princípios constitucionais nas decisões judiciais não deve resultar no mais intenso subjetivismo ou decisionismo. No Estado Democrático de Direito, não se admite que as decisões judiciais sejam tomadas por critérios puramente emotivos ou pela citação vaga de princípios, sem a criteriosa análise do caso concreto e desacompanhada de argumentação jurídica sólida. Quanto mais vaga é a norma, maiores devem ser  os ônus argumentativos do intérprete”. [2]

E também o magistério de Friede:

“Em nenhuma hipótese tem o magistrado uma autoridade e um poder que não estejam nitidamente previstos e limitados pela Constituição Federal e pelas leis infraconstitucionais que com ela convergem. Por esta razão, não podem os juízes – como erroneamente supõem os menos avisados – realizar o que se convencionou atecnicamente chamar de Justiça, de forma ampla, subjetiva e absoluta, considerando que o verdadeiro e único poder, outorgado legítima e tradicionalmente aos magistrados – desde o advento da tripartição funcional dos poderes – é a prestação jurisdicional, com o consequente poder de interpretação e aplicação do ordenamento jurídico vigente, majoritariamente criado – em sua vertente fundamental – pelo Poder Legislativo, rigorosamente limitado à absoluta observância de regras próprias e específicas que, forçosamente, restringem o resultado final do que se convencionou chamar de Justiça na sua acepção básica, objetiva e concreta e, portanto,  dependente da efetiva preexistência de uma denominado Direito Justo”. [3]

Ora, no caso sob discussão sequer pode se falar em vaguidade normativa ou na existência de algum “espaço jurídico livre” ou “silêncio eloqüente” [4] por parte do legislador a invocar a função jurisdicional de colmatar eventuais lacunas. A lei ordinária é cristalina e a Constituição também (inteligência dos artigos 121 e 122, I e II do ECA e 227, V, CF). Nesse contexto a única função reservada aos Juízes e Tribunais é a de garantia do cumprimento das normas legais e constitucionais. Função esta da qual vem muito bem se desincumbindo o Superior Tribunal de Justiça por suas reiteradas decisões que culminam com a edição da Súmula 492.

Obedece aquele Tribunal Superior à orientação bem posta de J. J. Calmon de Passos, segundo o qual “o magistrado não é um homem para se contrapor à ordem jurídica. O magistrado é um homem para dar concreção a uma ordem jurídica. Ordem jurídica que tem uma feição política irrefutável, porque não tem sentido que você imagine uma contradição dialética dentro do exercício do próprio Poder”. [5]

E não é somente com relação a regras e princípios específicos do trato da infância e juventude constitucional e legalmente previstos que vem se portando com acerto o STJ em seu posicionamento a respeito do tema em debate. Entram em jogo nesse contexto também Princípios Constitucionais como os da Individualização da Pena e da Proporcionalidade.

Quando a Súmula 492 STJ determina que a internação não é “obrigatória” em caso de ato infracional que envolve tráfico de drogas, está claramente rendendo homenagem ao Princípio da Individualização da Pena, devidamente transposto para o campo das medidas socioeducativas. Se o E. Tribunal Superior dissesse o contrário, admitiria uma franca violação de tal princípio, já que estaria permitindo uma reação fixa e não individualizada para o ato infracional consistente no tráfico de drogas. Estaria admitindo que a medida socioeducativa de internação pudesse ser abstratamente prevista como a única cabível a qualquer caso envolvendo tráfico por parte de adolescentes, independentemente das características específicas do caso concreto submetido à jurisdição.  

Doutra banda, o posicionamento do STJ respeita à proporcionalidade na medida em que não permite um tratamento mais rigoroso aos menores do que aquele dado aos maiores pela legislação e pela jurisprudência pátrias.

Já advertia com antevisão Railda Saraiva, ainda antes da edição do ECA, que ao jovem infrator dever-se-iam assegurar todas as garantias dispostas aos adultos no Direito e no Processo Penal, evitando-se que uma falsa ideologia protetiva acabasse violando os direitos fundamentais dos menores, imprimindo-lhes “tratamento mais rigoroso do que o dispensado aos adultos”. [6]

Esse perigo antevisto pela estudiosa acima mencionada pode facilmente operar-se, como de fato se opera em algumas circunstâncias. O ECA e todo o aparato institucional infanto – juvenil  é um manancial de “eufemismos jurídicos”. Denomina-se de “Instituição Casa” aquilo que nada mais é do que uma “Penitenciária para adolescentes”. Chama-se de “internação”, o que é nada mais, nada menos do que uma “pena de prisão” ou “privativa de liberdade”. Fala-se em “Auto de Apreensão em Flagrante”, que equivale a um “Auto de Prisão em Flagrante”. Em “Internação Provisória”, que nada mais é do que o equivalente a uma “Prisão Preventiva”. Esses são apenas alguns exemplos da paridade do tratamento infanto – juvenil ao adulto somente disfarçada sob a maquilagem de “eufemismos jurídicos”.

Mas, não é somente uma igualdade desproporcional ocultada por eufemismos que se pode constatar. Também há intentos, por vezes concretizados, de conferir aos menores um tratamento mais rigoroso que aquele dispensado aos adultos. Exemplo disso foi a longa discussão acerca da prescritibilidade ou não dos atos infracionais. Pretendia-se estabelecer, no silêncio da lei, que os atos infracionais eram imprescritíveis, ao passo que os crimes e contravenções cometidos por adultos estavam submetidos a essa causa de extinção de punibilidade, somente afastável em casos excepcionalíssimos constitucionalmente previstos. Ora, a infração à proporcionalidade era visível, mas acenava-se com uma suposta missão pedagógica da repressão infracional, quando é notório que, se esta função pedagógica existe realmente, ela certamente é correlata à chamada ressocialização da pena prevista para os maiores e certamente perde de igual forma sua função com o passar do tempo. Foi necessário que, nesse “silêncio eloqüente” do ECA, se manifestasse do próprio STJ através da Súmula 338 para firmar que “a prescrição penal é aplicável nas medidas socioeducativas”.  Certamente havia aqui aquela dita lacuna ou “espaço jurídico livre” que possibilita à jurisdição dar efetividade aos comandos constitucionais, fazendo com que o ordenamento jurídico se submeta aos princípios superiores a que está atrelado, no caso específico, ao princípio da proporcionalidade.

Nem sempre, porém, a proporcionalidade é aplicada no que tange ao tratamento dispensado aos menores em comparação aos adultos. Um exemplo é a questão da ação penal. Os atos infracionais são todos apurados de ofício, acenando-se com a necessidade de intervenção pedagógica perante o menor desajustado. Doutro lado, os maiores podem ser beneficiados em situações em que a ação penal é púbica condicionada ou mesmo privada, operando-se a extinção de punibilidade pela decadência no prazo de 6 meses (artigo 38, CPP). E em todos esses anos poucos foram aqueles que se aperceberam dessa disparidade e não cederam ao mantra midiático de que os menores recebem um tratamento brando da legislação em todos os aspectos e sem qualquer justificativa plausível.

No caso específico do tráfico de drogas poder-se-ia alegar que realmente os adolescentes recebem um tratamento diferenciado mais benéfico. É bem verdade que quando ocorre a prisão em flagrante de um maior perpetrando tráfico com um menor, o primeiro permanece preso sem direito a fiança (artigo 5º., XLIII, CF c/c artigo 323, II, CPP).  Quanto ao adolescente, este é liberado mediante termo de compromisso e responsabilidade de forma praticamente imediata pela Autoridade Policial, desde que esta cumpra a legislação. Isso se faz em estrita obediência ao disposto nos artigos 173, Parágrafo Único c/c 174 do ECA). Esses dispositivos permitem a elaboração de mero Boletim de Ocorrência Circunstanciado com a liberação do menor infrator a um responsável sempre que o ato infracional não for cometido com violência ou grave ameaça, o que, obviamente, se faz em consonância e de forma sistemática com o disposto nos artigos 121 e 122, I e II do mesmo diploma. Ora, se um adolescente, depois de definitivamente condenado por ato infracional sem violência ou grave ameaça, inclusive o tráfico, não pode ser submetido à internação, a não ser em caso de reiteração infracional, mesmo assim individualizando-se de forma fundamentada a adoção da medida, o que dizer da mera apreensão em flagrante pela Autoridade Policial. Admitir essa apreensão equivaleria a permitir a aplicação de medidas cautelares prisionais a adultos que supostamente cometeram infrações para as quais não é prevista pena privativa de liberdade, em franca infração ao Princípio da proporcionalidade (inteligência do artigo 282, I e II c/c 283, § 1º., CPP).

É de se observar que os dispositivos acima elencados do Código de Processo Penal demonstram a preocupação do legislador ordinário com a proporcionalidade das Medidas Cautelares a serem impostas aos adultos em sede processual penal. Observe-se ainda que não são somente as prisões cautelares que são proibidas à infração penal a que não se preveja pena privativa de liberdade, mas toda e qualquer medida restritiva, ainda que bem menos aflitiva, tais como aquelas alternativas previstas nos artigos 319 e 320, CPP.

Qual seria a coerência perante o Princípio da Proporcionalidade em relação ao tratamento dado a maiores e menores que aos segundos, mesmo em casos em que a lei específica (Lei 8.069/90 – artigos 121 e 122, I e II) não prevê internação, possibilitasse a apreensão ou a internação provisória?

Sob esse ângulo percebe-se que o adolescente infrator não tem tratamento mais benigno na situação de Apreensão em Flagrante por Tráfico, mas apenas um tratamento proporcional correlato àquele conferido aos adultos no Código de Processo Penal (artigos 282, I e II c/c 283, § 1º., CPP).

Resta, porém, a indagação quanto ao fato de que o maior permanece, no caso específico do tráfico, preso e sem direito à fiança, enquanto que o menor é posto em liberdade. Ademais, aos maiores a pena privativa de liberdade pode ser aplicada diretamente e o regime inicial de cumprimento é o fechado, enquanto para os menores estabelece a lei especial que a internação é “ultima ratio” e somente se aplica em caso de reiteração, vez que o ato infracional não é daqueles dotados de violência ou grave ameaça (conflito aparente entre os artigos 121 e 122, I e II do ECA e os artigos 33 e 44 da Lei 11.343/06 e artigo 2º., II e § 1º., da Lei 8.072/90). 

Acontece que a jurisprudência vem atenuando bastante o tratamento acima dado aos casos de tráfico envolvendo adultos. O STF já julgou que a liberdade provisória com fiança é inadmissível para os casos de tráfico, inclusive por força constitucional (inteligência do artigo 5º., XLIII, CF c/c artigo 2º., II, da Lei 8.072/90), mas não o é a liberdade provisória sem fiança. Aliás, a Lei 11.464/2007 retirou da redação do artigo 2º., II, da Lei dos Crimes Hediondos a vedação expressa à liberdade provisória em geral, abrangendo aquela sem fiança, o que produzia uma espúria “prisão preventiva obrigatória”, incompatível com o Princípio da Presunção de Inocência (artigo 5º., LVII, CF). [7] Assim sendo, a diferença de tratamento entre maiores e menores não é tão grande assim, vez que o maior poderá em tempo razoável obter sua liberdade provisória e permanecer tão solto quanto o menor, ao menos a partir desse novo posicionamento do STF acerca da matéria, o qual tende a se consolidar. [8]

Também é fato que o estabelecimento do regime inicial fechado pela lei não tem sido óbice a decisões, inclusive do STF, acerca do cabimento de penas alternativas no tráfico de drogas a infratores primários por tratar-se de crime sem violência ou grave ameaça, o qual, em caso de aplicação de diminuição de pena (artigo 33, § 4º., da Lei de Drogas) pode ter reprimenda bem abaixo de 4 anos (inteligência do artigo 44 do Código Penal). Tem-se considerado que o Princípio da Individualização da Pena permitiria ao julgador estabelecer reprimendas alternativas, mesmo diante do regime inicial fechado legalmente previsto, desde que satisfeitos os requisitos previstos no artigo 44 do Código Penal Brasileiro. [9] É de trivial conhecimento que a pena privativa de liberdade no contexto do Direito Penal contemporâneo tem sido encarada também como “ultima ratio”, exercendo tal entendimento forte influência na conformação das legislações penais, inclusive a brasileira, com o surgimento de alternativas à prisão. Dessa forma, há claramente uma grande semelhança entre a situação do adolescente perante a medida socioeducativa de internação e o adulto perante a pena privativa de liberdade. A verdade é que dificilmente um adulto primário e de bons antecedentes que pratica um crime sem violência ou grave ameaça, recebe uma pena de prisão, o que não o diferencia muito do menor praticante inicial de ato infracional sem violência ou grave ameaça. Tudo isso está a demonstrar que a posição adotada pelo STJ é de mero garantidor da aplicação da Constituição e das normas ordinárias em coerência e cumprimento às garantias constitucionais especificamente protetivas dos menores e também de princípios gerais como os da Individualização da Pena e da Proporcionalidade.

Considera-se que qualquer crítica ao procedimento do STJ na elaboração dessa Súmula 492 ou em suas decisões acerca do tema é absolutamente descabida pelos motivos acima expostos. Entretanto, não será de todo afastável o posicionamento daqueles que eventualmente pretendam apontar uma deficiência protetiva no trato do tráfico de drogas, seja em relação a menores ou maiores infratores.

Ocorre que há um costume ou talvez até mesmo um vício em enxergar o denominado garantismo, tão bem ilustrado e fundamentado por Ferrajoli, [10] somente sob o seu aspecto “negativo”, ou seja, na medida em que se limitam os poderes do Estado perante o indivíduo (v.g. proibição de tortura). Há, porém sua faceta positiva em que se concede ao Estado certos poderes sobre o indivíduo, visando à proteção dos interesses sociais (v.g. pena de prisão, prisões provisórias etc.).  Assim pode haver inconstitucionalidade por excesso quando uma lei é por demais invasiva ou violadora de direitos individuais (v.g. uma lei que permitisse a interceptação telefônica aleatoriamente). Mas, também pode haver inconstitucionalidade por deficiência protetiva quando o Estado não protege bens jurídicos relevantes de modo adequado (v.g. uma lei que permitisse matar ou roubar impunemente ou que previsse penas muito irrisórias para tais condutas). [11]

Não obstante, esse não é um problema a ser imputado ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Judiciário, ao Ministério Público, às Polícias, mas sim ao legislativo. Eventualmente a conformação de um Direito Penal e de um Estatuto da Infância e Juventude em que a privação de liberdade para maiores e menores seja encarada como “ultima ratio” pode não se chocar com a previsão legal de prisão e internação como regra para os casos de tráfico, considerando a devida aplicação de um “garantismo positivo” e do colmatar de uma lacuna proporcionada por uma suposta proteção social deficiente. Se, dentro de um critério de proporcionalidade assim se considerar adequado e necessário, será o caso de reformas legislativas, por exemplo, prevendo no ECA a possibilidade de internação para o ato infracional equiparado ao tráfico de drogas, inobstante a falta de violência ou grave ameaça, considerando seu caráter de equiparado a hediondo e sua gravidade “in abstrato” e abolindo da Lei 11.343/06 a causa de diminuição de pena do § 4º., do artigo 33. O que seria inadmissível é que o Judiciário não garantisse o cumprimento da legislação ora vigente e dos princípios a ela aplicáveis por força legal e constitucional.

Toda a questão agora se resume a decidir se esse caminho de recrudescimento no tratamento do tráfico, seja para maiores ou menores infratores é o melhor a ser tomado ou se haveria vias alternativas. Migra-se do âmbito da legalidade, proporcionalidade e individualização para o da razoabilidade e bom senso.

E há sim argumentos suscetíveis se serem levantados em prol de um tratamento mais rigoroso para os menores traficantes de drogas, assim como para os maiores incidentes no mesmo delito, considerando que a tolerância exagerada e o eventual laxismo podem ser incrementadores da criminalidade.

Tratando especificamente dos menores, já vaticinava Railda Saraiva:

“Assim, a necessidade de amor e proteção é uma realidade inegável, bem como o cuidado que deve merecer a personalidade do menor, mas isso não pode significar a ausência de responsabilidade social. Há, com efeito, necessidade de se salvar o menor, como há necessidade de se salvar o adulto. É o próprio homem quem está a merecer maiores cuidados, numa visão mais humanista e solidária. Assim, não se pode descurar a atenção que merecem aqueles que são alvos preferidos das atrocidades cometidas por menores. E se é inegável que o menor representa para a sociedade o seu ‘capital de reserva’, o que vai lhe garantir o futuro, é bom lembrar que não há futuro sem presente e nem presente sem passado. Assim o adulto que garante o presente da nação é, dentro dessa perspectiva, o ‘capital em aplicação’ que inegavelmente merece cuidados especiais, bem como não se pode descurar a dívida contraída para com os velhos que através de seu trabalho em dias pretéritos permitiram a construção do presente que se pretende tenha continuidade no futuro pelo trabalho dos jovens de hoje. Assim, não se justifica a preterição de certos contingentes populacionais em favor de outros, considerando-se a faixa etária e o possível benefício que virão a prestar à comunidade”. [12]

Resta evidente que há necessidade de obedecer sempre a um critério de proporcionalidade no tratamento de maiores e menores no que diz respeito aos seus direitos e deveres.

Assim como a absoluta igualdade é indesejável nessa seara, também uma política de tolerância exacerbada para com os menores é desaconselhável. Essa espécie de pensamento pode isolar os jovens “da realidade que os circunda, proclamando que todas as suas necessidades devem ser satisfeitas e que por um  certo número de anos não se lhes deve exigir nenhum sentido de responsabilidade. Com isto tem-se uma nefasta consequência: uma juventude sociologicamente parasita e principalmente sem propensão a exercitar o seu senso de responsabilidade”. [13]

Efetivamente é constatável que uma psicologia e sociologia de caráter complacente para com a delinquência juvenil têm um destino ao fracasso. O papel da juventude se alterou, sua participação social e seu grau de consciência do certo e do errado, bem como o acesso às mais diversas informações não é o mesmo de décadas pretéritas. Dessa forma impõe-se uma maior responsabilização social da juventude em todos os aspectos e especialmente no que se refere ao cometimento de infrações penais. “A participação no processo sócio – político implica, necessariamente, na existência de responsabilidade. Os direitos devem ter sempre seus correspondentes em deveres e obrigações e a liberdade se há de exercitar nos parâmetros delineados pela responsabilidade”. [14]

Conclui-se, portanto, que o STJ andou bem ao assegurar o cumprimento das normas legais e constitucionais vigentes no atual contexto, o que não impede uma visão crítica e reformadora do atual “status quo”, mediante a devida ponderação e a tomada do caminho do correto Processo Legislativo, obediente aos ditames da Constituição Federal. Se o recrudescimento penal e infracional são necessários e adequados é tema para uma nova discussão no âmbito específico da Política Criminal. O que é induvidoso é que todos, maiores ou menores, devem exercer suas liberdades e direitos com o correlato cumprimento de seus deveres e responsabilidades sociais.

 

Referências:
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. São Paulo: RT, 2009.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer “et al.” São Paulo: RT, 2002.
FRIEDE, Reis. O magistrado e o ideal de justiça. Caderno de Estudos – Encarte Especial. Revista In Verbis. n. 37, p. 603 – 610,  jan., 2011.
MORAES, Railda Saraiva de. Desenvolvimento e Criminalidade. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1979.
STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do Princípio da Proporcionalidade: da proibição  de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista Ajuris. n. 97, p. 180, mar., 2005.
Notas:
[1] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. São Paulo: RT, 2009, p. 280.
[2] Op. Cit., p. 304.
[3] FRIEDE, Reis. O magistrado e o ideal de justiça. Caderno de Estudos – Encarte Especial. Revista In Verbis. n. 37, jan., 2011, p. 603.
[4] CAMBI, Eduardo. Op. Cit., p. 293.
[5] Apud, FRIED, Reis. Op. Cit., p. 605.
[6] MORAES, Railda Saraiva de. Desenvolvimento e Criminalidade. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1979, p. 162.
[7] Plenário, HC 104339/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10 de mai. 2012. Disponível: http://migre.me/92vK4. Acesso em: 11 de mai. 2012.
[8] Observe-se que a decisão é do Plenário.
[9] HC 97.256/RS, Rel. Ministro Ayres Britto, onde se declarou a inconstitucionalidade da vedação de penas alternativas para o tráfico.
[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer “et al.” São Paulo: RT, 2002, “passim”.
[11] Cf. STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do Princípio da Proporcionalidade: da proibição  de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista Ajuris. n. 97, mar., 2005, p. 180.
[12] MORAES, Railda Saraiva de. Op. Cit., p. 135 – 136.
[13] Op. Cit., p. 136.
[14] Op. Cit., p. 137 – 138.

Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


Equipe Âmbito Jurídico

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