A Constituição da República Federativa do Brasil elencou entre as sanções proscritas a denominada pena capital ou de morte (artigo 5°, inciso XLVII, alínea “a”). Contudo, o referido dispositivo constitucional excepcionou a vedação “em caso de guerra declarada”. Sobre o aspecto, o texto constitucional atribui privativamente ao Presidente da República a competência da declaração de guerra, “no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele” (artigo 84, inciso XIX).
No que concerne aos litígios internacionais, adotamos com absoluta primazia o princípio da “solução pacífica dos conflitos” (artigo 4º, inciso VII, da Constituição da República Federativa do Brasil). Conflito ou litígio internacional é ordinariamente definido como toda contradição ou oposição de teses jurídicas ou de interesses entre dois Estados. Sobre o tema JOSÉ FRANCISCO REZEK bem observa que: “a palavra conflito tem talvez o inconveniente de trazer-nos ao espírito a ideia de um desacordo sério e carregado de tensões, mas é preferível, por seu largo alcance, ao termo litígio, que lembra sempre os desacordos que se trabalham e resolvem em bases diplomáticas ou políticas, e mesmo daqueles que importam confrontação armada” (Direito Internacional Público, 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 327).
Atualmente, a guerra é vista como um fato ilícito internacional, pelo que a concepção da existência do “jus ad bellum” ou “direito à guerra” restou superada. Contudo, não se descarta a possibilidade dos Estados socorrerem-se desta “via de solução de litígios internacionais”, como de fato ocorre. A declaração de guerra é um fato que também repercute na ordem interna de nosso Estado. Neste caso, a teor das normas constitucionais, nos casos de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”, ou “declaração de estado de guerra ou reposta à agressão armada estrangeira”, o Presidente da República, devendo previamente, ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, e após solicitar autorização ao Congresso Nacional, poderá decretar o chamado Estado de Sítio (artigo 137). Sobre o tema PINTO FERREIRA lembra que: “a Constituição vigente de 1988 manipulou conceitos diferentes, repelindo a terminologia do Estado de emergência e da segurança nacional, existente no Estado autoritário, falando, ao contrário, da defesa do Estado e das instituições democráticas” (Curso de Direito Constitucional, 12ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 463).
Conceitualmente, “o estado de sítio consiste, pois, na instauração de uma legalidade extraordinária, por determinado tempo e em certa área (que poderá ser o território nacional inteiro), objetivando preservar ou restaurar a normalidade constitucional, perturbada por motivo de comoção grave de repercussão nacional ou por situação de beligerância com Estado estrangeiro” (JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 748). Denota-se que a declaração de guerra é um ato que gera variados efeitos, sendo que talvez o mais drástico seja aquele que viabiliza a aplicação da pena de morte em nosso ordenamento jurídico.
À luz do princípio constitucional da legalidade ou reserva legal (artigo 5°, inciso XXXIX), a lei penal deve definir previamente os crimes que cominem a pena de morte como sanção penal. Das disposições constitucionais, se infere que a pena capital está intimamente relacionada com o estado de beligerância. Assim, o legislador penal não poderá validamente cominar pena de morte a crimes que não tenham intima relação com esta situação excepcionalíssima de instabilidade institucional.
Regulamentando a matéria, o legislador infraconstitucional estabeleceu no artigo 10, do Código Penal Militar, o significado dos denominados “crimes militares em tempo de guerra”, assim os considerando, especialmente, os previstos neste Código, em tempo de guerra, entre outros, verbi gratia, traição (artigo 355); favor ao inimigo (artigo 356), tentativa contra a soberania do Brasil (artigo 357), coação a Comandante (artigo 358), informação ou auxílio ao inimigo (artigo 359), aliciação de militar (artigo 360), ato prejudicial à eficiência da tropa (artigo 361), traição imprópria (artigo 362), cobardia qualificada (artigo 364), fuga em presença do inimigo (artigo 365), espionagem (artigo 366), motim, revolta ou conspiração simples e qualificados (artigo 368, “caput” e parágrafo único), incitamento em presença do inimigo (artigo 371), rendição ou capitulação (artigo 372), falta de cumprimento de ordem qualificada (artigo 375, parágrafo único), separação reprovável (artigo 378), abandono de comboio qualificado (artigo 379, parágrafo primeiro), dano especial (artigo 383), dano em bens de interesse militar (artigo 384), envenenamento, corrupção ou epidemia (artigo 385), crimes de perigo comum (artigo 386), recusa de obediência ou oposição (artigo 387), violência contra superior ou militar de serviço (artigo 389, “caput” e parágrafo único), abandono de posto (artigo 390), deserção (artigo 391), deserção em presença do inimigo (artigo 392), libertação de prisioneiro (artigo 394), evasão de prisioneiro (artigo 395), amotinamento de prisioneiros (artigo 396), homicídio qualificado (artigo 400, inciso III), genocídio (artigo 401), roubo ou extorsão (artigo 405), saque (artigo 406), e violência carnal qualificada pela morte (artigo 408, parágrafo único, alínea “b”).
E para complementar a regulamentação da matéria, o Código Penal Militar definiu o “tempo de guerra” em seu artigo 15, estabelecendo que este “começa com a declaração ou o reconhecimento do estado de guerra, ou com o decreto de mobilização se nele estiver compreendido aquele reconhecimento; e termina quando ordenada a cessação das hostilidades”.
Sobrevindo o trânsito em julgado da sentença penal condenatória à morte, a condenação deve ser imediatamente comunicada ao Presidente da República, e somente após o transcurso do lapso temporal de sete dias, contados a partir desta comunicação, a pena de morte poderá ser executa, mediante fuzilamento (artigos 56 e 57, do Código Penal Militar). Estas disposições legais se encontram em harmonia com o texto constitucional, pelo que neste prazo mínimo de sete dias, o Presidente da República pode conceder indulto ou comutar a pena (artigo 84, inciso XII, da Constituição da República Federativa do Brasil), porém não será possível o exercício desta competência constitucional, “se a pena é imposta em zona de operações de guerra”, uma vez que “pode ser imediatamente executada, quando o exigir o interesse da ordem e da disciplina militar”.
Estabelecidas as premissas constitucionais e os conceitos legais relativos à matéria surge interessante questão: seria admitida a execução de condenação à pena de morte, devidamente decretada, após o término do “tempo de guerra”?
A primeira vista, o problema ora analisado poderia ser resolvido com os princípios e regras que regulam a sucessão de leis penais no tempo, ou seja, pelos métodos de solução de conflito de leis penais no tempo. A propósito como dizia GIUSEPPE BETTIOL: “nenhuma manifestação de vida se subtrai à ação inevitável do tempo. Também a lei penal nasce, vive e morre” (Direito Penal, trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, v. 1, p. 173).
Tratando de conflito de leis penais no tempo, temos um princípio basilar que deriva do princípio da legalidade ou da reserva legal. A regra da irretroatividade da lei penal ou da retroatividade da lei mais benigna (artigo 2°, do Código Penal Militar), erigida a princípio constitucional estabelece a consagrada fórmula de que: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (artigo 5°, inciso XL, da Constituição Federal). No preciso magistério de ANÍBAL BRUNO depreendemos que: “A regra de não retroatividade, porém, governa a matéria penal, somente em relação à lei mais severa. Condições próprias desse ramo do Direito, nas bases tradicionalistas em vigor, justificam soluções particulares. Há de fato dois princípios em relação à validade da lei penal no tempo” (Direito Penal, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, tomo I, p. 160). Assim, após o término da guerra, a lei penal militar que a declarou deixa de surtir efeitos, sobrevindo a lei penal militar de tempo de paz, que retroagiria em favor do acusado.
Contudo, em matéria de lei penal excepcional ou temporária, seguindo as diversas legislações penais pelo mundo, o Brasil adotou a aplicação do denominado princípio da ultra-atividade, a exemplo do Código Penal Alemão: “uma lei, que deve vigorar somente até determinado momento, aplica-se às infrações cometidas durante sua vigência, ainda que, devido ao decurso do tempo, tenha deixado de vigorar” (artigo 2º, parágrafo quarto, do Strafgesetzbuch).
O “tempo de guerra” nada mais é que um período de circunstâncias transitórias especiais, sendo que para a solução de conflito de leis penais militares no tempo, poderíamos adotar para a hipótese a previsão do artigo 4º, do Código Penal Militar, de idêntica redação ao do artigo 3°, do Código Penal, que igualmente acolheu o princípio da ultra-atividade da lei excepcional ou temporária, ao estabelecer: “a lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”.
Respeitáveis vozes na doutrina entendem que estas regras seriam inconstitucionais, por violarem o princípio da irretroatividade da lei penal, porém a doutrina majoritária sustenta a necessidade desta exceção ao princípio da retroatividade da lei penal mais benigna, como se nota: “o caráter excepcional da lei, editada em períodos anormais, de convulsão social ou de calamidade pública, justifica a solução adotada. Como tal lei é promulgada para vigorar por tempo predeterminado, seria totalmente ineficaz se não fosse ultra-ativa. Assim, ainda quando mais severa, a lei temporária, por sua natureza, será sempre aplicável aos fatos cometidos durante sua vigência. E isso não fere, segundo se tem entendido, o princípio da retroatividade da lei posterior mais benigna” (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, Princípios Básicos de Direito Penal, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991p. 44).
Entretanto, sem retirar os méritos de validade e utilidade dos princípios que acabamos de analisar, a solução mais justa para o problema se encontra na investigação sobre a natureza da pena de morte e da lei penal militar em tempo de guerra. Acreditamos que o tema discutido merece enfoque mais profundo do que o ponto de vista meramente formal, até mesmo porque estamos lidando com o direito à vida.
A discussão sobre as finalidades da pena é um tema que a extrapola. A depender da opção do legislador é possível verificar a maneira como o Estado encara o cidadão. A teoria da pena oficialmente adotada fundamenta o Direito Penal aplicável. Como brilhantemente observou JUAREZ CIRINO DOS SANTOS: “a política penal realizada pelo Direito Penal é legítima pela teoria da pena, estruturada pelos discursos de retribuição do crime e de prevenção geral e especial da criminalidade – as funções atribuídas à pena criminal pela ideologia penal oficial” (Direito Penal, 2ª ed., Curitiba, Lumen Juris, 2007, p. 454).
Modernamente, na discussão sobre a finalidade da sanção penal a doutrina se inclina para reconhecê-la como prevenção especial, que não pode consistir em qualquer constrangimento físico ao condenado. A pena de morte não pode ser conceituada verdadeiramente como pena, vez que não é dotada de qualquer finalidade. Ela não motiva a conduta do infrator, visa apenas impedi-la. Caracteriza-se pela supressão da vida do condenado, não passando de mera coerção física ou material.
Assim sendo, a pena de morte está fora do campo da legalidade ordinária ou do direito penal constitucional. É admitida apenas no direito penal militar, e sob condições de legalidade extraordinária. EUGENIO RAÚL ZAFFARONI conclui que: “entendemos que a chamada pena de morte não é pena em qualquer ramo do direito penal, mas que o direito penal militar em tempo de guerra merece uma consideração especial. A guerra é o fracasso do direito, é um fenômeno que escapou ao direito. Frente a este fenômeno, a legislação de guerra não faz mais do que prever algumas consequências desta especial circunstância, dentre as quais cabe considerar a possibilidade de uma situação de inculpabilidade, isto é, de inexigibilidade de outra conduta especialmente regrada, e frente a qual se encontra o exército como instituição de emergência. É claro que por ‘guerra externa’ deve-se entender o tempo durante o qual há um estado de guerra internacional que surte todas suas consequências jurídicas, inclusive a aplicação das normas internacionais a respeito (tratamento concedido aos prisioneiros, submissão à proibição de certas armas etc.)” (Manual de Direito Penal Brasileiro, 7ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 672).
A lei que institui o tempo de guerra, por tornar possível a aplicação da pena de morte, não possui a natureza de lei penal militar, uma vez que, como dito a pena de morte não pode ser considerada verdadeiramente uma espécie de pena. Portanto, a previsão do artigo 4º, do Código Penal Militar é inaplicável para o caso. O princípio da ultra-atividade determina que seja aplicada a pena da lei excepcional ou temporária ainda que seja mais severa ao acusado, porém a pena de morte nada mais é do que coerção física.
De outra banda, não podemos perder de vista que em eventual tempo de guerra estarão em jogo interesses e aspirações superiores da República Federativa do Brasil, e mais especificamente a existência do próprio povo que a compõe. A possiblidade de adoção de pena de morte está condicionada a este período de conturbação social. A guerra é o pressuposto e fundamento para a pena de morte. Inexistindo este pressuposto nada mais justifica a punição capital.
Por derradeiro, como afirmamos anteriormente, a Constituição Federal admite a pena de morte apenas em caso de guerra declarada. Em outras palavras, o texto constitucional vedou a pena de morte para o tempo de paz. Assim sendo, ao término das hostilidades, e sobrevindo a paz, a cláusula negativa voltaria a vigorar em sua plenitude, deixando de ser possível a execução de condenação à pena de morte, ainda que ocorra seu trânsito em julgado.
Na Segunda Guerra Mundial o legislador adotou interessante solução. O Decreto Lei n. 4.766, de 1º de outubro de 1942, também conhecido como “Lei de Guerra”, previa em seu artigo 67 que: “Esta lei retroagirá, em relação aos crimes contra a segurança externa, à data da ruptura de relações diplomáticas com a Alemanha, a Itália e o Japão”. Por sua vez, artigo 68 garantia que: “No caso de aplicação retroativa da lei, a pena de morte será substituída pela de reclusão por trinta anos”. Sobre estas disposições BASILEU GARCIA esclareceu que: “tal divergência com a Carta política tornou-se possível pela suspensão de muitas garantias constitucionais em virtude do conflito mundial. O Decreto n. 10.358, de 31 de agosto de 1942, que declarou o estado de guerra em todo território nacional, estipulou que deixavam de vigorar determinados dispositivos da Constituição, inclusive o do art. 122, nº 13, no que dizia respeito à irretroatividade da lei penal” (Instituições de Direito Penal, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2008, v. 1, tomo I, p. 208).
Destarte, no caso de declaração de guerra, e subsequente tempo de paz, a execução das eventuais condenações à pena de morte tornam-se inviáveis, por impedimentos explícitos e implícitos do texto constitucional, sendo possível a adoção da graduação prevista no artigo 81, parágrafo segundo, do Código Penal Militar, in verbis: “quando cominada a pena de morte como grau máximo e a de reclusão como grau mínimo, aquela corresponde, para o efeito de graduação, à de reclusão por trinta anos”.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, Professor de Direito Penal da UniABC – Universidade do Grande ABC.
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