Resumo: O presente trabalho consiste na análise dos conflitos socioambientais, partindo-se da concepção de conflito social, proposta por Georg Simmel. Chegamos à conclusão que a noção de conflito social como forma de socialização, inerente às relações sociais, trazida por Georg Simmel pode nos ajudar a compreender e interpretar os conflitos socioambientais verificados na modernidade.
Palavras chave: Conflito social. Conflito socioambiental. Georg Simmel.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conflito social na perspectiva de Georg Simmel. 3. Conflitos socioambientais e a perspectiva simmeliana. 4. Conclusões. 5. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho consiste na análise dos conflitos socioambientais que despontam na sociedade moderna, partindo-se da concepção de conflito social como forma de socialização, proposta por Georg Simmel. A justificativa para a escolha do tema reside não só na crescente importância com que se tem verificado tais conflitos na modernidade, mas também pela necessidade de se buscar compreender o problema utilizando-se de instrumentais diversos. Nesse sentido, a teoria do conflito social de Georg Simmel, ao focar o conflito como forma de socialização, pode, senão nos trazer novas explicações para o problema, ao menos nos auxiliar a focar a questão com outros olhos.
A questão básica objeto de reflexão foi, com isso, a seguinte: adotando-se como pressuposto de análise a perspectiva de Georg Simmel acerca do conflito social, a que conclusões podemos chegar quanto aos conflitos socioambientais na atualidade. A fim de refletirmos sobre a questão posta, o trabalho foi estruturado em dois capítulos, o primeiro dedicado a uma breve apresentação do conflito social na perspectiva de Georg Simmel, e o segundo consistindo uma tentativa de aproximação dos conflitos socioambientais à luz dessa teoria. Ao final, apresentamos as conclusões a que chegamos com a investigação proposta.
2. O conflito social na perspectiva de Georg Simmel
No senso comum, tanto a noção de conflito, quanto de conflito social é impregnada de atribuições negativas, ou seja, é associada apenas a aspectos negativos da vida social[1]. Na Teoria Social, as abordagens sobre conflito social encontram-se dicotomizadas em dois enfoques, um que o aceita num sentido analítico, e outro que o rejeita, focando-se em questões de ordem e no consenso social[2]. No primeiro sentido, encontram-se autores como Hobbes, para o qual o contrato social somente é possível por meio da coerção, ante a luta de todos contra todos, e Marx que direciona a sua análise à questão dos conflitos de classe.[3] Já a abordagem da sociedade como consenso encontra-se, por exemplo, em Rousseau, com a imagem da sociedade harmônica, em Kant, com a noção de imperativo moral, e em Durkheim, por meio de sua perspectiva naturalista da ordem social[4].
Georg Simmel rompe com essa dicotomia atribuindo ao conflito uma importância sociológica, pois, como toda ação recíproca entre homens, é uma forma de socialização[5]. A sociedade, assim, seria o resultado de categorias de ação recíprocas, como harmonia e desarmonia, associação e competição, favor e desfavor, sendo, portanto, ambas dotadas de um valor positivo[6]. O conflito, deste modo, adquire um significado unificador, não havendo nenhuma unidade social em que as direções convergentes de seus elementos não estejam inseparavelmente mescladas com outras divergentes, sendo irreal um grupo absolutamente harmônico, onde nenhum processo vital propriamente dito poderia se produzir[7]. A oposição de elementos em uma mesma sociedade é compreendida, nesse contexto, como um fator social que não deve ser entendido meramente numa perspectiva negativa, pois, muitas vezes, é o que permite e possibilita a convivência entre o que, de outra forma, seria intolerável[8].
Em diálogo com outros intelectuais de sua época, o final do século XIX, a exemplo de Durkheim, Simmel defende que nem a divisão do trabalho, a atitude frente a um terceiro, a amizade, o amor, o pertencimento a um partido, ou a subordinação, podem constituir, por si sós, uma unidade histórica e mantê-la de modo duradouro, já que quando esse processo se estabelece, o que se verifica é uma pluralidade de formas de relações diferentes e contraditórias[9]. A indagação principal para Simmel é o como vivemos em sociedade no mundo moderno, ou seja, que figura de homem é gerada por esse mundo, ou como a sociedade é possível[10]. Durkheim, de outro modo, preocupava-se mais com o funcionamento da sociedade, em como uma coleção de indivíduos constitui uma sociedade, ou como se chega à condição de existência da vida social que seria o consenso[11]. Os conflitos sociais são, assim, vistos de maneira bastante distinta pelos dois autores, pois para Durkheim a ação reguladora da sociedade que envolve os indivíduos funciona como forma de contenção dos conflitos privados[12], enquanto para Simmel o conflito faz parte da própria socialização.
Simmel afasta-se, deste modo, das explicações gerais da época acerca da realidade da vida social, ocupando-se mais com as formas de ações recíprocas vividas no cotidiano, e sua crescente complexidade nas sociedades modernas, do que com o conteúdo das relações sociais[13]. O olhar de Simmel sobre a vida social reconhece, nesse contexto, a limitação da análise restrita a suas instituições, normas e regras formalistas, ou de se pensar a sociedade como um fato moral ou escolha racional, ressaltando a importância da rede de trocas sociais e afetivas recíprocas, como dimensão vital da agregação social[14].
Com essa abordagem, Simmel traz uma nova perspectiva para a compreensão do conflito social, entendendo-o como meio de integração social, de socialização dos sujeitos, o que permite a análise da relação entre conflito e consenso, como algo que empiricamente encontra-se em toda unidade social[15]. A atribuição de um valor negativo aos processos decorrentes do conflito seria, com isso, problemática, pois desconheceria que o conflito é um dos elementos do processo civilizatório, presente nas mais variadas interações e relações sociais reproduzidas na sociedade, que mantém ou aniquila antigas estruturas, mas também recria novas[16]. Para Simmel é um erro conceber a questão da relação entre unidade e discordância como se uma destruísse o edificado pela outra, já que o resultado dessa interação seria o da adição, e não da subtração, pois o conceito de unidade na sua concepção é “a síntese geral das pessoas, energias e formas que constituem um grupo, a totalidade final em que estão compreendidas, tanto as relações de unidade em sentido estrito, como as de dualidade”.[17]
Nesse contexto, Simmel aponta como uma das virtudes do conflito a sua capacidade de se constituir num espaço social que permite que as partes, às vezes ásperas e díspares, se encontrem num mesmo plano situacional, impondo-se um nivelamento, um ato de reconhecimento do outro, que é condição necessária para própria disputa e eventual superação[18], pois tanto a contraposição, como a composição, negam a relação de indiferença, a exclusão do relacionamento[19]. O conflito, como forma de socialização, exigiria necessariamente, assim, a ação recíproca, que permite o reconhecimento, a relação, ao contrário da exclusão e da indiferença[20], que atuam como elemento desagregador, como ausência de sociabilidade. A indiferença assumiria, deste modo, uma conotação negativa, por afastar as formas de relação antitéticas ou convergentes, capazes de produzir e modificar grupos de interesse, uniões e organizações[21].
A perspectiva de Simmel com relação ao conflito nos dá, nesse sentido, uma abertura para a análise de temas como a violência, não mais pautados pelas tradições sociológicas dicotômicas acima referidas, mas pela compreensão do conflito como constituinte da sociabilidade, que, por vezes, é violenta[22]. Em seu extremo, contudo, podemos pensar a violência como conseqüência da própria ausência de reciprocidade, de sociabilidade, do não reconhecimento mútuo e de negação do outro[23], pois a indiferença frete ao subjetivo é que permitiria o emprego de forças com relação ao outro que, numa luta personalidade com personalidade, muitas vezes somos levados moralmente a não empregar[24].
Com relação à significação sociológica do conflito para a estrutura interior de cada parte, e não entre as partes, Simmel destaca que “a experiência diária ensina quão facilmente a luta entre dois indivíduos modifica não só a relação de cada um com o outro, mas também o indivíduo em si mesmo”[25]. Tal conotação associa-se à ideia de irreconciliação que, no seu significado extremo, para o autor, apontaria que “a alma sofreu com a luta uma modificação que já não se pode recompor”[26], não sendo comparada a uma ferida cicatrizada e sim à perda de um membro.
Quanto às possibilidades de resolução das disputas, Simmel discorre especialmente acerca da vitória, da conciliação, reconciliação e irreconciliação entre as partes. Segundo Simmel, a vitória seria muito peculiar na realidade da vida, apresentando-se em incontáveis formas e medidas, mas sem semelhança com os demais fenômenos que cercam as relações entre os homens[27]. Dentre as muitas formas de vitória, o autor destaca a que ao menos parcialmente há a renúncia de uma parte, para que a outra possa predominar, pois esta resignação do vencido, sem o esgotamento de todas as forças e possibilidades de resistência, não é um fenômeno simples, podendo ser entendido como uma última demonstração de poder, o que, muitas vezes, é sentida pelo vencedor como uma espécie de ofensa[28]. Percebe-se, assim, que a relação conflituosa pode permanecer, ainda que uma das partes saia vitoriosa da disputa.
Quanto ao acordo, deve-se inicialmente verificar se o conflito é suscetível ou não de ser resolvido dessa forma, pois, frente a certos objetos ele não será possível, como quando se pretende um mesmo objeto indivisível, ou em lutas originadas pelo ódio ou vingança[29]. Ainda que envolvendo objetos indivisíveis, quando fungíveis, passa a ser também possível o acordo mediante a substituição de um bem por outro, sendo esta, para Simmel, “uma técnica da vida cotidiana e natural, que constitui um dos maiores inventos da humanidade”, pois o gasto e esforço são menores, e é o princípio de todo o desenvolvimento do comércio e da economia[30]. A troca de bens materiais, por seu turno, representa sempre alguma perda ou renúncia, enquanto os imateriais, como o amor, podem ser trocados sem que isso signifique o enriquecimento de uma parte e empobrecimento da outra. Para que a substituição por meio do acordo ser possível, é necessário, ainda, que os valores e interesses respectivos sejam dotados de um caráter objetivo, ou seja, o valor do objeto deve ser reconhecido da mesma forma por ambas as partes[31]. O acordo representa, nesse contexto, a possibilidade de se evitar a disputa, ou terminá-la antes de se decidir pela utilização da força[32].
Em contraponto ao acordo, que tem um caráter objetivo, Simmel apresenta a reconciliação como um modo puramente subjetivo de resolução dos conflitos, já que o desejo de reconciliação seria um sentimento primário que prescindiria toda a razão objetiva, não sendo controlável pela vontade, como o perdão[33]. As relações reconciliadas, todavia, podem superar em intensidade as que nunca foram rompidas, pois para a reconciliação se destacam de forma mais clara e consciente os valores da relação e dos elementos que contribuem para mantê-la[34].
Realizada essa breve apresentação das ideias centrais de Simmel com relação ao conflito como forma de socialização, vejamos agora a questão dos chamados conflitos socioambientais, de modo que possamos refletir sobre o tema tendo por base tal perspectiva.
3. Conflitos socioambientais e a perspectiva simmeliana
Partindo-se da percepção de Georg Simmel, o conflito é parte integrante das relações humanas, tanto pessoais quanto interpessoais. Na atualidade, contudo, despontam os chamados conflitos socioambientais, entendidos como os conflitos entre grupos sociais derivados das distintas formas de relação que mantêm com o seu meio natural, englobando o mundo biofísico, o humano, e o relacionamento dinâmico e interdependente entre eles[35]. O diferencial dessa forma de conflito, que tem crescido em importância e número, frente ao que se verificava na sociedade industrial, é o retorno do meio ambiente como um de seus elementos constitutivos, pois geralmente se desenvolve em torno de três componentes principais: a) o controle sobre os recursos naturais; b) os impactos ambientais e sociais gerados pela ação humana e natural; e c) o uso dos conhecimentos ambientais[36].
A novidade da inserção da temática ambiental nessa forma de conflito da modernidade é resultado da mudança de entendimento da relação entre o sistema econômico, e o seu desenvolvimento, e o meio ambiente, com o que chamados hoje de desenvolvimento sustentável. Assim, para compreendermos a natureza e dimensões de tais conflitos, necessário abordarmos, ainda que brevemente, tais questões.
A oposição entre natureza e sociedade é uma construção do século XIX, que serviu a um propósito duplo, ignorar e controlar a própria natureza, que foi, assim, absorvida pelo sistema industrial[37]. O sistema econômico era, com isso, tratado de forma isolada, autocontida, como se o meio ambiente pudesse fornecer recursos naturais como insumos de forma abundante e ilimitada, e servir como depósito, também ilimitado, aos resíduos e rejeitos desse sistema. A partir do final da década de sessenta, alguns fatores passaram a tornar evidente a necessidade de análise do sistema econômico como imerso num sistema maior, com o qual interage e impacta, o meio ambiente[38]. Podemos citar entre tais fatores: a acentuação da poluição que acompanhou a prosperidade pós-II Guerra nas economias industrializadas; as crises do petróleo da década de setenta; e a publicação pelo chamado Clube de Roma, do relatório intitulado “Limites do Crescimento”, também conhecido como “Relatório Meadows”, em 1972, que propunha o crescimento zero como única solução possível para evitar o colapso ambiental anunciado.
Ainda em 1972, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizou, em Estocolmo, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, na qual se tornou evidente a resistência dos Países do Sul às conclusões do Relatório Meadows, sendo, também, a primeira vez que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado foi declarado formalmente como um direito fundamental. Em 1980, em estudo intitulado “Estratégia mundial para a conservação”, da UICN (International Union for Conservation of Nature), foi utilizada pela primeira vez a expressão “desenvolvimento sustentável”, que se tornaria conhecida ao ser conceituada, em 1987, no Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ligada à ONU, também conhecido como “Relatório Brundtland” como: “aquele capaz de satisfazer às necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas próprias necessidades” [39].
O desenvolvimento sustentável, assim, em contraponto com o crescimento econômico, acrescenta uma dimensão ambiental à da sustentabilidade social já encontrada na ideia de desenvolvimento, baseando-se no imperativo ético de solidariedade com a geração atual e com as gerações futuras, o que nos compele a trabalhar com ferramentas diversas das da economia tradicional, pois as escalas de tempo e espaço são múltiplas, de modo a eliminarmos o crescimento obtido ao custo de elevadas externalidades negativas, sejam sociais ou ambientais[40]. Tem-se sustentabilidade, com isso, quando na relação do homem com o ambiente natural não ocorrer o esgotamento das bases materiais de reprodução das atividades econômicas, sociais e culturais, ou seja, quando as ações possam se reproduzir no tempo sem esgotar as bases materiais sobre as quais ocorrem[41].
A superação da visão do sistema econômico isolado, que enxerga o meio ambiente como fonte inesgotável, visando a promoção do desenvolvimento sustentável, passa, com isso, pela necessária internalização aos custos da produção dos seus efeitos negativos externos não captados pelo sistema de preços. Tais efeitos são chamados externalidades pela economia, a exemplo do lançamento de poluentes químicos num rio, que não é contabilizado como custo do ponto de vista do empreendedor, mas que provoca diversos impactos ambientais negativos, que acabam sendo suportados pela coletividade e, inclusive, pelas gerações futuras.[42]
Nesse contexto, os riscos ambientais, que inicialmente eram tratados como bens de rejeição, sob a máxima do “in dubio pro progresso”, ou seja, cuja inexistência é pressuposta até prova em contrário, e que são legitimados por não terem sido previstos ou desejados, passam a ser socialmente reconhecidos, e o que era apolítico torna-se político[43] e conflituoso. Tratavam-se os riscos ambientais como um efeito colateral latente equivalente a uma espécie de licença, a um destino natural civilizatório[44], que justificava, ou ignorava, os potenciais danos das ações visando o progresso, o crescimento econômico. Um exemplo são os conflitos envolvendo a contaminação do solo, da água e do ar pelo processo de industrialização, o que por muito tempo foi considerado como simples efeito colateral desse processo sem grandes conseqüências políticas, mas que posteriormente passou a constituir um campo de disputas entre diversos atores sociais, públicos e privados.
No caso brasileiro, a tragédia ocorrida em Cubatão nas décadas de 70 e 80 é um grande exemplo disso, e cujo clamor social à época foi um dos elementos que levaram o Congresso Nacional a aprovar a Lei nº 6.938/81[45], que estabeleceu a Política Nacional de Meio Ambiente – PNMA e instituiu o Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA, que ainda hoje é considerada uma norma muito avançada no tratamento de tais questões. A história da tragédia teve início ainda na década de 50, quando, na fase do chamado “milagre brasileiro”, a Petrobrás escolheu a área de mangue da região para implantar uma refinaria, tendo sido seguida pela Cosipa, empresa siderúrgica, a Coperbrás, indústria de fertilizantes, e multinacionais como a Fiat, Dow Chemical e Union Caribe. Essa concentração industrial em Cubatão era, inclusive, patrocinada pelo próprio governo, ao argumento de que o Brasil poderia importar poluição, já que o seu único problema ecológico seria a pobreza[46]. A área passou a ser conhecida como o município mais sujo do mundo, sendo os mais de 15 mil moradores da favela Vila Parisi, os mais intensamente afetados. Noticia-se que todos os anos era necessário trocar os telhados de zinco, corroídos pela chuva ácida, e que quem ali vivia adquiriam pústulas na pele, ficando conhecidos como “pele de jacaré”. Problemas como asma, bronquite, inflamações nas vias respiratórias e eczema pulmonar eram tão comuns, que os mercados da região passaram a vender máscaras de gás. A Petrobrás insistia que as principais causas de tais doenças eram a subnutrição, o alcoolismo e o tabagismo, enquanto para a Union Caribe, as pessoas já iam para Cubatão doentes, e quando a doença se agravada queriam, ilogicamente, colocar a culpa nas indústrias[47]. A grande catástrofe, contudo, veio no ano de 1984, quando, por negligência da Petrobrás, cerca de 700 mil litros de petróleo foram derramados no mangue, e em menos de dois minutos foram incineradas mais de 500 pessoas que viviam nas palafitas[48].
Tais exemplos, que são muitos, demonstram que as velhas desigualdades sociais vêm sendo consolidadas num novo patamar, enquanto a acumulação e distribuição da riqueza se dão nas classes já mais favorecidas economicamente, os riscos, de modo inverso, acumulam-se nas classes mais desfavorecidas[49], ainda que muitos riscos ambientais ignorem a questão das classes, como o caso da contaminação nuclear, a exemplo da nuvem radiativa de Chernobyl, que atingiu indistintamente ricos e pobres.
Os conflitos envolvendo os bens ambientais são, assim, múltiplos, sendo também muito assimétricos o poder, interesses e ideologias dos diversos os atores sociais que dele participam[50]. Ademais, os problemas socioambientais não se materializam por si sós, são construídos socialmente, e ordenados pelos atores e grupos sociais de forma que nem sempre correspondem aos riscos reais[51], e sim aos percebidos e reconhecidos. A lógica da apropriação das riquezas sociais produzidas pela sociedade industrial, ou seja, dos bens de consumo, renda, propriedade, oportunidades sociais, etc., passa a ser invertida no caso das ameaças ambientais produzidas como um subproduto dessa mesma sociedade, pois ao invés de apropriação, passa-se a negação, rejeição e reinterpretação[52]. Nesse sentido, a pretensa neutralidade científica assume papel central, ao incorporar, nas suas interpretações e recomendações, escolhas que na realidade são políticas e morais[53], a exemplo da liberação de organismos geneticamente modificados para produção e consumo humano, cujas pesquisas científicas, pretensamente neutras, polarizam-se frente a opções políticas diversas, sem que se tenha, ainda, certeza das suas reais conseqüências.
A resolução de conflitos socioambientais, ante a sua complexidade, é tarefa das mais difíceis, sendo mais realista falar em tratamento dos conflitos do que sua solução[54]. Na ótica de Simmel, para que fosse possível o acordo em tal espécie de conflito, seria necessário objetivar os valores dos bens envolvidos, o que é muito difícil tratando-se de bens ambientais, que muitas vezes apresentam significados diversos para as partes envolvidas, a exemplo de um mesmo rio, que para um empreendedor, que pretende construir uma usina hidrelétrica, é um potencial energético, para uma comunidade ribeirinha um meio de vida, e para uma comunidade indígena pode representar simbolicamente um deus. A percepção do objeto em disputa pode ser, assim, muito diversa para cada um dos atores, o que faz com que assumam configurações diferenciadas, ainda que de forma inconsciente ou implícita, especialmente ao envolver elementos simbólicos de maior significação social para uma das partes[55]. Para que seja possível o diálogo, é necessário, assim, que tais percepções sejam consideradas e não ignoradas, a exemplo das disputas envolvendo as comunidades ribeirinhas e indígenas e os empreendedores e órgãos públicos, no extensamente noticiado licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a ser construída no Rio Xingu, Estado do Pará.
Conforme Paul E. Little, no campo do enfrentamento de tais conflitos, contudo, podem ser delineados cinco tipos básicos de tratamento: a) confrontação; b) repressão; c) manipulação política; d) negociação/mediação; e d) diálogo/cooperação[56]. Apesar dessa aparente gradação, o próprio autor reconhece, assim como seria razoável concluirmos tomando por base a perspectiva simmeliana, que nem sempre os tipos menos conflituosos, ou seja, a negociação, mediação, diálogo e cooperação, podem ser no caso concreto, a resposta mais adequada, podendo, ainda, um mesmo conflito passar por diversas formas de tratamento em cada fase do seu desenrolar[57]. De fato, por vezes é pela confrontação que se consegue trazer um conflito socioambiental latente, ignorado por uma interpretação científica pretensamente neutra, para o debate, para o conflito explícito, passível de forçar novas tentativas de resolução. Na visão de Simmel, é exatamente essa indiferença que exclui a relação, que ignora o problema, que assume uma conotação negativa, e não o conflito em si, que traz as partes para o espaço do reconhecimento, do debate.
Nesse sentido, cabe fazermos menção ao caso das construções de grandes hidrelétricas no Brasil, pois num primeiro momento, as populações atingidas eram simplesmente ignoradas, o que para Simmel seria a pior das violências, por excluí-las dos processos de socialização. Com a mobilização de tais populações, hoje representadas pelo movimento social denominado Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)[58], as confrontações passaram a ganhar destaque, não se podendo mais ignorar o conflito. Nesse exemplo é clara a atualidade da noção de socialização trazida pelo conflito, como defendido por Simmel, pois tais populações, em sua luta e resistência, foram integradas aos processos decisórios, passando a ter voz, ainda que muito assimétrica, numa questão social cuja existência era antes ignorada.
4. Conclusões
A noção de conflito social como forma de socialização, inerente às relações sociais, trazida por Georg Simmel pode nos ajudar a compreender e interpretar os conflitos socioambientais verificados na modernidade. Nesse sentido, a indiferença e a exclusão do relacionamento são negativas, por negarem o próprio conflito, não reconhecendo o outro, e não abrindo o espaço para discussão.
A assimetria da percepção que cada ator envolvido no conflito com relação aos bens ambientais em disputa deve ser também apreciada e levada em consideração, para que seja possível o diálogo, e a conciliação ou reconciliação entre as partes. É necessário ainda que a pretensa neutralidade técnica acerca das decisões políticas envolvendo tais conflitos seja exposta, pois tais decisões deveriam ser tomadas num espaço de diálogo, que muitas vezes não é possível ante a assimetria de informações técnicas, e desconstrução da percepção social do risco ambiental.
Procuradora Federal junto à PFE/IBAMA. Ex-Consultora Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Especialista em Desenvolvimento Sustentável e Direito Ambiental pela Universidade de Brasília – UnB. Mestranda em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Associada ao Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…
O benefício por incapacidade é uma das principais proteções oferecidas pelo INSS aos trabalhadores que,…
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes de segurados do INSS que se…
A simulação da aposentadoria é uma etapa fundamental para planejar o futuro financeiro de qualquer…
A paridade é um princípio fundamental na legislação previdenciária brasileira, especialmente para servidores públicos. Ela…
A aposentadoria por idade rural é um benefício previdenciário que reconhece as condições diferenciadas enfrentadas…