Consentimento do ofendido

Resumo: O presente trabalho tem como escopo analisar a estrutura fundamental do consentimento do ofendido, em especial o seu conceito, natureza jurídica e requisitos de validade.


Palavras-Chaves: Dogmática Penal; Teoria do Delito; Antijuridicidade; Consentimento do Ofendido.


Sumário: 1. Noção Geral. Conceito. 2. Natureza Jurídica. 3. Requisitos.


1. NOÇÃO GERAL. CONCEITO.


O consentimento do ofendido significa, em linhas gerais, o ato da vítima (ou do ofendido) em anuir ou concordar com a lesão ou perigo de lesão a bem jurídico do qual é titular.


Com maior detalhamento, dir-se-ia que o consentimento do ofendido significa o ato livre e consciente da vítima (ou do ofendido) capaz em anuir ou concordar de modo inquestionável com a lesão ou perigo de lesão a bem jurídico disponível do qual é o único titular ou agente expressamente autorizado a dispor sobre ele.


2. NATUREZA JURÍDICA.


O consentimento do ofendido, a depender da construção do tipo incriminador diante do qual analisado, pode apresentar-se como:


a) causa de exclusão da tipicidade: se o tipo penal exige o dissenso da vítima enquanto um dos requisitos objetivos formais necessários à completude da figura incriminadora, é claro que o válido consentimento do ofendido exclui a tipicidade. Ex. crimes de violação de domicílio – art. 150 do CP (se alguém permite ou tolera que terceiro ingresse em sua casa, ausente estará a tipicidade da conduta) e estupro – art. 213 do CP (se a mulher consente na relação sexual, inexiste tipicidade);


b) causa supra-legal de exclusão da ilicitude: o consentimento do ofendido, fora essas hipóteses em que o dissenso da vítima constitui requisito da figura típica, pode excluir a ilicitude, se praticado em situação justificante. Ex.: aquele que realiza tatuagens no corpo de terceiros pratica conduta típica de lesões corporais (art. 129 do CP), muito embora lícita, se verificado o consentimento do ofendido; aquele que inutiliza coisa de terceiro, ainda que a pedido deste, pratica conduta típica de dano (art. 163 do CP), muito embora lícita, se presente o consentimento da vítima.


Alguns doutrinadores mencionam a possibilidade de o consentimento do ofendido constituir causa especial de diminuição de pena. A jurisprudência brasileira registra como exemplo disto a eutanásia. Aquele que mata a pedido da vítima e para abreviar o sofrimento desta, teria praticado, segundo a jurisprudência majoritária, homicídio privilegiado (por motivo de relevante valor moral – art. 121, § 1º, CP).[1] Não haveria, neste caso, exclusão da tipicidade nem tampouco da ilicitude, uma vez que a vida seria considerada bem indisponível.


3. REQUISITOS.


O consentimento do ofendido só pode ser reconhecido validamente se presentes os seguintes requisitos, em caráter cumulativo: bem jurídico disponível, ofendido capaz, consentimento livre, indubitável e anterior ou, no máximo, contemporâneo à conduta, bem como que o autor do consentimento seja titular exclusivo ou expressamente autorizado a dispor sobre o bem jurídico. Vejamos, com maior detalhe, cada uma dessas exigências. 


a) que o bem jurídico sobre o qual incida a conduta lesiva seja passível de disposição pelo seu titular.


Consoante Fragoso, “bem jurídico disponível é aquele exclusivamente de interesse privado (que a lei protege somente se é atingido contra a vontade do interessado). O consentimento jamais terá efeito quando se tratar de bem jurídico indisponível, ou seja, aquele bem em cuja conservação haja interesse coletivo”.[2]


Alguns bens jurídicos são facilmente identificados pela doutrina, em geral, como sendo disponíveis (ex.: patrimônio) ou indisponíveis (ex.: vida). Outros, no entanto, causam certa polêmica. Cite-se, por exemplo, a integridade física ou corporal. Fragoso entende tratar-se de bem indisponível.[3] Já Rogério Greco diverge, sustentando “que a integridade física é um bem disponível desde que as lesões sofridas sejam consideradas de natureza leve. Caso as lesões sejam graves ou gravíssimas, o consentimento do ofendido não terá o condão de afastar a ilicitude da conduta levada a efeito pelo agente”.[4]


Por fim, destaque-se que inválido é o consentimento de vítima particular em face de bens jurídicos coletivos. “O consentimento de uma vítima concreta não possui nenhum efeito nos delitos contra a coletividade (ou contra a incolumidade pública), nos quais são afetados bens jurídicos supra-individuais. Como são muitos os titulares desse bem jurídico, o consentimento de um só não afasta nem a tipicidade nem a antijuridicidade do fato”.[5]


Em suma, inadmissível a renúncia à proteção jurídico-penal de bens jurídicos coletivos (por serem indisponíveis, pela própria natureza jurídica) e dos bens jurídicos individuais indisponíveis.


b) que o ofendido tenha capacidade jurídica para consentir;


Exige-se, segundo Francisco de Assis Toledo, “que o ofendido, no momento da aquiescência, esteja em condições de compreender o significado e as conseqüências de sua decisão, possuindo, pois, capacidade para tanto”.[6] Trata-se, enfim, da capacidade de entendimento sobre o conteúdo e o alcance do consentimento outorgado.


Nesse sentido, são dotados de capacidade genérica para consentir os maiores de dezoito anos mentalmente hígidos. Caso o titular do bem jurídico seja pessoa incapaz, entende Fernando Galvão, que “poderá seu responsável consentir por ele, nos termos da Lei Civil”.[7] 


c) que o ofendido tenha manifestado seu consentimento de forma livre;


Ou seja, é necessário não tenha havido coação, fraude ou qualquer outro vício que possa inquinar de nulidade a manifestação de vontade da vítima. Também aqui, como em qualquer outro ato jurídico, os vícios de vontade ensejam nulidade; ademais, com uma peculiaridade: tais vícios de vontade são tidos, in casu, como insanáveis.  


d) que o ofendido tenha manifestado seu consentimento de maneira inequívoca, ainda que não expressamente;


A doutrina, em geral, traz a exigência de que a manifestação de consentimento do ofendido apresente-se indubitável, inequívoca, inquestionável, sem margem de dúvidas. Diz-se, no entanto, que o consentimento pode ser dado de maneira expressa ou implícita, desde que preservada a certeza deste.


e) que o consentimento tenha sido dado pela vítima antes ou durante a conduta lesiva;


O consentimento deve sempre ser anterior ou, no máximo, contemporâneo à conduta do agente; nunca posterior. O fato de a vítima, após a conduta criminosa, anuir com a sua prática, não tem o condão de afastar a tipicidade ou a ilicitude do fato, ao menos em virtude de alegado consentimento do ofendido.


A justificativa para que o consentimento válido seja aquele anterior ou, no máximo, contemporâneo à conduta criminosa é dado pela doutrina tendo em conta o sistema de renúncia à proteção legal bem como o respectivo juízo de desvalor da conduta.


Acompanhe a precisa explicação de Fernando Galvão sobre o tema: “Objetivamente, a valoração positiva da conduta decorre do fato de que, quando da intervenção lesiva, o bem jurídico não estava sob a proteção jurídica. Sendo a renúncia anterior à realização da atividade lesiva, esta não afronta a finalidade protetiva do ordenamento jurídico. O consentimento posterior à lesão não pode ser admitido. Nesse caso, a atividade lesiva viola a planificação normativa e, por isso, preserva-se o desvalor da conduta. Na verdade, uma permissão posterior à realização do fato não pode ser denominada de consentimento. Trata-se-ia de mero ‘reconhecimento’ de uma situação de fato já consolidada, de perdão pelo que já se fez”.[8]   


Note a coerência desta justificativa. Parte-se do entendimento de que, objetivamente, o juízo de valoração positivo ou negativo da conduta depende da análise quanto ao fato de estar ou não o bem jurídico, no momento em que lesionado, sob a proteção legal. Assim, duas são as situações possíveis, senão vejamos:


– se o bem jurídico não estava sob a tutela do ordenamento legal no instante em que lesionado, em virtude de prévia ou concomitante renúncia, o juízo de valoração da conduta é positivo, pois não frustrado o fim protetivo do sistema jurídico-penal. Portanto, in casu, é tido como válido o consentimento do ofendido;


– se o bem jurídico estava sob a tutela do ordenamento legal no momento em que lesionado, ainda que haja posterior concordância do ofendido, o juízo de valoração da conduta é negativo (desvalor da conduta), pois frustrado o fim protetivo do sistema jurídico-penal. Por conseguinte, nesta situação não é possível falar em consentimento do ofendido válido.


f) que o autor do consentimento seja o titular exclusivo do bem jurídico disponível ou que tenha autorização expressa para dispor sobre o bem jurídico;


Não há dúvidas de que o consentimento válido só pode ser dado pelo titular único do bem jurídico disponível ou por pessoa expressamente autorizada por aquele para dispor sobre o bem. Como afirma o poeta popular, “a ninguém é dado fazer cortesia com chapéu alheio”.


Outros Requisitos. É evidente que os requisitos gerais aplicáveis a todas as excludentes de ilicitude também devem estar presentes no consentimento do ofendido. Diz-se, portanto, do (contestado e controvertido) requisito subjetivo de justificação e da proibição do excesso.


O primeiro – requisito subjetivo das excludentes – diz respeito à necessidade de o agente saber que atua em e por causa de situação justificante. Assim, para que a lesão a bem jurídico disponível seja considerada lícita é necessário que o agente tenha consciência de que atua amparado por consentimento do ofendido.


Destaque-se, no entanto, que alguns doutrinadores sustentam a desnecessidade de requisito subjetivo nas excludentes de ilicitude; para estes, bastaria a comprovação dos pressupostos objetivos.


No que toca à proibição de excesso, tem-se que a conduta do sujeito deve sempre respeitar os limites impostos pela causa justificante. Se o agente ultrapassar a seara do consentido pelo ofendido, desvaliosa será a sua conduta, uma vez que violadora da finalidade protetiva do sistema legal, e, portanto, passível de censura quanto ao excesso (leia-se: sujeito à responsabilização pela conduta que extrapola o limite do justificado).


 


Referências Bibliográficas.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral. v. 2. Coordenação Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. v. 1. 9 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.

ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.


Notas.

[1] Nesse sentido: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – RTJSP 41/346.

[2] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 192, 193.

[3] FRAGOSO, Heleno Cláudio. op. cit., p.

[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. v. 1. 9 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 379.

[5] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito Penal: parte geral. v. 2. Coordenação Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 371.

[6] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 215.

[7] ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 309.

[8] ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. op. cit., p. 310.

Informações Sobre o Autor

Leonardo Marcondes Machado

Aprovado no Concurso Público para Delegado de Polícia em Santa Catarina. Pós-graduando em Ciências Penais pela UNISUL / IPAN / LFG. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Colaborador-articulista de diversas revistas eletrônicas


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