Resumo: Este artigo se presta a uma análise jurídica e psicológica do fenômeno conhecido como bullying, com vistas ao seu combate e prevenção. Para tanto, verifica-se o histórico recente do fenômeno e analisa-se criticamente de seu conceito, o qual deve ser ligado a amplas problemáticas sociais, como a intolerância e o preconceito, cujas raízes psicossociais resistem à soluções simplistas para sua dissolução. São abordadas também as relações entre o bullying, o ato de disciplina e o ato infracional, atentando-se para a necessidade de estabelecimento de um novo equilíbrio entre a responsabilidade escolar e a judicial no que tange ao combate desse mal. Finalmente, analisam-se diferentes propostas para sua prevenção, apontando para a necessidade de intervenções em âmbito sistêmico.
Palavras-chave: bullying, violência escolar, combate, prevenção.
Abstract: This article makes a juridical and psychological analysis of the bullying phenomenon, aiming for its prevention and tackling. For such objective, the recent history of the phenomenon is verified, followed by a critical analysis of its concept, whose psychosocial roots resist simplistic solutions. The relations among bullying, indiscipline and act of infraction are also discussed, highlighting the need to stablish a new king of balance between school and justice responsabilities to combat this problem. Finally, different prevention proposals are analysed, with emphasis to sistemic intervention programs.
Sumário: Introdução. 1. Muito além de brincadeiras pueris… 2. Dados sobre prevalência. 3. Problematizando o conceito. 4. Estrangeirismo e alienação. 5. Intolerância e preconceito. 6. Aspectos jurídicos. 7. Relações familiares e bullying. 8. Prevenção sob um enfoque sistêmico. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente texto não tem o condão de esgotar o assunto, mas trazer reflexões sobre um fenômeno cuja denominação – bullying – define todas as atitudes agressivas, intencionais e repetitivas adotadas por uma pessoa ou um grupo contra outro(s), causando dor, angústia e sofrimento. Tal forma de violência ocorre em uma relação desigual de poder, caracterizando uma situação de desvantagem para a vítima, a qual não consegue se defender com eficácia.
Referida denominação, estranha aos brasileiros, ainda demanda esclarecimentos. Importada da língua inglesa, aparentemente ganhou o sentido hoje usado a partir das pesquisas do Professor Dan Olweus, na Universidade de Bergen – Noruega, iniciadas no fim da década de setenta. Esse pesquisador desenvolveu a primeira grande investigação sistemática sobre o tema, tendo publicado seus resultados na obra Aggression in the Schools: Bullies and Whipping Boys[i].
Por um período considerável de tempo, até próximo dos anos 90, pouco interesse internacional despertou em relação ao problema. Atualmente, além da Noruega, os Estados Unidos, Portugal e Espanha são países com maior desenvolvimento de pesquisas sobre o tema.
Muitas definições correntes sobre o bullying têm afirmado que sua incidência ocorre unicamente entre crianças e adolescentes e, especificamente, em contextos escolares. Cabe lembrar, contudo, que o conceito não é unívoco, podendo abranger os comportamentos da relação professores-alunos[ii], assim como de adultos em um ambiente profissional qualquer. Nesta última situação, é mais comum que o problema seja definido como “assédio moral”, “mobbing” ou “assédio psicológico” (Guimarães & Rimoli, 2006)[iii], cujo conceito envolve a exposição de trabalhadores, em relações de poder verticais ou horizontais, a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas, podendo culminar na pressão para que a vítima desista de seu emprego.
Martins (2005)[iv] classifica três grandes formas de bullying. A primeira envolve comportamentos “diretos e físicos”, o que inclui atos como agredir fisicamente, roubar ou estragar objetos alheios, extorquir dinheiro, forçar comportamentos sexuais, obrigar a realização de atividades servis, ou a ameaça desses itens. A segunda forma inclui comportamentos “diretos e verbais”, como insultar, apelidar, “tirar sarro”, fazer comentários racistas, homofóbicos ou que digam respeito a qualquer diferença no outro. Por último, há os comportamentos “indiretos” de bullying, como excluir sistematicamente uma pessoa, fazer fofocas ou espalhar boatos, ameaçar excluir alguém de um grupo para obter algum favorecimento ou, de maneira geral, manipular a vida social de outrem.
Há que se atentar, também, para uma forma mais recente de intimidação, chamada cyberbullying, que se concretiza pela utilização de tecnologias de comunicação, como computadores e celulares ligados à Internet, para a realização dessas violências[v]. No Brasil, o cyberbullying é muito comum nas redes de relacionamento social, nas quais mensagens injuriosas são disseminadas rapidamente. É certo que a falsa sensação de anonimato e impunidade, características da internet, estimulam muito esse tipo de comportamento.
Contudo, independente da forma como se manifesta, deve-se reconhecer que o bullying é um importante aspecto da violência social e escolar, cujo crescimento vem despertando atenção à necessidade de seu enfrentamento.
1. MUITO ALÉM DE BRINCADEIRAS PUERIS…
Até pouco tempo atrás, a prática do bullying escolar costumava ser vista pelos adultos, inclusive pais, professores e diretores, como brincadeiras pueris, próprias à idade infantil ou adolescente. Falava-se, inclusive, em ser algo que faz parte da iniciação à vida adulta[vi], comparável até mesmo a um rito de passagem.
Afinal, quem nunca sofreu ou praticou zombarias em seus anos escolares? Quem nunca apelidou ou recebeu apelidos? As várias pesquisas que se acumularam sobre o tema, contudo, demonstraram que as consequências dessa prática, especialmente para as vítimas, são demasiadamente graves para continuarmos supondo serem simples gracejos e divertimento mútuo.
São, assim, consequências comuns àqueles repetidamente vitimados pelo bullying: baixa autoestima, baixo rendimento e evasão escolar, estresse, ansiedade e agressividade. Nesse sentido, a presença ou não de um bom suporte familiar pode ser decisiva para que o infante supere as situações traumáticas vivenciadas ou, ao contrário, entregue-se ao isolamento social como uma forma de fuga e proteção contra as agressões. A situação pode, ainda, progredir para transtornos psicopatológicos graves, como fobias e depressões com idéias suicidas ou, por outro lado, fomentar desejos intensos de vingança.
Ressalte-se, à propósito, que os fatos desencadeadores de interesse governamental e social sobre essa problemática foram grandes tragédias, as quais, infelizmente, demostraram os atos de violência extremada que o bullying pode induzir, ainda que lentamente.
Um dos primeiros casos com repercussão internacional sobre o tema aconteceu na Noruega, em 1983, quando três adolescentes que sofriam bullying severo de colegas acabaram cometendo suicídio. O caso chamou a atenção do Ministério da Educação daquele país, que iniciou uma campanha nacional contra o bullying escolar.
Nos EUA, atos de extrema violência, sobre os quais há fortes indícios de motivação por bullying, passaram a ser noticiados com freqüência. Em 1999, dois adolescentes foram responsáveis por um grande massacre no Instituto Columbine do Estado do Colorado. Eles mataram a tiros 13 pessoas e deixaram mais 21 feridos, para então cometerem suicídio. Há relatos de que ambos não eram bem quistos na escola: sofriam ridicularizações e arquitetavam planos de vingança, os quais foram publicados em um blog na internet.
Já em 2007, um jovem de 23 anos promoveu novo massacre nos EUA, assassinando 32 pessoas e ferindo outras 23, com subsequente suicídio no Instituto Politécnico da Virgínia (Virginia Tech). O estudante sul-coreano documentou em detalhes, no manifesto que fez chegar à emissora NBC, as práticas de bullying a que teria sido submetido na universidade. Essas práticas incluíram, nomeadamente, críticas à sua maneira de vestir, considerada antiquada pelos colegas, à sua maneira de falar, ao seu aspecto físico e às suas origens étnicas.
Vieira, Mendes & Guimarães (2009)[vii] apontam que a sociedade costuma analisar apenas as psicopatologias e características de personalidade dos autores de tais atos de violência, olvidando uma série de fatores externos como a disponibilidade de armas de fogo, a influência de jogos eletrônicos e de filmes com extrema violência e crueldade, os problemas familiares e a vitimização por bullying. Tanto em Columbine como na Virgina Tech, “a prática de bullying e a falta de interesse e/ou competência de pais, professores, diretores e colegas para se aproximar dos adolescentes e tentar alguma intervenção é marcante” (p. 498).
Em 2009, dois garotos de 11 anos, estudantes dos Estados de Massachucetts e Geórgia, também nos EUA, suicidaram-se por motivos relacionados ao bullying em um intervalo aproximado de duas semanas. Importa notar que os Estados em questão possuíam leis anti-bullying e aplicavam programas de prevenção nas escolas envolvidas.
Para não pensarmos que esse tipo de situação extremada acontece somente nos EUA e em países europeus, lembremos que, em 2003, um jovem de 18 anos invadiu a escola onde estudou na pequena cidade de Taiuva (São Paulo) e feriu a tiros seis estudantes, uma professora e o zelador para, em seguida, tirar a própria vida. Alunos da escola e familiares disseram à polícia que várias pessoas teriam humilhado o estudante – durante anos – com apelidos pejorativos pelo fato de ter sido obeso.
Outra violência semelhante ocorreu na cidade de Remanso em 2004, no estado da Bahia, quando um adolescente de 17 anos matou a tiros duas pessoas, deixando outras três feridas. Após o fato, também tentou suicídio mas foi impedido. Segundo relatos, o jovem era humilhado pelos colegas na escola e decidiu cometer os crimes após ter tomado um banho de lama dos colegas enquanto andava de bicicleta pelas ruas do município.
Finalmente, há também o curioso caso do estudante de João Pessoa (Paraíba) que, em 2007, publicou ameças em uma rede de relacionamento virtual, segundo as quais provocaria violência com armas de fogo em seu colégio caso a direção permanecesse omissa em relação ao bullying que alegava sofrer há cerca de três anos. No ano seguinte, o mesmo estudante publicou vídeos na internet e forjou seu próprio sequestro, tudo para chamar a atenção das autoridades em relação ao bulllying que, em sua opinião, continuava acontecendo no estabelecimento de ensino. O caso chamou a atenção do Ministério Público Estadual para a necessidade de campanhas de prevenção a essa problemática.
Deste modo, ainda que alguns objetem acerca da relativa raridade de eventos trágicos ou polêmicos como os supracitados, cabe salientar que estes devem nos servir como alertas, pois constituem apenas a “ponta do iceberg” de um fenômeno extremamente comum e que ocorre, muitas vezes, de forma quase silenciosa[viii].
2. DADOS SOBRE PREVALÊNCIA
A prevalência do bullying, tanto no Brasil como no mundo, é um dado controverso, uma vez que depende diretamente da definição e da frequência dos atos agressivos que cada pesquisa utiliza para circunscrever a ocorrência ou não do fenômeno.
Em uma pesquisa comparativa internacional envolvendo 113.200 estudantes de 25 países, Nansel et al. (2004)[ix] observaram que a percentagem de escolares envolvidos em bullying tinha grandes variações, começando em 9% na Suécia até chegar em 54% na Lituânia. Como vítimas, a proporção ia de 5% na Suécia até 20% na Lituânia, com uma média internacional de 11%. Como agressores, obteve-se desde 3% na Suécia até 20% na Dinamarca, com uma média internacional de 10%. O papel duplo de agressor e vítima (bully-vítima) variou desde 1% na Suécia até 20% na Lituânia, sendo a média de todos os países igual a 6%.
No Brasil, o primeiro grande levantamento foi realizado pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Juventude – ABRAPIA, entre 2002 e 2003[x]. A pesquisa, que envolveu 5.875 estudantes de 5ª a 8ª séries de onze escolas cariocas, revelou que 40,5% desses alunos admitiram ter estado diretamente envolvidos em atos de bullying naquele período, sendo 16,9% vítimas (ou alvos), 10,9% alvos/autores (ou “bully/vítimas”) e 12,7% agressores (ou autores de bullying).
Importante destacar, também, pesquisa muito recente sobre preconceito e discriminação em contexto escolar, realizada pela Fundação Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) em convênio com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC). A pesquisa[xi] abrangeu 18.599 respondentes em 501 escolas de 27 Estados, incluindo estudantes, professores, diretores, demais profissionais de educação e pais ou responsáveis. Os resultados indicam que o preconceito e a discriminação latentes nas escolas resultam muitas vezes em situações em que pessoas são humilhadas, agredidas ou acusadas de forma injusta – simplesmente pelo fato de fazerem parte de algum grupo social específico.
Ainda segundo a citada pesquisa (FIPE/INEP, 2009), as práticas discriminatórias no ambiente escolar (bullying) têm como principais vítimas os alunos, porém atingem também a professores e funcionários. Entre alunos, os respondentes declaram conhecer mais práticas discriminatórias motivadas pelo fato de serem as vítimas negras (19%), em seguida por serem pobres (18,2%) e, em terceiro lugar, por serem homossexuais (17,4%). Já entre professores, as principais vítimas de tais situações são os mais velhos (8,9%), os homossexuais (8,1%) e as mulheres (8%).
Também em 2009, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar[xii] do IBGE entrevistou 60.973 estudantes da 9ª série do ensino fundamental em escolas públicas ou privadas de todas capitais brasileiras e do Distrito Federal. Identificou-se que, em relação aos 30 dias antecedentes à pesquisa, 30,8% dos estudantes entrevistados relataram haver sofrido bullying, seja de forma ocasional ou freqüente. Os dados alarmantes trazidos pelo IBGE também corroboram a idéia de que o bullying atinge todas as escolas, independente de sua natureza administrativa, pois que se verificou, inclusive, maior proporção deste problema entre os escolares de escolas privadas (35,9%) do que entre os de escolas públicas (29,5%).
A investigação “Bullying Escolar no Brasil”, realizada pelo Instituto Plan (CEATS/FIA, 2010)[xiii] com 5.168 alunos de 5ª a 8ª séries em 25 escolas públicas e privadas de todas as regiões brasileiras, verificou que mais de 34,5% dos meninos pesquisados foram vítimas de maus tratos ao menos uma vez no ano letivo de 2009, sendo 12,5% vitimas de bullying, caracterizado por agressões com frequência superior a três vezes. Por outro lado, 23,9% das meninas sofreram maus tratos ao menos uma vez durante o mesmo período, e 7,6% tornaram-se vítimas de bullying.
A mesma pesquisa também registrou significativa incidência de cyberbullying na amostra, sendo que 16,8% dos respondentes são vítimas, 17,7% são praticantes e 3,5% são vítimas e praticantes ao mesmo tempo. Independentemente da idade das vítimas, percebeu-se que envio de e-mails maldosos é o tipo de agressão mais comum, sendo praticado com maior frequência pelos alunos do sexo masculino. Entre as meninas pesquisadas, o uso de ferramentas e de sites de relacionamento são as formas mais utilizadas.
Algumas outras variáveis importantes sobre a prevalência do bullying escolar são a idade dos alunos, o sexo e os locais de ocorrência. Uma série de estudos tem apontado que o bullying é mais freqüente quanto menor a idade dos jovens[xiv]. No Brasil, Francisco e Libório (2009)[xv] identificaram uma diferença no tipo de comportamento de bullying em relação à idade e à escolaridade dos entrevistados: em alunos de 5ª série, as formas de violência se manifestaram mais por meio de ameaças físicas. Por sua vez, em discentes da 8ª série destacaram-se os insultos e as provocações.
Em relação ao sexo, a maioria das investigações revela que os meninos vitimizam mais que as meninas, além de se utilizarem mais da agressão física e verbal. As garotas, por seu turno, usariam mais a agressão indireta relacional, tal como espalhar rumores (fofocas) ou realizar exclusão social[xvi]. Gomes et al. (2007)[xvii], ao realizarem uma análise da literatura sobre o tema, constataram que os meninos costumam ser mais agredidos somente por meninos, enquanto as meninas podem ser vitimadas por agentes de ambos os sexos. É certo que se deve considerar, nesses resultados, a grande influência dos papéis de gênero, ou seja, da construção histórica e social da masculinidade e da feminilidade, uma vez que os meninos costumam ser incentivados socialmente a assumir posições fisicamente violentas, enquanto às meninas restam formas mais sutis de agressão.
No que tange aos lugares de ocorrência do bullying, indica-se que este é mais comum nos pátios dos colégios e, especificamente, nos horários de recreio, nos quais não se costuma encontrar supervisão de adultos. Também é frequente o bullying diretamente nas salas de aula, inclusive com a presença de professores, situação que demonstra ser ainda comum a omissão desses profissionais no que se refere ao combate de tais formas de violência.
3. PROBLEMATIZANDO O CONCEITO
Um aspecto polêmico da conceituação do bullying se refere à afirmação comum de que essa forma de comportamento agressivo é realizada “sem causa ou motivo aparente”. Ainda que se possa compreender ou supor o sentido dessa expressão, a adequação de seu uso é questionável, pois todo agressor acredita piamente ter razões ou causas suficientes para aquilo que faz. São, sem dúvida, razões preconceituosas, entretanto, não se pode subestimar seu forte poder de motivar o comportamento violento. É certo, por outro lado, que a ausência de motivações encontra-se, justamente, do lado do agredido: este nada faz para fomentar ou justificar as atitudes violentas por parte do bully (valentão, brigão).
Outrossim, sabe-se que os papéis sociais dos envolvidos no bullying escolar vem sendo frequentemente citados na bibliografia sobre o tema. Fala-se em vítimas, agressores (ou bullies) e testemunhas (ou espectadores)[xviii]. É importante um olhar crítico e sistêmico sobre essas categorias, haja vista que elas tendem a apresentar perfis altamente estanques e estereotipados dos sujeitos envolvidos e da dinâmica do problema.
Os agressores, por exemplo, são comumente caracterizados como “fisicamente mais fortes que seus pares, dominantes, impulsivos, não seguem regras, baixa tolerância à frustração, desafiantes à autoridade, boa autoestima”, etc. As vítimas, por seu turno, seriam “inseguras, sensíveis, pouco assertivas, fisicamente mais débeis, com poucas habilidades sociais e com poucos amigos. Em geral, bons alunos”[xix]. Finalmente, haveriam as testemunhas, aquelas que assistem ao drama silenciosamente, com medo de serem as próximas vítimas.
Ao imaginar o quadro descrito acima, fica-se com impressão de estar assistindo a um típico filme norte-americano sobre colegiais: há os “populares”, os “nerds”[1] e os espectadores amedrontados. Será que a realidade brasileira reproduz essa imagem? É provável que não, porquanto em situações da vida cotidiana os papéis nunca são tão fixos como essas categorias fazem crer. O bullying costuma provocar um ciclo perverso, no qual muitas vítimas em uma dada situação acabam se tornando os agressores de novos sujeitos em outras oportunidades, gerando um crescimento exponencial da violência. Não por acaso, alguns autores incluem a tipologia “bully-vítima” ou “alvos/autores”[xx] para ressaltar que os papéis podem ser intercambiáveis, dependendo da situação e das pessoas envolvidas.
Ressalte-se, ainda, que as chamadas “testemunhas” têm um papel importante no fenômeno, muito mais que se supunha a princípio. É simplista pensar que a maior parte dos envolvidos somente assiste a esse espetáculo cruel, em um misto de resignação – frente a uma forma de violência banalizada –, e o temor de ingressar, como vítima, nesse triste palco. Segundo vem se percebendo, as testemunhas influenciam diretamente na inibição ou estímulo ao agressor. E nesse sentido, é importante que os programas de prevenção ao bullying tenham esse grupo como um dos principais públicos-alvo.
Vale notar, outrossim, que o uso de estereotipias é uma característica própria do comportamento de “bullies” (apelidar, fazer chacotas são ações que demandam a criação de estereótipos). É certo supor, então, que um trabalho de conscientização contra o bullying em salas de aula e em outros contextos, feito sob a ótica de tipologias (tais como o binarismo “agressores populares” contra “vítimas nerds”), acabará reproduzindo as estereotipias que alimentam o bullying e, por conseguinte, surtindo o efeito contrário ao desejado, na medida em que sustentará a identificação infantojuvenil a modelos que induzem à segregação e ao preconceito.
Por outro lado, as estereotipias também alimentam a compreensão dicotômica e simplista do problema, como ainda é comum no mundo jurídico, ao separar agressores a serem punidos, de um lado, e vítimas a serem auxiliadas, de outro. Na verdade, todos os atores envolvidos, sem exceção, precisam de orientação e auxílio.
4. ESTRANGEIRISMO E ALIENAÇÃO
Continuando uma análise crítica do conceito em tela, vale questionar o hábito, cada vez mais comum, de se cunhar novos nomes a fenômenos antigos. Se, por um lado, essa atitude traz evidência e destaque ao que queremos compreender, por outro, também pode dificultar a visualização da problema em um contexto mais amplo. É possível aplicar essa reflexão ao fenômeno do bullying.
Antunes & Zuin (2008)[xxi] denunciam que o conceito de bullying, tal como utilizado na maioria dos estudos baseados tão-somente em dados estatísticos e no diagnóstico de sua ocorrência, faz parte de uma ciência instrumentalizada e a serviço da adaptação das pessoas para a manutenção de uma ordem social desigual. Para os autores, a expressão bullying, prontamente importada da literatura internacional para o quadro de estudos brasileiros, pode representar uma tipologia da violência que, na verdade, mascara os processos sociais responsáveis pela sua eclosão – seria, pois, uma forma de alienação. Nesse ponto, vale uma citação oportuna de um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt, o sociólogo Theodor Adorno: “Por vezes o fundamental é falseado, quando não completamente ocultado, pelas definições obtidas pelo meio da abstração”[xxii].
Nessa ótica, entende-se que a maioria dos pesquisadores acaba não problematizando as supostas causas do bullying, contentando-se em citar os fatores econômicos, sociais, culturais e individuais que lhe dão base. “Desta forma, as influências familiares, de colegas, da escola e da comunidade, as relações de desigualdade e de poder, a relação negativa com os pais e o clima emocional frio em casa parecem considerados naturais e apartados das contradições culturais que os produziram”[xxiii]. A conseqüência lógica é que os programas de prevenção e combate ao problema são vistos em um contexto limitado, desembocando na defesa genérica do “educar para a paz” (Antunes & Zuin, 2008), geralmente de forma superficial e baseada tão-somente em imperativos morais.
Assim, apesar da expressão bullying ser ainda novidade para muitos, vale ressaltar que este fenômeno é muito antigo, sendo mais uma faceta da violência que impregna as relações humanas em todas as sociedades, estando, portanto, intrinsecamente relacionado à intolerância e ao preconceito.
5. INTOLERÂNCIA E PRECONCEITO
A intolerância é definida por Sérgio Paulo Rouanet (2003)[xxiv] como a atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, a sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções. Essa atitude genérica se manifesta por meio da discriminação de caráter religioso, nacional, racial, sexual, étnico e de classe, entre outros. Ou ainda, cabe acrescentar, pela simples aparência física “diferente” e fora de determinados padrões estéticos e comportamentais valorizados, como é comum no âmbito do bullying escolar.
O preconceito, por seu turno, é caracterizado por uma “atitude de hostilidade nas relações interpessoais, dirigida contra um grupo inteiro ou contra os indivíduos pertencentes a ele, e que preenche uma função irracional definida dentro da personalidade”[xxv]. Veja-se que a função do preconceito é tida como “irracional” porque o mesmo advém de julgamentos ou opiniões formadas sem levar em conta fatos que os contestem.
Intolerância e preconceito são, assim, conceitos vizinhos. Na verdade, pode-se pensar que o preconceito diz respeito às raízes psíquicas de uma atitude que, quando manifesta, surge como intolerância. E não obstante ser a manifestação do preconceito individual, isso não equivale a dizer que suas raízes sejam puramente psicológicas – uma vez que ele surge no processo de socialização de cada sujeito.
Extremamente difícil é abandonar o campo da intolerância e do preconceito – fenômenos demasiado humanos que alimentam problemas aparentemente tão diversos como o bullying escolar, por um lado, e o Holocausto da história mundial recente, por outro. São perpassados por dimensões sociais, históricas, políticas e psicológicas extremamente difíceis de serem agrupadas em uma compreensão unívoca ou integral. E diga-se, não de passagem, que em um país como o Brasil essa forma de violência estará sempre atrelada à imensa problemática caracterizada pela desigualdade e exclusão social.
Por outro lado, assumindo os riscos de uma análise psicológica e psicanalítica, é notório que os germes do preconceito e da intolerância podem ser localizados em cada ser humano, sem exceção. Em termos lógicos, se todos têm um “eu” – um “self” ou imagem de si –, é porque essa identidade construiu suas fronteiras em delimitação a um “outro” e, a partir disso, basta apenas mais um passo para imaginar esse outro como intrinsecamente mau e rechaçá-lo. A psicanálise, diga-se a propósito, demonstra que é exercício comum atribuir ao “outro” todas as características supostamente ruins que rejeitamos em nós mesmos – trata-se do mecanismo de defesa psíquica denominado “projeção”. Não por acaso, Freud demonstrou, em conhecido artigo[xxvi], que o “estranho” é, paradoxalmente, aquilo que temos de mais íntimo.
Em uma leitura psicanalítica do processo civilizatório, entende-se que cada ser humano é obrigado a renunciar grande parte de suas tendências pulsionais – amorosas ou agressivas – em prol da constituição de um “bem maior”, qual a seja, a esfera da vida social e do mundo da cultura. Mas é certo, segundo dizia Freud, que há um “mal-estar na civilização”[xxvii], pois essa “troca” nunca é plenamente satisfatória para cada homem ou mulher: seus impulsos mais íntimos buscam expressão de alguma forma, apesar de toda a reprovação cultural.
Dessa forma, o sofrimento é inevitável, e uma forma simples de tentar aplacá-lo se relaciona com o mecanismo de projeção na base do preconceito: ao não reconhecer em minha pessoa os pensamentos e sentimentos que julgo negativos, projeto-os no “outro”, que passa a ser merecedor de meu ódio e desdém.
Em tal linha de raciocínio, considera-se que a criação de identidades pessoais e sociais é, essencialmente, um fenômeno narcísico, ou seja, baseado em processos egocêntricos que resistem ao reconhecimento da alteridade em sua irredutível diferença. Destarte, a diversidade do outro pode até mesmo ser reconhecida, mas geralmente é vista, comparativamente, como inferior ou abjeta.
Saindo do campo conceitual, vale considerar que na sociedade contemporânea, cujos principais valores cultuados são padrões estéticos e de consumo, é deveras tentador, para crianças e adolescentes, afirmarem suas identidades (formações narcísicas) pela exclusão dos colegas que supostamente não refletem esses modelos, ao invés de observarem, nelas mesmas, a angústia e a insegurança de nunca poderem corresponder, total e plenamente, a tais padrões perversos. Conforme relataram os professores e a equipe técnica entrevistados para a pesquisa do Instituto Plan (CEATS/FIA, 2010), a principal característica da vítima do bullying é ser diferente dos seus colegas em algum aspecto. “Essa diferença pode tanto ser uma característica física marcante, ou uma deficiência, como também um status social que permita vestir-se ou possuir objetos e roupas que se destaquem do resto do grupo. Torna-se, portanto, evidente que as diferenças são geradoras de comportamentos de rejeição e agressão” (p. 60).
Apesar da forte tendência humana ao preconceito e à intolerância, é incontestável que as sociedades são, cada vez mais, fragmentadas por identidades dissonantes, responsáveis por uma explosão da diversidade em vários âmbitos (fenômeno conhecido nos meios acadêmicos como a “fragmentação/descentramento do sujeito moderno”[xxviii]). Nesse sentido, o exercício da tolerância e do respeito tornam-se fundamentais. Exercício difícil, até mesmo doloroso, pois implica em certa relativização de nossos valores morais, nossas crenças e, saliente-se, em uma atenuação de nosso narcisismo, diante da diversidade das experiências humanas – nenhuma melhor ou pior do que as outras.
6. ASPECTOS JURÍDICOS
Diante do contextualizado acima, é importante trazer à lume considerações, mesmo que breves, acerca do princípio da dignidade da pessoa humana – o qual se constitui em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito –, nos termos do art. 1º, inciso III, da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). Para Nery Jr. & Nery (2009) “esse princípio, estatuído na norma comentada, tem a finalidade de impedir que o ser humano seja utilizado como objeto nos procedimentos estatais”[xxix].
Nesse sentido, a CRFB/88 traz para o Brasil um novo paradigma na seara da infância e juventude, na qual crianças e adolescentes passam a ser considerados sujeitos de direitos, não mais figurando como propriedade da família ou objeto de tutela do Estado, fazendo jus à proteção integral, tendo o ordenamento jurídico brasileiro, segundo Seda (1993), “acolhido crianças e adolescentes para o mundo dos direitos e dos deveres: o mundo da cidadania”[xxx].
Delineando um sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, a Doutrina da Proteção Integral, para a quase integralidade dos autores, vem traduzida pelo artigo 227 da CRFB/88[2], absorvendo os valores delineados na Convenção dos Direitos da Criança, garantindo ao público infantojuvenil, além dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, o direito subjetivo de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, preservando a sua liberdade e a sua dignidade.
A Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por sua vez, ao pormenorizar a Doutrina da Proteção Integral, ratificou a absoluta prioridade (art. 4º) com que devem ser tratadas essas pessoas em desenvolvimento (art. 6º), estabelecendo a primazia no atendimento em qualquer esfera de interesses, seja ela judicial, extrajudicial, administrativa, social ou familiar. Impõe, nesse contexto, o dever à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao Poder Público de assegurar a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Dentre esses direitos, o presente artigo se atem precipuamente aos da educação, da dignidade e do respeito.
Registre-se que o primeiro deles foi erigido a direito social pela Carta Magna de 1988 (art. 6º) e estabelecido no art. 205 como direito de todos e dever do Estado, devendo ser promovido e incentivado com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Considerando que a educação está inserida na categoria de direito fundamental, porquanto se trata de elemento indissociável ao exercício da cidadania e da dignidade da pessoa humana – fundamentos do Estado brasileiro –, o direito ao acesso, à permanência e ao sucesso do processo educacional deve ser assegurado às crianças e aos adolescentes de maneira indiscriminada e universal.
O direito ao respeito consiste, segundo o art. 17 do ECA, “na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.
Reiterando o princípio geral estabelecido no ECA, art. 4º, o direito à dignidade é conceituado no art. 18 como sendo o “dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
Entretanto, conforme já delineado, o âmbito dos estabelecimentos de ensino tem sido prenhe na prática de condutas incompatíveis com as suas finalidades, dentre elas atitudes agressivas, intencionais e repetitivas que bem caracterizam o fenômeno do bullying.
Perguntam-se os profissionais da educação, assim como os demais atores do Sistema de Garantia de Direitos, o que fazer para combater esse mal. Invariavelmente, suas respostas precisam desembocar na classificação dos comportamentos agressivos dentro da esfera dos atos de indisciplina e/ou na dos atos infracionais, cuja distinção gera grandes mal-entendidos e favorece a adoção, inúmeras vezes, de medidas que contrariam a Lei 8.069/90.
O ato infracional se distingue da infração disciplinar justamente porque, de um lado, a prática do primeiro se equipara ao crime ou à contravenção penal (art. 103, ECA) previstos no Código Penal ou nas leis penais esparsas, enquanto a caracterização da segunda, de outro, depende unicamente das normas e diretrizes fixadas pelo regimento escolar.
Salienta-se que, no cotidiano escolar, duas atitudes diametralmente opostas tem sido adotadas em relação às situações que se enquadram no fenômeno descrito como bullying. Por um lado, observa-se excessiva permissividade por parte de professores e dirigentes das escolas, os quais tendem a tratar tais atos de violência como corriqueiros e sem maior importância – “brincadeiras próprias da infância”. D’outro vértice, há também atitudes de rigor excessivo quando se busca punição via boletim de ocorrência circunstanciada (na Delegacia de Polícia mais próxima) para atos que poderiam ser resolvidos tão-somente no âmbito escolar. Neste caso, uma atitude juvenil que deveria ser tratada como ato de indisciplina é direcionada para o campo do ato infracional, sendo, a partir deste ponto, todo o enfoque do problema voltado para o âmbito puramente punitivo, olvidando-se de que todos os envolvidos – sejam vítimas ou agressores – devem receber orientação e auxílio especializado, a fim de que as atitudes perpetradas não voltem a ocorrer.
O que se questiona, no cenário apresentado, é se não seria por demais temerário delegar ao Judiciário, que possui força estatal, a intervenção na tentativa de resgatar conceitos elementares de vida em sociedade. A situação alerta para uma mudança de olhar, por parte dos operadores do Direito e da rede de proteção, que se torna imprescindível neste contexto, ensejando repensar não só os princípios básicos de Direito, mas também aqueles referentes à condição humana.
Não deve ser olvidado que a relação estabelecida entre o adolescente, o ato infracional e/ou infração disciplinar e a escola merecem atenção especial, sendo ponto fundamental para o encaminhamento de políticas públicas voltadas à questão social e educacional, possibilitando, assim, uma atuação preventiva, direcionada para os problemas detectados. Entretanto, é importante que se diga que este não é o único viés do problema.
Cumpre registrar que todo ato de bullying é um ato ilícito, causando lesão à dignidade da pessoa humana, estando todos (poder público e cidadãos) obrigados a respeitar este direito constitucional, sob pena de responsabilização nas esferas cível e criminal.
Os atos infracionais mais comuns, originários do bullying, são aqueles equiparados à injúria, à calúnia, à difamação, à ameaça, às lesões corporais e ao racismo. Entretanto, podem ocorrer violências outras que caracterizem o fenômeno, consoante se depreende do julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. TENTATIVA DE ROUBO E POSTERIOR EXTORSÃO CONTINUADA. CREDIBILIDADE DA PALAVRA DA VÍTIMA. AFASTADA A CONTINUIDADE DELITIVA. SENTENÇA MANTIDA
1. A vítima, um garoto com apenas quatorze anos de idade, foi submetida ao que a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência denomina de bullying. Seu sofrimento começou a partir de uma tentativa frustrada de roubo, quando gritou por socorro e o réu se afastou, temendo a reação dos transeuntes. Desde então, passou a importuná-la no caminho da escola, exigindo-lhe dinheiro. As ameaças de morte a si e aos familiares levavam-na a entregar ao extorsionatário todo o dinheiro que ganhava dos pais, passando também a vender seus pertences a fim de atender a essas exigências. Diante do clima de terror que lhe infundia o algoz, desenvolveu grave distúrbio psicológico que prejudicaram seu desempenho escolar e a obrigaram a tratamento especializado, passando a ser medicada com psicotrópicos.” (Apelação Criminal n. 2004091011545-4APR – DF, 13.10.2008)
O Poder Judiciário poderá responsabilizar, ainda, o autor de bullying, o seu responsável legal e o estabelecimento de ensino a uma indenização por danos materiais, morais e estéticos, com fulcro em dispositivos do Código Civil.
A teoria da responsabilidade civil está baseada em três elementos fundamentais: a culpa, de forma que só o fato lesivo intencional ou imputável ao agente deve autorizar a reparação; o dano, que se traduz na lesão provocada ao patrimônio da vítima; e o nexo de causalidade entre o dano e o efetivo comportamento censurável do agente, derivando dessa composição a permissibilidade jurídica para a obtenção da indenização moral, no caso de violação do direito alheio por ato omissivo ou comissivo do agente infrator.
Em decisão unânime proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, constata-se que os genitores foram condenados a pagar indenização por danos morais a colega de seu filho que teve seus direitos a imagem e à honra feridos em uma nítida prática de bullying:
“APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. INTERNET. USO DE IMAGEM PARA FIM DEPRECIATIVO. CRIAÇÃO DE FLOG – página pessoal para fotos na rede mundial de computadores. responsabilidade dos genitores. pátrio poder. bullying. ato ilícito. dano moral in re ipsa. ofensas aos chamados direitos de personalidade. MANUTENÇÃO DA INDENIZAÇÃO. PROVEDOR DE INTERNET. SERVIÇO DISPONIBILIZADO. COMPROVAÇÃO DE ZELO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE PELO CONTEÚDO. AÇÃO. RETIRADA DA PÁGINA EM TEMPO HÁBIL. PRELIMINAR AFASTADA. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. AUSENCIA DE ELEMENTOS. (…)
V. A prática de Bullying é ato ilícito, haja vista compreender a intenção de desestabilizar psicologicamente o ofendido, o qual resulta em abalo acima do razoável, respondendo o ofensor pela prática ilegal.
VI. Aos pais incumbe o dever de guarda, orientação e zelo pelos filhos menores de idade, respondendo civilmente pelos ilícitos praticados, uma vez ser inerente ao pátrio poder, conforme inteligência do art. 932, do Código Civil. Hipótese em que o filho menor criou página na internet com a finalidade de ofender colega de classe, atrelando fatos e imagens de caráter exclusivamente pejorativo.” (…). (Apelação Cível nº 70031750094, Comarca de Carazinho, 30/6/2010)
Na mesma senda é o posicionamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, oportunidade em que os desembargadores, por unanimidade, condenaram uma instituição de ensino a indenizar uma criança pelos abalos psicológicos decorrentes de violência escolar praticada por outros alunos, tendo em vista a ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana:
“DIREITO CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. ABALOS PSICOLÓGICOS DECORRENTES DE VIOLÊNCIA ESCOLAR. Bullying. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA. SENTENÇA REFORMADA. CONDENAÇÃO DO COLÉGIO. VALOR MÓDICO ATENDENDO-SE ÀS PECULIARIDADES DO CASO.” (Apelação Cível n. 2006.03.1.008331-2 – DF, j. 7/8/2008)
E numa análise clara da responsabilidade da escola, Rui Stoco (1994)[xxxi] afirma que:
“ao receber o estudante ‘menor’, confiado ao estabelecimento de ensino da rede oficial ou da rede particular para as atividades curriculares, de recreação, aprendizado e formação escolar, a entidade de ensino é investida no dever de guarda e preservação da integridade física do aluno, com a obrigação de empregar a mais diligente vigilância, para prevenir e evitar qualquer ofensa ou dano aos seus pupilos, que possam resultar do convívio escolar”. Desse modo, “responderá no plano reparatório se, durante a permanência no interior da escola o aluno sofrer violência física por inconsiderada atitude do colega, do professor ou de terceiros, ou, ainda, de qualquer atitude comissiva ou omissiva da direção do estabelecimento, se lhe sobrevierem lesões que exijam reparação e emerge daí uma ação ou omissão” (p. 321).
Da mesma forma, a prática do cyberbullying, uma das modalidade mais nocivas do fenômeno em razão da rapidez com que se difunde o conteúdo eletrônico na Internet, tem sido alvo de análises e decisões judiciais, consoante se vislumbra no acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
“AÇÃO COMINATÓRIA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. GRUPO DE RELACIONAMENTO. ORKUT. CRIAÇÃO DE COMUNIDADE E DE PERFIL FALSO. CONTEÚDO DIFAMATÓRIO. DEVER DO PROVEDOR DE CESSAR AS OFENSAS APÓS A CIENTIFICAÇÃO DA OCORRÊNCIA DO ILÍCITO. NEGLIGÊNCIA DA EMPRESA-RÉ CONFIGURADA. REPARAÇÃO CIVIL DEVIDA. MAJORAÇÃO DOS DANOS MORAIS.” (Apelação Cível n. 1.0145.08.450392-2/001 – MG, 19.1.2009)
Diante do contexto jurídico supramencionado, há que se salientar que a visão equivocada e amplamente manifesta no âmbito do senso comum, de que o ECA contemplaria apenas direitos a crianças e adolescentes, omitindo qualquer dever a este público e que, de certo modo, teria contribuído para o aumento dos atos de indisciplina e infracionais ocorridos nas escolas, merece ser superada.
O estabelecimento de ensino deve não só desenvolver regras e normas claras e democraticamente definidas de combate aos excessos por parte dos alunos, mas também observá-las e cumpri-las, chamando a família à sua responsabilidade. É fundamental, contudo, a tentativa de mediação entre os envolvidos, e a real fiscalização dos dirigentes das escolas nos locais e horários predestinados à prática do fenômeno, anteriormente à judicialização do conflito.
D’outro vértice, os profissionais que atuam no Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente (Promotor de Justiça, Juiz de Direito, Advogado, Delegado de Polícia, entre outros) poderão tomar conhecimento da prática do bullying não só por meio do boletim de ocorrência circunstanciada, mas, sobretudo, por representação de membro do Conselho Tutelar e, até mesmo, por comunicação da direção da escola, desempenhando papel fundamental no reconhecimento da questão, porquanto, agindo preventivamente, evitarão as consequências do fenômeno, tais como abandono escolar e lesões corporais, e também, a desaconselhável intervenção estatal em uma fase tão sensível do desenvolvimento humano.
E é na tentativa de sensibilizar para a necessidade de enfrentamento e resolução do problema em sua fase embrionária que se afirma que o Promotor de Justiça pode, mormente em cidades de pequeno e médio porte, ter desempenho fundamental no combate ao fenômeno por meio de participação em debates, palestras e campanhas desencadeadas não só nos ambientes escolares, mas em toda a comunidade.
O Ministério Público guarda, segundo Mazzilli (1991)[xxxii], estreita ligação com as normas de proteção à criança e ao adolescente, haja vista se tratar de interesses sociais e individuais indisponíveis. Trata-se de instituição constitucionalmente incumbida da defesa dos interesses da sociedade, sejam eles coletivos, difusos ou individuais indisponíveis, e que, pelo texto estatutário, assumiu obrigações que lhe colocam na qualidade de verdadeiro curador da infância e adolescência.
“Com o novo regime constitucional”, segundo Bordalho (2007)[xxxiii], “o Ministério Público passou a ter uma fisionomia muito mais voltada para a solução dos problemas sociais, deixando de lado a antiga postura de instituição direcionada unicamente para a persecução criminal”. E continua o mencionado autor afirmando que em face de inúmeras violações perpetradas pelo Poder Público, faz-se necessária a existência de uma instituição destinada primordialmente à defesa dos interesses da sociedade.
Nesse sentido, imprescindível a atuação socialmente engajada e pró-ativa dos membros do Ministério Público no sentido de coibir os excessos que tem ocorrido dentro de alguns estabelecimentos de ensino, mostrando que o “caminho do meio” ainda é o melhor a ser trilhado, deixando claro, entretanto, que não se quer evitar a responsabilização daquele que descumpriu o seu dever na sociedade educacional, mas que também, inúmeras vezes, é ali que os conflitos devem ser solucionados.
As estratégias de esclarecimento e de prevenção se afiguram, deste modo, em importantes alternativas a fim de evitar uma excessiva judicialização de conflitos escolares, frequentemente causados por ausência da devida intervenção da própria escola e da família, que falham no ensino das regras mais elementares de convivência social. Nesse vértice, em Santa Catarina, a Lei Estadual 14.651/09 autorizou a instituição do Programa de Combate ao Bullying, por meio de ação intedisciplinar e de participação comunitária nas escolas públicas e privadas do Estado.
O Ministério Público catarinense, por sua vez, com fulcro na referida legislação, e considerando a grande incidência do problema vivenciado em escolas – os quais repercutem diretamente nas Promotorias de Justiça do Estado –, idealizou a campanha “Bullying, isso não é brincadeira”, desenvolvendo folders, cartazes, gibis, marcadores de página e vídeos, no intuito de esclarecer crianças, adolescentes, pais, responsáveis, professores, diretores e sociedade em geral acerca da caracterização e das consequências do fenômeno, visando, assim, contribuir para o combate e a prevenção deste mal.
7. RELAÇÕES FAMILIARES E BULLYING
Apesar de ser um problema que costuma eclodir na escola, concordam muitos autores na influência do ambiente familiar como fator relevante tanto para a incidência como para a prevenção do bullying.
Analisando os emblemáticos casos de school shooting em Columbine e Virginia Tech, Vieira, Mendes & Guimarães (2009) sugerem que houve ausência de pais atuantes e reflexivos no cotidiano dos jovens atiradores. “Muitos mais do que descobrir armas e bombas, os pais parecem ter falhado em perceber que os filhos sofriam humilhações no ambiente escolar e com isso alimentavam insatisfação e ideações de violência, vingança e suicídio” (p. 497).
Também de acordo com a pesquisa efetuada por Pinheiro & Williams (2009)[xxxiv], apoiada por amplo estado-da-arte, os alunos que vivenciaram violência doméstica, de forma direta e/ou sendo expostos à violência interparental, tinham maior probabilidade de se envolver em situações de intimidação na escola, especialmente como alvos/autores. Os estudos confirmam também a prevalência de violência familiar entre alunos que são exclusivamente autores de bullying.
Por outro lado, tem-se igualmente demonstrado que as famílias dos alunos exclusivamente alvos de bullying tendem a ser superprotetoras, ainda que muitas vezes coesas e não-violentas. Isso vale especialmente em relação à figura materna, a qual costuma apresentar um monitoramento excessivo e intrusivo em relação às atividades dos filhos (apud Pinheiro & Williams, 2009).
Tal situação é confirmada pela clínica psicanalítica de crianças e adolescentes vitimados por bullying, os quais, muitas vezes, demonstram-se socialmente inibidos, passivos e vulneráveis justamente em virtude de relações familiares demasiado protetoras, fator que tende a postergar o posicionamento destes em formas mais assertivas, o que tenderia a evitar as humilhações. E cabe salientar que os agressores costumam considerar seus alvos merecedores das agressões precisamente devido a seu comportamento frágil e inibido.
Por estas razões, é certo que não basta o trabalho de conscientização contra o bullying somente no âmbito escolar, entre professores e alunos: os pais precisam ser alertados sobre sua responsabilidade no agravamento do fenômeno, pois que servem tanto como exemplos de identificação para os alunos violentos, quanto como influência na vulnerabilidade dos que costumam ser intimidados. Isso chama à baila a necessidade de prevenção sistêmica ao problema em tela.
8. PREVENÇÃO SOB UM ENFOQUE SISTÊMICO
Trautmann (2008) apresenta um interessante panorama dos programas de intervenção preventiva em relação ao bullying, classificando-os em três principais tipos. Há, primeiramente, as intervenções individuais, nas quais crianças e jovens aprendem habilidades sociais em uma forma que se assemelha a terapias cognitivo-comportamentais. Segundo a análise do estado-da-arte de pesquisas avaliativas[xxxv], apesar de haver alguns resultados positivos em crianças pequenas e especialmente nas vítimas de violência, claramente não se reduziu o problema do bullying escolar.
Um outro tipo de intervenção é a curricular: desenhada para promover a atitude anti-bullying em sala de aula, com uso de vídeos, grupos de reflexão, aquisição de valores e habilidades sociais, ensino de assertividade para agressores e de atitudes proativas por parte das testemunhas. Imarginar-se-ia que esse enfoque obteria sucesso, contudo, algumas pesquisas indicam que tal tipo de intervenção não reduziu o problema, e que as menos beneficiadas são as crianças menores[xxxvi]. A razão do fracasso seria o fato de que o bullying é um processo sistêmico, sendo improvável que a intervenção em apenas um único nível (no caso, entre alunos) tenha algum impacto realmente efetivo.
Finalmente, existem as propostas de intervenção integral: são multidisciplinares e se realizam em distintos níveis da organização do colégio, extrapolando as atividades em classe. Buscam desenvolver trabalhos em todos os âmbitos que o bullying perpassa, incluindo alunos, professores, direção, vigias, merendeiras, pais, ambiente escolar e comunidade em geral. O maior sucesso dessas modalidades de programas preventivos indica que o problema se origina, de fato, em processos amplos de interação social, e não somente na relação entre alunos. Contudo, há também limitações: na Noruega, por exemplo, o programa preventivo do Professor Dan Olweus é considerado bastante exitoso. Não obstante, sua importação por escolas de outros países tem sido considerada de efeito nulo ou negativo[xxxvii]. O êxito depende muito de fatores como a duração do programa, o compromisso e a participação de todas as esferas sociais relacionadas com o problema e, acrescenta-se, da correta adaptação de um determinado programa para a realidade sociocultural de cada país ou localidade.
Não obstante, vale enfatizar que as reflexões promovidas pela UNESCO[xxxviii] sobre o tema da violência escolar no Brasil apontam recomendações compatíveis com as propostas de intervenção integral, tais como: pensar em uma política pública global que abranja as várias áreas envolvidas nas questões referentes à educação, à qualidade de ensino, à convivência e às violências nas escolas; realizar diagnósticos locais sobre a situação de cada escola e de seu cotidiano; propor novas regras de convivência escolar; romper com a lei do silêncio (“política de avestruz”) que se constrói em torno da violência; discutir com alunos e corpo técnico-pedagógico sobre os conflitos e violências; adotar medidas para a efetiva democratização do ambiente escolar, possibilitando a participação dos alunos, inclusive, na elaboração das regras e normas escolares (atitude que facilita a adesão espontânea ao regimento escolar e evita os atos de indisciplina e infracionais) e, finalmente, integrar os pais e a comunidade no cotidiano escolar, além de adotar programas de mediação de conflitos nas escolas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi buscando constituir uma alternativa de prevenção integral que o Ministério Público de Santa Catarina lançou, em 2010, sua campanha de combate ao bullying escolar – “Bullying, isso não é brincadeira!”, com ampla parceria da Secretaria Estadual de Educação, da Assembléia Legislativa, de inúmeras Secretarias Municipais e do Sindicato dos Estabelecimentos Privados de Ensino de Santa Catarina. Com o lema “Seja amigo: respeite as diferenças. Somos todos diferentes, mas com direitos iguais”, pretende-se fomentar no público infantojuvenil o respeito às diferenças entre as pessoas, sejam quais forem: de pensamento, valores, culturas, cor, raça, etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual, etc.
Importante dizer que não se pretende, com o exercício da tolerância, a aceitação passiva de tudo o que acontece, porquanto ninguém precisa abrir mão de sua própria individualidade. No entanto, é necessário consentir que os outros tenham direito de pensar, de agir e de se apresentar de maneiras diversificadas, tal como já expressa nossa CRFB/88.
É necessária a compreensão de que grande parte da riqueza humana é justamente sua diversidade, e que todos têm direito de viver com dignidade. Trata-se de fomentar uma atitude de cooperação, reciprocidade e respeito mútuo, necessária a uma Educação para a Cidadania, para a Democracia e para o respeito aos Direitos Humanos.
Realça-se que tal conscientização passa, necessariamente, pelos pais, professores e por todos aqueles de alguma forma envolvidos com a educação das crianças e dos adolescentes. Nossos jovens pautam-se em exemplos, muito mais do que em palavras vazias. Assim, não há proveito efetivo em se pregar a paz e a aceitação levianamente, enquanto nossas atitudes mostrarem o contrário e, principalmente, nas pequenas situações cotidianas – tal como fazer pilhéria sobre a vida de pessoas em virtude de sua situação econômica, gênero, orientação sexual e cor da pele, ou até mesmo agredir os torcedores do time de futebol adversário, entre vários outros exemplos habituais de intolerância.
Almeja-se, talvez utopicamente, um pouco mais que tolerância – palavra que deixa entrever certa hipocrisia social, no sentido de “suportar o outro”, mesmo dele não gostando. Diferenças têm amplo potencial para enriquecer nossas vidas, mas somente quando genuinamente tentamos aceitá-las e, inclusive, perceber em nós mesmos o germe daquilo que habita no outro como fonte de sua suposta diversidade ou estranheza.
Mestre em Saúde e Meio Ambiente pela UNIVILLE, Promotora de Justiça, Coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude / MPSC
Especialista em Psicologia Jurídica pelo Conselho Federal de Psicologia, Mestre e Doutorando em Psicologia pela UFSC,Psicólogo do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude / MPSC
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