É uma grande questão do direito constitucional o reconhecimento da abertura do texto constitucional que dispensa periódicas revisões para dar vez e voz às reivindicações atuais e futuras.
Nesse sentido, o reconhecimento judicial de direitos (sejam novos ou implícitos) ao invés de configurar o chamado ativismo judicial[1], que é tido como ofensa à separação de poderes e ao Estado de Direito, apresenta-se mais como confirmação da própria democracia.
Desta forma, não precisamos cotejar os direitos não enumerados porque a própria Constituição autoriza e inclui essa transcendência em nome das exigências de liberdade e igualdade que a fundamentam.
Para melhor analisar a atuação do Poder Judiciário em relação ao controle feito sobre a produção legislativa por meio do controle de constitucionalidade[2], é relevante examinar o conceito de democracia para que seja possível analisar algumas contrariedades existentes em algumas formas de atuação da Corte Suprema em relação a esta forma de governo.
No desenho da democracia está o princípio da separação de poderes e sua influência no contexto brasileiro, demonstrando possíveis flexibilizações e limites impostos pelo legislador.
Há inúmeras questões a respeito da judicialização[3] política, capacidade e premissas hermenêuticas bem como o acompanhamento de algumas decisões que nitidamente abrangem matérias de cunho político, para que se possa avaliar o direcionamento tomado pelo STF nas questões relativas à fiscalização da produção legislativa.
Concluímos que a democracia e o constitucionalismo[4] antes de se antagonizarem, em verdade, se complementam estabelecendo uma relação produtiva e de permanente releitura do texto constitucional.
A questão do reconhecimento de “novos direitos” por decisão do STF e mesmo o controle judicial exercido, é mesmo legítimo principalmente em face do cenário democrático atual considerado como paradigma da Constituição brasileira de 1988 apesar de haver definidos limites para essa atuação judicial.
Não é mero estabelecimento de periódicas revisões da Constituição através do processo formal de reforma constitucional ou pela institucionalização da representação parlamentar das opiniões que possibilita realmente conciliar o “governo do povo e pelo povo”, consagrando-se apenas como “governo de leis e não de homens”.
Há grandes ambiguidades quanto ao significado da democracia, mas a concepção promovida por John Rawls[5] que a evidenciou como a mais larga e ampla, fazendo parte desta os elementos necessários para caracterizar um modo com que pode ser exercido o poder político.
Hans Kelsen[6] vaticinou que, apesar de as pessoas serem iguais, essa igualdade somente se mostrará efetiva caso a sociedade se submeta a um comando de governo que seja capaz de ordenar as ações sociais, porém sem se afastar dos princípios de igualdade e liberdade sendo justamente a síntese desses dois princípios que gera a autêntica índole da democracia que se caracteriza por favorecer a plena igualdade e liberdade dos cidadãos.
A interpretação criativa dos tribunais acolhe um processo de luta por direitos e a forma produtiva de conciliar esses dois princípios[7], harmonizando ainda o constitucionalismo com a democracia.
Para alguns teóricos o princípio de igualdade e o de liberdade são contrapostos. E como a submissão à vontade de um comando ou governo poderia ser harmonizado com a ideia plena de liberdade e igualdade?
A resposta a tal questionamento é aparentemente simples, pois se atribuindo o poder de comando ou governo ao povo, pela fórmula governo do povo, pelo povo e para o povo. Como conciliar a liberdade pública com a liberdade privada? Mas, desde Grécia a significação da democracia conforme sua etimologia era de “governo do povo”.
Bobbio ressalta que o conceito de democracia seja elástico posto que se pode tanto puxar de um, como de outros à vontade. Significando o governo de todos ou de muitos ou, de pelo menos da maioria, contra o governo de um só ou de poucos ou ainda de uma minoria.
Em contraponto, Bobbio ainda aduz que a democracia embora elástica, possui contornos precisos pois é sistema de poder no qual as decisões coletivas, isto é, as decisões que interessam a toda coletividade (seja grande ou pequena) são tomadas por todos os membros que a compõem. Referia-se naturalmente a democracia direta[8].
A essência da democracia segundo Kelsen[9] era a participação dos governados, o princípio de liberdade no sentido de autodeterminação política.
Alexis Tocqueville[10] cotejando a democracia dos EUA mencionou que é o povo quem nomeia quem faz a lei e quem irá executá-la, bem como caberá ao povo, a determinação da punição ao infrator. Disto se depreende que todos os poderes (legislativo, executivo e judiciário) estão subordinados à vontade popular.
Longe de ser pacífico, o conceito de democracia aponta que o povo deve estar encabeçando as decisões políticas, e as determinando, bem como indicando o direcionamento a ser adotado pelo poder público.
No entanto, a execução dessa vontade geral é árdua e nem sempre levada em consideração pelos representantes eleitos pelo povo e que são detentores de cargos eletivos no Poder Executivo e Legislativo.
O procedimento caracterizador da democracia é o sufrágio universal, sendo as eleições um processo descontínuo e elementar, resultando que o poder do povo fica inativo.
É a inoperatividade da vontade popular que ocorre justamente no ato da escolha tanto dos representantes como de políticas, mantendo, portanto estrita correlação com a questão das eleições e da formação da vontade popular. O critério utilizado para a determinação de tais anseios populares é o critério majoritário que se concretiza por meio do sufrágio.
Desta forma percebe-se que a Constituição[11] é estabelecida cotidianamente através de seus intérpretes e destinatários, não podendo assim a democracia ser compreendida somente em termos de representação política da vontade popular.
São sábias as observações de Claude Lefort[12] que menciona que a democracia sempre selvagem é marcada de conflitos e, não se reduz a um sistema de instituições, sendo sua singularidade a formação de sociedade desprovida de certezas definitivas, marcada pela indeterminação, e sempre as voltas, com a sua própria redefinição.
No fundo, o Estado Democrático de Direito[13] excede aos tradicionais limites do Estado do Direito pois experimenta direitos que ainda não lhe estão incorporados.
É curial afirmar que o reconhecimento judicial dos direitos das minorias, não significa ofensa ao princípio da separação de poderes e, não significa também, uma usurpação de poderes e funções do legislativo pelo judiciário, antes representa um reforço da própria democracia, desta forma conforme ensina Flávia Piovesan a democracia não se vincula apenas ao modo pelo qual o poder político é exercido estando envolvido basicamente, a forma pela qual os direitos humanos são implementados.
Não se pode ver a democracia apenas como o governo de uma maioria, mas sim, a possibilidade de que todos, independentemente de suas diferenças, e das mais variadas visões de mundo, possam ter direitos e serem sujeitos de direitos.
Como expôs poeticamente Claude Lefort “a democracia é governo de todos e de ninguém ao mesmo tempo”. É uma soberania sem soberanos, um governo estruturado na liberdade da autorrealização e autodeterminação de cada um e não no comando de uns sobre outros.
Porém apontam alguns doutrinadores que o constitucionalismo[14],o ativismo judicial e a democracia foram concebidos em campos opostos e irreconciliáveis, já que entendiam que os vínculos estabelecidos pelos antepassados seriam uma restrição ao governo das gerações atuais e futuras.
O fato é que se tem tradicionalmente entendido que a criação de normas constitucionais dotadas de supremacia, e que não podem ser revogadas, via procedimentos ordinários pelo legislador infraconstitucional, significa uma restrição às atuais maiorias, ou seja, representa uma preponderância dos constituintes passados sobre a geração atual, na medida em que esta deveria se sujeitar às decisões tomadas por aqueles.
É paradoxal entender que todos somos livres e iguais, mas a própria Constituição diminuiria nossa capacidade de ação. É nesse sentido que a democracia e constitucionalismo aparecem como antagônicos no período revolucionário francês, podendo a dificuldade de implementação de uma Constituição em tal país ser explicada por uma revolução a que não se queria por fim.
Ocorre que essa ausência de mediação jurídica da soberania popular, a ausência de limites ao poder do povo e o clamor das maiorias apaixonadas, é que estiveram subjacentes ao terror instaurado pelos jacobinos.
A pretensão de não vincular as futuras gerações pelas passadas está presente na discussão americana surgida na independência e instituição da Constituição norte-americana de 1787.
Longe de ser pacífico, o conceito de democracia[15] aponta que o povo deve estar encabeçando as decisões políticas, determinando o direcionamento a ser adotado pelo poder público.
Infelizmente ocorre a inoperatividade da vontade popular justamente no ato de escolha tanto dos representantes como de políticas públicas, mantendo, portanto estreita correlação com a questão de eleições e da formação da vontade popular.
O critério utilizado para determinar de tais anseios populares é utilizado o critério majoritário[16] que se concretiza por meio do sufrágio. Sério drama é vivido pela representatividade estatal e da efetivação da vontade popular a partir do momento em que o Judiciário se imiscui no âmbito de atuação dos Poderes Executivo e Legislativo[17].
Tendo em vista o desígnio jurisdicional ser a aplicação da norma ao caso concreto de forma isenta e neutra, o que só é possível com o devido distanciamento do Judiciário da sociedade, de forma que essa assunção da função jurisdicional contrariaria o enunciado de Tocqueville.
Em suma, o povo se afastaria das decisões governamentais ferindo de morte o sistema democrático. Nesse sentido, apesar de ser uno o Estado a sua estrutura e funcionamento é composta pela função executiva, legislativa e jurisdicional e, são funções indispensáveis para efetivação do Estado Democrático tendo suas atribuições bem traçadas devendo ser harmônicas, coerentes com os ditames constitucionais, de forma que não se pode cogitar em democracia sem a observância do princípio da separação de poderes.
O Estado Democrático de Direito é um conceito-chave acolhido expressamente pelo art. 1º da CF/1988 e tem fundamento o princípio da soberania popular, na qual a participação do povo na coisa pública que é uma das marcantes características.
Além de ter a simples formação das instituições representativas segundo a vontade dos cidadãos, havendo também outros fatores a serem observados.
Também a separação dos poderes é positivada no art. 2º da CF/1988 sendo um dos princípios fundamentais do Estado brasileiro, de forma que a atuação da separação de poderes deverá conduzia a interpretação das normas constitucionais, levando à integração das normas constitucionais entre si e pré-ordenar a estruturação e organização dos poderes.
A relevância suprema da separação de poderes fez que o constituinte originário a elevasse à cláusula constitucional pétrea e, portanto, inderrogável, intocável e insuprimível. Mesmo assim, a separação de poderes possui várias facetas que explicam bem o governo caracterizado pela vontade estatal formulada, expressa e realizada por órgãos supremos que incumbe o exercício das funções do poder politico.
Cabe advertir que apesar do poder político ser uno, indivisível e indelegável este, se decompõe em várias funções como executiva, legislativa e jurisdicional sendo úteis e necessárias para a concretização da atividade governamental.
A função legislativa consiste na edição de regras gerais, abstratas, impessoais e inovadoras de ordem jurídicas, denominadas leis e que devem atender ao bem geral.
A função executiva resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis; não se limita à simples execução das leis, como às vezes se diz: “comporta prerrogativas, e nela entram todos os atos e fatos jurídicos que não tenham caráter geral e impessoal”; por isso, é cabível dizer que a função executiva se distingue da função de governo, com atribuições políticas, colegislativas e de decisão e, função administrativa, com suas três missões básicas: intervenção, fomento e serviço público.
A função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesse (José Afonso da Silva). A dimensão funcional e orgânica da separação de poderes que irradia os princípios da separação de poderes que irradia os princípios da racionalização, moderação e limitação do poder estatal, sempre focado na efetividade da liberdade.
Enfim, a separação de poderes erige um Estado respeitador das liberdades, no qual, por meio de divisão do exercício do poder, estabelece um sistema de freios e contrapesos[18] com o objetivo de conter quaisquer excessos e promover a concatenação e complementação de ações governamentais.
Dentro de uma proposta contramajoritária da Constituição, reforçada pela rigidez constitucional, isto é, pela defesa da imutabilidade de suas normas, foi então compreendida como um empecilho à democracia. Eis aí, o principal confronto entre o constitucionalismo e democracia.
É sobre esse interessante debate que Paine e Jefferson[19] foram os primeiros revolucionários defensores da soberania popular, enquanto que Madison pode ser apontado como aquele que buscar ressaltar a importância dos vínculos constitucionais.
Houve ainda o famoso panfleto Common Sense surgido em 1776 e que contribuiu para a divulgação dos ideais de liberdade que levaram à Declaração de independência. Thomas Paine[20] apresentou-se como um crítico voraz da Constituição inglesa, condenando o seu governo por ser monárquico e hereditário, e mesmo que o rei tivesse sido eleito, ainda assim, entendia que não seria recomendável em face de haver a sucessão hereditária significando negar as gerações futuras o direito de autodeterminação, e as condenando ao que fora decidido e eleito pelos primeiros eleitores.
“Não tem paralelo nem dentro e nem fora das escrituras sagradas senão na doutrina do pecado original, a qual supõe que toda liberdade de escolha dos homens perdeu-se com Adão”. (Paine)
Insurgia-se assim contra toda forma de limitação ao governo dos vivos sendo que essa restrição poderia ser viabilizada através de um governo equilibrado no qual o poder do povo fosse contido pelo monarca ou até mesmo pela existência de uma Câmara Alta.
Já em 1776 se defendia em Estatuto Continental ou Continental ou das Colônias livres onde seriam fixados não somente a forma de escolha e o número de membros do Congresso e das Assembleias Provinciais, mas também, onde estariam assegurados direitos como da liberdade de exercício da religião, em 1791, quando publica Rights of Man, Paine revela mais nitidamente sua faceta democrática, indo contra a estrutura constitucional herdada por seus antepassados.
Em verdade, tal propositura correspondia a uma resposta à reflexão de Burke sobre a Revolução Francesa, pois enquanto este entendia que o Parlamento de 1688 podia vincular as gerações vindouras até o “fim dos tempos”, Paine era totalmente contra os mortos governarem os vivos.
As circunstâncias do mundo estão se alterando continuamente, e as opiniões do homem; e como o governo é para os vivos, e não para os mortos, são somente os vivos que possuem aqui qualquer direito. ”(Paine).
Paine considerava ilegítima qualquer restrição do âmbito de ação dos herdeiros pelos seus próprios antepassados, como também demonstrava que tal pretensão seria inútil, já que não é possível, mesmo que este seja o desejo “querer governar o mundo além-túmulo”.
A ideia da mutabilidade está intimamente vinculada com a defesa da democracia não sendo admissível qualquer limite constitucional que pretenda conter a dinâmica da vida através de normas intangíveis anteriormente estabelecidas.
A aura mágica da própria noção Constituição, considerando-se esta como “sagrada”, já que a expressão da sabedoria humana, não sendo passível, portanto de ser alterada em virtude das contingências de tempo e espaço.
Essa perpetuidade constitucional contraria a defesa realizada de Jefferson, da mutabilidade das normas estabelecidas pela Virgínia, haja vista que estas poderiam ser alteradas pelo procedimento do legislativo ordinário.
Após propagar a flexibilidade constitucional Jefferson estranhamente limitou o alcance destas observações, argumentando que uma convenção constitucional regularmente eleita podia excluir no âmbito das coisas suscetíveis de serem discutidas seja os direitos fundamentais, seja a forma de governo.
Tal ambivalência inicial de Jefferson foi, contudo, solucionada quando o mesmo passou a defender abertamente o direito das gerações vindouras de governarem a si mesmas, foi quando Jefferson perdera a reverência pela Constituição, admitindo a periódica alteração da Constituição para que se tornasse obsoleta, acompanhando o desenrolar dos tempos e a evolução do espírito humano.
Partindo de um estudo da expectativa de vida que teria um homem maior de idade, ou seja, plenamente capaz naquela época, de participar da vida política de seu país (Jefferson calculou o tempo que deveria durar a Constituição elaborada por uma geração).
Em carta a Samuel Kercheval, datada de 12/07/1816, Jefferson se pronunciou sobre a necessidade de emendas periódicas à Constituição, in litteris:
“Cada geração é tão independente da que a precedeu como esta de todas as outras que passaram antes. Ela tem, pois como as outras, o direito de escolher para si a forma de governo que acredita promover sua própria felicidade, consequentemente, de acomodar-se às circunstâncias e que se encontra e que recebeu de seus predecessores; e é para a paz e o bem dos homens que uma solene oportunidade de fazer isto cada dezenove ou vinte anos deve ser estabelecida na Constituição, de modo que possa ser transmitida, com reparos periódicos, de geração a geração até ao fim dos tempos, se qualquer coisa humana pode persistir tanto tempo…” (Jefferson).
Se a ideia de soberania levou ao questionamento de como poderia um soberano realizar um contrato vinculante consigo mesmo, tendo sido este um problema crucial surgido em doutrinas como a de Sièyes e Rousseau, na tradição constitucionalista norte-americana o questionamento volta-se também para a legitimidade de uma geração pode criar normas obrigatórias para sua sucessora, na medida, em que era difusa a crença de quem deve governar são os vivos ou os mortos.
Jefferson defendeu a necessidade de emendas constitucionais periódicas, mas se referia realmente ao poder constituinte derivado? Mas a compreensão que se tem é que justificava também a existência de permanente poder constituinte originário, pois não admitia restrições, mesmo que procedimentais, às mudanças pretendidas pelo povo.
Tal postura era francamente a favor da democracia, em oposição à própria ideia de Constituição sendo qualificada como radical, mas o que está por detrás dessa atitude é a continuidade da ideia de soberania absoluta, ou seja, da tradicional prática britânica de ausência de limites de poder, seja do monarca, como antes da Revolução Gloriosa, seja do parlamento, entendimento este que, de certa forma, prevalece ainda hoje em virtude de ausência de efetividade do chamado King in Parliament.·.
Cumpre lembrar que mesmo a soberania do famoso parlamento inglês vem sendo questionada pelo fato da Inglaterra integrar a União Europeia tendo a Câmara de Lordes reconhecido em 1991 a superioridade do direito comunitário sobre o elaborado pelo Parlamento britânico.
Discute-se a incongruência estrutural do Estado ao se constatar a interferência no papel de cada poder. Especialmente quando o Judiciário imiscui-se com questões legislativas.
Inicialmente a autonomia para inovar o ordenamento jurídico foi deferida originalmente para o Legislativo, sendo este composto por representantes eleitos mediante sufrágio universal pela simples inviabilidade do papel regulamentador ser exercido diretamente pela totalidade das pessoas que optaram por sair do estado de natureza e ingressaram na vida em sociedade, não sendo deferida, evidentemente, tal atribuição ao Poder Judiciário.
Frise-se que não se pretende a reduzir a função jurisdicional a uma tarefa de aplicação mecânica lógico-silogística das normas legais, sendo o Judiciário competente para atuar sobre o Legislativo quando for para impedir abusos de poder, para propiciar a harmonia na relação entre os poderes, para garantir as liberdades ou assegurar o exercício das funções próprias.
Contudo, discute-se a usurpação da atribuição principal da função legislativa (inovar no ordenamento jurídico) o que vem ser ora afirmado e ora renegado. Mas na função de aplicar a lei ao caso concreto, é imprescindível interpretá-la e atualizá-la conforme os vetores axiológicos estatuídos na Constituição.
Reconhece-se que o Judiciário exerce uma representação social indireta, o que inviabiliza que se possa atribuir à função legislativa pois as instituições democráticas normatizadoras devem estar e constante contato com a sociedade e a serviço da opinião da maioria do eleitorado.
A própria atividade legislativa em si contradiz a própria concepção formal do Poder Judiciário, de forma que a assunção desse papel é de conferida ao parlamento, que é órgão constitucionalmente legitimado para tanto, tendo, inclusive a estrutura orgânica constituída para que o exercício de sua função política seja confrontada com as alternativas mais representativas para a sociedade.
No contexto do Estado Democrático de Direito, não é aconselhável que as estruturas institucionais especialmente emanadoras de normas jurídicas sejam vulneráveis vindo a refletir passivamente as relações de forças incorporadas ao cenário do Poder constituído.
Para a mitigação deste problema foi criada a divisão do poder legislativo em um número grande de parlamentares (513 deputados federais e 81 senadores) o que não fora reproduzido no Judiciário (onde só há onze ministros do STF[21], e trinta e três ministros do STJ[22]) de forma que este último, em razão de seu menor efetivo pessoal, estaria mais propenso a tais pressões.
Porém a função jurisdicional com atuação dentro de seus limites constitucionais constitui núcleo essencial ao princípio da separação de poderes para o Estado Democrático de Direito, sendo que o controle exercido por este órgão constitui um contra-poder da função legislativa enquanto instrumento de função política.
Daí se depreende que será natural a existência de alguma tensão entre a atuação destes dois poderes, não por representarem forças político-sociais portadoras de interesses divergentes, mas simplesmente, pelo fato de cada um deles exercer funções material e teologicamente distintas.
É fato que a função do Poder Judiciário deve ser caracterizar pela natureza eminentemente jurídica de sua atuação, direcionada sempre ao caso concreto, estando despida da intenção politica conjuntural, sendo que qualquer ampliação das exceções do princípio da separação de poderes torna tênues os contornos necessários a cada função estatal, esvaziando consequentemente o conteúdo determinado da norma jurídica que o instituiu.
O Poder Judiciário será legítimo contrapoder do legislador apenas na medida em que se confinarem seus poderes no controle exclusivamente jurídico da constitucionalidade das leis. Porém o Judiciário não é legitimado a erigir-se em contralegisladores ou em substitutos do legislador, invadindo a ampla liberdade de conformação política[23] deste no quadro da constituição usurpando o núcleo essencial da função legislativa.
Evidencia que a direta legitimação democrática do legislador, que não é a dos tribunais, aponta para uma presunção de constitucionalidade das leis e o princípio da separação de poderes, por sua vez, aponta para uma judicial self-restrait quanto aos juízos de natureza politica contidos nas leis cuja constitucionalidade se trata de apreciar, uma vez que se assente o primado do legislador. (In: PIÇARRA, Nilo. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o estudo das suas origens e evolução. Lisboa: Coimbra Editora, 1989, p.261).
Percebemos que o processo revolucionário norte-americano e a convicção de que o soberano não poderia se submeter às regras que criasse, pois ao fazer um contrato consigo mesmo restava-lhe sempre a possibilidade de descumpri-lo, bem como a crença de que a geração atual não poderia impor obrigações as obrigações futuras são fatos interligados.
De fato, a Constituição norte-americana não foi um contrato entre duas partes, como o foi a Magna Carta, por ter sido esta estabelecida através de um pacto entre o monarca e os barões, mas se pode afirmar que o povo norte-americano se deu uma Constituição, ou seja, criou seus vínculos constitucionais obrigatórios para si mesmo.
Mas uma questão é pertinente: Seria mesmo isso possível? A resposta é sinceramente negativa e, é dada justamente por aqueles que, tal como Paine e Jefferson, entenderam ser a soberania ilimitada o que significa negar a legitimidade das restrições constitucionais, seja para si mesmo, seja para gerações futuras.
A experiência americana que não dedica uma cega veneração pelas coisas antigas, hábitos ou títulos, capaz de anular as sugestões de seu próprio bom-senso, o conhecimento de sua própria situação e as lições de sua própria experiência.
A possibilidade de reforma constitucional bem como a noção de representação política pode ser vistas como instrumentos criados pela configuração política e jurídica adotada pelos EUA, em seu nascedouro enquanto país independente, que demonstram como tradição democrática e a constitucionalista podem ser complementares uma à outra.
Montesquieu sustentava que a república só poderia existir em pequenos territórios. Frise-se que representação não significa um dado, uma identificação simbólica de representantes e representados, mas algo que é construído através de debate público, e não de uma aclamação baseada em sentimentos e emoções.
O periódico plebiscito, de fato, ameaça anular as garantias constitucionais democráticas, fazendo o jogo da força antirrepublicana. É por esta razão somente que Madison se opõe ao procedimento excessivamente permissivo e otimista previsto por Jefferson para as emendas.
De fato, o apelo constante à vontade do povo, com a revogação automática de todas as garantias constitucionais, pode levar a um governo de maioria, isto é a um governo no qual as minorias não tem respeitado seu direito de ser diferente, seu direito de discordar.
Desta forma, a ausência de vínculos constitucionais opera como impedimento para a formação de novas maiorias impossibilitando que o grupo minoritário venha a conquista a aprovação dos demais em um momento posterior, em outros termos, configura-se como um obstáculo ao desenvolvimento da própria democracia.
Não é plausível entender que toda Constituição é contrária à acepção de democracia. De que, devido ao seu papel contramajoritário, esta seria incompatível com a defesa dos “direitos dos vivos”?
Partindo da convicção de que só se pode cogitar em democracia se são constitucionalmente previstos procedimentos para seu exercício, a Constituição não poderia mais ser identificada com um instrumento que restringe a liberdade do povo, pois é exatamente esta que a torna possível.
Assim, a constituição americana não é obstáculo ao governo, mas um instrumento de governo. Não seria um peso ou fardo, mas uma força. Quando se afirma que não há democracia sem constituição o que está subjacente a tal pensamento é que é necessário limitar a vontade do povo para preservá-la, isto é, de que é imprescindível uma restrição à soberania popular para que esta possa se manifestar.
O poder constituinte originário, então, não pode ser considerado permanente se quer implementar um regime democrático, pois o risco de privatização da vontade geral, estando ausentes vínculos constitucionais, é potencializado.
Surge aqui então outro questionamento pela função e justificativa do poder constituinte derivado: Qual seria o papel por este poder desempenhado na “resolução” – do paradoxo entre constitucionalismo e democracia?
Se a Constituição em si é instrumento que leva consigo a pretensão de permanência gerando estabilidade ao incidir sobre gerações vindouras, só pode ser compatibilizada com o fato de direito não pertencer aos mortos, as gerações passadas na medida em que esta própria estabelece procedimentos formais para a sua própria alteração.
Desta forma, as reformas constitucionais se justificam pela necessidade de mudança das normas herdadas dos antepassados tendo em vista as novas circunstâncias especiais e temporais, ou seja, em virtude natureza mutável de todas as coisas.
Portanto, tem o poder constituinte derivado uma função, qual seja, resolver o problema democrático surgido com a predeterminação de normas que atuarão sobre as gerações futuras, pois permite que, tal como os pais fundadores, os cidadãos de hoje e de amanhã também possam exercer sua liberdade e igualdade ao participarem do projeto constituinte.
Por esta razão defende como possível a conciliação entre o constitucionalismo e a democracia, pois o mesmo que não o exercício do poder de reforma constitucional não corresponda a um consenso em relação às normas anteriormente estabelecidas, quando os indivíduos não utilizam seu poder constituinte derivado, eles implicitamente aceitariam a ordem institucional deixada por seus ancestrais.
É evidenciada a influência do chamado consenso tácito de Locke. O Brasil após 1988 ter recorrido inúmeras vezes ao processo de emenda constitucional já nos mostrou que nem sempre esse recurso ao poder constituinte derivado corresponda à assunção do povo no papel de constituinte.
Muitas vezes a alteração da Constituição pelos procedimentos formais deve-se muito mais as questões de governabilidade que às reivindicações das gerações atuais.
Logo a ordem constitucional não passa prioritariamente pela via formal de mudança, mas pelo entendimento adequado do que seja Constituição, seja pela compreensão de que a via de interpretação é outro caminho existente para realizar essa compatibilização entre o constitucionalismo e democracia.
O silêncio da lei não pode ser interpretado como proibição de reconhecimento de direitos, da constituição de família mesmo que por pessoas do mesmo sexo.
Mas há a discussão se seria necessária à emenda constitucional, ou se o fato da Constituição estar sempre sujeita à interpretação seria suficiente para o reconhecimento de direitos não expressamente elencados.
De certo como guardião da Constituição o STF não se curvou a uma interpretação literal e reducionista da mesma, ao fazer o papel contramajoritário sendo democraticamente legítimo seu posicionamento em defesa dos direitos das minorias.
O regime democrático não se reduz a uma categoria meramente conceitual ou simplesmente formal, torna-se assegurar, às minorias, notadamente em sede jurisdicional, quando tal se impuser, a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os direitos fundamentais que a todos sem distinção são assegurados.
A grande contribuição do constitucionalismo à democracia contemporânea é a atribuição de direitos às minorias posto que não os conseguiam por meio da representação política deixando a democracia de ser considerada como o governo da maioria, na qual até possa aniquilar os opositores.
Portanto, é o reconhecimento de uma igualdade na diferença se traduzindo no governo de todos, seja a maioria ou minoria, mas sendo todos cidadãos com seus direitos constitucionalmente garantidos e respeitados.
Assim concretiza-se o ideal da igualdade substancial e, não meramente formal indo além da representação parlamentar. Conveniente salientar que por maioria ou minoria não se pode atentar apenas para a expressão quantitativa mas a partir de uma análise quantitativa que verifique a possibilidade de acesso, de distribuição de bens e riquezas e de reconhecimento.
Cada geração trava sua própria batalha por reconhecimento de direitos, e a democracia contemporânea deve ter forma produtiva de lidar com a tensão existente entre os direitos fundamentais humanos e a soberania popular, ou propriamente, entre o constitucionalismo e a democracia.
Portanto, é curial rever e ampliar os direitos reafirmando o projeto constitucional de construção de uma sociedade de homens livres e iguais.
Conforme pontificou Peter Häberle[24] se somos todos intérpretes da Constituição, ou seja, se vivenciamos uma soberania difusa, uma soberania comunicativamente diluída conforme ensinou Habermas[25] entende-se como justificável a interpretação criativa do Poder Judiciário que significa o ativismo judicial que na verdade produz a afirmação cotidiana e democrática dos direitos.
A definição de ativismo judicial[26] principalmente quando tomada na versão pejorativa deve-se a incompreensão da abertura do dispositivo constitucional pois se a norma é diferente de texto, se podemos atribuir sempre novos significados aos termos do documento constitucional escrito, devendo além disso, a Constituição ser interpretada como um todo, e não em tiras ou fatias.
É uma postura ingênua se ater a postura rígida ou engessa da hermenêutica pois não compreendem que a atuação dos chamados ativistas na interpretação criativa coaduna com a necessária dimensão inacabada e incompleta da democracia constitucional.
E não compreendem que assim que os direitos humanos não se esgotam nos direitos fundamentais ou nos direitos positivados em determinado momento histórico, estando sempre sujeitos a novas leituras e abordagens.
Nem mesmo o mais clarividente dos dispositivos constitucionais não resta imune à Constituição posto que não seja uma lista fechada nas quais todas as situações concretas se subsumiriam ou não. Trata-se de um texto aberto à interpretação.
É a própria Constituição Federal brasileira vigente que no segundo parágrafo do seu art. 5º que afirma a referida abertura do texto constitucional o que possibilita a atribuição de novos significados ao texto original e de reconhecimento de direitos até então inexistentes.
Cumpre sublinhar a semelhança deste dispositivo constitucional brasileiro como o da IX Emenda da Constituição dos EUA. Os norte-americanos se consagraram como “criadores” da Constituição no sentido formal, da ideia de rigidez e supremacia constitucional e sempre entenderam que a Constituição transcende ao positivado, basta ver a reforma realizada pelo New Deal que não fora feita pelo processo de emenda constitucional.
O exagerado otimismo iluminista por vezes gera excessivas expectativas no legislador constituinte, como se este fosse capaz de controlar totalmente a complexidade social inteira.
Na tradição francesa, foi o período de codificação que ocorreu no início do século XIX que bem representou essa confiança ilimitada no legislador e em sua obra. Os códigos foram idealizados como aglomerados de leis, isto é, de criações humanas que são completas por si só, como se fosse possível que todos os conflitos que por ventura viessem ocorrer na sociedade já estivessem sido previstos, existindo assim uma resposta jurídica definitiva e em abstrato para todos os futuros casos que demandassem um pronunciamento jurisdicional.
Ocorrendo lacunas ou obscuridade deve-se recorrer à vontade presumida ou real do legislador/fundador, pois este gozava de autoridade suficiente para determinar todas as interpretações que uma lei poderia ter.
Ao juiz dessa forma, em face do princípio da separação de poderes, caberia somente aplicar de forma mecânica em lei anterior estabelecida, o que ocasionou certo fetichismo da lei, como se esta fosse um dogma inexpugnável de questionamento, devendo somente ser concretizada pelos operados do direito tendo sempre em vista a intenção de seu criador.
Esse era o método da Escola de Exegese que acreditava na onipotência e onisciência do legislador, tendo sido responsável por um entendimento restrito de direito, ao identificá-lo com a lei escrita.
As leis gerais e abstratas em documentos escritos não esgotam o seu conteúdo normativo, pois este surge no dia a dia, indo além do momento de elaboração dos textos legais.
Já a dimensão hermenêutica, isto é, da certeza de que necessariamente há uma implicação cognitiva entre sujeito e objeto de estudo, em virtude de nunca podermos livrar-nos de nós mesmos, de nossas circunstâncias, quando nos dispomos a compreender algo no mundo, revelou-nos que podemos entender o fato ou o texto do mundo que nos constitui por estarmos inseridos em tradições.
Neste sentido, revela-se uma pretensão descabida e inútil procurar a vontade do legislador para resolver os problemas atuais, pois, mesmo que não queiramos, o presente acaba se impondo.
O culto excessivo da letra da lei como se fosse esta perfeita e acabada, sem precisar de qualquer interpretação revela-se uma supervalorização da capacidade do homem para lidar com contingências mundanas.
Com o esfacelamento das certezas absolutas, nos libertamos da autoridade de nossas tradições passamos considerar as inúmeras possibilidades que nem mesmo uma decisão atual seria capaz de controlar.
A idolatria da lei corresponde ao enaltecimento da racionalidade humana que se desejava perfeita, e explica toda discussão entre os originalistas e não originalistas nos EUA. Por identificarem a Constituição com a vontade dos “pais-fundadores”, os originalistas negam qualquer outro método de interpretação que não seja o de busca de intenção dos legisladores constituintes, pois acreditam que se os juízes decidirem de outro modo, o que estarão fazendo seria “criando o direito” da decisão do caso concreto, o que contraria o pressuposto democrático do governo se exercido pela maioria.
Mas, na medida em que os juízes forem persuadidos da filosofia não originalista, estarão usurpando autoridade que pertence apropriadamente, ao povo e a seus representantes eleitos. A doutrina originalista que se apresenta como antidemocrática, por negar aos vivos o direito de definir o que seja a Constituição, aprisionando-se à vontade de seus antepassados.
Assim os novos originalistas estão inventando ativamente determinado passado que poderia ditar nosso futuro constitucional. Ao fazerem isto, estão reivindicando para a história uma autoridade decisiva que incompatível com os limites do que podemos saber e a falsa em relação à própria natureza da Constituição.
Alguns doutrinadores como John Hart Ely[27] defendem que a controvérsia havida entre originalistas e não-originalistas é falsa dicotomia pois a função da Suprema Corte[28] ao exercer o controle de constitucionalidade não é a de aplicar princípios constitucionais sejam estes explícitos ou implícitos dos falecidos constituintes da Filadélfia entendiam ser a essência da Constituição, nem a determinar os valores substantivos da sociedade que, apesar de não estarem inseridos no texto constitucional, e em virtude da tessitura aberta do mesmo, fariam da Constituição dos EUA.
O papel que tal pensador atribuiu à Suprema Corte pode ser visto como uma relação produtiva, e não paradoxal entre o constitucionalismo e a democracia pois o controle de constitucionalidade é entendido como um mecanismo de desobstrução e reforça da participação e de preservação do governo representativo.
Significando que a Suprema Corte não se coloca como a instância moral última da sociedade, determinando os valores que devem ser observados, mas sim como garantidora do próprio processo democrático. Os vínculos constitucionais reforçam e viabilizam a soberania popular.
Ely fez outra leitura do ativismo da Suprema Corte americana durante o período do New Deal, justificando-o não com base na análise da correção ou não de valores que teriam sido preservados em detrimento da observância estrita do que pensaram os “pais fundadores” mas defendendo que as decisões foram importantes e por terem permitido o acesso aos processos e benefícios do governo representativo a minorias até então excluídas.
Contemporaneamente mesmo nos países originados do sistema romano-germânico com base positivista, pautando-se basicamente, na predominância absoluta da codificação do direito, quando estes optam por assimilar em seus textos constitucionais também a presença de normas principiológicas, tal atitude possibilita o surgimento do chamado ativismo judicial, o que, de certa forma, contrapõe-se a fundamental característica do sistema eleito em razão da viabilização do espaço necessário a interpretações construtivistas.
Ernani Rodrigues de Carvalho aponta como fato propiciador desta nova tendência judicial a existência de um sistema político democrático, a separação de poderes, o exercício dos direitos políticos, o uso dos tribunais pelos grupos de interesse, o uso dos tribunais pela oposição e, por derradeiro, a inefetividade das instituições majoritárias.·.
Dessa forma, é a crise democrática a mãe do ativismo judicial sendo necessário delimitar-lhe o sentido pois por vezes são usadas equivocadas opções.
Por força da margem de discricionariedade existente na atividade judicante, o ativismo judicial representa rompimento com a postura fortemente arraigada no poder Judiciário designando uma postura proativa do magistrado na interpretação da norma, especial da Constituição, de forma a expandir seu conteúdo e alcance, participando o juiz, portanto, no processo de criação da norma jurídica.
Vale lembrar, que a referida capacidade interpretativa inserta no grau de discricionariedade judicante, por conseguinte, ser limitada sua utilização aos julgamentos dos denominados casos difíceis (hard cases) [29], mesmo assim, condicionando o magistrado conforme sugeriu a doutrina de Kelsen a transitar somente dentro da moldura jurídica imposta previamente pelo legislador.
Tanto a limitação da ação do juiz quanto à flexibilidade interpretativa é, de certa forma, intrínseca à atuação jurisdicional e, é decorrente da própria situação fática levada ao Judiciário cumulada com a própria amplitude do ordenamento jurídico, pois, quando mais de uma possibilidade, todas razoáveis e arrimadas no direito se apresentam, cabendo ao juiz optar pela melhor solução aplicável ao caso concreto.
A acepção de ativismo judicial até então usada, pode ser encarada como uma postura participativa do magistrado na condução do processo judicial, sendo esta uma postura desejável para todo juiz e demais funcionários públicos, porém, há também a acepção do ativismo judicial como a participação d o juiz na formação da norma jurídica tendo, portanto, foco no momento do pronunciamento judicial do mérito.
A distinção entre as acepções apontadas são momentos anteriores ou posteriores à decisão judicial, ou seja, no iter procedimental destinados à preparação do ato decisório ou à satisfação do direito reconhecido pelo pronunciamento judicial, enquanto que na segunda acepção faz referência apenas a sentença judicial prolatada pelo magistrado, pois este é o ato capaz de criar a norma jurídica concreta que será válida para a questão decidida, e em alguns casos, será capaz o ativismo judicial constitui uma espécie de atitude ou comportamento dos juízes no sentido de “participar na elaboração de políticas que poderiam ser deixadas ao arbítrio de outras instituições mais ou menos habilitadas” e, por sua vez, substituir decisões deles derivadas por aquelas derivadas de outras instituições.
Apesar de justificado constitucionalmente o ativismo judicial, utiliza a Carta Magna como repositório axiológico na interpretação de normas infraconstitucionais com o fim de adaptá-las aos valores prevalentes no meio social momento em que é prolatada a decisão.
De sorte que a decisão judicial não exorbitará o âmbito de competência do Judiciário, não adentrando no âmbito do Legislativo. Desta forma, não se pode encarar o ativismo judicial como violação do princípio democrático da separação de poderes e nem viola a manutenção de autonomia e harmonia entre os poderes instituídos.
Nenhuma intervenção[30] judicial no campo político se fez de forma de ingerência desmotivada institucional do Judiciário principalmente porque sua atuação somente ocorre quando provocada.
Desta forma, a partir do requerimento da tutela, o Judiciário não poderá se furtar a resolver o problema trazido, de forma que só haverá intervenção judicial na seara normativa quando o mesmo instado para tanto, sendo questionada, somente, a amplitude da decisão tomada, que em determinadas hipóteses invadem a esfera atuação do Legislativo.
Ademais, com o fito de se evitar que o ativismo se converta em atitudes arbitrárias do Poder Judiciário é forçoso a observância do principio constitucional do contraditório, o que permite a defesa contra tais ingerências, principalmente quando cumulados com o duplo grau de jurisdição.
Mas resta uma questão e quando tais julgamentos forem de competência originária do STF e não haver outras instâncias recursais?
A participação mais intensa e ampla do Judiciário busca verdadeiramente a concretização dos valores e fins constitucionais, havendo maior interferência no espaço de atuação dos dois outros poderes.
Também se associa o ativismo judicial com o tema da judicialização da política, é percebido como atitude, decisão ou comportamento dos magistrados no sentido de revisar temas e questões – prima facie – de competência de outros poderes.
A judicialização[31] da política é mais ampla e estrutural, cuidaria das metacondições jurídicas, políticas e institucionais que favoreciam a transferência decisória do eixo Poder Legislativo- Poder Executivo para o Poder Judiciário.
Outros doutrinadores utilizam a expressão “judicialização[32] da política” como política como sinônima de ativismo judicial, sendo este o entendimento de Jamile B. Mara Diz ao apregoar que “essa ideia relaciona-se à concretização pelo juiz dos princípios previstos abertamente na Constituição e, portanto propiciando o alargamento da discricionariedade judicial”.
Fica claro, no entanto, que a judicialização da política abarcaria a responsabilidade de o Judiciário dar concretude as normas positivadas na Constituição, autorizando-lhe, se necessário for, que se valha do controle das atividades de outros poderes.
Embora sejam próximos os termos não devem ser usados como sinônimos estando o ativismo judicial contido na judicialização da política e, nesse sentido corrobora Luís Roberto Barroso que explicitamos afirma que são primos embora não tenham as mesmas origens.
A judicialização[33] significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais (…) a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais.
E reparamos que tal fenômeno tem se verificado com certa habitualidade nos dias atuais porém sua utilização é pautada nas formalidades positivados pela Constituição vigente. Desta forma, é apontada a origem[34] ou fundamento da judicialização a redemocratização brasileira que culminou com a promulgação da Constituição Cidadã (a de 1988) e, ainda, a constitucionalização[35] abrangente de matérias antes outorgadas ao processo político majoritário e para a legislação ordinária e, por fim, o controle de constitucionalidade.
O STF é a mais alta Corte da organização judiciária brasileira, é o órgão máximo e nos últimos tempos tem assumido posição de destaque não apenas no cenário judicial como também no político nacional onde atua como complementador e desenvolvimentador do ordenamento jurídico pátrio.
Deixando o plano ordinário, o Judiciário passa a ostentar papel de legislador ao prolatar decisões que afetarão toda a sociedade em prospecção.
O posicionamento adotado pelo STF implica na assunção da função jurisdicional clássica conhecida como legislador negativo saindo do papel passivo, porém, de forma mais restrita que o legislativo, até porque existem as limitações já mencionadas anteriormente, como a necessidade de provocação do órgão jurisdicional.
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito institucional do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte – em especial – a atribuição de formular e implementar políticas públicas[36] (In: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina) pois nesse domínio, o encargo, reside primeiramente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais poderá atribuir-se ao Poder Judiciário[37], se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.
Por essa razão, o surgimento de um judiciário despido de qualquer constrangimento ao exercer competências de revisão cada vez mais amplas sobre as políticas destinadas a serem decididas pelos representantes da sociedade que possuem cargos eletivos de legitimidade inquestionável.
A divisão de competências judiciais atribuídas pela CF/1988 que postou o STF como o órgão competente para julgar temas relativos ao Texto Maior e acabou por permitir a atuação política da Corte.
De qualquer forma é dúbio o resultado pois colocou o STF no topo do protagonismo nacional, transformando-o num declarante importante para as instituições políticas de nossa nação. Mas ao mesmo tempo, soterrou o STF numa avalanche de processos e de precedentes, obrigando-o a conciliar o papel político, de instância de revisão e segundo turno da política representativa, com um papel mais rotineiro de prestador de serviços forenses, e ainda, o papel de terceira instâncias dentro da estrutura judiciária tradicional de solução de disputas individuais.
Sua atuação é potencializada em especial no controle concentrado de constitucionalidade, gerando expressivos resultados e, citamos como exemplos a matéria sobre a Lei de Biossegurança (ADI 3510), a reforma partidária (ADI 1351 e 1354), a verticalização de candidaturas eleitorais de 2006 e a batalha judicial sobre as contribuições previdenciárias dos inativos (ADI 3105) dentre vários outros exemplos.
É a estatística que confirma que apenas 16,57 percento das ações diretas de inconstitucionalidade julgadas entre 1998 a 2008 foram improcedentes, o que aponta para uma razoável propensão de proferir juízos de inconstitucionalidade gerando assim forte impacto na política brasileira.
Ao se indagar se o Judiciário para não violar a deliberação pública de uma comunidade política atua autonomamente orientado pelos valores que compartilha, ou deve atuar como regente republicano da cidadania ou deve abdicar de garantir os direitos constitucionalmente assegurados.
Responder positivamente significa autorizar os tribunais especialmente as cortes supremas, a atuar como deuses ou profetas do direito, consolidando aquilo que já é designado como “teologia constitucional[38]” e imunizando a atividade jurisprudencial perante a crítica a qual originalmente deveria estar sujeita, pois quando a justiça ascende à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer controle social.
O formato de atuação política assumido pelo Judiciário brasileiro, em especial pela Corte Suprema, conta com progressiva transferência de poderes decisórios das instituições políticas representativas para o judiciário, é o caminho em rumo à juristocracia ou juristocracy, contudo, deve-se manter em mente que a harmonia entre os poderes é da essência de um Estado Democrático, o que acaba por gerar, com o modelo de atuação assumido, uma contrariedade à Constituição.
Há referidas ingerências no âmbito legislativo que são potencializadas, certamente, pelo efeito erga omnes atribuído a tais decisões conforme confirmado pelo voto do Ministro Relator Celso Mello na Reclamação 2143/SP na qual afirma que as ordens judiciais proferidas pelo STF em sede de fiscalização abstrata possuem efeito vinculante em relação a todos os magistrados, tribunais e toda Administração Pública de todas as esferas, “impondo-se, em consequência, a necessária observância por tais órgãos estatais que deverão adequar-se, por isso mesmo, em seus pronunciamentos, ao que a Suprema Corte, em manifestação subordinante, houver decidido…”.
Não se questiona aqui a legalidade do efeito erga omnes das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade, porém tais efeitos, quando provenientes de uma atuação que se identifica como claramente política, é prejudicial ao sistema democrático, haja vista a atuação judiciária como legislador.
É o caso, por exemplo, da ADI 3.015, na qual foi julgada a questão dos inativos, que apesar de o governo ter saído vencedor, o STF decidiu discricionariamente aumentar a limitação de isenções.
Não seria o valor de isenção uma decisão que caberia exclusivamente ao Legislativo? Caso o STF reconhecesse a constitucionalidade da norma como realmente fez, sem ter interferido nas atribuições do Legislativo não haveria problema, pois teria cumprido o seu papel constitucionalmente estabelecido.
Não é o efeito erga omnes que por si só traz problema democrático, não se esquecendo dos pontos positivos[39] trazidos por ele principalmente na garantia de uniformidade, regularidade, segurança jurídica, eficiência e transparência nas decisões judiciais.
Ressalta Luís Roberto Barroso com pertinência que todas as decisões proferidas pelo STF foram provocadas, e o fez dentro dos pedidos formulados. O Tribunal não tinha alternativa de conhecer ou não as ações, de se pronunciar ou não sobre o mérito, uma vez preenchidos os requisitos de cabimento.
Desta forma, concluiu o doutrinador: “Não se pode imputar aos Ministros do STF a ambição ou pretensão, em face dos precedentes referidos, de criar um modelo juriscêntrico, de hegemonia judicial”.
Só se pode cogitar em ativismo judicial legitimamente em função da margem da discricionariedade deixada ao julgador pelo legislador. Sabemos que é permitido que o juiz transite livremente dentro do espaço de escolhas amparadas pelo direito optando pela aplicação de normas que melhor se adéquem ao caso concreto a fim de se conseguir buscar o máximo grau de justiça[40].
É inseparável da escolha do juiz a legitimidade interpretativa peculiar do Judiciário, sendo esta intrínseca à atividade jurisdicional, conforme afirma Lenio Luiz Streck “definitivamente, é preciso ter claro que a lei (o texto) não carrega um sentido imanente ou uma espécie de essência (substância) que o intérprete passa revelar, a partir de um ato de conhecimento. Esse sentido é atribuível”.
A aplicação da norma com a consequente solução do litígio, somente se viabiliza a partir da interpretação de que o magistrado fará das normas jurídicas que regulam a questão, sendo que inserta nesta se realizará a pré-compreensão do juiz (de caráter subjetivo).
Por esta razão, o texto normativo somente terá capacidade de regulamentação, a partir da atribuição do sentido que lhe dará o intérprete conforme os valores por este assimilados dependendo a “existência” da norma.
Segundo a lógica da hermenêutica apontada por Streck, não há dúvidas sobre a capacidade e legitimidade judicial na criação de normas, tendo em vista que as normas concretas prolatadas ao fim do processo judicial somente surgirão a partir da atividade cognoscente do magistrado, porém, a legitimidade normativa se exaure na competência decisória dos casos levados ao judiciário, com efeitos inter partes.
Ao se cogitar sobre a possibilidade de conceber normas que regerão toda a sociedade, começa a aparecer o problema relativo à capacidade e à legitimidade do Poder Judiciário pois tais normas devem ser provenientes de entes que tenham sido escolhidos pelos cidadãos para representar-lhes nas opções de cunho legislativo, não tendo o Judiciário legitimidade para tanto…
É possível ampliação da legitimidade interpretativa judicial[41] mas não deve exceder aos limites razoáveis em que há de se conter, quando cria ou “inventa” contra legem, ou melhor, contra a Constituição posto que aparentemente ainda está na sombra da lei, sendo perniciosa à garantia como à certeza das instituições.
Por mais que pareçam justos e corretos os casos decididos pelo STF como o da fidelidade partidária em que a Corte, em nome do princípio democrático, criou uma nova hipótese de perda mandato[42] parlamentar que não se encontra no texto constitucional, outro exemplo é a vedação ao nepotismo aos Legislativo e Executivo através da súmula vinculante que assumiu caráter nitidamente normativo e, ainda, o caso da verticalização em que elevou a regra da anterioridade anual da lei eleitoral ao status de cláusula pétrea.
Os temas acima citados são de âmbito político devendo o Judiciário se ocorrer a contrariedade do ordenamento jurídico não permitir a ocorrência de atos afrontantes à norma, porém, chegar ao ponto de gerar inovação legislativa certamente supera a competência deste poder.
Torna-se ainda mais séria tais ingerências quando são originadas do STF, principalmente pelo fato de grande dificuldade no controle de arbitrariedade proveniente da Suprema Corte cujas decisões não cabem recurso à outra instância judicante.
Apesar de ser interessante a atuação proativa do Judiciário devem as decisões ativistas ser eventuais devendo ainda ser coerente com o momento histórico vivido por nosso país as interferências irrestritas e inconsequentes na atividade parlamentar impedem a consolidação da democracia e ainda aplica a tarja incredibilidade do Poder Legislativo.
Por outro lado entre as opiniões contrárias ao reconhecimento de que as decisões ativistas sejam temerosas, podemos ver no trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI 3.510/DF, in litteris:
“Portanto é possível antever que o STF acabe por se livrar o vetusto dogma do legislador negativo e se alie a mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais europeias.”
A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional.
O presente caso oferece uma oportunidade para que o Tribunal avance nesse sentido. O vazio jurídico a ser produzido por uma decisão simples de declaração de inconstitucionalidade.
Pelo exposto, observa-se que o judiciário vem assumindo uma posição extravagante às funções constitucionalmente postas a este, na qual, neste caso, vem idealizando a concretização da Constituição como panaceia para resolver problemas brasileiros de ordem distinta, praticamente avocando a competência que seria originalmente do Congresso, que através de um “irracionalismo decisionista” que despreza inteiramente o texto constitucional, e, independentemente de juízos sobre isso é bom ou mau, o juiz “faz” o direito. (In: ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, vol.1., n.2, 2004, p.179).
Foram certamente decisões intervencionistas, mas não foram estimulas por um desejo da Corte de defender valores substantivos particulares que teria considerado importantes ou fundamentais, mas primordialmente por um desejo de proteger o processo político no qual esses valores são propriamente identificados, pesados e acomodados que foi aberto partir de uma abordagem de bases igualitárias.
Como exemplo ilustrativo do ativismo da Corte de Warren[43] podemos citar “Brown versus Board of Education” de 1954 onde pela primeira vez a legislação segregacionista, referente às instalações públicas voltadas para a educação, foi tida como contrária ao princípio de “igual proteção” diante da lei, princípio este garantido pela décima quarta Emenda Constitucional norte-americana.
O posicionamento da jurisdição constitucional[44] como espaço de mediação política é bem peculiar ao pensamento de Frank Michelman, pois ao tentar se distanciar o republicanismo clássico que se baseava em valores sociais majoritários, defende que seria papel dos juízes a inclusão dos excluídos, ao relacionar o constitucionalismo e a democracia, liberalismo e republicanismo, minoria e maioria.
Michelman acaba conferindo uma posição privilegiada aos magistrados, delegando para eles a tarefa de atribuir direitos aos excluídos, esquecendo-se que a inclusão somente se dá através da luta política, isto é, através do exercício da soberania popular.
Também há a crítica ao “juiz responsável” de Michelman pensado em substituição ao “juiz hércules[45]” de Dworkin que seria bem representado pelo juiz William J. Brennan[46].
Enfim a questão é a constituição não é simplesmente um documento procedimental que não se pronúncia sobre as questões de conteúdo. E a Corte de Warren se ocupou de uma pluralidade de valores, por exemplo, da igualdade, independentemente do fato de haver defendido a causa da democracia.
Cabe sublinhar que toda decisão judicial ainda que resumidamente envolva questões substantivas, mas isso não significa que o juiz esteja autorizado a resolvê-las a partir de suas próprias convicções valorativas.
É óbvio que a subjetividade sempre influenciará na tomada de decisões, pois não temos como abandonar nossas precompreensões, só que a refletividade trazida com modernidade nos possibilita questionar a nossa própria eticidade e levantar pretensões de verdade que trazem consigo o ideal da universalidade, ou seja, que buscam uma validade para além de situações concretas que surgiram.
Assim é possível haver uma resposta correta tal como cogita Dworkin que necessariamente envolve escolhas de conteúdo, até mesmo valores positivados, mas se propõe a ultrapassar o contexto de aplicação.
Por outro lado, cabe mencionar que tais decisões de conteúdo substantivo são encontradas dentro do próprio ordenamento de princípios, não sendo assim construções arbitrárias dos juízes, pois se o fossem, não haveria como justificar nem mesmo a obrigatoriedade de sua observância por todos os cidadãos.
A maneira de interpretar as normas constitucionais, a partir da intenção dos legisladores, como no caso de norte-americanos dos “pais fundadores” se representam as convicções valorativas dos juízes ou da sociedade, ou se são normas cujo sentido transcende as suas origens, leva-nos a questionar o conceito de Constituição do qual partimos.
A Constituição é um instrumento simultaneamente jurídico e político, não se reduzindo a um texto, sendo então essencial que os direitos fundamentais institucionalizados sejam continuamente conquistados pelos vivos, como afirmar legitimamente que os constituintes deveriam ser consultados sobre o pretenderem ao aprovar o documento em questão?
Como bem afirma Michelman sobre “pais fundadores”, além de respeito e gratidão por sua sabedoria, o que devemos a eles?
Se a Constituição é essencial para a democracia, na medida em que a possibilita, o texto constitucional por si só não nos constitui enquanto uma comunidade de iguais na diferença, sendo assim, uma necessária uma busca constante de concretização e reconhecimento dos direitos por parte dos cidadãos.
A normatividade engloba fatos e texto ultrapassando o momento de sua institucionalização, o texto constitucional somente apresenta normatividade se ele não é estanque no tempo, se as gerações sucessivas se deixam vincular pelo mesmo.
Não seria mutação constitucional quando ocorre a natural dissonância entre texto e contexto, seria um desvio de rumo do desenvolvimento da dinâmica constitucional que deve ser analisado como fenômeno acidental.
A acepção de mutação constitucional traz boa definição de Constituição[47] como se fosse um documento escrito e estático engessado numa normalidade que não acompanha o tempo.
Em verdade, a Constituição não se modifica em termos interpretativos o que ocorre é a deslegitimação da normatividade que se torna mero simulacro. A continuidade da Constituição bem como a sobrevivência da democracia está baseada na transcendência de seu momento inaugural.
A dimensão jurídica e política da Constituição, ou seja, a positivação do direito moderno preso a testificação é como mencionou Müller uma faca de dois gumes.
Posto que a Constituição só seja democrática se não pertencer aos mortos, se possibilitar atual exercício da soberania popular, e permitir novas inclusões sejam sempre realizadas, significando um processo inacabado, nas palavras de Habermas que cogita de um processo de aprendizagem que se corrige a si mesmo.
Estamos então ressaltando o não congelamento do processo constituinte no tempo, pois como poderia ser garantida a liberdade e igualdade das gerações vindouras. Não se defende a ideia de poder constituinte permanente, mas se reconhece o caráter fragmentário desse próprio poder constituinte.
Já que nem todos participaram do mesmo, deve estar sempre aberta à possibilidade dos cidadãos de hoje e do futuro integrarem tal projeto constitucional, seja por meio de via institucionalizada do poder de reforma, seja por assunção do papel de intérprete da Constituição.
Concluímos que o documento escrito não finda, na verdade, o processo constituinte, exercendo nossas liberdades comunicativas, construindo de uma comunidade político-jurídica que desejamos para viver.
A Constituição não consolida singularmente apenas a soberania popular, mas num crescente progressivo vai consolidando conforme seu contexto de aplicação.
A democracia constitucional é um projeto inacabado e de construção progressiva não sendo os direitos, conforme afirma Hannah Arendt um dado, um artifício voltado para busca de tratamento igualitário de homens naturalmente desiguais.
Há portanto um reforço recíproco entre democracia e constitucionalismo podendo entender com o reconhecimento pelo Poder Judiciário das lutas cotidianas por direitos[48], ao invés de configurar a ofensa à democracia, ao princípio majoritário, pode significar sua mais firme afirmação.
Evidentemente que toda norma carece de interpretação seja em função de imprecisa formulação linguística que não permite um sentido unívoco do ordenamento, quanto pela necessidade de aplicação ao caso concreto, todavia, nas palavras de Streck, quando:
“a partir de redefinições dos textos, a dogmático jurídica, no interior da qual predomina sem gerar maiores traumas ou perplexidades – estabelecer não somente sentidos contra legem e/ou inconstitucionais como também “novos textos”.”.
Há quem pregue que a produção normativa pelo Judiciário deve ser repelida veemente. Na opinião de João Maurício Adeodato o debate sobre os limites à criatividade do Judiciário, pode-se considerar a preponderância da atividade judicante na concretização, sobretudo por parte das Cortes mais altas, como uma realidade prejudicial ao Estado Democrático de Direito, pois o Judiciário passa a ser guardião do conteúdo moral do direito e, ao invés de a moral limitar o direito, como parece ser a intenção jusfilósofos como Ronald Dworkin, pode acontecer exatamente o contrário: a inserção direta de princípios morais nas questões judicias através de uma “moral do judiciário”, faz com que as fronteiras de que é jurídico e coercitivo ampliem-se a níveis preocupantes no contexto democrático.
De qualquer forma, reconheçamos o engajamento recíproco existente entre constitucionalismo e democracia e da necessidade do Poder Judiciário perante as lutas por direitos venha reconhecer novos direitos, e prover decisões erga omnes sem ofender nem a democracia e nem a separação de poderes, atualizando as garantias constitucionais e cumprindo a promessa axiológica de defender sobretudo a dignidade da pessoa humana que se configura como um dos principais fundamentos da república brasileira.
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
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