Resumo: O presente estudo constitui uma exposição de peculiaridades existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, referentes à prática do ato infracional, cujos pressupostos consagram o ramo do Direito Penal denominado Direito Penal Juvenil. A partir de uma breve abordagem histórica do movimento de reconhecimento e distinção das fases adulta, infantil e adolescente; da compreensão da relação existente entre esta, a violência e a criminalidade; bem como a análise da evolução do regramento dessa fase peculiar de desenvolvimento, pretende-se justificar o caráter punitivo das medidas socioeducativas aplicadas, enfatizando seu demasiado rigor, o qual supera em muitos casos o encontrado nas disposições da normativa penal destinada aos adultos. Dessa forma, também se almeja reduzir a sensação de impunidade do adolescente infrator perante a sociedade, motivando a priorização de ações reintegradoras às sancionatórias, haja vista seu efetivo potencial transformador.
Palavras-Chave: Direito Penal Juvenil. Estatuto da Criança e do Adolescente. Ato infracional. Adolescência.
Abstract: The present study is constituted of an exposition of peculiarities existent in the Child and Adolescent Statute (Estatuto da Criança e do Adolescente), referring to the practice of the transgressive act, whose presuppositions consecrate the Penal Law branch denominated Juvenile Penal Law. From a brief historical approach of the recognition and distinction movement on the adult, infantile and adolescent phases; from the comprehension of the relation existent of each phase with violence and criminality; as well as the analysis of the ruling evolution of this peculiar development phase, it is intended to justify the punitive character of the socio-educational acts applied, emphasizing its great rigidity, which, in many cases, goes beyond what is found in the penal normative dispositions designated to the adults. Thus, it is also desired to reduce the sensation of impunity of the transgressor adolescent before society, motivating the prioritization of actions of reintegration to the sanctionative ones, due to its effective transformative potential.
Keywords: Juvenile Penal Law. Transgressive act. Adolescence. Child and Adolescence Statute.
Sumário. Introdução. 1. O reconhecimento da infância e da adolescência. 1.1. A associação da adolescência à criminalidade e à violência. 2. A evolução do tratamento jurídico direcionado a crianças e adolescentes. 2.1. O ECA e o direito penal juvenil. 3. Contradições. Conclusões finais. Abstract. Referências bibliográficas.
Introdução
Ainda que o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente represente uma grande evolução em termos de reconhecimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente, o caminho a ser percorrido para a real efetivação desses conceitos não foi totalmente explorado. Principalmente, quando se trata do adolescente infrator, a resistência da sociedade frente à sensação de impunidade proveniente da exigência de tratamento diferenciado, haja vista sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, representa um óbice a ser derrocado.
Não obstante esse impasse, a própria lei possui lacunas e falhas, como a omissão quanto à proibição ou permissão da manifestação da defesa durante a oitiva informal; a competência do Ministério Público em iniciar a ação socioeducativa independentemente de queixa ou representação do ofendido e essa representação independer de prova pré-constituída da autoria e materialidade; a omissão sobre a incidência da prescrição na apuração de atos infracionais e conseqüente imposição de medidas socioeducativas; as quais tornam o Direito Penal Juvenil e sua justiça mais seletivos e estigmatizantes que o sistema criminal [1]. Permanece, portanto, em alguns juízos, a desconsideração de seus destinatários.
Essa prática pode justificar as estatísticas que comprovam o reduzido número de adolescentes infratores graves submetidos à medida de privação de liberdade, quando comparados àqueles em situações diversas. Sobretudo, a inexistência de uma relação fiel entre tal privação de liberdade e a autoria de fato realmente gravoso. Por isso a importância do tema, haja vista que erige a obrigatoriedade do cumprimento legal (razão jurídica), destacando a falta de uma resposta adequada governamental, não governamental e cidadã a essa questão (razões política e ética) [2].
Diante do exposto, este trabalho pretende elencar justificativas para a necessidade de um tratamento diferenciado aos adolescentes mesmo se infratores, uma vez que tal qualificação possui caráter temporário, quando há uma conjunção de esforços do governo e da sociedade civil para revertê-la. Além disso, a transgressão à lei não prescinde a condição humana do autor, o qual continua a ser amparado por ela independente da fase de desenvolvimento biológico e ou psicológico em que se encontra e do ato que tenha praticado. Soma-se a esse objetivo o de destacar a manutenção do sistema em seus aspectos favoráveis, bem como a retificação deste onde há falhas e lacunas, fundamentando-se sempre nos princípios da condição peculiar da pessoa em desenvolvimento e do melhor interesse do adolescente.
1. O reconhecimento da infância e da adolescência
Até o século XVIII, a infância e a adolescência foram tratadas com indiferença pela sociedade, haja vista a criança e o adolescente serem considerados objetos pertencentes a seus pais. Ambos eram mesclados aos demais membros sociais de forma igualitária sem garantias de qualquer espécie. A partir desse marco, acirrou-se a percepção do contraste existente entre as esferas infantil e adulta, do momento diferenciado de desenvolvimento daquela e da necessidade de preservá-la a partir da educação, da saúde física e moral [3].
Como imperava o critério econômico de discernimento humano, não havia, inclusive, termos no idioma que diferenciassem infância, adolescência e juventude ou trajes particularizados. Adulta era a pessoa independente economicamente, restando às demais o caráter infantil. Também artisticamente, as crianças não eram representadas ou assumiam características físicas adultas de pequeno porte em telas e retratos da época [4].
Tanto o reconhecimento da adolescência quanto o da infância são provenientes de complexos processos de transformação social, os quais não envolveram apenas o cerne familiar, porém abrangeram a inserção de seus componentes no mundo do trabalho urbano industrial e em outra série de mudanças, como a universalização do ensino (escola pública), o desenvolvimento do individualismo filosófico, político e religioso. Esses fatores, conseqüentemente, corroboraram para a diversificação dos padrões de necessidades, bem como para a diferenciação em esferas, distância, adensamento e formalidade das relações intra-familiares [5].
Segundo aspectos psicológicos, o adolescente passa por instabilidades extremas de cunhos diversos, ora religioso, ora sexual, político, entre outros, o que em seu conjunto se pode denominar “síndrome normal da adolescência”, sendo fundamental para o estabelecimento da sua identidade [6].
Contribuindo para essa formação, identificam-se os fatores delineadores da contemporaneidade, os quais envolvem:
“… o entrecruzamento de fatores tais como a transformação do espaço social para uma organização predominantemente urbana; a emergência de novas configurações familiares transformando a organização da vida social e afetiva da família; a crise das instituições sociais que outrora desempenharam papel nuclear na transmissão de crenças e valores entre gerações; a presença hegemônica das mídias na ocupação do tempo de vida no trabalho, no lar e no lazer; a interpenetração cultural a banalização da violência na vida cotidiana; e o imperativo do consumo”[7].
Como as relações de consumo na atualidade possuem caráter hegemônico, serão, portanto, protagonistas da definição da sua auto-imagem e identidade, caracterizando-a como identidade de consumo [8].
Segundo pesquisas realizadas com quarenta educadores, assistentes de desenvolvimento social de três unidades da Fundação da Criança e do Adolescente, há uma explícita distinção entre a adolescência infratora e a adolescência em geral. Esta é positivamente descrita como uma preparação para o futuro, na qual o sentimento de onipotência e a carência de controle familiar seriam seus aspectos negativos. Já a infratora é oriunda de desestruturações familiares, sendo esta também a justificativa para a descrença na sua recuperação [9].
Todavia, concordando com as palavras de Cleber Augusto Tonial:
“O tempo exerce uma influência inquestionável sobre qualquer pessoa. E para aqueles cuja personalidade está em desenvolvimento, com ainda maior visibilidade e rapidez. As mudanças de comportamento no jovem são muito mais comuns, aceitáveis e esperadas do que no adulto, e muito mais improváveis no idoso. Esse é um dado da experiência comum que não precisa de prova para ser tomado como verdade. A personalidade em formação é dúctil por natureza, tem flexibilidade, estende-se sem rompimentos. Isso, que normalmente é alvo de crítica do adulto, poderia também ser visto como algo extremamente necessário para que qualquer indivíduo esteja predisposto às novas experiências. Creio que sócio-educar não significa moldar a personalidade de acordo com um determinado padrão social e esperado de comportamento, mas funda-se antes no fornecimento de experiências adequadas para que o adolescente construa o conhecimento necessário ao relacionamento social de forma juridicamente aceitável”[10].
1.1. A associação da adolescência à criminalidade e à violência
Concomitantemente à compreensão da complexidade da adolescência, surgiu a preocupação com a delinqüência juvenil e, conseqüentemente, teorias foram elaboradas afim de elencar conceitos e razões para sua ocorrência. Inicialmente, houve sua associação à carência de auto-controle e controle promovidos pelos pais e à condição social precária vivenciada. Em síntese, consolidaram-se quatro formas de abordagem da delinqüência juvenil. A primeira forma se baseou na análise de opiniões e informações propagadas pela mídia, as quais projetavam um risco demasiadamente superior ao real, legitimando a atuação rigorosa de diversos agentes sociais e de contenção social. Já a segunda, fundamentou o estudo na observação da evolução da delinqüência a partir de dados estatísticos oficiais e com isso desvelou a iminência do risco extremado, demonstrando que o envolvimento de jovens em ofensas graves é inferior à violência praticada contra eles. Na terceira forma, concebida como polêmica em virtude da complexidade do tema, foram abordadas as causas da associação dos jovens à violência e à criminalidade, as quais podem abranger influências individuais, familiares, escolares, dos pares e da comunidade. A quarta forma de abordagem, por sua vez, trata das políticas públicas utilizadas para reverter ou equilibrar o impasse [11].
O modelo teórico-conceitual explicativo da delinqüência juvenil proposto por D. J. Schoemaker, no entanto, compreende três níveis de conceitualização: estrutural, sócio-psicológico e individual. Segundo a teoria do nível estrutural, os fatores sociais são concebidos como principais determinantes da delinqüência. A carência de controles institucionais e de oportunidades sociais seriam responsáveis pelo estabelecimento de padrões criminais e conseqüente direcionamento dos excluídos à prática de atos ilegais. Contudo, essa concepção fora objeto de críticas, em virtude da desconsideração das opções individuais e da proposição de uma relação direta entre pobreza e delinqüência. O nível sócio-pscicológico transfere a responsabilidade aos entes responsáveis pela formação e adaptação do adolescente, como seus pares, família, escola e igreja. A compreensão de si e as influências do meio interferem de maneira relevante na construção da auto-imagem do jovem. Por isso, uma vez detentor de baixa auto-estima, rotulado pejorativamente ou estimulado inadequadamente por seu grupo ou pares, torna-se frágil, suscetível ao crime. No nível individual, os mecanismos internos do indivíduo, seus aspectos biológicos hereditários e as características de sua personalidade o predisporiam à delinqüência. Sendo assim, determinados atributos como a inabilidade de relacionamento, a carência da percepção de culpa ou remorso e a insensibilidade, indicadores de uma personalidade anti-social, também são verificados ou relacionados ao adolescente infrator. Todavia, a validade desse modelo exige a análise das múltiplas interações entre fatores e níveis, além da consideração da existência de infratores ocasionais [12].
Entretanto, há autores que entendem esses modelos como uma forma de identificação de mediações do comportamento infrator, não de suas origens. Para eles, o método adequado exigiria a abordagem crítica relacionada ao materialismo histórico, analisando o comportamento do indivíduo aliado ao processo de socialização [13].
Objetivando descobrir os motivos que levam o jovem a aderir à criminalidade, uma pesquisa foi realizada nas cidades do Rio de Janeiro e Recife, através da análise do conteúdo de entrevistas feitas a sessenta e um adolescentes infratores e trinta e um não infratores com laços de parentesco entre ambos. Os fatores de risco associados aos infratores foram: consumo de drogas, amizades, lazer, auto-estima, a posição entre irmãos, princípios éticos, a presença de vínculo afetivo com a escola e a violência dos pais [14].
A partir da análise das vulnerabilidades experimentadas por jovens infratores e suas famílias, constatou-se a fragilidade destas, haja vista as condições de pobreza e exclusão social que enfrentam, a precariedade da saúde e a violência sofridas. Segundo esse estudo, as conseqüências emocionais e financeiras decorrem da ausência das figuras paterna ou materna fundamentais no processo de identificação social [15].
No Centro de Educação Regional de Chapecó – SC, baseando-se no estudo de quarenta e oito adolescentes em privação de liberdade, revelou-se a possibilidade de existirem dois grupos de jovens infratores, com e sem psicopatia. Os autores de crimes graves, no caso em tela, demonstraram personalidade psicopática e histórico de reincidência criminal. Em países como a Grã-Bretanha, Suécia, Nova Zelândia e Austrália, a presença de psicopatia representa um aspecto relevante a ser considerado no momento da decisão a respeito do destino do adolescente infrator[16].
Em um levantamento realizado no município de São Paulo, entre 1993 e 1996, observou-se aumento no percentual de lesões corporais e de roubos e diminuição dos furtos cometidos por adolescentes. As infrações contra o patrimônio nesse período somaram 51,1%, o uso e porte de drogas 4,3 %, seu tráfico 2,9% e homicídios 1,30%. Já no Rio de Janeiro, entre 1991 e 1996, houve a redução dos crimes contra o patrimônio de autoria juvenil, porém, um aumento acentuado do envolvimento com drogas. Conjuntamente ao crescente envolvimento dos jovens com o crime violento, a vitimização desses também se acentuou, praticamente dobrando a taxa de homicídios ocorridos entre adolescentes a partir de 1988 [17].
Agravando a situação dos jovens infratores, encontra-se a veemência do apelo midiático que propaga a incapacidade do Estatuto da Criança e do Adolescente conter a criminalidade, haja vista a cobertura jornalística da violência contra os jovens priorizar os casos de delinqüência aos de vitimização. O número de notícias divulgadas sobre homicídios cometidos contra esse grupo, principalmente quando pertencem a camadas populares, é muito pequeno. Por não revelar as questões sociais, as violações de direitos e o contexto em que as transgressões ocorrem, a mídia contribui para a formação de uma visão negativa e preconceituosa com relação aos jovens infratores, estimulando reações violentas que atentam contra a sua integridade [18].
Dos jovens infratores internos em São Paulo no ano 2000, 67% praticaram roubo ou furto e apenas 8,5% cometeram homicídios. Todavia, esta é a modalidade criminosa que mais sensibiliza ou provoca aversão popular, em virtude da barbárie e da crueldade com que é praticada. Não obstante, a delinqüência abrange todas as classes sociais, entretanto, os infratores pertencentes às classes média e média alta possuem uma infraestrutura familiar que impede a sua internação, bem como a colaboração da mídia ao preferir divulgar os crimes cometidos por adolescentes oriundos da periferia. Por isso, alguns autores entendem ser a função da mídia a instigação do medo e da relação da violência às classes baixas [19].
A contribuição do capitalismo moderno para o ciclo da violência é uma constante em todos os estudos, haja vista a intensidade com que interfere na formação do caráter, corroendo ou corrompendo os liames entre os seres, as virtudes como a confiança, a lealdade e a ajuda mútua. Dessa forma, a desadaptação ao processo capitalista gera a exclusão e com ela sentimentos prejudiciais como a humilhação e o ressentimento para com os adaptados [20].
2. A evolução do tratamento jurídico direcionado a crianças e adolescentes
O direito da criança e do adolescente possui três abordagens ou etapas distintas: a doutrina do direito penal do menor ou etapa penal indiferenciada, a doutrina da situação irregular ou etapa tutelar e a doutrina da proteção integral ou etapa garantista [21].
Segundo a doutrina do direito penal do menor, crianças e adolescentes apenas são reconhecidos enquanto sujeitos ao direito penal, quando praticarem ou sofrerem ações alcançadas pela norma penal. Nos países partidários a essa doutrina, praticamente nenhuma distinção é feita entre crianças e adultos, bem como não há normas específicas para a sua proteção [22]. Tais questões eram tratadas de acordo com os códigos penais retribucionistas, os quais, diante do ato infracional de autoria juvenil, limitavam-se à redução das penas, permitindo a execução em estabelecimentos destinados a adultos. Nessa fase, o objeto central consistia na pesquisa do discernimento do jovem infrator a ser legitimado pelas teorias positivistas da época [23].
O fim da infância, consoante as Ordenações Filipinas que vigeram no Brasil até 1830, era estabelecido aos sete anos, enquanto para os Códigos Penais do Império e para o primeiro Código Penal Republicano de 1890 era adotado o critério biopscicológico, o qual variava, respectivamente, entre sete e quatorze anos e nove e quatorze anos [24].
Historicamente, no Brasil, em 1913 foi criada a primeira instituição para atender o jovem autor de infrações conjuntamente aos desvalidos (Instituto Sete de Setembro). Em 1927 houve o regramento da matéria através do Código de Menores, consistindo no primeiro país da América Latina a implantar tais medidas. Segundo suas disposições, o menor de 14 anos não seria submetido a processo penal algum, enquanto que aquele compreendido entre 14 e 18 se submetiria a processo especial. No entanto, a revolta da sociedade diante do número crescente de crianças e adolescentes em situação de rua exigiu meios de repressão urbana também àqueles cuja lei não alcançava. Conseqüentemente, em 1941 foi criado o sistema nacional de assistência ao menor (SAM) em substituição ao Instituto Sete de Setembro, como forma de reverter esse impasse. Contudo, sua estrutura apresentou arbitrariedades ainda maiores como a ineficiência e dependência administrativa e uma política demasiadamente repressiva. Estruturalmente, fora considerada por muitos como uma “fábrica de delinqüentes”, haja vista a promiscuidade e as condições desumanas de suas instalações. Por isso, em 1964, foram criadas instituições de regulação federal (FUNABEM) com objetivos mais abrangentes como a pesquisa de métodos, testagem de soluções e estudos relacionados à integração do menor à família e à comunidade. Em 1979, foi promulgado o novo Código de Menores, consagrando o termo “menor em situação irregular”, englobando do abandonado ao autor de infração, inalgurando a etapa denominada tutelar [25].
A etapa tutelar fora principiada com a criação dos tribunais de menores, os quais possuíam um caráter revolucionário por contestar aspectos e conseqüências da doutrina anterior, como as condições carcerárias indiscriminadas dos jovens com adultos e a inflexibilidade da lei penal, que dessa forma descumpria a tarefa protecionista própria do direito aplicado a crianças e adolescentes [26]. Nessa fase, os menores são objetos da lei quando se encontrarem em estado de patologia social, em uma situação irregular, em desajuste aos padrões estabelecidos, não apenas em detrimento de uma questão penal. Todavia, a carência de distinção das causas dessa situação, se oriundas da conduta do jovem ou de seu contexto, propiciou a institucionalização de vitimizados (abandonados e vítimas de maus-tratos) e autores de infrações [27]. A função do juiz de menores possuía natureza paternalista, haja vista seu poder de decidir em nome da criança e a jurisdição, célere e simples, justificando a inobservação das garantias formais do processo penal, em virtude da necessidade de se estabelecer o saneamento moral, a proteção e a repressão com urgência. Houve a separação da infância em infância propriamente dita, aquela ajustada aos padrões sociais da época, cujo controle era exercido pela família e escola, e o menorismo, sujeito à arbitrariedade dos tribunais, legitimados a intervir em qualquer circunstância, a fim de corrigir a personalidade do menor [28].
Contudo, a inutilidade e a ilegalidade contextualizadas em leis que criminalizavam a pobreza e desproviam de garantias o tratamento jurídico dos conflitos das classes vulneráveis foram percebidas pelos envolvidos nas questões da infância. A necessidade de reformas legislativas a esse respeito se tornou explícita e com isso, um conjunto de instrumentos jurídicos, representados pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança; pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil e dos Jovens Privados de Liberdade e pelas Diretrizes das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil, sensibilizaram os movimentos sociais e setores das políticas públicas para a relevância da dimensão jurídica no processo de reconhecimento e conseqüente melhora nas condições de vida da infância [29].
Surge, nesse momento, a doutrina da proteção integral ou etapa garantista que se destaca pelo reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos especiais e específicos, devido à condição peculiar de pessoas em desenvolvimento que ostentam. Há a unificação da infância, haja vista a ausência de distinção quanto ao alcance dos direitos e obrigações compatíveis a esse estágio [30]. Também o caráter filantrópico e a fundamentação assistencialista são substituídos respectivamente por políticas públicas específicas e pelo reconhecimento da titularidade de direitos subjetivos. No ordenamento jurídico brasileiro, essas transformações podem ser representadas por seis aspectos principais:
“(a) reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos; (b) institucionalização da participação comunitária por intermédio dos Conselhos de Direitos, com participação paritária e deliberativa; (c) hierarquização da função judicial, com a transferência de competência aos Conselhos Tutelares para agir diante da ameaça ou violação de direitos da criança no âmbito municipal; (d) municipalização da política de atendimento; (e) eliminação de internações não vinculadas ao cometimento – devidamente comprovado – de delitos ou contravenções; (f) incorporação explícita de princípios constitucionais em casos de infração penal, prevendo-se a presença obrigatória de advogado e do Ministério Público na função de controle e contrapeso”[31].
Esse sistema de garantias ampara os direitos fundamentais de crianças e adolescentes contra quem possa violá-los. Nesse momento, a discricionariedade do juiz é afastada, para priorizar a decisão que melhor contemple os interesses dos jovens. A integralidade se encontra na abrangência de todas as relações interpessoais que envolvam esse ente, além da proteção de todos os aspectos que conformem sua condição humana [32].
Através da articulação do movimento de luta pelos direitos da infância, foram então introduzidos os princípios de proteção e garantia de direitos da criança na Constituição de 1988, consagrados em seus arts. 204 e 227. A relevância constitucional acarretou a reformulação da legislação especial, materializada na Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente [33].
2.1. O ECA e o direito penal juvenil
Inserido em um processo mundial de consolidação, atenção e valorização dos direitos da criança e do adolescente, surge a revisão da legislação brasileira, fundamentada em uma nova concepção de direito e cidadania, a uma percepção do jovem como ser humano em desenvolvimento, com particularidades, necessidades e conseqüentemente direitos especiais. Com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente houve mudanças na relação de responsabilidade existente entre crianças e adolescentes, Estado e sociedade civil; na forma de tratamento, substituindo os termos crime, menor e delinqüente juvenil por ato infracional e pessoa em desenvolvimento ou adolescente, a fim de terminar com preceitos prejudiciais originados pela associação equivocada entre menor, crime e delinqüência [34].
Emilio García Méndez reconhece como principais inovações apresentadas pela Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990, a municipalização da política de atenção direta; a eliminação da internação justificada pela situação de desamparo ou irregularidade social; a participação igualitária do estado e da sociedade civil nas decisões relativas ao assunto através da formação de Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente nos níveis federal, estadual e municipal de organização política e a transferência da competência dos casos não infracionais ao âmbito municipal dos Conselhos Tutelares [35].
Didaticamente, o sistema de garantias da infância e adolescência pode ser distribuído em três segmentos de políticas públicas: as políticas básicas, de proteção especial e socioeducativas. As políticas básicas constituem o sistema primário, disposto nos arts. 4º e 87 do estatuto, o qual visa a prevenção. Dessa forma, pretende abranger a universalidade dos jovens, propiciando que indistintamente alcancem condições de saúde, alimentação, habitação, educação, esporte, lazer, profissionalização e cultura favoráveis a seu desenvolvimento. Já o sistema secundário executa políticas de proteção especial, as quais atentam para situações de risco pessoal ou social da infância e juventude, através de medidas expressas nos arts. 101,129, 23, parágrafo único, e 34 da mesma Lei. Entre as medidas propostas, destaca-se a orientação, apoio e acompanhamento temporários, o estímulo ao retorno ao ambiente escolar, apoio sociofamiliar e o atendimento a vítimas de maus-tratos. Por fim, há o sistema terciário, que trata das medidas socioeducativas presentes nos arts. 112 e 129 do ECA, destinadas a adolescentes em conflito com a lei. A sua aplicação revela a falha nos segmentos anteriores, bem como a necessidade de uma intervenção mais intensiva [36].
O direito penal juvenil corresponde ao sistema terciário ou socioeducativo, portanto, representa apenas uma parte das disposições elencadas no estatuto, constituindo este uma forma mais abrangente.
Vincula-se ao direito penal moderno e conseqüentemente à Constituição, pelo interesse em tutelar o cidadão perante o arbítrio público. Por isso, fundamenta-se em princípios básicos similares como a legalidade ou reserva legal, a intervenção mínima, a lesividade, humanidade e culpabilidade, além de seus princípios fundamentais específicos representados pela condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e do melhor interesse do adolescente. A legalidade impõe limites ao direito penal juvenil ao estabelecer a restrita relação entre a definição do crime e a imposição de sanção ao processo legislativo, impedindo com isso a instituição arbitrária ou ilegal de medidas. A intervenção mínima, através da fragmentariedade e subsidiariedade, permite a mobilização desse sistema apenas diante de condutas gravosas praticadas contra bens relevantes, sobretudo, quando os meios extrapenais foram ineficazes. A partir do princípio da lesividade, são rejeitadas do juízo as considerações que não se refiram à conduta típica, antijurídica e reprovável, como idéias, sentimentos, estados e condições existenciais. Consoante os princípios da humanidade e culpabilidade, as sanções devem ser racionais e proporcionais à gravidade do fato, exigindo a autoria ou participação para sua implementação, sempre restrita à pessoa do autor [37].
A respeito do princípio do superior interesse da criança, João Batista Costa Saraiva salienta a relevância de compreendê-lo segundo os princípios da reserva legal; inimputabilidade penal; excepcionalidade e brevidade na privação de liberdade; contraditório e ampla defesa, a fim de evitar discricionariedades, haja vista que sua interpretação ilimitada constitui o regresso à doutrina da situação irregular, à desconsideração dos jovens como titulares de direitos. A ausência de limitação, portanto, propiciaria a fundamentação de decisões arbitrárias adotadas por adultos, uma vez que somente estes saberiam determinar o melhor para a criança [38].
O reconhecimento da condição peculiar vivenciada por crianças e adolescentes provém da concepção que toda a pessoa desenvolve permanentemente a sua personalidade, todavia, na infância e na adolescência esse processo transcorre de forma mais intensa. Decorre desse fato, a existência de diversos níveis de desenvolvimento e responsabilização, os quais acarretam exigibilidades diferenciadas a serem definidas consoante tal princípio. Não há, portanto, a exclusão do poder punitivo do Estado e sim a adequação da execução dessa medida à condição do réu [39].
As medidas socioeducativas possuem natureza híbrida pedagógico-sancionatória. A sanção decorre da sua aplicabilidade estar relacionada à prática de condutas previamente definidas como típicas e antijurídicas; ao dever de investigação e comprovação de sua autoria e materialidade, no caso do ato ser considerado infracional e à observação rigorosa do cumprimento das garantias processuais e dos limites temporais de sua execução. A natureza pedagógica provém da proposta socioeducativa, sem a qual não poderá ser aplicada [40].
De fato, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe nos arts. 103 e 110: “considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”; “nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal” [41].
Ao comparar a medida socioeducativa à pena, Karina Batista Sposato destaca a similariedade da função de controle social e das finalidades de reprovação e prevenção do ato infracional. Para a autora, ambas representam o exercício do poder coercitivo do Estado, implicando limitações ou restrições de direitos, por isso o reconhecimento de sua natureza penal. O direito penal juvenil, consoante o entendimento exposto, é compatível ao Estado social democrático de direito, devido à função preventiva da sanção, à rejeição da mera retribuição ao mal causado e a sua incidência nos casos específicos de necessária proteção aos cidadãos [42].
Contudo, opiniões adversas desconhecem a existência de um direito penal juvenil presente em parte das disposições estabelecidas pelo estatuto da criança e do adolescente. Para esses, as medidas socioeducativas possuem caráter apenas pedagógico e não punitivo – retributivo, bem como os jovens não possuem responsabilidade penal. Contestam a interação do direito da criança com o direito penal e a conseqüente formação de um novo ramo deste, uma vez que o direito da criança se relaciona ao indivíduo e não ao crime e à pena, direcionando sua intervenção para as causas da delinqüência, não para seus efeitos. Portanto, o adequado seria sua interação com o direito constitucional. A formalização de diretrizes socioeducativas corresponderia, consoante esse entendimento, à sedimentação da doutrina menorista, devido à conformação do indivíduo ao modelo de execução em prejuízo da individualização da medida, contrapondo a certeza da punição à inimputabilidade penal prevista no art. 228 da Constituição Federal [43].
3. Contradições
A origem constitucional da normativa da criança e do adolescente, bem como a expressa disposição da aplicação subsidiária de outras regras do ordenamento jurídico brasileiro, quando adequadas à condição peculiar de desenvolvimento dos adolescentes, permitem o reconhecimento de prerrogativas elencadas tanto no art. 5° da Constituição Federal, quanto em declarações, pactos, convenções e tratados aprovados pelo Brasil, para o tratamento destes. Ratificando tal tutela, encontra-se a disciplina da garantia do devido processo legal disposta no art. 110 do ECA, a qual entre inúmeras prerrogativas asseguradas destaca o princípio do contraditório, muitas vezes ignorado nos sistemas anteriores [44]. Entretanto, a aplicação plena desta moderna legislação está distante de sua concretização, principalmente, devido a fatores relacionados à prática do ato infracional e ao acesso à justiça.
Analisando as Varas Especiais de Infância e Juventude em São Paulo, Paula Miraglia revelou a escassa manifestação da acusação e da defesa, transformando a apuração da culpabilidade em mera formalidade e a solução, uma decisão praticamente exclusiva do juiz. A informalidade das audiências correspondeu à reduzida preocupação com a observação das garantias processuais, como a igualdade na relação processual, haja vista o desinteresse na produção de provas ou nas testemunhas de defesa. Os juízes, segundo o estudo, não encaram esse aspecto como informalidade e sim como um critério diferenciado, relacionado ao caráter pedagógico e ressocializador que a medida os impõem. Já a Procuradoria de Assistência Judiciária reconhece e associa essa informalidade à celeridade com que as audiências são conduzidas, afirmando que ambas são provenientes de uma idéia equivocada que desconhece o caráter punitivo das medidas socioeducativas, demandando por isso menor rigor na apuração e observação de fatos e formalidades legais [45].
A inobservação desses preceitos é considerada crime previsto no art. 230 da legislação específica:
“Lei 8.069/90. Art 230 – Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente: Pena – detenção de seis meses a dois anos. PARÁGRAFO ÚNICO – Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais”[46].
Nesse sentido, Karina Batista Sposato ao contrastar os procedimentos previstos para a imposição de medidas socioeducativas com o real funcionamento das instituições responsáveis por sua aplicação, também revelou ser o não reconhecimento da existência de um direito penal juvenil um dos principais fatores de incompatibilidade entre teoria e prática da legislação direcionada a crianças e adolescentes. Além da negligente observação do princípio do contraditório, elencada por João Batista Costa Saraiva, cita semelhante precariedade com relação aos princípios da presunção da inocência e da proporcionalidade das sanções [47].
Cleber Augusto Tonial conceitua a arbitrariedade promovida a partir da desvinculação das finalidades retributiva e pedagógica da medida, classificando-a em desvinculação dirigida, quando exercida intencionalmente pelo aplicador de direito e em desvinculação própria, se oriunda de uma omissão legislativa que acarrete a perda do conteúdo pedagógico. A exemplo da primeira, encontra-se a imposição de medidas antes do encerramento da instrução, sem a concordância do adolescente, de seu responsável e do defensor, havendo portanto, prejuízo do contraditório e da ampla defesa. Da mesma forma, verifica-se a prorrogação das medidas socioeducativas diante da inexistência de seu descumprimento, fundamentando-se apenas no benefício de sua permanência para o adolescente. Segundo o autor, a desvinculação própria pode ocorrer por decurso do tempo (erosão), pela superveniência de uma intervenção mais intensa (consunção) e por substituição. A desvinculação própria por erosão é atribuída à inexistência de um limite temporal para o início da intervenção socioeducativa, podendo constranger o adolescente infrator inclusive depois de atingir a maioridade penal, até completar vinte e um anos, independente do tempo em que ocorreu a prática ilícita. Quando a intervenção não guarda vínculo temporal com a data da conduta, perde-se o objeto socioeducativo. A desvinculação própria por consunção é representada pela cumulação de uma intervenção socioeducativa total a uma intervenção socioeducativa parcial. Uma vez subentendido o oferecimento de ambas finalidades em nível total, as medidas de meio aberto ou parciais a serem aplicadas deteriam caráter meramente sancionatório. Por fim, na desvinculação própria por substituição há a preponderância da intervenção penal sobre a sócioeducativa diante do maior de dezoito anos, sendo que esta deveria prosseguir até os vinte e um anos [48].
Nesta esteira, Edson Sêda destaca como corolário da negligente aplicação do princípio do contraditório e da ampla defesa a desigualdade prática na obtenção de assistência técnica. Ainda que inúmeros sejam os dispositivos asseguradores da defesa, da possibilidade de intervenção nos procedimentos tratados pela lei mediante representação de um advogado, tal tutela só alcança aqueles que possuem recursos, restando aos desfavorecidos a espera pelos trâmites burocráticos. Mesmo ante a hipótese de nomeação de substituto pela autoridade judicial, a defesa se torna precária, haja vista a inexistência de vínculos com a comunidade ameaçada em seus direitos, o que afasta a determinação e o rigorismo de seu compromisso profissional. Inclusive, a atuação do advogado é defesa na oitiva informal para muitos, ainda que consista em providência obrigatória antecedente à representação, de cunho acusatório, a qual poderá acarretar conseqüências gravosas como a internação provisória do adolescente [49].
Corroborando para o esclarecimento desse equívoco na etapa de apuração de ato infracional, Karina Batista Sposato argumenta que como a apreensão em flagrante do adolescente goza das mesmas garantias conferidas ao adulto e que a inexistência de especificidade legal do Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a aplicação subsidiária de normas processuais, o advogado ou defensor do adolescente deve ser comunicado no momento da apreensão deste. Além disso, salienta a irregularidade proveniente da regra do art. 180 do ECA, que determina a competência exclusiva do Ministério Público para a apuração de ato infracional independente de a ação penal ser pública ou privada, condicionada ou incondicionada e em face deste ter acesso a elementos do caso antes da defesa, haja vista a defensoria pública atuar após a decretação da internação provisória ou no momento da audiência de apresentação [50].
A respeito das limitações do Ministério Público na apuração de atos infracionais, destaca-se o entendimento de José Barroso Filho:
“Mesmo que se considerasse a possibilidade da interpretação ministerial, sobreleva a compreensão mais abrangente da noção de Estado de Direito, que reserva para o Poder Judiciário a aplicação de qualquer medida restritiva de direitos. Não importa que as medidas discutidas tenham ou não natureza de pena, como da afirmação recursal, pois implicativa de restrição de direitos, que reclama juízo sentencial, com avaliação circunstancial da prova”[51].
Com relação ao direito à defesa nos atos pré – processuais, trata-se de garantia processual constitucional, prevista no art. 5º, LXIII da Magna Carta: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” [52].
Maior veemência e coerência advêm desse entendimento, quando se observam as disposições da legislação específica:
“Lei 8.069/90. Artigo 3º – A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”[53].
“Lei 8.069/90. Art. 206 – A criança ou o adolescente, seus pais ou responsável, e qualquer pessoa que tenha legítimo interesse na solução da lide poderão intervir nos procedimentos de que trata esta Lei, através de advogado, o qual será intimado para todos os atos, pessoalmente ou por publicação oficial, respeitado o segredo de justiça” [54].
Não obstante, o art. 207 da mesma Lei prevê que “nenhum adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional, ainda que ausente ou foragido, será processado sem defensor” [55] .
Todavia, o Projeto de lei 24/2000 que previa suprir essa lacuna fora vetado. Entre as justificativas elencadas, cita-se se o fato de apenas a representação consistir em espécie de denúncia contra o adolescente e da pretensão de aplicação de medidas não punitivas não justificar a necessidade de advogado no processo [56].
Essa interpretação equivocada, entre outros motivos, decorre da redação do § 2º do art. 186 do ECA, a qual permite a compreensão da obrigação em nomear defensor ser exclusividade dos fatos considerados graves:
“Lei 8.069/90. Art. 186 – § 2º Sendo o fato grave, passível de aplicação de medida de internação ou colocação em regime de semi-liberdade, a autoridade judiciária, verificando que o adolescente não possui advogado constituído, nomeará defensor, designando, desde logo, audiência em continuação, podendo determinar a realização de diligências e estudo do caso”[57].
A possibilidade de remissão concertada pelo Ministério Público com caráter transacional, incluindo aplicação de medida socioeducativa não privativa de liberdade constitui outra interpretação prejudicial ao infrator adolescente. Uma vez comparada à transação penal prevista na Lei 9.099/1995, esta exige a presença do juiz e dos advogados, sendo aquela concedida em ato privativo do Ministério Público [58].
Incongruência alarmante também se observa a partir da determinação do § 2º do art. 182 da legislação específica, ao possibilitar a “representação independente de prova pré-constituída da autoria e materialidade” [59], exigindo-a, no entanto, para a decretação da internação provisória.
Corroborando para justificar o demasiado rigor do Direito Penal Juvenil previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em comparação à legislação destinada aos adultos, há maior restrição nos pressupostos da prisão preventiva do que nos da internação provisória do adolescente infrator [60].
Nestes termos, são previsões do Código Processual Penal Brasileiro:
“CPP. Art. 312 – A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.”
“CPP. Art. 313 – Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos:
I – punidos com reclusão;
II – punidos com detenção, quando se apurar que o indiciado é vadio ou, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou não indicar elementos para esclarecê-la;
III – se o réu tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 46 do Código Penal”[61].
Reiterando, por ser a mais severa medida socioeducativa prevista no Estatuto, a internação deveria ser aplicada somente nos casos mais graves, como ultima ratio, assegurando cuidados especiais aos jovens, em virtude da premissa de restabelecimento de seu papel construtivo na sociedade [62].
Da mesma forma, a omissão do ECA com relação aos institutos da prescrição e da extinção da punibilidade da medida gera a degradação de seu conteúdo pedagógico. Em função do decurso do tempo, do dinamismo da formação da personalidade e do fato da intervenção legal não constituir único meio de transformação, em muitos casos os procedimentos judiciais previstos não são mais cabíveis, haja vista resultarem mais prejuízos que benefícios. Contudo, há necessidade de instrução probatória para o reconhecimento dessa degradação, acarretando consigo a violação dos princípios da presunção da inocência e da prioridade absoluta. Novamente, portanto, o ônus estatal recai sobre o adolescente infrator [63].
José Barroso Filho demonstra posição oposta quanto à interpretação do art. 122, § 2º a 5º do ECA (Lei 8.069/90), que versa sobre a aplicação da medida de internação e seus prazos:
“§ 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.
§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade”[64].
Segundo o autor, há a possibilidade de infratores graves não reabilitados serem em três anos desinternados, em virtude da determinação do § 3º do artigo supra mencionado, colaborando para o descrédito da normativa e sensação de impunidade das condutas ilícitas de autoria juvenil [65].
A medida socioeducativa não pode prejudicar a auto – estima do jovem ou ensejar-lhe condutas desagradáveis semelhantes às privações que sua atual condição de vida já propiciara. A finalidade de sua adequação preve o estímulo da responsabilidade e do comprometimento do infrator com a construção de uma vida melhor. Com isso, tal instituto só alcança eficácia diante da interrupção de ciclos de atos delituais, sob pena de se transformar em instrumento de criminalização da juventude [66].
Incoerência e insensibilidade são identificadas diante da aplicação descabida da “sanção” socioeducativa, principalmente frente aos efeitos nocivos da institucionalização, a qual permanece sendo realizada em instituições precárias com relação aos objetivos da reeducação e respeito à dignidade humana, apenas contribuindo para a manutenção do ciclo da reincidência [67].
Conclusão
A amplitude das discussões referentes à relevância da prática dos direitos humanos e a multidisciplinariedade precursora de revelações sobre a dinâmica da violência e criminalidade direcionada a crianças e adolescentes não foram suficientes para a total eliminação de tratamentos desumanos. O “trinômino punição – repressão – disciplina” mascarado por teorias pedagógico – educativas permanece no âmago das medidas socioeducativas. Apenas a constatação da existência de uma normativa específica, portanto, não garante a efetiva proteção dos direitos dos jovens.
O reconhecimento da infância e da adolescência, bem como das garantias a eles atribuídas constituem processo contemporâneo, o qual ainda necessita de estímulos constantes para solidificar sua adesão nas esferas mais intrínsecas da sociedade. A partir desse momento, a problematização alcançará resultados satisfatórios, alternativas imparciais libertas de considerações preconceituosas e tendensiosas.
A comunidade pretende a reintegração daqueles que estão a sua margem, todavia prioriza ações repressivas. Mobiliza ciência e economia para a análise de medidas que visam tolir a liberdade desses, uma vez que acredita que a cura será conquistada com seu afastamento do meio social, contrapondo-se à relevância da manutenção de vínculos interpessoais como fator de resistência à violência.
Por fim, evidentes são as falhas estatais com relação à objetividade e à ética do regramento, com o direcionamento de recursos aos projetos preventivos, porém, desconsertante é a apatia da sociedade com relação a seus membros.
Graduada em Odontologia pela Universidade Federal de Santa Maria /RS, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria/ RS, Especialista em Ciências Criminais pela Unama/IDRS, Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Fadisma/RENAESP, Especializanda em Gestão da Segurança Pública na Sociedade Democrática pela ULBRA/RENAESP, Perita Odonto-legista do Instituto Geral de Perícias do RS
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