Após longo debate o Supremo Tribunal Federal declarou, por maioria de
votos, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8072/90 que previa o
cumprimento da pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado para
os crimes hediondos ou a ele equiparados [1].
A decisão modifica entendimento já consolidado da corte
constitucional [2] e trará grande reflexo no sistema penitenciário brasileiro,
pois mesmo tendo sido proferida em sede de controle difuso de
constitucionalidade, indicará um entendimento aos juízes e tribunais, e mais,
em caso de não acolhimento da orientação, permitirá que os sentenciados,
através de habeas corpus, pleiteiem a progressão de regime junto ao
Supremo Tribunal Federal.
Assim, não resta dúvida que o novo panorama é a admissão da progressão de
regime para os crimes hediondos ou a ele equiparados, impondo-se aos operadores
do direito a análise de qual o montante de pena que deve ser cumprido pelo
condenado para poder pleitear a progressão. A Lei de Execuções Penais, para crimes
não hediondos, exige o cumprimento de um sexto da pena em regime mais rigoroso
e a solução mais cômoda seria a de aplicar esse montante para todas as espécies
de crimes.
Ocorre que a Constituição Federal, no art. 5º, inciso XLIII estabeleceu
que os apenados por crimes hediondos devem ser tratados de forma mais severa,
de onde concluímos que o tratamento igual a situações diferentes também pode
ser considerado descumprimento da diretriz constitucional. Parece claro,
portanto, que a aplicação do montante de um sexto da pena para a progressão nos
crimes hediondos, é inconstitucional por descumprimento do princípio
constitucional que determina maior severidade no tratamento dos réus condenados
por crimes hediondos.
A respeito do tema, colacionamos trecho do voto do Min. Carlos Ayres de
Brito proferido no já citado HC 82959.
“14.
Acontece que essa utilização do parâmetro uniforme de pelo menos 1/6 da pena
judicialmente aplicada redunda em tratamento jurídico igual para situações
ontologicamente desiguais. Pois não se pode obscurecer o fato de que, pelo
inciso XLIII do art. 5º da Magna Carta Federal, é sonegado às pessoas
condenadas por crimes hediondos o acesso a determinados benefícios que ela,
Constituição, deixou de interditar aos acusados por delitos comuns. São, especificamente, os benefícios da
fiança, da graça e da anistia (inciso
XLIII do art. 5º). Mais até, não se pode ignorar que a Magna Lei de 1988 exigiu
que se levasse em conta a natureza do crime até mesmo para o efeito de
segregação em estabelecimento penitenciário oficial (ainda o art. 5º, inciso
XLVIII). A robustecer o juízo de que tanto o momento jurisdicional da
cominação quanto o momento administrativo de execução da pena devem refletir
aquela fundamental dicotomia entre os delitos timbrados pela hediondez e os
crimes que não chegam a esse plus de lesividade social.
15. Daqui
resulta que também tenho por inconstitucional a aplicação da regra geral de 1/6
aos condenados pelos delitos hediondos.” (grifo nosso)
Salientamos que a norma constitucional, inserida no capítulo dos direitos
individuais, cuida-se de uma norma-princípio que deve inspirar a elaboração e
interpretação de toda e qualquer norma [3] e qualquer entendimento que não a
observe, será tido como inconstitucional.
Frisamos, ainda, que não é possível
discutirmos a constitucionalidade do inciso XLIII, do art. 5º da Constituição,
pois o dispositivo é fruto do poder constituinte originário. Isso porque diante do princípio da unidade
da Constituição não é possível a existência de normas constitucionais
antinômicas (inconstitucionais). Nesses casos, segundo Luís Roberto Barroso,
“há de encontrar o espaço adequado de incidência de cada uma das normas que
potencialmente podem incidir sobre o caso concreto”. [4]
A solução, então, é buscarmos no “sistema legislativo-penal-ordinário”
dispositivo ou dispositivos dos quais se extraia o quantum da pena que deve ser cumprida no regime mais severo.
Estaríamos utilizando o método de interpretação conhecido como sistemático ou
lógico-sistemático.
Cezar Roberto Bitencourt explicando tal método de interpretação, escreve
o seguinte:
“O critério lógico-sistemático de interpretação constitui valoroso
instrumento de garantia da unidade conceitual de todo o ordenamento. Na
verdade, somente se pode encontrar o verdadeiro sentido de uma norma se lhe for
dada interpretação contextualizada. Com efeito, a ciência jurídico-penal
constrói sistemas e microssistemas que auxiliam e facilitam a aplicação da lei
penal”.[5]
Escreve Arnold Wald que pela interpretação sistemática “se interpreta um
artigo de lei por outro, pela situação dentro do sistema legislativo”.[6]
Dessa forma, o intérprete pode e deve encontrar no sistema, normas que
justifiquem a escolha do montante de pena a ser cumprida para a progressão de
regime nos crimes hediondos.
Nessa busca, analisaremos o requisito objetivo
estabelecido para a concessão do livramento condicional, já destacando que não
se trata de fazer analogia, pois o livramento condicional e a progressão são
benefícios completamente diferentes.
O sentenciado condenado à prática de crime não hediondo
poderá ser beneficiado com o livramento condicional quando cumprir um terço da
pena [7]. Sendo o crime hediondo, o mesmo benefício poderá ser concedido quando
o réu cumprir dois terços da pena [8], ou seja, para beneficiar-se do
livramento condicional em crime hediondo, a lei exige que o condenado tenha
cumprido o dobro do montante exigido para o crime comum.
Seguindo esse raciocínio e, portanto, realizando uma interpretação
sistemática do direito, podemos dizer que nos crimes hediondos, a progressão só
poderá ser concedida quando o sentenciado tiver cumprido o dobro do que se
exige para o crime comum, ou seja, um terço da pena.
Esse mesmo patamar deve ser aplicado para os sentenciados reincidentes,
já que a Lei de Execuções Penais, para o fim de fixar o montante de pena a ser
cumprido no regime mais rigoroso, não faz distinção entre reincidentes e
primários. Reincidente ou primário, o sentenciado deve ter cumprido um sexto da
pena para progredir de regime. A reincidência deve ser analisada dentro dos
requisitos subjetivos da progressão.
Dessa forma, tratando-se de crimes hediondos ou a ele equiparados, o
preso, primário ou reincidente, poderá pleitear a progressão quando tiver
cumprido mais de um terço da pena no regime fechado, e cumprindo mais um terço
poderá requerer a progressão ao regime aberto. Poderia, a seguir, como último
estágio do cumprimento da pena, pleitear o livramento condicional.
Notamos que a doutrina considera o livramento condicional o estágio final
do cumprimento da pena, o que seria preservado com esse entendimento.
Nesse sentido é o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt:
“O livramento condicional, a última etapa do cumprimento de pena no
sistema progressivo, abraçado em geral por todas as legislações penais
modernas, é mais uma das tentativas de diminuir os efeitos negativos da prisão”
(grifo nosso).[9]
Anotamos que não se trata de interpretação ampliativa, pois não estamos
ampliando o alcance da norma, que por sinal, sequer existe. Anotamos ainda que,
não estamos aplicando a analogia, pois como já foi dito, as situações não são
semelhantes, são díspares, e o pressuposto da analogia é a congruência das
situações.
Concluindo, acreditamos que, uma vez admitida a progressão de regime para
crimes hediondos pelo Supremo Tribunal Federal, o preso deve cumprir ao menos
um terço da pena no regime mais severo para pleitear a progressão de regime.
Este é o requisito objetivo decorrente do sistema “legislativo penal-ordinário”
que deve estar conjugado aos requisitos subjetivos previsto na Lei de Execuções
Penais.
Bibliografia:
BARROSO, Luís
Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 3ª ed., São Paulo: Saraiva,
1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001.
__________. Tratado
de direito penal, v. 1. 9ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2004.
DOTTI, René Ariel. Bases e
alternativas para o sistema de penas. 2ª ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes
hediondos. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito
penal, v. 1. 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
KUEHNE, Maurício.
Lei de execução penal anotada. Curitiba: Juruá, 1999.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo
jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. (7ª tiragem), São Paulo:
Malheiros, 1999.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito
penal. v. 1, 15ª ed., São Paulo: Atlas, 1999.
__________. Execução penal. 15ª ed., São
Paulo: Atlas, 2002.
ROTHENBURG,
Walter Claudius. Princípios
constitucionais. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1999.
Notas:
1. HC nº 82959/SP, rel. Min. Marco Aurélio, decisão
proferida em 23 de fevereiro de 2006.
2. Súmula
nº 698 do STF: “Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de
progressão no regime de execução de pena aplicada ao crime de tortura”.
3.
Walter Claudius Rothenburg, Princípios
constitucionais, Porto Alegre: SAFE, p. 16.
4.
Interpretação e aplicação da
Constituição, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p.192.
5. Tratado
de Direito Penal, v. 1, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 132.
6. Curso de
Direito Civil brasileiro, 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 70.
7. Art. 83,
inciso I do Código Penal.
8. Art. 83,
inciso V do Código Penal.
9. Tratado
de direito penal, v. 1, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 698.
Mestre em direito pela ITE-Bauru e Doutor em direito pela PUC-SP. É coordenador e professor do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro em Jacarezinho-PR, Promotor de Justiça em São Paulo e autor do livro Suspensão condicional da pena e suspensão condicional do processo publicado pela editora JHMizuno
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