Crise na Execução Penal

Sumário: 1. Abordagem do tema; 2. Natureza e objeto da
execução penal, 2.1. Natureza da execução penal, 2.2. Objeto da execução penal;
3. Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal; 4. Conclusão.

1.
Abordagem do tema

Conforme sentenciou Roberto Lyra, é pela execução, em
última análise, que vive a lei penal.

Que a lei penal não tem “andado bem”
é cediço. Os mais variados “equívocos legislativos” nos dão conta do caos em
que se encontra a produção legislativa em matéria penal e processual. A tal
respeito temos nos pronunciado não é de hoje.[1]

Está em fase de estudos o Projeto
que modificará a Lei de Execução Penal. É preciso, então, estabelecer reflexões
sobre algumas questões doutrinárias e práticas da Lei, conforme buscaremos nas
próximas linhas, dentro da singela visão que o trabalho propõe, estabelecendo
afirmações e questionamentos relevantes para o estudo do tema.

2.
Natureza e objeto da execução penal

2.1.
Natureza da execução penal

Jurisprudência e doutrina nos
apontam as divergências reinantes sobre a natureza da execução penal.

Para alguns, “a execução criminal
tem incontestável caráter de processo judicial contraditório” (TACrimSP, HC nº
307.582/5, 2ª Câm., rel. juiz José Urban, j. em 10.07.97, v.u.). É de natureza
jurisdicional (JUTACrimSP 94/99).

Ada Pellegrini
Grinover ensina que: “Na verdade, não
se nega que a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve,
entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece
que dessa atividade participam dois Poderes estaduais: o Judiciário e o
Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos
estabelecimentos penais”.[2]

Segundo Paulo Lúcio Nogueira, “a execução penal é de natureza mista, complexa e eclética, no sentido
de que certas normas da execução pertencem ao direito processual, como a
solução de incidentes, enquanto outras que regulam a execução propriamente dita
pertencem ao direito administrativo”.[3]

Por fim, Julio Fabbrini Mirabete anota que: “… afirma-se na exposição
de motivos do projeto que se transformou na Lei de Execução Penal: ‘Vencida a
crença histórica de que o direito regulador da execução é de índole
predominantemente administrativa, deve-se reconhecer, em nome de sua própria
autonomia, a impossibilidade de sua inteira submissão aos domínios do Direito
Penal e do Direito Processual Penal”.[4]

Temos que a execução penal é de
natureza jurisdicional, não obstante a intensa atividade administrativa que a
envolve.

Embora envolvida intensamente no
plano administrativo, não se desnatura, até porque todo e qualquer incidente
ocorrido na execução pode ser submetido à apreciação judicial, por imperativo
constitucional, o que acarreta dizer, aliás, que o rol do art. 66 da Lei de
Execução Penal é meramente exemplificativo.

Não bastasse, as decisões que determinam,
efetivamente, o destino da execução, são jurisdicionais.

2.2.
Objeto da execução penal

Visa-se pela execução fazer cumprir
o comando emergente da sentença penal condenatória ou absolutória imprópria[5],
assim considerada aquela que não acolhe a pretensão punitiva, mas reconhece a
prática da infração penal e impõe ao réu medida de segurança.[6]

3.
Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal

Diz o art. 3º da LEP: “Ao condenado
e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença
ou pela lei”.

São várias as conseqüências da
condenação e os direitos atingidos pela sentença. Podemos citar,
exemplificativamente: a. lançamento
do nome do réu no rol dos culpados (art. 393, II, do CPP), providência que após
a Constituição Federal de 1988, por imposição do art. 5º, LVII, só é possível
após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória; b. prisão do réu (cf. art. 393, inc. I, do CPP,  arts. 321 e s., e 594, do mesmo Codex; c. tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime
(art. 91, I, do CP e art. 63, do CPP); d.
perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou do terceiro de
boa-fé: dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico,
alienação, porte ou detenção constitua fato ilícito (art. 91, II, alínea
“a”, do CP);  do produto do
crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente
com a prática do fato criminoso (art. 91, II, alínea “b”, do CP); e. perda de cargo, função pública ou
mandato eletivo (art. 92, I, do CP); a incapacidade para o exercício do pátrio
poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos a pena de reclusão,
cometidos contra filho, tutelado ou curatelado (art. 92, II, do CP);  a inabilitação para dirigir veículo, quando
utilizado como meio para a prática de crime doloso (art. 92, III, do CP); f. constitui obstáculo à naturalização
do condenado (art. 12, II, alínea “b”, da CF); g. suspensão dos direitos políticos enquanto perdurar os efeitos
(art. 15, III, da CF); g. induz
reincidência (art. 63, do CP); h.
formação de título para execução de pena ou, no caso de semi-imputabilidade,
medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial ou internação (arts.
105 e 171, da LEP).

De outro vértice, não são atingidos
pela sentença penal condenatória os seguintes direitos: a. inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos da
Constituição Federal (art. 5º, caput,
da CF); b. de igualdade entre homens
e mulheres em direitos e obrigações, nos termos da Constituição (art. 5º, I, da
CF); c. de sujeição ao princípio da
legalidade (art. 5º, II, da CF); d.
de integridade física e moral, não podendo ser submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III e XLIX, da CF; Lei nº 9.455, de
7 de abril de 1997); e. liberdade de
manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (art. 5º, IV, da CF; Lei
nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março
de 1985); f. direito de resposta,
proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à
imagem (art. 5º, V, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, alterada
pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); g.
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos (art. 5º, VI, da CF); h.
de não ser privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política (art. 5º, VIII, da CF); i. expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX, da CF); j. inviolabilidade da intimidade, da
vida privada, da honra e da imagem, assegurado o direito a indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X, da CF); k. inviolabilidade do sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na
forma que a lei estabelecer (art. 5º, XII, da CF); l. plenitude da liberdade de associação para fins lícitos, vedada a
de caráter paramilitar (art. 5º, XVII, da CF); m. o direito de propriedade (material ou imaterial), ainda que
privado,  temporariamente,  do exercício de  alguns dos direitos a ela inerentes (art. 5º,
XXII, da CF); n. o direito de herança
(art. 5º, XXX, da CF); o. o direito
de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou
abuso de poder, e obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de
direitos e esclarecimento de situação de interesse pessoal (art. 5º XXXIV,
alíneas “a”  e  “b”, da CF); p. direito à individualização da pena (art. 5º XLVI, da CF); q. ao cumprimento da pena em
estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade  e o sexo do apenado (art. 5º, XLVIII, da CF);
r. relacionados ao processo penal em
sentido amplo (art. 5º, LIII a LVIII, entre outros, todos da CF); s. direito de impetrar habeas corpus, mandado de segurança,
mandado de injunção e habeas data
(art. 5º, LXVIII, LXIX, LXXI e LXXII, da CF), com gratuidade (art. 5º, LXXVII,
da CF); t. à assistência jurídica
integral gratuita, desde que comprove insuficiência de recursos (art. 5º  LXXIV, da CF); u. indenização por erro judiciário, ou se ficar preso além do tempo
fixado na sentença (art. 5º, LXXV, da CF).

Comporta destaque o direito de
“sujeição ao princípio da legalidade”.

Com efeito, a Lei de Execução Penal
estabelece diversos benefícios em favor dos executados, sendo certo que tais
não são efetivados durante a execução. Onde, então, a legalidade? Qual legalidade?

Legalidade é a estrita observância da Lei ou o
que é possível praticar em razão do descaso do Estado
?

O que se dizer, então, do direito à
“individualização da pena”?

É sabido que o processo
individualizador se desenvolve em diversas fases. Inicia-se com a
individualização formal, passa pela judicial, e culmina com a individualização na
execução.

Como se afirmar, entretanto, que a
individualização ocorre na execução?

Sabemos que em completa desatenção
ao art. 5º da LEP[7],
não há uma devida classificação do condenado ou do internado.

Como regra, também não há um
“programa individualizador” para a execução das penas, restando no vazio o art.
6º da Lei de Execução Penal.

Em relação ao exame criminológico a
situação não é diversa.

A despeito do que vem determinado nos arts. 8º
e 9º da LEP, é do conhecimento de todos que não se dispõe de pessoal capacitado
e treinado, para a realização do exame criminológico, que quando é feito, muito
pouco ou quase nada de seguro aponta.

A bem da verdade, na maioria das
comarcas do Estado de São Paulo tal exame é substituído por um parecer
apresentado por Assistente Social, que não dispõe de conhecimento específico
para a análise do comportamento do criminoso, restringindo seu trabalho a uma
única entrevista. Soma-se a tal relatório
de entrevista
um parecer psicológico
também decorrente de um único encontro.

O resultado, evidentemente, não
poderia ser outro.

Realizam-se tais entrevistas e
utilizam-se tais trabalhos técnicos, mais pelo formalismo do que pelo conteúdo.

4.
Conclusão

A crise instalada na execução penal
se reflete, também, na segurança pública. Não se restringe aos direitos e
garantias do preso.

É certo que, na medida em que não se
efetivam as regras da execução penal, pune-se o condenado duas vezes.

Contudo, a apenação maior recai sobre
a sociedade ordeira que financia, com o pagamento de impostos, taxas etc, a
estruturação de um sistema que idealiza, busca e não atinge, mercê do descaso
daqueles que foram eleitos e são pagos com o fruto do trabalho e do esforço dos
que a integram.

A parcela ordeira da população é, no
mínimo, triplamente vítima.

Vítima do medo; do crime, e também
da inércia/ineficiência de seus representantes junto a Poderes Instituídos, há
muito fracassados ante a incontida ascensão do império em que reina absoluta a
ilicitude penal.

Notas:

[1]
MARCÃO, Renato Flávio, e MARCON, Bruno. Direito Penal brasileiro: do idealismo
normativo à realidade prática. RT 781/484-96. Disponível na internet.

[2] Execução Penal, São Paulo : Max Limonad,1987, p. 7.

[3] Comentários à Lei de
Execução Penal. São Paulo : Saraiva,
1996, p. 5/6.

[4] Execução Penal, São Paulo : Atlas, 1997, p. 25.

[5] MARCÃO.
Renato Flávio. Lei de execução penal anotada. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 3.

[6] CAPEZ.
Fernando. Curso de processo penal. São Paulo : Saraiva, 1998, p. 342.

[7]
“Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e
personalidade, para orientar a individualização da execução penal”.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Renato Flávio Marcão

 

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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