Resumo: O presente trabalho trata da análise crítica ao Projeto de Lei do Senado nº 107/2011, o qual propõe alterações a determinados artigos da Lei nº 8.629/93, no sentido de diminuir as condicionantes constitucionais e legais ao cumprimento da função social da propriedade rural em sua forma plena, razão pela qual na maior parte dos pontos afigura-se inconstitucional.
Sumário. 1. Introdução. 2. Evolução histórica do conceito social de propriedade. 3. Do cumprimento da função social plena da propriedade rural à luz da Constituição Federal de 1988. 4. Da elevação do conceito de produtividade à ideia de razão humana e social. 5. Da inadequação e da falácia do exemplo contido na justificativa do PLS 107/2011. 6. Da desconsideração do princípio da função social plena da propriedade rural. 7. Da proposta para que os índices sejam fixados por lei. 8. Da proposta de inclusão do custo de produção e dos níveis de renda do produtor no conceito de produtividade. 9. Considerações finais – as conseqüências negativas da eventual aprovação do PLS. 10. Referências Bibliográficas.
Palavras-chave: PLS 107/2011. Crítica. Função social da propriedade rural. Condicionantes. Proposta inconstitucional.
O presente artigo busca analisar o Projeto de Lei do Senado de autoria da Senadora Kátia Abreu, o qual pretende alterar os artigos 6º, 9º, § 1º, e 11, da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, trazendo nova proposta sobre a fixação e o ajuste dos parâmetros, índices e indicadores de produtividade. Para fins didáticos, eis a redação atual dos aludidos dispositivos:
“Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
§ 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º desta lei.
Art. 11. Os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade serão ajustados, periodicamente, de modo a levar em conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o desenvolvimento regional, pelos Ministros de Estado do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura e do Abastecimento, ouvido o Conselho Nacional de Política Agrícola. (Redação dada Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001)
Primeiramente, o PLS pretende alterar o caput do art. 6º da Lei, nos seguintes termos:
Art. 6º. Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge graus de eficiência na exploração, segundo índices fixados em lei.”
A mudança pretende retirar a expressão “simultaneamente”, bem como propõe que os índices sejam fixados por lei, em substituição à fixação pelo órgão federal competente.
Justifica a proposta alegando que o Grau de Eficiência da Exploração (GEE) diz respeito unicamente ao conceito de produtividade, sendo aplicável para mensurar o cumprimento da obrigação contida no art. 185, inciso II, da Constituição Federal (propriedade produtiva). Por outro lado, o Grau de Utilização da Terra (GUT) é o indicador do atendimento do requisito de aproveitamento racional e adequado do art. 186, inciso I, da Constituição.
Sustenta a inconstitucionalidade da lei em relação à exigência simultânea do atendimento de dois indicadores para atendimento da conceituação da propriedade produtiva (art. 6º) e para a caracterização da função social (art. 9º).
Apresenta exemplo no qual relaciona apenas a quantidade de área aproveitável e a quantidade de área plantada para justificar a existência de uma disparidade entre a área que produziu mais e apresentou um GUT menor e a que produziu menos e apresentou um GUT maior.
Ocorre que a proposta não encontra respaldo no ordenamento jurídico pelos fundamentos a seguir expostos.
2. Evolução histórica do conceito social de propriedade
Faz-se oportuna uma rápida digressão sobre a evolução histórica do atual conceito social de propriedade. Rememore-se que o ordenamento jurídico brasileiro em um primeiro momento recepcionou a visão liberal do direito de propriedade, tanto em seara constitucional, quanto no Código Civil de 1916.
No art. 179, XXII, da Carta de 1824, a propriedade era dotada de plenitude, embora pudesse haver desapropriação se “o bem público” assim o exigisse, ressalvado o direito à indenização, decorrente da influência da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, apesar de se tratar de uma Carta Monárquica. A regra indenizatória tornou-se onipresente em todas as nossas Constituições. O texto do artigo era o seguinte:
“Art. 179. […]
XXII – É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se determinar a indenização.
A Constituição de 1891 manteve a mesma disciplina da anterior:
Art. 72.
[…] §17. O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia.
No Código Civil de 1916, a redação do art. 524 é a seguinte:
Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.”
Até aqui ainda se identifica um conceito nitidamente liberal, pois se limita a estabelecer faculdades ao proprietário, não estatuindo deveres frente à coletividade.
Dos escritos de Clóvis Bevilaqua, autor do projeto do Código Civil de 1916, a doutrina transcreve tratar-se de um jurista que abraçava incondicionalmente valores como o individualismo e a livre iniciativa. Para Bevilaqua, a propriedade justificava-se tão somente para a satisfação dos indivíduos. Com respaldo na teoria de Locke[1], afirmava que o trabalho surge como fundamento da apropriação individual, de forma que a terra passa a pertencer ao dono, ou seja, faz parte dele, integra a sua personalidade, de maneira que ninguém mais poderia ter direito a ela. De outro ângulo, defendia que a apropriação é vista como um fenômeno natural, decorrente do instinto de conservação, sendo fundamental para a higidez psicológica do homem, para que ele viva bem consigo. Acrescenta que o domínio exclusivamente social, ou seja, coletivo, “importaria regresso à comunhão primitiva e anulação moral do indivíduo”[2]. O homem imaginado por Bevilaqua não encontra um lugar digno na sociedade se não for proprietário exclusivo de algo.
Seja por valorizar incondicionalmente o indivíduo, seja por enaltecer o trabalho como fundamento da propriedade, seja por considerá-la um fato natural, Bevilaqua abraçou a ideologia liberal e absolutista do direito de propriedade, que norteou o nosso ordenamento privado durante grande parte do século XX[3].
Em outro momento, o jurista francês Léon Duguit (1859-1928) foi o responsável pela formulação teórica da função social da propriedade, desenvolvendo o conceito social desse direito, em contraposição ao liberal.
Duguit formulou tal conceito, ao estabelecer que o exercício das prerrogativas inerentes ao direito de propriedade não poderiam prejudicar a coletividade. Sua teoria foi importante para se contrapor às regras e doutrinas jurídicas vigentes, provendo fundamentos para mudanças constitucionais futuras.
O jurista austríaco Karl Renner (1870-1850) também forneceu importante contribuição para o desenvolvimento da função social da propriedade. Escreveu em momento histórico posterior a Duguit e à positivação da função social da propriedade na Constituição Alemã de 1919, fornecendo a justificação do conceito sob um enfoque econômico.
Segundo Renner, adotando uma premissa marxista, a propriedade, criada para proteger os frutos do trabalho individual, passou a resguardar a acumulação capitalista às custas do esforço alheio.
A principal contribuição do jurista austríaco à evolução do pensamento jurídico sobre o instituto da propriedade foi esclarecer o impacto das relações econômicas sobre a propriedade, enfatizando que o estado de coisas a que se chegara era injusto e que demandaria do Estado uma maior ação sobre o direito antes tido como sagrado e inviolável. Era preciso intervir na propriedade – característica do Estado Social – como a Constituição de Weimar tentara fazer.[4]
Não obstante a curta duração da República de Weimar e a descrença dos juristas em alguns dispositivos da Lei Maior, a Constituição Alemã de 1919 introduziu no mundo normativo o conceito de função social da propriedade, como expressão dos princípios caros ao Estado Social. Sob sua inspiração, constituições de outros países também adotaram o conceito.
Destaca-se, pois, que há muito a ciência do direito relativizou o caráter absoluto da propriedade. Como qualquer outro direito fundamental, o ordenamento jurídico hoje a submete a uma ponderação de valores, considerando que em um Estado Democrático de Direito marcado pela pluralidade não há espaço para dogmas. Assim, a propriedade que merece proteção jurídica contra a ocupação coletiva ainda que legítima, posto que decorrente do animus de posse definitiva da terra, é aquela cumpridora de sua função social nos termos da Constituição Federal.[5]
O art. 5º, XXIII, da Constituição Federal, estabelece que a propriedade atenderá a sua função social. Considerando que a função social passa a fazer parte da definição de propriedade, a conclusão lógica é que não existe propriedade sem função social. Da mesma forma que não há propriedade sem que o dono possa usar, gozar e dispor de determinada coisa, e reavê-la de quem injustamente a detenha, uma vez que tanto a função social, quanto os poderes do dono, são elementos definidores da propriedade. A função social ainda se torna mais importante do que as faculdades inerentes ao domínio porque destas o dono pode dispor e da função social não.[6]
Resta claro, assim, que, dentre os conceitos liberal e social de propriedade, o Constituinte brasileiro abraçou o social.
3. Do cumprimento da função social plena da propriedade rural à luz da Constituição Federal de 1988
A propriedade rural que merece proteção do ordenamento jurídico é aquela cumpridora da sua função social sob as quatro vertentes: econômica, ambiental, trabalhista e bem-estar.
Nesse diapasão, eis o teor do art. 186 da Constituição Federal:
“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O art. 185, II, da CF/88, por sua vez, preconiza o que se segue:
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: […]
II – a propriedade produtiva;”
De acordo com uma interpretação sistemática, quando a Constituição buscou proteger a propriedade produtiva, ela quis fazê-lo não apenas sob um prisma meramente economicista, como ao se referir à propriedade que gere lucros financeiros imediatos. O texto constitucional buscou proteger a produtividade sob um enfoque social e a longo prazo. Em outras palavras, é insuscetível de desapropriação a propriedade que produz de forma a não destratar o meio ambiente, as relações de trabalho e o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. Assim, pelo atual ordenamento constitucional, os imóveis que não atendem simultaneamente às quatro dimensões do princípio da função social da propriedade devem ser desapropriados e destinados à reforma agrária, ainda que apresentem índices de produtividade satisfatórios, do ponto de vista de utilização da terra e de eficiência na exploração (GUT e GEE).
Não seria razoável crer na imunidade à desapropriação de uma propriedade que fosse fonte de grandes lucros à custa do trabalho escravo ou do maltrato à natureza, como pelo uso de queimadas desenfreadas, corte ilimitado de árvores, poluição dos rios, entre outros males. Para o Ministro Eros Grau[7], não se interpreta a Constituição em tiras. Toda interpretação deve ser sistemática, ou seja, o sistema deve ser interpretado como um todo.
Daí se diz que a vedação legal à desapropriação não pode ocorrer quando o imóvel rural é descumpridor de sua função social. Esse é o imóvel que não merece proteção jurídica, notadamente ante o momento atual de constitucionalização do direito civil e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, pela qual a propriedade não existe mais, em prol somente do titular do domínio, pois, juntamente com ela, recai sobre o proprietário um dever ou uma responsabilidade social. Segundo Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald,
“[…] atualmente, a grande questão que circunda o Direito Civil-Constitucional concerne à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, a influência dos direitos fundamentais na órbita das relações entre particulares, e até que ponto ela afeta a autonomia privada, princípio fundamental das relações civis. Sem entrar na discussão se o ingresso dos direitos fundamentais ocorre de forma imediata – a maneira da eficácia vertical – ou pela mediação das cláusulas gerais que se encontram no Código Civil, tem-se que a função social se impõe como próprio freio que delimitará a extensão da autonomia privada do proprietário em hipóteses que as suas pretensões reivindicatória e possessória perdem a legitimidade constitucional pelo fato concorrente do não-exercício dos poderes dominiais pelo seu titular, concomitante ao surgimento da função social da posse em outras pessoas.”[8]
Segundo Eros Roberto Grau, “a propriedade que não cumpre a função social não existe, e, como conseqüência, não merece proteção, devendo ser objeto de perdimento e não de desapropriação.”[9]
A corroborar a tese de que o imóvel rural somente cumpre a sua função social se presentes as quatro condicionantes previstas no art. 186 da Constituição Federal, já ponderou o Supremo Tribunal Federal:
“A defesa da integridade do meio ambiente, quando venha a constituir objeto de atividade predatória, pode justificar a reação estatal veiculadora de medidas – como a desapropriação-sanção – que atinjam o próprio direito de propriedade, pois o imóvel rural que não se ajuste em seu processo de exploração econômica, aos fins elencados no art. 186 da Constituição, claramente descumpre o princípio da função social inerente à propriedade, legitimando a edição de declaração expropriatória para fins de reforma agrária.”[10]
“RELEVÂNCIA DA QUESTÃO FUNDIÁRIA – O CARÁTER RELATIVO DO DIREITO DE PROPRIEDADE – A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE – IMPORTÂNCIA DO PROCESSO DE REFORMA AGRÁRIA – NECESSIDADE DE NEUTRALIZAR O ESBULHO POSSESSÓRIO PRATICADO CONTRA BENS PÚBLICOS E CONTRA A PROPRIEDADE PRIVADA – A PRIMAZIA DAS LEIS E DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. – O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. – O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto – enquanto sanção constitucional imponível ao descumprimento da função social da propriedade – reflete importante instrumento destinado a dar conseqüência aos compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social. – Incumbe, ao proprietário da terra, o dever jurídico- -social de cultivá-la e de explorá-la adequadamente, sob pena de incidir nas disposições constitucionais e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos, pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade.”[11]
4. Da elevação do conceito de produtividade à ideia de razão humana e social[12]
Ao exigir somente GEE (Grau de Eficiência na Exploração) para o imóvel ser considerado produtivo, a conseqüência é de que o proprietário poderia deixar ociosa extensa área de terra. Assim, determinado imóvel com área aproveitável de 1.000 hectares, e que o proprietário produzisse satisfatoriamente em apenas 1 hectare, e deixasse os outros 999 ha ociosos, não estaria sujeito à desapropriação-sanção, o que se afigura totalmente desarrazoado. A uma, porque não interessa à sociedade que o produtor rural explore intensamente e com excepcional nível tecnológico menor fração de seu imóvel e deixe expressivos espaços dele ociosos (salvo se efetivamente devotá-los à preservação ambiental). A duas, porque não interessa à sociedade que o produtor rural destine toda sua propriedade para atividade agrária e, no entanto, obtenha produtividade ínfima, inferior ao que seria economicamente esperável e adequado.
Com efeito, os artigos 6.º, caput, e 9.º, § 1.º, da Lei 8.629/1993 objetivam um equilíbrio entre produtividade e aproveitamento (GEE e GUT), uma sintonia fina que autorize dizer que a exploração econômica da terra é racional e adequada, tal como predicado no art. 186, inciso I, da Constituição Federal.
Em outras palavras, para a Constituição é produtivo o imóvel aproveitado racional e adequadamente, e só há sentido lógico-jurídico em assim adjetivar a propriedade rural que é bem utilizada (GUT), gerando resultados satisfatórios (GEE).
Portanto, ao contrário da proposta da Senadora Kátia Abreu a cumulativa exigência legal dos índices de produtividade e aproveitamento não só não infringe a Constituição, como de fato lhe dá concretude no tocante aos conceitos de propriedade produtiva e exploração racional e adequada.
Ainda é relevante ponderar que a Constituição Federal, ao referir-se à propriedade produtiva, não empregou o conceito em sentido meramente vulgar, ou seja, no sentido de imóvel que produz algo (em última análise, é aproximadamente esse o sentido que o PLS quer imputar ao conceito).
Na verdade, a produtividade perseguida pela Constituição é qualificada, ou melhor, corresponde à exploração racional e adequada (art. 186, I). Quando a Constituição afirma que é insuscetível de desapropriação-sanção a propriedade produtiva, está elevando o conceito de produtividade à idéia de razão humana e social. Daí que não pode ser considerada produtiva uma propriedade que, ainda que dê lucros imediatos e imensos, não aproveita racional e adequadamente o solo e os recursos naturais, não protege o meio ambiente , não observa as disposições que regulam as relações trabalhistas, nem favorece o bem estar dos trabalhadores e proprietários.
5. Da inadequação e da falácia do exemplo contido na justificativa do PLS 107/2011
A relatora, ao pretender alterar o art. 6.º, caput, e art. 9.º, § 1.º, da Lei 8.629/1993, cogitou da hipótese de propriedade que obteve ótima produtividade, mas que por não aproveitar 80% de sua área aproveitável seria classificada como improdutiva e se sujeitaria à desapropriação-sanção agrária (art. 184/CF).
Com todo o respeito à relatora, mas o exemplo, conquanto instigante, revela-se falacioso.
O argumento por exemplificação não é bom porque se vale de uma hipótese absolutamente excepcional para induzir crítica à razoabilidade da lei agrária, norma, por definição, necessariamente genérica e abstrata.
Como já foi dito, a prosperar a interpretação defendida no PLS – a de limitar o conceito de produtividade só ao índice de eficiência na exploração (GEE) – poder-se-ia classificar como produtivo, e não sujeito à desapropriação-sanção, imóvel rural que aproveitasse só 1% de sua área aproveitável, se esses hipotéticos 1% alcançassem o grau mínimo de produtividade (GEE).
Ora, não é isso que a Constituição quer ao exigir que o imóvel rural seja exploração racional e adequadamente (art. 186, I).
O imóvel rural ocioso – em 99% de sua área aproveitável, como no exemplo acima, ou em qualquer percentual significativo – não pode ser alçado ao patamar de propriedade produtiva acolhida pela Constituição e imune à intervenção do Estado (art. 185, II). No entanto, caso aprovado o Projeto de Lei do Senado, será esta a inevitável conseqüência jurídica.
Em síntese: a prevalecer a proposta apresentada, poderão ser considerados produtivos e imunes à desapropriação imóveis rurais que, sob qualquer sentido de bom senso, deveriam ser tachados como ociosos, residindo aí a inadequação do argumento contido no relatório, que pretende desautorizar a coerência da lei (simultaneidade de GUT e GEE) e substituí-la por critério evidentemente insatisfatório (unicamente o GEE, independentemente do aproveitamento da terra, representado pelo GUT).
6. Da desconsideração do princípio da função social plena da propriedade rural
O PLS pretende dissociar o conceito de aproveitamento racional e adequado do conceito de produtividade. Busca com isso convencer que a propriedade que possui um GEE acima de 100% e um GUT abaixo de 80% não pode ser desapropriada por ser considerada produtiva, apesar de descumpridora da função social por deixar de apresentar um aproveitamento racional e adequado.
A seguir a linha de raciocínio apresentada na proposta, como manter imune à desapropriação uma propriedade que não cumpre a sua função social por descumprir a condicionante de aproveitamento racional e adequado? O que fazer do inciso I do art. 186 da Constituição Federal? Torná-lo letra morta? Ignorar um comando constitucional? E como entender que se encontram cumpridas as demais condicionantes do art. 186 se a primeira não se encontra? Como dizer que uma propriedade cumpre a função socioambiental se não apresenta um aproveitamento racional e adequado?
O próprio caput do art. 6º fala que propriedade produtiva é aquela que é explorada econômica e racionalmente. Nessa perspectiva, a exigência de cumprimento simultâneo de GUT e GEE permanece válida, uma vez que a exploração econômica está relacionada à produtividade stricto senso (GEE) e a exploração racional à correta utilização da terra (GUT).
Quer dizer, a exploração econômica (produtividade) deve ser alcançada racionalmente. Em sentido contrário, a exploração econômica (produtividade) alcançada de forma irracional não será considerada para efeitos de cumprimento de uma das condicionantes da função social. A proposta, tal como se encontra, pretende ignorar os demais requisitos da função social da propriedade rural, buscando limitá-lo apenas à satisfação de um único índice econômico, o que vai na contramão de toda a evolução da jurisprudência, da legislação e da doutrina agrária.
Portanto, não há plausibilidade jurídica na busca da dissociação do conceito de produtividade com o conceito de aproveitamento racional e adequado. Isso porque o segundo está contido no primeiro, não havendo falar em propriedade produtiva que não apresente aproveitamento racional e adequado. Os índices de GUT e GEE integram o conceito de produtividade, de forma que, o não-atendimento ou o atendimento insuficiente de qualquer um deles tem o condão de comprometer o cumprimento da função social da propriedade em face de disposição expressa do art. 186 da Constituição Federal. De acordo com uma interpretação sistemática, conclui-se que, quando a Constituição buscou proteger a propriedade produtiva, ela quis fazê-lo não apenas sob um prisma meramente economicista, como ao se referir à propriedade que gere lucros financeiros imediatos. O texto constitucional buscou proteger a produtividade sob um enfoque social e a longo prazo.
Assim, pelo atual ordenamento constitucional, os imóveis que não atendem simultaneamente as quatro dimensões da função social da propriedade rural previstos no art. 186 devem ser desapropriados e destinados à reforma agrária, sendo insuscetível de desapropriação somente a propriedade que produz índices satisfatórios de GUT e GEE e que, cumulativamente, não destrata o meio ambiente, as relações de trabalho e o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.
Não seria razoável crer na imunidade à desapropriação de uma propriedade que fosse fonte de grandes lucros à custa do trabalho escravo ou, a teor do foco do presente trabalho, do maltrato à natureza, pelo uso de queimadas desenfreadas, corte ilimitado de árvores, poluição dos rios, entre outros. Assim, corroboramos o entendimento do Ministro Eros Grau, pelo qual não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços, devendo ser o texto constitucional interpretado de forma sistemática.
Uma propriedade que produz ganhos mediante o sacrifício de bens de tamanha magnitude, vez que atrelados à própria vida e dignidade humana, não encontra respaldo em qualquer dispositivo constitucional ou legal, devendo ser desapropriada e destinada à reforma agrária.
7. Da proposta para que os índices sejam fixados por lei
A proposta para que os índices sejam fixados por lei ao invés de ato do Poder Executivo também revela-se inconstitucional. O STF já decidiu pela inexistência de inconstitucionalidade do art. 6º, § 2º, incisos I e II, da Lei nº 8.629/93 quando do julgamento do MS nº 22.478/PR. Confira-se:
“MS nº 22.478/PR – (…) 1. Inconstitucionalidade do art. 6º, § 2º, incisos I e II, da Lei nº 8.629/93. Inexistência. Matéria já dirimida pelo Plenário desta Corte no sentido de que a elaboração dos índices fixados nesta lei, referentes à produção agrícola e à lotação de animais nas pastagens, está sujeira às características variáveis no tempo e no espaço e vinculadas a valores censitários periódicos, não condizentes com o grau de abstração e permanência que se espera de providência legislativa, mantendo-se, assim, essa atribuição, ao Poder Executivo. (…)”
Assim, consta das informações da Advocacia-Geral da União acolhidas no voto do Ministro-Relator: “não poderia a Lei se ocupar da fixação dos índices: não poderia, nem pode, fabricar índices que considerasse ideais. Cônscio dessa realidade, o legislador reportou-se aos ‘índices fixados pelo órgão federal competente’, por haver entendido que eles são aferidos, e não fabricados. Tratando-se da aferição de índices, a tarefa, sem dúvida, é do Poder Executivo. Ao legislador competia estabelecer os critérios e graus de exigência e isso o fez, não há como negar… A tudo que foi dito, acrescente-se, meramente a título de resumo, que tanto a produção agrícola, como a lotação de animais variam de região para região, dependem de muitos fatores e não poderiam ter seus índices adequadamente fixados pelo legislador, mas sim aferidos, em função de várias circunstâncias, por um órgão do Poder Executivo.” (grifo no original)
Com base na argumentação acima, a Suprema Corte afirmou não haver como prosperar a alegação de inconstitucionalidade da Lei, posto que a mencionada aferição, mesmo que efetuada pelo Poder Executivo, segue os critérios e graus de exigência estabelecidos pela Lei, deixando a cargo de órgão técnico do Poder Executivo tão-somente o detalhamento técnico e regional.
Impende ainda destacar trecho do voto do Ministro Octávio Galloti, quando do julgamento do MS 22.302 que, por decisão plenária, também já havia afastado a inconstitucionalidade da Lei nº 8.629/93: “(…) esses índices, cuja elaboração está sujeita às características variáveis no tempo e no espaço e vinculadas a fatores censitários periódicos, são por sua natureza, tarefa do Poder Executivo, de nenhum modo condizente com o grau de abstração e permanência que se espera de providência de hierarquia legislativa.”
Portanto, não merece guarida a proposta para que os índices sejam fixados por Lei, haja vista a ausência de generalidade, abstração e permanência exigidos para esse ato, uma vez que tais índices sofrem mutabilidade de região para região, dependendo de uma série de outros fatores, que levam em consideração principalmente a evolução da tecnologia no meio rural. Assim, é indispensável a aferição técnica das condições para fixação dos índices, tarefa ínsita a orgão do Poder Executivo com base apenas em parâmetros fixados pelo Poder Legislativo, como sói acontecer, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes previsto no art. 2º da CF/88, elevado à categoria de cláusula pétrea pelo art. 60, § 4º, inciso III.
8. Da proposta de inclusão do custo de produção e dos níveis de renda do produtor no conceito de produtividade
Consta ainda do PLS alteração do art. 11 da Lei nº 8.629/93, nos seguintes termos:
“Art. 11. Os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade serão ajustados, periodicamente, mediante lei, de modo a levar em conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o desenvolvimento regional, além dos custos de produção e dos níveis de renda do produtor.”
Justifica a proposta no sentido de que os índices de produtividade não podem considerar somente a evolução tecnológica, mas também a renda do produtor. Afirma que “a exploração econômica e racional da terra pressupõe que os lucros e prejuízos do produtor sejam igualmente avaliados e medidos. A economia agrícola é uma economia de mercado.”
A proposta nesse ponto é inconstitucional. Isso porque o cumprimento da função social da terra na forma prevista na Constituição Federal não leva em consideração os ganhos individuais do produtor, pois não há qualquer nexo causal com o atendimento ao interesse do bem comum.
A revisão dos índices leva em conta critérios técnicos associados à possibilidade de um melhor desempenho da produção no campo, tendo como foco sempre o atendimento da função social, que não está atrelada aos rendimentos do proprietário.
A função social da terra refere-se ao seu uso da forma que melhor atenda ao interesse coletivo, sendo que este último pode ocorrer ainda que o proprietário não aufira lucros. Conforme já decidiu o STF, “O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. (…)” (ADI-MC/DF 2213).
A Constituição e a Lei não subordinam o proprietário rural ao desempenho de determinada atividade, mas apenas o obriga a empregar-lhe função social da forma que eleger.
Não há como considerar no cálculo dos índices de produtividade os rendimentos auferidos pelos produtores rurais individualmente, posto que é elemento estranho ao conceito de função social da propriedade rural e que com este não guarda nexo.
9. Considerações finais – as conseqüências negativas da eventual aprovação do PLS
Em termos políticos e econômicos, um dos grandes méritos da legislação de reforma agrária, e particularmente da exigência legal de satisfação simultânea dos dois índices (GUT e GEE), foi o de compelir o produtor rural a adequar sua grande propriedade à função social constitucional, pelo receio da intervenção expropriatória do Estado.
Ao desempenhar regularmente suas atribuições funcionais, o INCRA vem atestando a veracidade da assertiva acima, porquanto as propriedades rurais improdutivas, que antes existiam em grande número, tornam-se fenômeno cada dia mais episódico e circunstancial, sobretudo nas regiões ricas ou de acentuada vocação produtiva agrária.
Todavia, caso o PLS seja aprovado, o produtor rural receberá uma verdadeira carta de autorização do Estado-Juiz para manter sua terra ociosa. É que bastará a ele explorá-la em reduzida porção, porém alcançando os índices de produtividade fixados pela Administração (o que não chega a ser algo custoso, pois estes datam de 1980 e estão baseados no Censo Agropecuário de 1975), para tornar seu imóvel protegido contra a desapropriação-sanção.
Vê-se que a proposta não exprime o pensamento coletivo, caminhando na direção contrária do fenômeno da constitucionalização do direito civil, mantendo a antiga linha patrimonialista do Código Civil de 1916, na qual a propriedade servia para atender ao proprietário, deixando marginalizada a proteção do bem comum.
Procuradora Federal. Especialista em Direito Processual Civil.
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