Cultos africanos e direitos dos animais

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Resumo: O artigo trata dos direitos dos animais frente aos cultos africanos, em que os mesmo servem de oferendas para rituais religiosos. Traz a visão de constituições latino-americanas, em que os animais são vistos como parte da natureza, tanto como o homem. Levanta dúvidas sobre a superioridade da raça humana que está no topo da cadeia alimentar. Traça um paralelo entre os efeitos deletérios da globalização e o sacrifício de animais em massa.

Palavras-chave: Cultos Africanos – Oferendas– Direito dos Animais

Sumário: 1 Introdução 2 Histórico 3 Direitos fundamentais e o Mundo Globalizado 4 Direitos Fundamentais e Democracia 5 Novas tendências 6 Desafios Atuais 7 Considerações Finais 8 Referências

1 INTRODUÇÃO

É sabido que nas religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, há a farta utilização de alimentos, bebidas alcoólicas e mesmo de animais mortos para as oferendas às divindades, aos exus, barás, pombas-gira, caboclos etc.

     Tal se dá em razão de agrado às divindades em troca de recompensas que estas dariam a quem as faz. Tal fato é comum nas religiões, sendo marcante aquela passagem bíblica em que Abraão oferece em sacrifício seu próprio filho a Deus, conforme Gênesis, 22, 1-16:

“E aconteceu depois destas coisas, que provou Deus a Abraão, e disse-lhe: Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.
E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi.

Então se levantou Abraão pela manhã de madrugada, e albardou o seu jumento, e tomou consigo dois de seus moços e Isaque seu filho; e cortou lenha para o holocausto, e levantou-se, e foi ao lugar que Deus lhe dissera.

Ao terceiro dia levantou Abraão os seus olhos, e viu o lugar de longe.

E disse Abraão a seus moços: Ficai-vos aqui com o jumento, e eu e o moço iremos até ali; e havendo adorado, tornaremos a vós.

E tomou Abraão a lenha do holocausto, e pô-la sobre Isaque seu filho; e ele tomou o fogo e o cutelo na sua mão, e foram ambos juntos.

Então falou Isaque a Abraão seu pai, e disse: Meu pai! E ele disse: Eis-me aqui, meu filho! E ele disse: Eis aqui o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?

E disse Abraão: Deus proverá para si o cordeiro para o holocausto, meu filho. Assim caminharam ambos juntos.
E chegaram ao lugar que Deus lhe dissera, e edificou Abraão ali um altar e pôs em ordem a lenha, e amarrou a Isaque seu filho, e deitou-o sobre o altar em cima da lenha.

E estendeu Abraão a sua mão, e tomou o cutelo para imolar o seu filho;

Mas o anjo do Senhor lhe bradou desde os céus, e disse: Abraão, Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.
Então disse: Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único filho.

Nas religiões de matizes africanas, em especial na umbanda e camdomblé os animais são sacrificados aos deuses, sendo que cada tipo de orixá tem a sua   “preferência”, como  gado para Ogum,    porco para Otim,   macaco para Obá,  peixes para Iemanjá etc.

O objetivo desse trabalho é colocar o direito aos cultos religiosos em detrimento aos direitos dos animais, tendo em vista que a matança dos bichos se dá não por questões de sobrevivência e sim por por outras finalidades, a que se expõe os animais a sofrimentos desnecessários.

É enxergar a situação de um viés holístico, de molde a crermos que somos partes de um todo, tanto como os animais, plantas, minérios

2 PACHA MAMMA E MADRE TIERRA

Vemos que nos países sul americanos vizinhos, já temos uma outra visão acerca dos direitos da natureza, posto que a natureza é sujeito de direitos, e o bem viver tornou-se um dos princípios da Constituição daqueles países.

Nesse sentido, as experiências da Bolívia,  Venezuela e Equador são revigoradoras, no sentido de considerar a própria natureza como titular de direitos fundamentais

No preâmbulo da Pachamma, aliás, consta que: . “CELEBRANDO a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra existência.” . Já no art. 7º do mesmo Codex: La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos”.

Ou seja, há uma visão não antropocêntrica, cosmogônica, na medida em que somos partes de um todo, e não o centro de tudo, ou seja, os animais não estão a nossa disposição a nosso bel-prazer, mas têm os mesmos direitos de um ser humano, na medida em que são partes integrantes de um todo: da natureza.

Conforme Zaffaroni (op. cit.), a Constituição do Equador fala dos direitos da natureza em seu preâmbulo, a Pacha Mamma, de que somos parte e é vital para nossa existência e depois se diz que se decide construir: uma nova foram de convivência cidadã, em diversidade e em harmonia com a natureza, para alcançar o bem viver – sumak kawsay.

É a tal hipótese Gaia – que foi elaborada pelo cientista inglês James Lovelock no ano de 1979, e fortalecida pelos estudos da bióloga norte-americana Lynn Margulis. Essa hipótese foi batizada com o nome de Gaia porque, na mitologia grega, Gaia era a deusa da Terra e mãe de todos os seres vivos.        

Segundo a hipótese, o planeta Terra é um imenso organismo vivo, capaz de obter energia para seu funcionamento, regular seu clima e temperatura, eliminar seus detritos e combater suas próprias doenças, ou seja, assim como os outros seres vivos, um organismo capaz de se autorregular. De acordo com a hipótese, os organismos bióticos controlam os organismos abióticos, de forma que a Terra se mantém em equilíbrio e em condições propícias de sustentar a vida.

3. DIREITOS DOS ANIMAIS X DIREITO DE CRENÇA

Quer parecer que há uma colisão entre dois princípios, ambos albergados pela Constituição Federal, e um ainda expresso na L. 9.605/98 – Lei dos Crimes Ambientais.

Conforme artigo 5º, VI da CF:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI –   é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”

Para José Afonso da Silva, liberdade de crença é diferente de escolha de religião:

 “Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o livre agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros.

Por outro lado, a mesma CF, em seu art. 225, garante o direito ao meio-ambiente equilibrado:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Também a Lei dos Crimes Ambientais protege os animais:

“L. 8.9605/98

Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:
Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa.

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.”

Como sustenta ZAFFARONI (op. cit., pg. 54) os direitos dos animais são próprios deles,  não pertecendo e ninguém mais:

“A nuestro juicio, el bien jurídico em el delito de maltrato de animales no es outro que el derecho del próprio animal a no ser objeto de la crueldad humana, para lo cual es menester reconocerle el carácter de sujeto de derechos”

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Longe de querer chegar a uma resposta simplista e esgotar  esse tema, que certamente rende muita discussão e   milhares de livros a respeito, quer nos parecer que a dificuldade maior de implementação dos direitos além dos países islâmicos é nos países pobres.

Para o jurista italiano Norberto Bobbio (1992.) “há ineficácia da aplicação dos direitos humanos da primeira e segunda geração nos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, enquanto nas nações desenvolvidas estes direitos já acham-se garantidos e de plena eficácia. Nestes países, a preocupação maior é quanto a garantia e eficácia dos direitos de terceira e quarta geração”.

Percebe-se do inferido que justamente um dos principais problemas é a educação, justamente por isso os países desenvolvidos encontram-se em vantagem.

A educação é imprescindível para o exercício pleno da cidadania. Uma pessoa sem educação não é um pessoa completa. Só tendo acesso à educação é que as pessoas poderão ser verdadeiramente livres.

Talvez, seguindo a idéia de Gisele Citadino (RIO DE JANEIRO, 1999), “devêssemos passar a uma nova fase de  constitucionalismo societário ou comunitário, que dá prioridade ao valores da igualdade e da dignidade humana”.

Se viu que a história dos direitos fundamentais segue a do constitucionalismo moderno,   urge  entremos noutra fase do constitucionalismo, das comunidades, societário, em que haja um maior respeito à dignidade humana e a esses direitos. Não podemos esquecer os séculos de luta por melhores condições. O que não pode se perder é alguns desses direitos que tão duramente foram conquistados, e do qual a globalização, com seu modelo neoliberal ameaça.

A sociedade teme pela perda desses direitos, que gerações passadas lutaram tanto para alcançar e que agora seriamente correm são ameaçados na sua amplitude e sobrevivência.

A salvaguarda desses direitos é tão importante, como defender a ordem jurídica que os reconhece, pois esta não tem sentido sem aquela.

É preciso proteger os mais pobres, que antes a voracidade do mercado, ficam à margem da sociedade, sendo excluídos e eliminados de todas as benesses da globalização.

Como alerta José Saramago (BRASÍLIA, 2002.):

“entao direi que, se não interviermos a tempo, isto é, o ratos dos direitos humanos acabará por ser implicavelmente devorado pelo gato da globalização econômica. (…)

O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoaL refiro-me, obviamente ao poder econômico, em particular a parte dele, sempre em aumento, gerido pelas empresas multinacionais com estratégias de domínio que nada têm a ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira”.

Já Kant (SÃO PAULO, 1990) tinha uma visão otimista acerca do futuro da  globalização:

 “o processo pelo qual todos os povos da terra estabeleceram uma comunidade  universal  chegou a um ponto em  que  a violação de direitos em uma parte do mundo  é sentida  em  toda parte, isto  significa que a idéia de um direito  cosmopolita, não é mais uma idéia fantástica ou extravagante. É um complemento  necessário ao direito civil e internacional, transformando-o em  direito público da humanidade (ou direitos humanos [menschenrechte]); apenas sob esta condição (a saber, a existência de uma esfera pública em funcionamento)  podemos nos gabar de estarmos continuamente  avançando em direção à paz perpétua. 

É preciso, pois, seja redirecionado o atual processo de globalização, ou se constitua um novo, que se preservem os direitos fundamentais dos trabalhadores e se propiciem melhores condições de vida aos menos favorecidos economicamente de um modo geral, a fim de se lograr um equilíbrio das relações de produção e por esse meio alcançarmos o verdadeiro progresso e evolução almejado. De sorte que é inegável o avanço trazido pela globalização, em relação a tecnologia, democracia e oportunidades, mas não menos verdade que também ela acirrou as desigualdades sociais, gerando uma grande massa de excluídos.

Urge compatibilizar a globalização, não se esquecendo dos princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana, pois o que a sociedade almeja é que globalização e justiça social andem lado a lado, para que tenhamos um mundo melhor para todos, e  não só para alguns.

 

Referências
BIBLIA , N. T. João. Português. Bíblia sagrada. Reed. Versão de Anttonio Pereira de Figueiredo. São Paulo: Ed. Da Américas, 1950. Cap. 22, vers. 1-16.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 7a Ed., São Paulo, Malheiros, 1997.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. In: Diário Oficial da União, 5 out 1988.
BRASIL. Lei dos Crimes Ambientais. In: Diário Oficial da União, 12 fev 1998.
CAMPOS, Roberto.  A Globalização revisitada, ensaio no jornal  “Folha de São Paulo, edição de 7 de junho de 1998, p. 1-4.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6a Ed., Coimbra Almedina, 1993.
CITADINO, Gisele. A interpretação constitucional na filosofia política contemporânea, in Camargo, Margarida Maria Lacombe (Coord.) 1988-1998 – Uma década de História, Renovar, Rio de Janeiro, 1999.
FRANÇA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.  Disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cidad.html Acesso em 11/08/2008
HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações, Objetiva, Rio de Janeiro, 1997.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica nos Costumes (Textos selecionados), Abril Cultural,São Paulo, 1990.
LOBATO, Anderson Orestes Cavalcanti. O reconhecimento e as garantias constitucionais dos Direitos Fundamentais. Revistas dos Tribunais – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Revista dos Tribunais,  São Paulo, 1999).
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Entrevista ao “Jornal do Advogado”, OAB/MG, edição de janeiro de 1998, Belo Horizonte, 1998, p. 20.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 19, 21 ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2001.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La pachamama y El humano. Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2012

Informações Sobre o Autor

Guilherme Hommerding Alt

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pelotas. Especialista em Direito Público pelo IMED , e em Civil e Processual Civil pela Anhanguera. Advogado em Rio Grande/RS


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Equipe Âmbito Jurídico

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