Da evolução normativa da limitação de juros no brasil e a necessidade constitucional de instaurar-se uma nova etapa

O
tratamento normativo dispensado à regulamentação da cobrança da taxa de juros
no Brasil pode ser dividido em três fases distintas, a saber: a) a primeira que
remonta aos tempos do império e que atingiu, inclusive, o estatuto civil de
1916; b) a segunda que teve início com a edição do Decreto n.º
22.262/33, também denominado Lei da Usura e; c) a terceira fase, que
ainda hoje perdura, teve seu marco inicial na promulgação da Lei n.º 4.595/64,
conhecida como Lei da Reforma Bancária.

Assim
sendo, passemos a um breve exame do histórico da limitação – ou liberação –
legal da taxa de juros remuneratórios no Brasil. Para que, assim, se possa mais
facilmente demonstrar a necessidade da instauração de uma nova ordem legal no
que pertine à matéria, em face daquilo disposto em nossa Carta Política.

Durante
o período imperial a regra vislumbrada – em face das fortes influências
liberais – era a liberdade na estipulação da taxa de juros. O ponto de partida
de tal orientação parece ter sido o Alvará de 5 de maio de 1810, onde o
Príncipe Regente no Brasil, em face de representação da Real Junta de Comércio,
Agricultura, Fábricas e Navegação, possibilitava dar dinheiro ou outros fundos
a risco para o comércio marítimo, pelo prêmio que fosse ajustado, sem
restrições de qualquer sorte.

Tinha
tal norma como supedâneo para a ampla liberdade na contratação da taxa de juros
nos contratos de câmbio a risco a irrazoabilidade de
limitação à “módica quantia de cinco por
cento, quando por esta mesma taxa os proprietários cabedais os podiam dar a
juros com segurança de penhores e de hipoteca”
. (Hernani Estrella, Da Teoria dos Juros no
Código Comercial
, in Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. XLV, 1950, pág. 410)

No mesmo sentido andou a legislação firmada posteriormente, vindo o
Parlamento do primeiro Império a decretar a Lei de 24 de outubro de 1832 que
tornou livre a estipulação da taxa de juros ou prêmio de dinheiro, desde que
avençados por escrito, sendo tal orientação também recepcionada pela Codificação
Comercial de 1850 que mantendo a liberdade de estipulação proibiu apenas o anatocismo – que em outro dizer importa na capitalização de
juros, i.e., a incorporação dos juros
vencidos ao principal.

Com tais
espíritos era, portanto, proclamada a liberação da taxa de juros em nosso
período imperial, que somente encontrava limites nas forças do mercado,
chegando-se, assim, à disciplina prevista no Código Civil de 1916.

Note-se
que o estatuto civil de 1916 compartilha a mesma fonte da codificação comercial
de 1850, qual seja, a legislação firmada em 1832.
Neste sentido segue o magistério do renomado jurista Sílvio Rodrigues que aduz
que o Código de 1916 foi “produto de uma
época de excerbamento do individualismo”
, que “deu às partes liberdade de fixarem a taxa
de juros que quisessem ”
. (in Direito Civil – Parte Geral das Obrigações, vol. II, 2ª ed., São
Paulo, 1965, pág. 338)

Com
efeito, o estatuto civil de 1916 deixava às partes liberdade total na
estipulação de juros, bem como de sua capitalização, observada a pactuação expressa, determinando em seu artigo 1.262 o que
segue:

“Art. 1.262. É permitido, mas só
por cláusula expressa, fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras
coisas fungíveis.

Esses juros podem fixar-se
abaixo ou acima da taxa legal (art. 1.062), com ou sem capitalização”
.

Portanto,
nosso direito positivo em sua primeira fase determinava a completa liberdade de
taxação de juros.

Tal
liberdade foi rompida somente em 7 de abril de 1933, com a edição do Decreto n.º 22.262, também denominado como Lei da Usura, inspirada
por Oswaldo Aranha.

Justificava-se
tal norma no intuito de reprimir os comportamentos abusivos gerados pela
preponderância da orientação individualista, somado à crise econômica de 1929,
bem como a alta inflação que então já se fazia presente.

Assim é
que cabe transcrever o texto que serve de intróito a tal norma legal, verbis:

“O Chefe do Governo Provisório
da República dos Estados Unidos do Brasil:

“Considerando que todas as
legislações modernas adotam normas severas para regular, impedir e reprimir os
excessos praticados pela usura;

“Considerando que é de interesse superior da
economia do país não tenha o capital remuneração exagerada impedido o
desenvolvimento das classes produtoras; Decreta:
(…)

Tal  norma legal vedava a
estipulação, em qualquer contrato – importante salientar – de taxas de juros
superiores a 12% ao ano (artigo 1º); bem como o anatocismo
(artigo 4º); declarava nulos de pleno direito os contratos firmados com
infração daquilo ali disposto (artigo 11); previa punição ao delito de usura,
inclusive tentado (artigos 13 e 14).

Acompanhando
a tendência repressora da usura, as Cartas de 1934, 1937 e 1946 procuraram
albergar a diretriz que determinaria a abertura da
segunda fase do direito positivo brasileiro, assim dispondo, sucessivamente:

“Art. 117. (…)

Parágrafo Único – É proibida a
usura, que será punida na forma da lei”
(1934).

“Art. 142. A usura será punida” (1937).

“Art. 154. A usura, em todas as suas modalidades,
será punida na forma da lei” (1946).

Note-se
que o artigo 154 da Constituição de 1946, determinava a punição ao crime de
usura “na forma da lei”, o que
indicava claramente a necessidade de norma integradora a ensejar o perfeito
cumprimento da vontade do constituinte ali insculpida.
Assim é que tal preceito viria a concretizar-se em 26 de dezembro de 1951, com
a promulgação da Lei n.º 1.521, norma legal esta que,
como enfatiza Manoel Pedro Pimentel (Crime
de Usura
, in Revista dos
Tribunais, vol. 472, fevereiro de 1975, pág. 275), é, exatamente, o diploma
vigente a respeito da usura até o momento e que dispõe sobre os crimes contra a
economia popular abrangendo a descrição da usura pecuniára
e a real, nas alíneas a e b de seu artigo 4º.

Em face
promulgação da Lei n.º 1.521/51, lícito é afirmar que,
ainda hoje tal norma convive com o Decreto n.º 22.626/33 – lei da usura –, de
forma que este estabelece o limite de juros, enquanto aquele tipifica o crime
de usura e o considera abusivo à economia popular.

A
terceira etapa da evolução normativa da limitação das taxas de juros veio com a
reestruturação  do
sistema bancário, o que se deu em 31 de dezembro de 1964, com a promulgação da
Lei n.º 4.595 – Lei da Reforma Bancária – que dispôs sobre a política e as
instituições monetárias, bancárias, e creditícias,
assim como da criação do Conselho Monetário Nacional.

Gize-se
que a Lei da Reforma Bancária, em seu artigo 4º, inciso VI, atribui ao Conselho
Monetário Nacional competência para disciplinar o crédito e as operações creditícias, em todas as suas modalidades e formas.
Conferiu ainda, no inciso IX do aludido artigo, ao Conselho Monetário Nacional
o encargo de limitar as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outro
critério de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros.

Em
última análise, em face do poder conferido pela Lei de Reforma Bancária ao
Conselho Monetário Nacional para limitar a taxa de juros “sempre que necessário”, deixou-se de aplicar às instituições
financeiras a o padrão de juros estabelecido pela Lei da Usura em 1933. Neste sentido
já manifestou-se o Supremo Tribunal Federal em
entendimento unânime consolidado na Súmula de n.º 596, assim dispondo:

“Súmula 596 – As disposições do Decreto n.º 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros
encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas o
privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional”.

Assim
consagrada pela jurisprudência a dupla sistemática da
legislação brasileira, i.e., a
existência de um regime para as instituições financeiras e de outro para as
relações jurídicas entre os particulares, resta estabelecido o quadro que veio
a ser colhido pela promulgação da Carta Política de 1988.

Infelizmente,
nossa Lei Maior deveria acarretar consigo a inauguração de uma quarta fase do
tratamento dispensado aos juros por nosso ordenamento jurídico. Entretanto – em
que pese o aparentemente claro dispositivo constitucional que prevê
expressamente a limitação da taxa de juros a 12% ao ano – lá se vai mais de uma
década de sua promulgação sem que aquilo nela contido tenha se materializado,
quer seja pelo reconhecimento da aplicabilidade imediata daquilo disposto no
§3º do artigo 192 – que já encontra-se repelida pelo
Supremo Tribunal Federal através do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n.º 4 –, quer seja pela futura e incerta lei complementar
prevista no caput do mesmo artigo que
regulamentará o sistema financeiro nacional, mantendo-se até então o sistema
hoje vigente.

Bem
certo é que o sistema ora vigente vai diretamente de encontro àquilo disposto
no artigo 192 de nossa Magna Carta, mormente àquilo contido em seu §3º, jamais olvidando-se que, embora declarada pelo Supremo Tribunal
Federal como norma de estrutuação – ou ainda, não-auto-executável, não bastante em si, não-exequível, etc. – certo é que tal espécie de norma não
é de todo desprovida de eficácia, não sendo admissível que o ordenamento ora
vigente caminhe em sentido diverso.

Também demonstra-se indubitável que o dualista sistema que ora se
apresenta – havendo uma regulamentação para as instituições integrantes do
“mercado financeiro” e outra para os demais da população – não encontra guarida
em nossa
Carta Política, eis que flagrantemente contrário ao direito
de igualdade perante a lei ali a todos assegurado.

Aqueles
que preconizam que a limitação de juros não configura matéria constitucional
não estão destituídos de razão. No entanto forçoso é notar que certa ou errada
a Constituição existe e não pode nem deve ser ignorada ao sabor do casuísmo, ou
ainda, na eloqüente lição de Potes de Miranda:

“Nada mais perigoso do que
fazer-se uma Constituição sem o propósito de cumpri-la.
Ou de só se cumprir nos princípios de que se
precisa, ou se entenda devam ser cumpridos – o que é pior.

“No momento sob a Constituição que bem ou mal, está
feita, o que nos incumbe a nós, dirigentes, juízes e intérpretes é cumpri-la.
Só assim saberemos a que serviu e a que não serviu, nem serve. Se a nada serviu
em alguns pontos, que se emende, se reveja. Se em
algum ponto a nada serve que se corte nesse pedaço inútil. Se a algum bem
público desserve, que pronto se elimine. Mas, sem
nada cumprir, nada saberemos Nada sabendo, nada poderemos fazer que mereça
crédito. Não a cumprir é estrangulá-la ao nascer.”
(in Comentários a Constituição de 1946,
pág. 12/13, Tomo I, 3ª ed., Borsoi, 1960)

Portanto
cabem os questionamentos, até quando durará esta longa espera por uma lei
complementar que venha a disciplinar o sistema financeiro nacional? Seria
ingenuidade continuar esperando? Não seria este um bom começo para aqueles que
pretendem distribuir justiça social ao povo brasileiro?


Informações Sobre o Autor

André Ramos Rodrigues

Acadêmico de Direito da Fundação Universidade do Rio Grande


Equipe Âmbito Jurídico

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