Resumo: A família é um instituto em eterna mutação e, fruto da sociedade que é, a família a ela se adéqua. E nem sempre ao legislador é possível normatizar todas as condutas sociais, e menos ainda na seara de direito de família, que é um dos ramos do direito mais humano, não possuindo assim, de pronto, soluções para todas as questões familiares que surgem, tendo que se valer o aplicador do direito das normas a que dispõe, tendo sempre em vista a promoção da dignidade humana e o bem de todos. Com a democratização do direito de família, novas modalidades de famílias vem se formando, fundadas primordialmente no afeto, carinho, dedicação e apoio mútuo, como a família anaparental. A questão que surge é a possibilidade ou não da mesma ter proteção estatal como uma entidade familiar, tal como tem as espécies de famílias do rol do artigo 226 da Constituição Federal, bem como os efeitos civis advindos desse reconhecimento.[1]
Palavras chaves: Entidade familiar. Família anaparental. Dignidade. Reconhecimento. Efeitos.
Abstract: The family is an institute in eternal changing, which is the result of society, the family fits to the society. And to the legislature is not always possible to standardize all social behaviors, and less in the camp of family law, which is a more human law, in virtue of that it doesn’t have, thus, ready, all the solutions to the family issues that arise, the law enforcer has to use the rules that exist, wanting to promote human dignity and welfare for all. With the democratization of family law, new forms of families is being formed, based primarily on affection, love, dedication and mutual support as the no parental family. The question that arises is the possibility or not of the State gives the same protection to this type of family, as are the species of the family role on Article 226 of the Federal Constitution, as the effects of the civil recognition.
Keywords: Family, Parental family, Dignity, Recognition, Effects.
Sumário: Introdução. 1. Breve histórico acerca do instituto família. 2. A família no Brasil: noção histórica e evolução. 2.1. Entidade familiar no ordenamento jurídico brasileiro. 2.1.1. Sucinta evolução legislativa da família: das Constituições e aos Códigos Civis de 1916 e 2002. 2.1.2. A transformação da família à luz da Constituição Federal de 1988. 2.1.3. Do Código Civil de 2002. 2.1.4. Breves comentários ao Projeto de Lei nº 2.285/07: Estatuto das Famílias. 3. Conceito de família: classificação e peculiaridades. 3.1. Do princípio da dignidade da pessoa humana e sua efetiva aplicabilidade ao Direito de Família. 3.2. Da afetividade e seu valor jurídico na constituição das famílias. 4. Rol do artigo 226 da Constituição Federal: taxativo ou meramente exemplificativo? 4.1. Espécies de famílias. 4.1.1. Da Família matrimonial. 4.1.2. Família Monoparental. 4.1.3. Família Informal. 4.1.4. Da família homoafetiva e da família substituta. 4.1.5. Família Pluriparental. 4.1.6. Família Paralela. 4.1.7. Da Família Eudonista. 4.2. Da família anaparental e a possibilidade de reconhecimento como entidade familiar. 5. Possíveis efeitos civis decorrentes do reconhecimento da família anaparental como entidade familiar. 5.1. Dos alimentos. 5.2. Da sucessão. 5.3. Do direito real de habitação. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal em seu artigo 226 consagra a família como a base da sociedade, conferindo a ela especial proteção do Estado, e em seus parágrafos alenca o rol de espécies de entidades familiares, sendo elas: a constituída pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis, a união estável e a família monoparental.
Porém, em decorrência das rápidas mudanças sociais, novas modalidades de famílias vêm se formando, constituídas não só pelos laços consanguíneos ou matrimoniais, mas pautadas, primordialmente, na afinidade de uns em relação aos outros e no afeto, transformando estas convivências em verdadeiras entidades famílias.
Estes novos arranjos são as denominadas famílias sócio-afetivas, e dentre elas figura a família anaparental, a qual possui como basilar o elemento afetividade, que se caracteriza pela inexistência da figura dos pais, ou seja, constituí-se basicamente pela convivência entre parentes do vínculo da colateralidade ou pessoas – mesmo que não parentes e sem conotação sexual – dentro de uma mesma estruturação com identidade de propósitos, que é o animus de constituir família.
E apesar do crescimento do número desta nova realidade no Brasil, ela ainda não ganhou a atenção e a importância devida dos estudiosos do direito e do próprio Estado. E esta é facilmente constatada, a exemplo é a convivência de dois irmãos que, tendo falecido os pais, continuam a viver juntos, situação em que, às vezes, um passa a se responsabilizar pelo outro irmão, desempenhando os papéis de pai e mãe, dando não só assistência material, mas amor e carinho; ou então, por esforço mútuo, adquirem patrimônio comum.
E como a família anaparental não se restringe tão só aos parentes, há ainda o exemplo de duas amigas aposentadas e viúvas que, decidem compartilhar sua velhice juntas, dividindo alegrias e tristezas, convivência esta que se caracteriza pelo auxílio material e emocional mútuo e pelo sentimento sincero de amizade.
Porém, estes conviventes ainda não gozam da proteção do Ordenamento Jurídico como uma entidade familiar, não sendo a eles garantido os direitos que somente são disponibilizados para os que constituem uma das espécies de entidades familiares do rol do artigo 226 da Constituição Federal.
Assim, o problema apresentado refere-se ao rol das espécies de entidades familiares do artigo 226 da Constituição Federal. É ele taxativo ou meramente exemplificativo, possibilitando, assim, sua extensão a outras espécies de famílias? Sendo que esta possível extensão seria verificada face o Princípio da Pluralidade Familiar e o Princípio da Dignidade Humana, fundamento máximo da Carta Maior.
Indaga-se ainda sobre o elemento caracterizador da entidade familiar – poderia a família anaparental ser assim caracterizada tão só pela presença da afetividade entre seus membros? – e, ao final, busca-se apresentar possíveis efeitos jurídicos civis decorrentes deste reconhecimento a tal entidade.
Para a busca de tais respostas, o método a ser utilizado no presente trabalho será o dedutivo e o histórico. O dedutivo resulta do estudo de premissas, como a possibilidade da interpretação extensiva do artigo 226 da Constituição Federal e do elemento afetividade como formador de família o que permitirá se chegar a conclusão da possibilidade ou não do reconhecimento jurídico da família anaparental. E o método histórico decorre do estudo da evolução histórica do instituto família, o que permite compreendê-la nos dias atuais, uma vez que a família é fruto da sociedade.
O direito de família é um dos ramos do direito mais voltados para o aspecto humano, pois cuida da relação pessoal de cada indivíduo na seara que lhe é mais íntima, os sentimentos. E quando se trata de família, novas situações sempre surgem, já clamando por solução ou amparo no ordenamento jurídico brasileiro, respostas estas que, nem sempre se encontram na letra da lei.
Assim, o magistrado, ao aplicar as leis que tem em mãos, deve humanizá-las, pois as normas de Direito de Família não podem ser aplicadas tão só se observando ipsi litteris a letra da lei, mas, também, com observância aos Direitos Humanos, procurando sempre o bem comum e a preservação da dignidade da pessoa humana, para a aplicação da verdadeira justiça.
1. BREVE HISTÓRICO ACERCA DO INSTITUTO FAMÍLIA
A família é um instituto em eterna mutação. Pode-se dizer que ela se confunde com a própria história – sendo considerada por muitos autores, inclusive, como uma das entidades mais antigas do mundo -, pois ao longo da história da civilização, a cada mudança, seja cultural, econômica, artística ou religiosa, a família a ela se adequou, esculpindo diversos modelos de família. Assim, a família deve ser analisada, antes de tudo, sob o ponto de visto sociológico, uma vez que esta se transforma e se adapta na medida em que ocorrem as mudanças sociais.
Como bem assevera Gama (2008, p. 5), “[…] não há como reconhecer um modelo único de família universal, hermenético, estanque e intocável”. Ou seja, é incabível afirmar que o modelo de família adotado durante os primórdios no mundo Ocidental, era o mesmo no Oriental, afinal, os costumes, as crenças, os regimes políticos, enfim, a sociedade era – e é – em muito diferentes.
Em face da escassez de documentos fáticos comprobatórios acerca de origem da família no mundo Ocidental, não há como se traçar um linear histórico perfeito que a explique desde seus primórdios, assim já dizia Pereira (2007, p. 23):
“Quem rastreia a família em investigação sociológica, encontra referências várias a estágios primitivos em que mais atua a força da imaginação do que a comprovação fática; mais prevalece a generalização de ocorrências particulares do que a indução de fenômenos sociais e políticos de franca aceitabilidade.”
De acordo com Marcassa ([s.d], p. 85), um dos precursores a se aventurar nesta seara foi Frederich Engels, em sua obra intitulada “A origem da família”, da propriedade privada e do Estado, na qual descreve os três estágios pré-históricos pelo qual teria passado a cultura e os respectivos modelos de famílias predominantes de cada época, que segundo a concepção de Morgan (apud MARCASSA, p. 85) são as seguintes: o Estado Selvagem, que preponderou a família consangüínea, em que era comum a relação carnal entre os familiares; na Barbárie, deu-se início às relações entre os grupos, originando as chamadas “gens”, em que a família tinha origem na matriarca, sendo após, substituída pela família sindiásmica que era o matrimonio por pares, mas presente ainda a figura da poligamia como direito exclusivo dos homens; e a Civilização, que prevaleceu o modelo monogâmico de família.
Angels, no prefácio de sua obra de 1891, escreveu que o início do estudo da história da família somente se deu por volta de 1860, com a obra de Bachofen, intitulada Direito Materno (BUORICORNE, 2007). Bachofen sustentava a tese Matriarcal – Estado Bárbaro -, onde no estado primitivo das civilizações, os grupos familiares tinham sua origem na matriarca, ou seja, a família se originava da mãe. Naquela época, as mulheres se relacionavam com qualquer homem que integrasse a tribo a que pertenciam, era a chamada endogamia (VENOSA, 2008, p. 3), e, como conseqüência, era possível se conhecer com certeza, apenas a mãe da criança gerada, arcando sozinha a genitora com o sustento, zelo e carinho para com seu filho.
E segundo explica Venosa (2008, p. 3), com o passar dos tempos, na vida primitiva, “[…] com as guerras, a carência de mulheres e talvez uma inclinação natural, os homens passaram a buscar relações com mulheres de outras tribos, antes que em seu próprio grupo”. Este fenômeno, “[…] os historiadores fixam como a primeira manifestação contra o incesto no meio social”. Levando o homem a constituir relações mais estáveis com as mulheres, com caráter de quase exclusividade, que fora o nascedouro das relações individuais, ou seja, da monogamia.
Formou-se assim a Família Sindiásmica (MARCASSA, 2006), na qual o homem passa a viver com uma mulher principal, porém, tal fato não aboliu a figura da poligamia e da infidelidade, constituindo estes costumes, agora, em direitos exclusivos dos homens, sendo de outro norte, exigido maior rigor no que tange a fidelidade das mulheres aos seus respectivos companheiros, sendo elas cruelmente castigados em caso de adultério. É a partir deste ponto que se tem o nascedouro daquele conceito da família patriarcal romana, modelo adotado pelo mundo ocidental.
Em oposição ao que ocorre com a tese anterior, o modelo patriarcal – que até muito perdurou em nossa sociedade – possui muitos e variados registros históricos que contribuem para enriquecer em detalhes as várias etapas pelas quais esta forma de família adquiriu ao longo do tempo.
Em Roma, a família se estruturava na figura marcante do patriarca, era o chamado paterfamilia, este detinha total autoridade sobre toda a sua família. O pater era ao mesmo tempo, o chefe político, sacerdote e juiz, exercendo sobre sua esposa autoridade total e sobre os filhos, o direito de vida e de morte, podendo-se dizer que estes eram eternamente incapazes; inclusive, os bens que eventualmente adquirissem, era por direito de propriedade do pater. A mulher vivia toda sua vida sob a autoridade de um homem: quando solteira, sob a autoridade do pater, seu pai, e após o matrimônio, tornava-se subordinada de seu marido, tornando-se propriedade do mesmo (GAMA, 2008).
De acordo com Venosa (2008), o fundamento da família era a religião, ou seja, a família romana era organizada em razão da idéia religiosa, motivo pelo qual todas as casas eram quase que templos, sendo ali realizados os cultos aos seus deuses e antepassados. A figura da religião doméstica para esse povo se constituía em um forte vínculo familiar, pois cada família cultuava seu deus, tradição que era passada de geração a geração, sempre por meio do filho primogênito.
A mulher ao se casar, passava a cultuar os deuses e antepassados do seu marido. Daí a importância para as famílias que o filho descendente desse continuidade aos cultos, sendo o celibato visto como uma desgraça, pois colocava em risco a continuidade do culto familiar. O filho deveria ser proveniente de um casamento religioso, sendo inadmissível o filho havido fora do casamento – denominado bastardo – dar continuidade ao culto religioso familiar.
Nesta época, em decorrência da importância da continuidade do culto familiar, era aceitável a figura da adoção que, na impossibilidade de o filho de sangue dar continuidade ao culto, este era feito pelo filho adotivo, como forma de perpetuar a família e a memória de seus antepassados, pois o adotivo não carregava sobre si o peso de ser fruto de um ato pecaminoso (GAMA, op. cit. p. 4).
Além da forte presença religiosa na família patriarcal, outro fator também a identificava: a busca incessante pela acumulação de riquezas. A sociedade era tipicamente patrimonial, na qual a família era verdadeira unidade de produção. Os casamentos tinham como fim último a formação de patrimônio, pouco importando a vontade dos nubentes, vez que esta escolha cabia exclusivamente aos seus pais (FARIAS, 2007).
Segundo Gama (2008) com a evolução natural do Direito Romano, começou a ocorrer uma diminuição da autoridade do pater, e conseqüentemente, concedeu-se maior autonomia aos filhos e à mulher, que, na época Imperial esta passa a gozar de autonomia, participando da vida social e política.
Com o aparecimento do Cristianismo em Roma, a Igreja passou a legislar através das normas denominadas cânones, com o intuito de diferenciá-las do direito romano até então vigente. Dentre as alterações trazidas pelo Direito canônico, fora a concernente ao casamento, em que o objetivo principal do casamento passa a ser a procriação, a cópula, e tentou ainda, sem muito sucesso, amenizar a posição de inferioridade da mulher em relação ao homem no matrimônio (Gama, 2008).
Gama (op. cit. p. 17) ainda acrescenta ainda a terceira influencia pela qual teria sofrido o direito em Roma, qual seja, o Direito Bárbaro – ou mais conhecido por direito germânico. No que tange ao instituto da família, este possuía uma estrutura muito semelhante ao da família romana, divergindo-se esta quanto à posição da mulher na sociedade conjugal, pois, aqui, ela já não era mais vista apenas como um objeto de posse de seu marido, haja vista possuir agora “[…] uma posição moralmente elevada”.
O casamento, que era apenas religioso, passa a ser celebrado também por um juiz, representante do povo que, em suma, fora o nascedouro da origem do casamento civil, tendo agora a participação direta de um representante do ente Estatal. O casamento, a partir de então, era celebrado no civil e no religioso, atingindo vários países, como o Brasil, que até hoje assim o celebra (GAMA, 2008). Dias (2009, p. 28), resume com perfeição esta fase patriarcal da família:
Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo a procriação. Sendo entidade patrimonizada, seus membros eram forçados ao trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal.
Referido modelo familiar por muito tempo subsistiu no mundo Ocidental, até no final do século XVIII, quando ocorreu a Revolução Industrial, e a estrutura familiar começou a se transformar, pois com o início das atividades industriais e com a grande demanda de serviços fez-se aumentar, por conseqüência, a necessidade de mão-de-obra, fator este que contribui para a inserção da mulher no mercado de trabalho.
Este fator contribuiu relevantemente para a alteração de toda a conjuntura familiar, na qual o homem era o único provedor da familiar, e a mulher era apenas a dona-de-casa, agora ela começa a repartir responsabilidades que antes eram atribuídas tão somente aos homens, e iniciam-se aí mudanças da figura feminina na sociedade. Nas palavras de Dias (2009, p. 28):
“Assim a mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, restrita ao casal e sua prole. Acabou a prevalência do caráter produtivo e reprodutivo da família que migrou para as cidades e passou a conviver em espaços menores. Isso levou a aproximação de seus membros, sendo mais prestigiado o vinculo afetivo que envolve seus integrantes”.
Tais mudanças se deram de forma muito parecida no Brasil, apesar de terem ocorrido em épocas diferentes, tiveram quase que o mesmo contexto e desfecho.
2. A FAMÍLIA NO BRASIL: NOÇÃO HISTÓRICA E EVOLUÇÃO
Vindo com os Portugueses quando da colonização do Brasil em 1530, o direito romano aqui se moldou conforme os costumes locais da época, porém, mantendo sempre a mesma estrutura, base e princípios que o formavam.
Assim, inegável é a importância da sua compreensão, uma vez que o ordenamento jurídico pátrio teve como berço o direito romano e, com este, viera também o modelo de família de Portugal – resquício da família romana, por sua vez, influenciado pelo direito canônico e germânico -, qual seja, o modelo patriarcal, com aquela formação extensiva que abarcava todos seus parentes, não se restringindo apenas ao casal e sua prole, mas que foi a base da sociedade quando da colonização do Brasil nos séculos XVI e XVII e que por muito tempo e, quiçá, até muito pouco, perdurou no Brasil. Assim explica Moncorvo (2008, p. 14):
“O modelo patriarcal descrito por Freire foi considerado por várias gerações de estudiosos (historiadores, antropólogos e sociólogos brasileiros) como critério e medida de valor para compreendermos a vida familiar ao longo do tempo (Samara, 2002). Da Matta (1987) e Almeida (1987) enfatizam a dominância patriarcal não só na sociedade colonial, como também no período da Independência, da República até a história moderna e contemporânea brasileira. Segundo eles, não só como modelo dominante, mas servindo como referencial para as demais configurações familiares.”
No que tange ao modelo familiar descrito por Freire, conceituado historiador do século XX, Samara e Correia (apud MORCOVO. 2008) fazem uma observação quanto ao referido modelo familiar. Iniciando suas pesquisas acerca do precitado tema em meados dos anos 80, estes autores concluíram que o sistema patriarcal não foi o único existente na era colonial, coexistindo com outros, uma vez que diversificadas eram as culturas existentes no extenso Território Brasileiro.
Predominou referido modelo nas áreas de lavoura canavieira na Região Nordestina, como ainda hoje se faz presente, porém, de forma mais branda (MORVOCO, 2008; SAMARA, 2002). Entretanto, ainda que o modelo patriarcal não tenha sido o único existente no Brasil no período Colonial, teve ele um papel fundamental, e se estendeu do período colonial ao contemporâneo, servindo de referencial para as demais configurações familiares.
E como não poderia deixar de ser, face ainda à grande influência do direito canônico, houve uma grande aproximação da igreja no ambiente familiar, na qual o catolicismo, que era a religião oficial de Portugal, também se tornou a do Brasil, contribuindo com dogmas religiosos do matrimônio, como a impossibilidade da dissolução do vínculo conjugal, uma vez que o casamento era considerado um sacramento, sendo o concubinato rechaçado pela Igreja. E ao casamento religioso eram reconhecidos os efeitos civis.
Com presença marcante da Igreja Católica Apostólica Romana, juntamente com o Reino de Portugal, a Igreja regulava a vida privada dos brasileiros, chegando ela a usurpar funções que teriam que ser de competência do Estado, a exemplo do estado das pessoas naturais, promovendo os registros de nascimento, casamento e óbito, em uma verdadeira junção dos poderes temporal e espiritual (GAMA, 2008).
Os filhos havidos de relações fora do casamento eram considerados ilegítimos e bastardos, não tendo direito a qualquer bem pertencente ao seu pai, ou seja, não possuíam o direito de herança, direito este, mais estranho ainda à concubina. Da convivência da concubina e seu filho bastardo se configurava o que hoje é conceituado como família monoparental, ou seja, desde o período Colonial – e certamente, bem anterior a este período – já se fazia presente na sociedade a figura da entidade monoparental (MORCOVO, 2008).
Outro ponto de suma importância nessa época era a valorização da figura da família na vida social do indivíduo, pois ainda não existia a ideia de valorização do indivíduo enquanto pessoa, sendo esse valorado pelo círculo familiar a que pertencia, caso contrário, era ignorado, não possuindo, assim, credibilidade alguma. Ou seja, o homem, para ter prestígio social, necessitava ter uma esposa, família/filhos dignos, em suma, possuir um lar honrado e exemplar.
O modelo patriarcal de família perdurou na sociedade brasileira até meados do século XIX, quando já nos primeiros anos da Proclamação da República (1889), a família patriarcal começou a apresentar sinais de fraqueza.
Desde o período colonial até então as Ordenações Filipinas serviram como regramento do sistema normativo brasileiro – fato este observado até o advento do Código Civil de 1916 – porém, o direito de família, durante todo esse período, sofreu várias alterações legislativas, como o Decreto de 3 de novembro de 1827, que assimilou o Direito Matrimonial do Concílio de Trento, no qual fora formalmente reconhecida a adoção do direito canônico, a celebração e a dissolução do casamento, sobrevindo posteriormente com o Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, a introdução do casamento civil no Brasil, como conseqüência da desvinculação do Estado de qualquer religião (GAMA, 2008).
Em 1929, com a quebra da bolsa de Nova York, um dos seus reflexos imediatos fora a decadência da cafeicultura, que, combinadas com as mudanças geradas pela Revolução de 1930, promoveu modificações no eixo da política econômica, assumindo um caráter mais nacionalista e industrial, que culminou na transferência do capital para a indústria (SILVA, R., não paginado).
Com isso, os grandes fazendeiros foram obrigados a se adaptar à nova realidade econômica, ampliando seus negócios para os centros urbanos, tornando-se banqueiros, industriais e, com isso, deixou-se de viver nas fazendas para residir nas cidades. Com toda essa transformação não houve mudanças apenas no setor econômico, a cultura e os costumes a ele se adequaram, e agora os filhos dos fazendeiros investiam em estudos, como as faculdades de direito, engenharia e medicina, bem como as tarefas agora eram divididas entre homens e mulheres.
Em virtude de tal alteração no cenário econômico brasileiro, na segunda metade do século XIX – por volta de 1958 -, as indústrias começaram a se desenvolver rapidamente, foi o verdadeiro auge da indústria – momento comparado por alguns autores como a Revolução Industrial no Brasil -, período em que, como ocorreu na Inglaterra durante a Revolução Industrial e se repetiu no Brasil, houve um grande incremento na oferta de trabalho fabril, com a conseqüente inserção da mulher no mercado de trabalho, acarretando, também aqui no Brasil, algumas sutis mudanças na estrutura familiar, sutis porque, apesar de a mulher passar a contribuir no orçamento doméstico, exercendo ainda o papel de mãe dedicada e dona-de-casa, em muito pouco se alterou sua posição no seio da família. Nas palavras de Samara (2002, não paginado):
“O que se nota, ainda nessa fase, é que, apesar da República e das mudanças que estavam ocorrendo, a vida continuou girando em torno da família e que a legislação reforçou, uma vez mais, o privilégio masculino. O marido continuava, legalmente, com a designação de chefe de família, como no velho Código Filipino (1870), compilado em Portugal em 1603. O Código Civil de 1916 reconheceu e legitimou a supremacia masculina, limitando o acesso feminino ao emprego e à propriedade. As mulheres casadas ainda eram, legalmente, incapacitadas e apenas na ausência do marido podiam assumir a liderança da família”.
Nesse período, pode-se dizer, ocorreu a combustão necessária para o início do novo ciclo pelo qual passariam as entidades familiares, o que comprova a afirmação anteriormente feita de que a família é fruto da sociedade, ou melhor, é fruto de uma série de influências das mais variadas, motivo pelo qual, ainda hoje, não há como se definir precisamente um conceito de família, pois como não há a estatização da sociedade – o que cumpre ressaltar, está em constante mudança -, o seu conceito se define por períodos e épocas.
Assim, apesar das pequenas conquistas alcançadas nesta época, ela não deixa de ser um marco de grande valia, pois a partir de então, a família passa a ter a mulher também como fonte de subsistência, tornando-se nuclear, restringida à figura do pai, da mãe e sua prole, diferentemente do que ocorria até então, vivendo agora em espaços menores, fator que contribui para estreitar os laços afetivos entre os entes que a compunham (DIAS, 2009).
Em síntese, Lôbo (apud GAMA, 2007) estrutura os períodos que a família atravessou em três grupos. O primeiro deles foi o período religioso, no qual predominou o modelo patriarcal de família, influenciado pelo direito canônico, tendo seu início no Brasil-Colônia, perdurando tal modelo até o início do Brasil Império, datando aproximadamente de 1500 até 1889.
A partir de 1889, com a Proclamação da República, predominou o modelo de família laico, caracterizando-se pela progressiva redução do modelo patriarcal, quando, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, não só se extinguiu de vez o modelo patriarcal, como teve fim o formato hierárquico de família, prevalecendo agora a democratização das relações, na qual se prioriza a igualdade, a dignidade da pessoa humana e o respeito mútuo.
Hoje, a Carta Magna reconhece as seguintes espécies de entidades familiares:
a) a originária do casamento civil ou religioso com efeitos civis;
b) união estável, constituída pela convivência duradoura, pública e contínua entre homem e mulher com o animus de constituir família;
c) família monoparental, que se restringe a convivência de apenas um dos ascendentes com seu descendente;
d) família substitutiva – termo utilizado por Monteiro (2007) – ou adotiva, que se caracteriza pelo lar no qual a criança é colocada, seja por não possuir a família biológica ou no lugar desta, quando essa medida for verificada como mais apropriada para o menor (MONTEIRO, 2007; VENOSA, 2008).
Nota-se que o legislador, ao elevar a união estável ao patamar de entidade familiar, concedeu-lhe status de família tão só pela simples e pura existência dos laços de afetividade existentes entre os conviventes, ou seja, houve o reconhecimento da afetividade como elemento formador da entidade familiar.
Diante disso torna-se possível afirmar que, hoje, seja qual for o modelo de família, ela não mais se restringe às constituídas pelos laços consanguíneos ou de matrimônio, mas se valem principalmente dos vínculos de afetividade, amor e companheirismo entre os entes que as compõem. Nas palavras Gama (2008, p. 27):
“[…] a progressiva emancipação econômica, social e jurídica da mulher, a significativa redução do número médio de filhos nas entidades familiares, a maior complexidade da vida contemporânea decorrente dos problemas atinentes à inserção profissional da pessoa humana, à massificação das relações econômicas (inclusive as de consumo), à urbanização desenfreada, aos avanços científicos no campo do exercício da sexualidade, entre outros fatores, impuseram mudanças na função e na concepção das novas famílias.”
Houve uma completa reformulação do conceito de família. Na família contemporânea houve a valorização do afeto, amor e carinho nas relações familiares, remodelando toda a concepção jurídica de família, campo em que até então era valorada apenas a instituição família, e não o indivíduo enquanto parte integrante de uma, tendo assim, a família, a função social de viabilizar o desenvolvimento de cada ente enquanto indivíduo. Pode-se dizer que o afeto, o amor e o carinho são as bases de sustentação das entidades familiares, sintetizando: “LAR significa: Lugar de Afeto e Respeito” (DIAS, 2009, p. 27).
2.1. ENTIDADE FAMILIAR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O direito evolui à medida que a sociedade evolui. Porém, a sociedade pode ser comparada a um trem elétrico, enquanto o direito é o trem a vapor. Novas situações sempre surgem, já clamando por solução ou amparo no ordenamento jurídico brasileiro, resposta esta, nem sempre encontrada na letra da lei. Família e sociedade se entrelaçam, pois esta é fruto daquela. E o direito de família nos últimos anos é um dos ramos que mais tem sofrido alterações, e que, provavelmente, ainda passará por muitas.
2.1.1. Sucinta evolução legislativa da família: das Constituições e aos Códigos Civis de 1916 e 2002
As primeiras Constituições Brasileiras fazem pouca ou quase nenhuma alusão à família, como é o caso da Constituição Imperial de 1824, na qual a matéria que mais se aproximava da palavra família era usada apenas para regular a transmissão do trono na família Real; não tratando de assuntos de interesse social, como a família em si, pois o Império não considerava tal tema como de interesse relevante ao Estado. Neste período não houve a codificação de uma legislação civil, vigendo ainda as Ordenações Filipinas (OLIVEIRA, 2005).
Com a Proclamação da República em 1889, fase marcada por uma nova época social, política e econômica, segundo Gama (2008), houve a retomada por parte do Estado, do controle das pessoas naturais, pois a Igreja até então era quem regulava os termos de casamento, nascimento e dos óbitos.
E no que tange ao casamento, com o Decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890, não mais se reconhecia os efeitos jurídicos civis ao casamento religioso, pois com a nova legislação infraconstitucional, o casamento civil era a única forma reconhecida para se constituir família. Texto posteriormente transcrito, quando da elaboração da Constituição promulgada de 1891, em seu artigo 72 (GAMA, op. cit.).
Durante este período, houve várias tentativas de codificação de uma legislação civil, tendo êxito apenas a elaborada pelo jurisconsulto Clóvis Beviláqua (GAMA, 2008; OLIVEIRA, 2005). Assim, sob a influência ainda da Constituição de 1891, o Código Civil de 1916, segundo Rodrigues (2003, p. 12) foi elaborado por Clóvis Beviláqua, sendo o projeto apresentado em abril de 1889, e, após quinze anos de debate, finalmente aprovado e promulgado em 1 de janeiro de 1916.
No que tange ao Direito de família, o Código Civil de 1916, como fora feito no século XIX, período em que a sociedade vivia ainda no modelo de família patriarcal, a matéria nele disciplinada não poderia deixar de ser fruto do reflexo da sociedade da época, ou seja, baseado nas regras discriminatórias e com fundo eminentemente patrimonial que vigiam (BRASIL, 1916).
No precitado Código, várias foram as barbáries codificadas pelos legisladores. A começar pelo art. 233, que trazia em sua redação, ser o marido o chefe da família – patriarcalismo puro -, responsável por mantê-la, e ainda possuía a incumbência de administrar os bens comuns da família e os particulares da esposa, uma vez que esta era considerada relativamente incapaz (BRASIL, 1916).
À mulher competia o papel de mera colaboradora do lar, o que é o mesmo que dizer, colaboradora nos afazeres domésticos, nos cuidados com os filhos; o legislador sempre posicionou a mulher abaixo da figura do seu marido, submetida em tudo às decisões dele. Tal incapacidade foi somente suprimida após o advento do Estatuto da Mulher Casada de 1962, Lei n. 4.121/62 (ALVES, 2006, p.1).
Outra grande preocupação do legislador, segundo Alves (op. cit.), fora acerca do regime matrimonial, sendo dedicados nada menos que 59 (cinqüenta e nove) artigos para discipliná-lo, e nos institutos destinados ao amparo da pessoa, como a tutela, curatela e ausência, que deveriam ter como prioridade a salvaguarda dos interesses do incapaz, havia preocupação prioritariamente com os bens do interdito.
A família só era reconhecida se advinda do matrimônio, e classificada em legítima e ilegítima, conforme proveniente ou não do casamento. Alves (op. cit.) ainda explica que a excessiva obsessão do legislador em alocar o casamento como o único e legítimo meio de constituir a entidade familiar, deve-se à grande influência do cristianismo no Brasil, no qual, em resquício, permaneceu a idéia de sacramento atribuído ao matrimônio, e ainda, aduz que a solenidade do matrimônio, à qual era dada publicidade, de certa forma, gerava maior segurança jurídica ao compromisso assumido.
Destarte, as relações não advindas do matrimonio, mesmo se fosse constituída por pessoas desimpedidas de casar, ainda assim era considerada ilegítima; os filhos advindos desta união eram igualmente denominados pelo Código Civil (artigos 337 a 367), porém, em caso do concubinato puro, era permitido o reconhecimento do filho, sendo vedado, porém, segundo a redação original do artigo 358, o reconhecimento dos filhos incestuosos e os adulterinos. Este dispositivo fora revogado apenas em 1989, pela Lei n. 7.841, de 17.10.1989 (BRASIL, 1916).
Quando da dissolução do matrimônio pelo desquite, previa o texto original do art. 320, que somente nos casos em que a mulher não tivesse dado causa ao fim do vínculo conjugal e se pobre, é que lhe seriam devidos alimentos, sendo ainda penalizada com a perda do direito de uso do nome do marido; e em caso de condenação pela culpa do término do vínculo conjugal, ainda perdia a guarda do filho (BRASIL, 1916).
Fruto de uma sociedade patriarcal e patrimonialista, o Código Civil assim foi projetado, voltando-se essencialmente para a regulamentação das relações jurídicopatrimoniais, sem preocupação alguma com o indivíduo enquanto pessoa, ou seja, buscava-se, primeiramente, a proteção aos bens, e tudo em volta destes transitava, até mesmo como sanção ao cônjuge culpado pelo fim do matrimônio.
Nota-se que o legislador sempre teve como fim resguardar os interesses patrimoniais e a família enquanto instituto, mesmo que em detrimento dos cônjuges. O mais importante, na época, era fazer parte de uma família e, diga-se de passagem, perfeita, pois como já explicado, o indivíduo só era confiável, quando demonstrasse ter uma família grande, perfeita e feliz, sua credibilidade enquanto pessoa dependia da imagem que a família transmitisse.
Essa exigência social, somada ao dogma religioso-cristão que considerava o casamento um sacramento de vínculo eterno, contribuiu para que muitos casamentos infelizes perdurassem por longos anos, o que para o homem, muitas vezes, era desempenhado para manter seu prestígio social; e pela mulher, para manter a promessa feita no altar e aos ensinamentos que já ouvira desde quando muito pequena: que a qualquer custo teria de manter o casamento. Neste sentido é a síntese de Alves (2006, p.1):
“A família era concebida como um instituto em prol da própria família, um fim em si mesma, porque o legislador entendia que aquele modelo fechado era o único correto; logo, assim teria que ser, a qualquer preço, independentemente do sacrifício pessoal de seus membros. Nessa linha de intelecção, a subordinação e o sofrimento da mulher seriam recompensados com um valor de maior importância, a manutenção do vínculo familiar.”
Durante a vigência do Código Civil de 1916 foi promulgada uma nova Constituição, a de 1934, sendo inserido um capítulo no corpo de seu texto para tratar da família que, em resumo, estabelecia que o casamento civil era indissolúvel, o que continuou, portanto, durante muitos anos; o casamento era considerado a única forma legítima de composição da família, porém, tal documento conferiu a possibilidade de o casamento religioso produzir efeitos civis, desde que devidamente inscrito no Registro Civil (GAMA, 2008).
Gama (op. cit.) ainda faz a importante ressalva de que esta Carta fora a que constitucionalizou a família e na qual, pela primeira vez, foi a ela conferida proteção especial do Estado. No entanto, todo o conteúdo desta Constituição foi apenas transcrito – sem alteração significativa alguma -, nas Constituições de 1937, 1946 e 1967.
Assim, como conseqüências dos vários movimentos sociais que ocorreram durante esse período, muitos fatores da vida social do indivíduo não mais se adequavam ao Código Civil então vigente, quando então, a partir da metade do século XX, vieram a lume algumas leis infraconstitucionais esparsas, pelas quais tentou o legislador atender aos reclames da sociedade. Cita-os Gama (op. cit. p. 32):
“[…] o Decreto-lei n. 3.200/41 – que admitiu, com restrições, o casamento entre parentes colaterais de terceiro grau, o que anteriormente era absolutamente proibido -, a Lei n. 883/49 – referente a admissibilidade do reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento -, a Lei n. 1.110/50 – que regulamentou a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso -, a Lei n. 4.121/62 – denominada de Estatuto da Mulher Casada, com inúmeras inovações no campo da emancipação da mulher e na tentativa de equalização dos cônjuges […]”.
A Constituição de 1967, na década de 70, com a Emenda Constitucional n. 9, de 28 de junho de 1977, sofreu algumas alterações significativas na matéria concernente à família. Assim, com base na Emenda Constitucional n. 9/77, que extinguiu o Princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal, houve a edição da Lei n. 6.515/77, que tratava do divórcio e da separação judicial no Brasil, revogando-se todas as normas concernentes ao desquite trazidas pelo Código Civil de 1916 (2008, p. 34).
Foi um instituto fortemente combatido pela sociedade brasileira da época, pelos muitos hipócritas que sustentavam o falso moralismo e pela posição contrária da Igreja, que consagrava o casamento como uma união indissolúvel. Porém, independente de posições favoráveis ou não, a Lei já vigorava, inovando a questão da dissolução do vínculo conjugal, que até então, era eterno, ou seja, uma vez casado, e mesmo depois da separação conjugal pelo desquite, o vínculo não se extinguia, não sendo permitido aos desquitados contrair novas núpcias, obrigando-os a viver à margem da lei.
A aprovação da Lei do Divórcio foi mais um marco do início da socialização do direito civil, pois agora se iniciava a conscientização em proteger o indivíduo e não mais apenas o instituto família. Com isso, mais evidente era o descompasso entre o Código Civil e a Lei Maior do Estado, pois, até então, o Direito de Família vinha sendo regulado praticamente por leis esparsas e decisões jurisprudenciais dos Tribunais (PUPO, 2006).
Clara era a situação de inadequação tanto do Código Civil de 1916 quanto da Constituição de 1969, que ainda vivia uma realidade temporal do fim do século XIX, totalmente inadequada à realidade social, e, para atender aos reclames que agora buscavam uma sociedade mais livre, justa e solidária, com base primordialmente na dignidade da pessoa humana, fora finalmente editada a Constituição Federal de 1988.
2.1.2. A transformação da família à luz da Constituição Federal de 1988
Em contrapartida a todas as normas discriminatórias, individualistas e extremamente patrimoniais, a Constituição de 1988 abriu os horizontes ao instituto da família, protegendo as relações familiares não mais apenas enquanto instituto, mas para promover a funcionalidade desta, ou seja, busca-se agora promover a dignidade da pessoa humana enquanto parte integrante de uma família.
A construção do conceito de dignidade humana teve como um dos seus precursores o filósofo Kant, sendo tal conceito consubstanciado no ideal de liberdade e igualdade. Pupo (2006, p. 1) ainda explica que:
“[…] a liberdade é que determina a ação humana (moral) e a autonomia da vontade – essa entendida como a capacidade do indivíduo em deliberar sobre seus objetivos de vida e agir no sentido de sua realização – é o único princípio de todas as leis morais, gerando para o ser humano a responsabilidade por seus projetos existenciais. Tal perspectiva identifica liberdade e autonomia com individualidade e pluralidade: o ser humano é único e únicos são todos os seres humanos”. (grifo do autor)
E esta nova Constituição, considerada da Era Moderna, nasceu desta idéia, que era um dos Princípios que norteavam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 1948, que consagrou a dignidade como valor essencial do ser humano, sendo adotada como um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, e um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (op. cit. p.1).
Gama (2008, p. 25) retrata com brilhantismo a relevância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana para a nova ordem Constitucional, senão vejamos:
“A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado para o seu enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente da sua espécie.”
Assim, a área da família, sem dúvida, era a que mais clamava por mudanças, afinal, a norma jurídica maior do Estado já não conseguia mais cumprir a função que lhe era atribuída, qual seja, a de regular a vida em sociedade, pois grande era a disparidade dos acontecimentos que vinham ocorrendo no meio social, desde os que buscavam reconhecimento de suas uniões não advindas do matrimônio, das mães que sozinhas criavam os filhos sem proteção alguma do Estado, aos filhos frutos de relacionamentos fora do casamento que lutavam pelos seus direitos de reconhecimento e de tratamento igualitário.
Nota-se que em poucas décadas os paradigmas do direito de família foram inteiramente modificados. E, em resposta a todos esses outros anseios sociais, com fatos e valores agora absolutamente diversos daqueles encontrados do final do século XIX e início do século passado – que era marcado por valores tradicionais como o respeito, obediência e submissão -, foi elaborada e aprovada a Constituição de 1988, sendo descrita, em linhas gerais, com maestria por Pupo (2006, p. 11):
“As relações informais ganharam tratamento jurídico através da construção doutrinária e jurisprudencial dos Tribunais que a partir do julgamento de casos concretos, tentava corrigir as injustiças que a falta de legislação específica impunha, concedendo, por exemplo, alguns direitos à concubina, como a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum. As reiteradas decisões no mesmo sentido, que datam dos anos 60, deu origem a uma Súmula no Supremo Tribunal Federal – STF que passou a ser aplicada nos diferentes Tribunais brasileiros (Súmula 380 do STF, aprovada na Sessão Plenária de 3 de abril de 1964).”
Posteriormente, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069/90, tal prerrogativa se estendeu também à família adotiva ou substituta, pois, conforme se denota do art. 227 e parágrafos da Constituição Federal, grande foi a preocupação do legislador em amparar a criança e o adolescente tanto fisicamente e emocionalmente quanto intelectualmente (PEREIRA, 2007).
Com o reconhecimento da união estável e a família substitutiva como entidade familiar, clara é a idéia da valorização do elemento afetividade nas relações familiares, nascendo desta, implicitamente, o Princípio da Afetividade, pelo qual se busca a realização pessoal do individuo e não mais apenas da instituição família. Assim explica Gama (2008, p. 26):
“Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida em comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada participe, com base em ideais pluralistas, solidárias, democráticas e humanistas.”
A Constituição em comento introduziu, ainda, os direitos fundamentais nas relações familiares, estendendo aos seus integrantes a igualdade entre os cônjuges e companheiros, uma vez que a Constituição, em seu inciso I do art. 5° iguala os homens e mulheres em direitos e obrigações – trata-se do Princípio da isonomia entre os sexos nas relações conjugais -, garantia também estendida à sociedade conjugal (VENOSA, 2008), não podendo haver discriminação que leve a distinção entre a união advinda do casamento e a união estável, uma vez que a Constituição é clara no sentido de que ambas são igualmente entidades familiares perante a Lei Maior.
Com o Princípio da igualdade entre homem e mulher, quis o constituinte suprimir, por exemplo, a posição de autoridade do homem, como chefe de família, provedor e protetor do lar, e a mulher, a dona do lar. E de fato, os papéis vem se invertendo nos últimos anos, o que contribui para a completa extinção dos resquícios do modelo patriarcal na sociedade brasileira.
Outro ponto é a extensão do direito de igualdade a todos os filhos, o qual consagrou o Princípio da Isonomia entre eles. Assim, não há mais as qualificações de filhos legítimos e ilegítimos, consanguíneos ou adotivos. Perante o Ordenamento Jurídico, todos os filhos, independentemente de sua origem, são tratados de forma igualitária em direitos e deveres, sendo vedado qualquer tipo de designação discriminatória.
E, por fim, no §7° do art. 227, ficou consagrada a figura do planejamento familiar de livre arbítrio do casal, sendo vedada qualquer intervenção por parte do ente Estatal, porém, tal normativa não tem caráter absoluto, uma vez que a decisão a ela referente deve ser fundada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, competindo ao Estado propiciar os recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito (PEREIRA, 2007). Dessa situação nasceu o Princípio da Liberdade Restrita e da beneficência à prole, em matéria de planejamento familiar.
Gama (2008) faz uma ressalva ao denominado Princípio da Paternidade Responsável, pois, segundo ele, em análise mais profunda do referido preceito, somada à aplicabilidade do Princípio da Igualdade entre Homem e Mulher, também consagrado pela Carta Maior, nota-se que o Constituinte se equivocou quando da tradução do termo parental responsibility, que deveria ser traduzido como parentalidade responsável, ou seja, são igualmente responsáveis o pai e a mãe. O que, de fato, faz mais sentido.
A parentalidade responsável não se restringe ao simples controle de natalidade ou um mero reconhecimento formal da filiação. Uma criança precisa mais do que ter um teto, alimento e vestes, ela necessita de carinho, atenção, cuidado, afeto e principalmente, muito amor.
Assim, o conceito de parentalidade responsável é mais amplo, afinal, ser um pai ou uma mãe responsável é dar amor, é dedicar-se ao filho, atos que se traduzem em uma comunhão espiritual, para que a criança cresça forte, fisicamente e moralmente (TOLEDO, 2007).
Do exposto, nota-se que houve a repersonalização das entidades familiares, em que as atenções agora são voltadas para a pessoa enquanto indivíduo, à tutela de sua personalidade e da sua dignidade como ser humano, da qual Gama (2008, p. 26) e Venosa (2008, p. 16) citam outros Princípios, porém mais generalizados, aplicados igualmente ao Direito de Família.
Antes de explaná-los, necessário se faz conceituar o que vem a ser um Princípio, uma vez que tal conceito será largamente abordado no decorrer deste estudo.
Gama (2008, p. 63) explica que, “[…] os Princípios traduzem, como se sabe, mandados de otimização, com caráter deontológico, relacionando-se com a idéia do ‘deverser’”, tendo, ainda, um certo grau de generalidade, devendo ser interpretado pelo aplicador do direito para ser aplicado ao caso concreto, pois a deontologia jurídica, nas palavras de Reale (2002) “[…] é a teoria da justiça e dos valores fundantes do direito […]”, ou seja, o Princípio é um valor fundamental, é o valor do justo. Reale (2002, p. 309) finaliza explicando que, “[…] a Justiça nada mais é do que um composto harmônico de valores sociais, de maneira que cada homem possa realizar a plenitude de seu ser, e a sociedade atingir o máximo de bem-estar, compatível com a convivência pacífica e solidária”. Ou seja, o Princípio transcende o “ser”, ele é a idealização do perfeito, do objetivo que a sociedade deve buscar sempre. Superada esta primeira conceituação, os Princípios Gerais Constitucionais aplicados ao Direito de Família são (Gama, 2008): a) O Princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1°, inc. III) impõe um dever geral de respeito e proteção ao indivíduo, devendo ser estendido a todos os cidadãos, o que na esfera familiar significa promover o respeito de todos os familiares, para propiciar uma existência digna e em comunhão de cada um para com todos. b) O Princípio da tutela especial à família (art. 226, caput): A família hoje é tida como o local de realização existencial, o lugar em que se busca afirmar a dignidade de cada um dos seus integrantes, e ao Estado cabe propiciar os meios para a realização do indivíduo no seio familiar, elaborando, para isso, meios de tutela a todas as espécies de famílias. c) O Princípio do pluralismo democrático no âmbito dos organismos familiares (art. 1, inc. V) é simplesmente a liberdade de escolha do indivíduo pela família que quer compor, pois o que se busca é a realização do indivíduo no seio familiar, seja ela qual for, conjugal, parental ou outra. d) O Principio da igualdade material de todos os partícipes da família (art. 5, e inc. I) é a que se harmoniza com o direito à diferença, uma vez que o Princípio da Igualdade não deve ter sua aplicabilidade absoluta, pois, todos devem ser tratados iguais na medida de sua igualdade e desigualmente, na medida de suas desigualdades, como as diferenças naturais, culturais. Assim, referido princípio deve respeitar tais diferenças para sua justa aplicação. e) O Princípio da liberdade, da justiça e da solidariedade nas relações familiares (art. 3, inc. I), significa que a entidade familiar tem a liberdade em sua composição e manutenção, diante do Estado e da sociedade, liberdade esta estendida a cada ente da família diante dos demais integrantes que a compõem. f) O Princípio da beneficência (art. 3, inc. IV) impõe o dever de respeito e auxílio dos partícipes do organismo familiar, de um para com o outro, buscando, assim, o desenvolvimento das suas potencialidades, com base no sentimento de solidariedade que, se espera, deva existir entre as pessoas.
A partir de então, toda norma jurídica aplicável à família, exige, para sua validade, a presença do preceito constitucional consubstanciado pelos novos princípios supra mencionados, específicos e gerais. E, com isso, o Código Civil de 1916 tornou-se ainda mais inadequado para a época e em total desacordo e contradição com a nova ordem jurídica constitucional vigente.
2.1.3. Do Código Civil de 2002
Durante todo este período, já tramitava o Projeto de Lei n. 634/75 para a elaboração de um novo Código Civil, que fora encaminhado para o Congresso em 1975 e, desde a sua apresentação na Câmara até a sua apreciação no Senado Federal, decorreram mais de vinte anos.
Ou seja, o Projeto de Lei do Novo Código Civil foi elaborado ainda segundo a Constituição de 1967, e na época em que ocorriam todas aquelas mudanças sociais e políticas, e, somando agora os novos preceitos constitucionais, o Projeto teve de ser totalmente reformulado, tendo recebido apenas o livro de direito de família, cerca de 140 (cento e quarenta) emendas e, ainda, algumas sugestões legislativas dos jurisconsultos Washington de Barros Monteiro em co-autoria com Álvaro Villaça de Azevedo sendo, inclusive, acolhidas algumas pelo Senado Federal, com sua redação aprovada e publicada em dezembro de 1977 (MONTEIRO, 2007).
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, restavam ainda as inconstitucionalidades atinentes ao livro de Direito de Família. E como o Projeto já tinha sido aprovado pelas duas Casas do Congresso Nacional, restou à Câmara dos Deputados o árduo trabalho, por meio dos instrumentos regimentais, de adequá-lo à Constituição de 1988.
Ainda nesta fase, ressalta Monteiro (op. cit., p. 14), o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), enviou outras sugestões à Comissão Especial da Câmara dos Deputados, referentes ao Livro de Família, apontado a existência de inconstitucionalidades e também algumas normas que entraram em vigor durante todo o longo processo legislativo.
Com a aprovação do Regimento Comum do Congresso Nacional n. 1/2000, tornouse possível a adequação do Projeto às alterações legais e não só às Constitucionais, que até então, face à anterior rigidez regimental, dificultava a atualização de Projetos. E com este entrave a menos, foram finalmente realizadas as alterações no Projeto do Código Civil.
Em votação realizada em 15 de agosto de 2001 na Câmara dos Deputados, o Projeto foi aprovado e após, sancionado, pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso em 10 de janeiro de 2002, entrando em vigor em 11 de janeiro de 2003, na forma da Lei n. 10.406/02 (MONTEIRO, 2007, p. 16).
O Código Civil de 2002, no tocante ao Direito de Família, apresentou em seu novo texto, várias alterações significativas, dentre elas a eliminação de termos discriminatórios, como as que faziam referência à legitimidade da família oriunda apenas do casamento, as que instituíam a desigualdade entre os cônjuges e entre os filhos, o regime dotal; e houve algumas outras inovações, como a não obrigatoriedade de exclusão do sobrenome do cônjuge do nome da mulher e assegurou o direito de alimentos ao cônjuge culpado pela separação quando demonstrado não possuir meios de sobrevivência; foi regulada a união estável em título a ela destinado (DIAS, 2009).
Em suma, no Direito Civil, houve a repersonalização e a despatrimonialização do Direito de família, pois agora se busca primeiramente a valorização do ser humano, sua dignidade, diferentemente do que ocorria no Código Civil de 1916, que era um Código fundamentalmente patrimonialista, ou seja, a preocupação era primeira com o patrimônio, o “ter” em detrimento do “ser” (PEREIRA, 2007).
Gama (2008, p. 117) acrescenta ainda a constitucionalização do Direito Civil:
“A repersonalização representa a mudança de eixo, do patrimônio à pessoa, a representar a principal beneficiária do Direito Civil: a pessoa humana, e não qualquer outro valor que possa tentar substituí-la ou superá-la. A constitucionalização do Direito Civil não se verificou apenas em razão de coerência sistêmica, mas representa movimento necessário e fundamental para o reconhecimento de que as relações privadas devem ser pautadas por parâmetros normativos substancialmente justos”.
Posto que agora, face aos princípios constitucionais que regem o direito de família, todas as normas, seja ordinárias ou infraordinárias, devem ter ser por eles pautadas, motivo pelo qual muitos autores denominam o Direito Civil em Direito Civil Constitucional.
Porém, nem a todos o Código Civil de 2002 conseguiu agradar. Rodrigues (apud GAMA, 2008) faz uma dura crítica ao Projeto que originou o Código Civil de 2002, denominando-o de “colcha de retalhos”. O que de fato era.
Afinal, notórias eram as mudanças pelas quais a sociedade estava passando e certamente um Código Civil com base em preceitos de uma Constituição que já era antiquada à época em que vigia, impossível seria elaborar um projeto que respondesse aos problemas sociais de vinte anos após. Certamente mais simples e menos burocrático teria sido elaborar um novo Projeto, pois, apesar de todas as emendas e sugestões acolhidas, o Código Civil de 2002 já nasceu velho.
Dias (2009), em crítica ao Código Civil de 2002, preceitua que, o legislador deixou de codificar temas já latentes em doutrinas e jurisprudências da época, como a guarda compartilhada, a filiação sócio-afetiva, e os diversos tipos de arranjos familiares do século XXI, como a união homoafetiva, a família parental, anaparental, entre tantas outras.
E segundo Dias (op. cit.), ainda cometeu algumas inconstitucionalidades, a exemplo do art. 1.704 do Código Civil que dispõe:
“Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial. Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência” (grifo nosso).
Falar em culpa é verdadeira afronta constitucional ao Direito de Privacidade do casal e à dignidade da pessoa humana, pois, para discuti-la, é necessário adentrar a vida privada do casal, expondo-os desnecessariamente e por um propósito tão irrelevante se comparado ao fato da dissolução da união, que por si só já é um tanto dolorido.
É direito deles, darem ou não continuidade ao vínculo. Afinal, se a convivência torna-se insuportável, seja por qual motivo for, não há que se discutir o culpado pela separação. É incabível nos dias de hoje um termo como este estar ainda codificado. A união deve proporcionar a realização pessoal de cada cônjuge, e buscar a felicidade não é crime, e sim direito.
Pois como bem ressalta Farias (2007, p. 36), essas discussões estéreis e infrutíferas, servem somente para “lavar a alma” de quem foi vencido no jogo do amor e pretende dar o troco no processo judicial. E ainda complementa:
“Afirmado o afeto como esteio do Direito de Família atual, vislumbrase que em uma relação familiar não se pode imputar conseqüências jurídicas àquele que não mais nutre afeto por conta da deterioração da vida em comum, a erosão do amor. Enfim, respeitando a confiança nas relações amorosas, materializada no afeto, impõe-se afastar toda e qualquer discussão acerca da culpa em sede jurídica”.
Ademais, para Dias (2009, p. 31), por mais que os legisladores tenham tentado atualizar o Código Civil, ainda assim, tal esforço não fora o suficiente, guardando seu molde original no antigo Código Civil:
“Incorporou as mudanças legislativas que haviam ocorrido por meio de legislação esparsa, apesar de ter preservado a estrutura do Código Anterior. Mas não deu o passo mais ousado, nem mesmo em direção aos temas constitucionalmente consagrados, ou seja, operar a subsunção, à moldura da norma civil, de construções familiares existentes desde sempre, embora completamente ignoradas pelo legislador infraconstitucional.”
Com isto, tornou-se alvo constante de diversas interpretações, comentários e emendas. Exemplo disto é o Projeto de Lei nº 2.285/2007, denominado Estatuto das Famílias, de autoria do Instituto Brasileiro das Famílias (IBDFAM), protocolado no Congresso Nacional pelo Deputado Federal Sérgio Barradas Carneiro (PT/BA), que propõe a revisão e uma grande reforma em todo o sistema jurídico brasileiro de família.
2.1.4. Breves comentários ao Projeto de Lei nº 2.285/07: Estatuto das Famílias
O Código Civil na parte que trata do direito de família é sempre alvo de tentativas de complementações várias e aprimoramentos, prova disto é este Projeto de Lei, porém, este foi mais ousado. Tem como objetivo tirar o Direito de Família do Código Civil, reunindo toda a legislação esparsa existente sobre a família, mas não só concernente ao direito material, mas o processual, inclusive (FOSTER, 2008).
A denominação, conforme justificativa da Comissão de Sistematização do referido projeto, é devido aos valores consagrados constitucionalmente nos artigos 226 a 230, na qual o Estado garante a família, base da sociedade, especial proteção a família, reconhece as famílias decorrentes da afetividade como a união estável como entidade familiar, dá amparo a monoparental, ou seja, não há mais que se falar em direito da família, que fazia referencia a família decorrente apenas dos laços do matrimonio, mas sim ao Direito das “famílias”, que melhor se adéqua à realidade social.
Segundo Forster (op. cit.), o Projeto de Lei se divide estruturalmente em duas partes: a primeira trata do direito pessoal e patrimonial, e a segunda traz a matéria concernente ao processo e ao procedimento. O Título I mostra-se de grande relevância, pois traz as normas e princípios gerais aplicáveis às famílias e às pessoas, trata, em seguida, das regras gerais da relação de parentesco. Inovação maior, e a que mais interessa ao presente estudo, sem dúvida, é o Título III, concernente às entidades familiares.
Esse título tem como respaldo principal os objetivos da República Federativa do Brasil, dentre eles a defesa da dignidade humana, ou seja, do indivíduo enquanto cidadão e da liberdade em todas suas formas. Ademais, tendo a Constituição Federal reconhecido a união estável como entidade familiar, notório o fato do reconhecimento da afetividade como elemento formador de família. E como poderia ser diferente, se a própria Constituição garante e busca a aplicabilidade de tais princípios?
A família atual em muito difere das antigas formas no que concerne a suas finalidades, composição e papel de pais e mães. Dias (2009) define a entidade familiar como aquela disposta em uma estruturação psíquica em que cada um ocupa um lugar e possui uma função (pai, mãe ou filho), sem, no entanto, estarem necessariamente ligados por laços sanguíneos.
Hoje a família não é mais entendida apenas como decorrente de laços consanguíneos ou de matrimônio, mas se vale principalmente das relações de afetividade entre os entes que a compõem, e com fundamento nessa concepção, o Estatuto pretende a legitimação de todas as formas de entidades familiares, desde as conjugais às parentais. Pois o fato de uma criança que perdeu os pais e foi morar com uma Tia, tendo nesta a figura da mãe, não é merecedora de amparo Estatal por não se enquadrar no rol das espécies de famílias reconhecidas Constitucionalmente?
Dar guarida legislativa à família parental não seria mais do que reconhecer uma situação que de fato já é presente na atualidade. A Constituição não hierarquizou um modelo de família em detrimento de outra, pelo contrário, a todas as espécies de entidades familiares a Carta Maior atribui a mesma dignidade e igual merecimento de tutela (PEREIRA, R. 2007).
Assim, se o objetivo da Constituição é resguardar a dignidade do indivíduo enquanto cidadão, então, necessário se faz adequar a legislação brasileira à realidade social, reconhecendo como entidades familiares aquelas provenientes da relação entre pessoas do mesmo sexo e as famílias parentais.
Forster (2008) traz um breve resumo das alterações propostas quanto ao casamento, ao regime de bens, à separação e ao divórcio. As alterações de maior impacto concernentes à matéria do casamento são as seguintes: supressão e exclusão das causas suspensivas do casamento; atualização na parte que trata dos impedimentos; simplificação das exigências para a celebração e registro do casamento; exclusão do regime de participação final nos aquestos; e dá ampla liberdade de escolha no regime de bens aos nubentes.
Já no concernente à matéria de separação e divórcio, a primeira proposta a ser feita fora a vedação da investigação das causas da separação do casal, uma vez que nas palavras de Dias (2009) é verdadeira inconstitucionalidade do direito de privacidade do casal, uma vez que é direito dos cônjuges continuarem casados ou não.
Quanto ao procedimento, o Projeto de Lei propõe dar preferência na tramitação aos processos referentes ao Direito de família; objetiva a criação das Câmaras Especializadas em Direito de Família nos Tribunais de Justiça; e, por fim, como não poderia deixar de ser, com o reconhecimento de todas as entidades familiares, em caso de dissolução de tal vínculo, o Projeto já prevê o procedimento para tal e, principalmente, os direitos decorrentes do vínculo que ligava os conviventes (FORSTER, 2008).
Certamente é um Projeto que levantará muitas discussões nas Casas do Congresso. Porém, data vênia, esse veio em boa hora. O Direito de Família há muito reclama por mudanças e adequações. Não existe mais o modelo hierarquizado e patriarcal de família da década de sessenta, época em que foi elaborado o atual Código Civil. Na verdade, o Código Civil já nasceu velho, tendo novamente que doutrina e jurisprudência darem respostas que a própria legislação não tem.
3. CONCEITO DE FAMÍLIA: CLASSIFICAÇÃO E PECULIARIDADES
Tanto se falou da instituição família no presente estudo, desde sua história, evolução, composição, de suas normas, mas sem ainda dar-lhe uma definição. Afinal, o que é a família? O instituto família se confunde com a própria história, assim, o conceito de família muda a cada acontecimento social, econômico e cultural de determinada época e local, portanto, não há que se falar em imutabilidade conceitual. Farias (2007, p.4) assim preceitua:
“[…] a família tem seu quadro evolutivo atrelado ao próprio avanço do homem e da sociedade, mutável de acordo com as novas conquistas da humanidade e descobertas cientificas, não sendo crível, nem admissível, que esteja submetida a idéias estáticas, presas a valores pertencentes a um passado distante, nem a suposições incertas de um futuro remoto. É a realidade viva, adaptada aos valores vigentes.”
No Brasil Imperial, por exemplo, a família era aquela disposta no modelo patriarcal, em que havia a figura do pater, que era o chefe da família, provedor do lar, juiz e detentor da autoridade sobre todos os que viviam sob a sua égide, o que incluía seus filhos, esposa e empregados, bem como aquela proveniente dos laços do matrimônio, fundada nos preceitos religiosos e com preocupação eminentemente patrimonial. Na conceituação de Beviláqua (2001, p. 30), a família era assim conceituada:
“Família é o conjunto de pessoas ligadas pelo vinculo da consangüinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se, por família, somente os cônjuges e a respectiva progênie.”
A família até então se restringia àquela proveniente da consangüinidade e do casamento, conceito que vigorou efetivamente na sociedade brasileira do Império até o início da industrialização, quando então se iniciou uma profunda mudança nos valores sociais e, em especial, aos valores familiares e, como conseqüência, em toda a conjuntura familiar brasileira.
Desse período em diante, ao menos na prática – já que o ordenamento jurídico ainda teimava na tentativa de impor o modelo matrimonializado – novas espécies de famílias vinham se formando, em detrimento do modelo tradicional, com novos valores e objetivos. Foi a transição da instituição família como unidade econômica para uma compreensão mais humanitária, em que agora ela era tida como uma organização subjetiva fundamental para a construção individual da felicidade. Segundo Farias (2007, p. 9):
“Na medida em que a família deixa de ser encarada sob a ótica patrimonialista e como núcleo de produção e passa a ser tratada como instrumento para o desenvolvimento da pessoa humana, realçados seus componentes mais próximos à condição humana, tem-se, sem dúvida, uma democratização da estrutura familiar.”
Fala-se em democratização, posto que agora a família tornou-se uma estrutura democrática, onde há o diálogo e não a imposição, onde há o carinho e a compreensão, valorando-se cada ente enquanto ser, e não mais como mero objeto. Assim, a família possui vários caracteres, sendo estes citados por Diniz (2005):
“a) Caráter biológico, pois a família é, por excelência, um agrupamento natural, que ligados os entes pela consangüinidade, decorre direitos e deveres, como o poder familiar, direito de prestar alimentos e de assistência;
b) Caráter psicológico, decorrente do sentimento que os une; c) Caráter econômico, que pelo auxilio e afeto prestado pelos demais entes da família, o indivíduo alcança sua realização material, intelectual e espiritual; d) Caráter religioso, que mesmo com todas estas mudanças na estrutura familiar, esta não perdeu seu caráter ético e moral; e) Caráter político, pois uma vez que da família nasce a sociedade, é ela a base da sociedade, merecedora de proteção especial deste; f) Caráter jurídico, vez que toda a matéria de família é regulada por normas jurídicas, constituindo seu conjunto, no Direito de Família “
No que tange ao conceito de família os doutrinadores, em sua maioria, conceituam a família em sentido amplo ou acepção lata e estrito ou restrito. O primeiro é o conjunto de pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, que compreendem os ascendentes, descendentes, colaterais, bem como as ascendentes, descendentes e colaterais do cônjuge, que são os parentes por afinidade, a exemplo do art. 1.591 e seguintes do Código Civil (VENOSA, 2008; MONTEIRO, 2007; DINIZ, 2005).
Já Rodrigues (1998) na conceituação ampla, a define como sendo aquela formada por todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue, provindas de um tronco ancestral comum, ou seja, se restringe aos parentes consanguíneos, e em uma conceituação um pouco mais limitada – mas ainda não restrita – abrange os consanguíneos em linha reta e os colaterais sucessíveis, quais sejam, até o quarto grau.
Diniz (2005, p. 9) expande ainda mais o sentido da palavra família, utilizando-se da expressão “sentido amplíssimo”, na qual ela inclui estranhos, baseando-se, para tanto, no art. 1.412, §2°, do Código Civil, o qual preceitua que, as necessidades da família do usuário compreendem também as pessoas do seu serviço doméstico, e no art. 241 da Lei n. 8.112/90, tem-se que qualquer um que viva às expensas e que conste de seu assentamento individual é, para este, considerado família.
No sentido estrito ou acepção restrita, a família abrange tão somente o casal e sua prole, ou apenas um dos genitores e seus descendentes, que vivem sob um poder familiar, como os decorrentes do matrimônio e do vínculo sanguíneo, que são o casal e sua prole ou a família monoparental -, conforme §§1° e 2°, art. 226 da Constituição Federal (VENOSA, 2008; DINIZ, 2005; RODRIGUES, 1998).
E com base nestas acepções, a palavra família é empregada tendo em vista certos critérios, que decorrem dos efeitos sucessórios, alimentares, o da autoridade, fiscais e previdenciários. Veja-se (DINIZ, 2005, p. 11-12):
“A família para efeitos sucessórios, que abrange todos os parentes da linha reta ad infinitum, os cônjuges, os companheiros e os colaterais até o quarto grau. Para efeitos sucessórios, a família são os descendentes, ascendentes e os irmãos (arts. 1.694 a 1697, CC). Já o critério da autoridade, é a decorrente do poder familiar. Pelo critério fiscal, a família é aquela compreendida ao marido, mulher, companheiro, aos filhos menores, aos maiores inválidos ou que freqüentam a universidade às expansas (sic.) do pai até os 24 anos, ao ascendente inválido que vivam sob a sua dependência econômica do contribuinte, e os filhos que morem fora do ambiente doméstico, se pensionados em razão de condenação judicial. Para efeitos previdenciários a família abrange o casal, os filhos de qualquer condição até os 21 anos (desde que não emancipados) ou inválidos ou inválidas, enteados e menores sob sua tutela, incluindo convivente do trabalhador, inclusive em concorrência com os filhos.”
Venosa (2008) traz a conceituação da família sob o aspecto sociológico, definindo-a como aquela constituída por pessoas que vivem sob o mesmo teto, sob a autoridade de um titular, vale dizer, onde há uma distribuição psíquica dos papéis dentro do organismo familiar.
De todas, essa é, sem dúvida, a melhor conceituação possível para a palavra família. Afinal, os que compõem a entidade familiar têm agora, como objetivo principal, buscar sua realização pessoal, e esta é a atual função da família: contribuir para o crescimento de seus entes, por meio da ajuda mútua, de companheirismo, amor, dedicação de uns para com os outros, alcançando assim a dignidade enquanto ser humano. Farias assim explica (2007, p. 7):
“[…] deixando a família de ser compreendida como núcleo econômico e reprodutivo (entidade de produção) avançando para uma compreensão sócioafetiva (como expressão de uma unidade de afeto e entre-ajuda), surgem, naturalmente, novas representações sociais, novos arranjos familiares. Abandona-se o casamento como ponto referencial necessário, para buscar a proteção e o desenvolvimento da personalidade do homem. É a busca da dignidade humana, sobrepujando valores meramente patrimoniais.”
Nesta mesma linha de pensamento, Dias (2009, p. 43):
“O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudonismo, impingindo nova roupagem axiológico ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado”.
Não se fala mais em família, mas sim em famílias, pois hoje, o que mais se
evidencia, são as famílias constituídas por somente um dos pais e seus ascendentes; tios criando os sobrinhos como se seus filhos fossem; netos vivendo com os avós; irmão mais velho criando os irmãos mais novos, fazendo o papel de pai-irmão; amigas que vivem juntas, sem conotação sexual; o relacionamento de pessoas do mesmo sexo vivendo sob um mesmo teto, constituindo uma família, enfim, houve a pluralização das espécies de famílias.
Há autores que falam em “crise na família tradicional” e que “lamentam sua desagregação”, mas como bem explica Pereira (2007, p.5), a referida crise é mais aparente do que real, vez que, o que se observa é apenas mudanças na conceituação e na estruturação das famílias, afinal, “o direito de família nas ultimas décadas, tem buscado mecanismos jurídicos de proteção para os seus membros, busca o respeito às diferenças, necessidades e possibilidades”.
Inegável é o fato de que a família se transformou, mostrando-se um tanto árdua a tarefa de encontrar um conceito único para a família, porém, um fator inegável é comum a todas: o afeto que as une. Nas palavras de Dias (2009, p. 43):
“Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que tem origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. O desafio de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que permitam nominálas como família, e esse referencial só pode ser identificado na afetividade.”
Não há na Constituição Federal ou no Código Civil uma conceituação exata do que vem a ser a família. Segundo Dias (2009) um legislador pioneiramente se atentou a conceituá-la. E essa iniciativa se encontra no artigo 5°, inciso III da Lei n. 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que diz que a família é aquela que se identifica como qualquer relação de afeto:
“Art. 5°. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual” (grifo nosso).
A afetividade é o elemento que une os entes de uma família. Não há mais que se falar em obrigação imposta por Igreja ou Estado que faça uma família perdurar como antigamente. Se hoje há uma família unida, certamente lá se encontra o afeto, amor, carinho e compreensão de um para com os outros, caso contrário, não há o porquê de sua existência.
O legislador, ao explicitamente conceituar a família como sendo aquela decorrente de qualquer relação de afeto, assim a definiu porque teve ele um respaldo jurídico maior, ou melhor, teve como respaldo a Lei Suprema do Estado, uma vez que, em interpretação a algumas das inovações do constituinte de 1988, clara foi sua intenção em demonstrar a importância da afetividade nas relações familiares. Gama (2008, p. 120) traz um rol exemplificativo dos mandamentos constitucionais que demonstram esse deslocamento para a seara da afetividade:
“As mudanças operadas no âmbito das relações familiares no sistema jurídico brasileiro pós-Constituição de 1988 demonstram, especialmente com a possibilidade do divórcio como forma de romper o vínculo matrimonial, a diminuição dos prazos para fins de separação judicial e do divórcio, a igualdade dos direitos e dos deveres dos cônjuges e dos companheiros, a igualdade material entre os filhos, a proibição de emprego de qualificações discriminatórias a respeito da filiação, a proteção integral e absoluta da criança e do adolescente, o reconhecimento de outros modelos de família além da matrimonial – além de outras mudanças – que o deslocamento que os institutos do Direito de Família sofreram para a emocionalidade – afetividade -, fazendo com que as famílias somente possam ser tuteladas e, conseqüentemente, se manterem, se forem fundadas na vontade contínua e permanente […]”
Nesta mesma linha argumenta Lôbo (2004), partindo do pressuposto de que, se o constituinte igualou os filhos, independentemente de sua origem, se adotivos ou consanguíneos, é porque a Constituição afastou qualquer interesse diferente que não fosse o do amor e afeto entre pai e filho, sentimento este que é construído e conquistado. E igualmente se refere às entidades familiares:
“Se a Constituição abandonou o casamento como único tipo de família juridicamente tutelada, é porque abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão, passando a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades, ou seja, a afetividade, necessário para realização pessoal de seus integrantes. O advento do divórcio direto (ou a livre dissolução na união estável) demonstrou que apenas a afetividade, e não a lei, mantém unidas essas entidades familiares” (LOBO, op cit., não paginado).
O que se busca é uma convivência saudável entre os cônjuges, pois a família é protegida pelo Estado, enquanto estiver desempenhando sua função, que é promover a dignidade de cada partícipe, seja na busca pela realização pessoal ou financeira; o ingrediente para tudo isto é a presença constante do amor mútuo e do afeto. Findo este, o próprio Ordenamento Jurídico concede os meios para sua desconstituição (GAMA, 2008).
Então hoje, a família contemporânea pode ser conceituada como sendo aquela decorrente dos laços da consangüinidade, da afinidade e da afetividade, que é o elemento principal, caracterizador e comum a todas as espécies de famílias (DIAS, 2009), pois, a família, independentemente do modelo que possua, continuará desempenhando o papel pelo qual foi criada, que é promover a dignidade dos seus membros.
3.1. DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA EFETIVA APLICABILIDADE AO DIREITO DE FAMÍLIA
A Constituição Federal, ao elevar a dignidade da pessoa humana ao ápice do Ordenamento Jurídico, como princípio maior, deixou clara a preocupação do constituinte com a pessoa enquanto ser, com a sua realização pessoal, diferentemente do que ocorria nas Cartas anteriores, em que a instituição família era protegida em detrimento dos seus integrantes.
Segundo Sarlet (2007), a preocupação em proteger o ser humano, seja física ou mentalmente, remonta ao início da história da humanidade, mas somente no século XVIII, fruto da concepção jusnaturalista, tendo como um dos seus precursores o filósofo Immanuel Kant, é que a dignidade humana alcança seu apogeu, consagrando a idéia de que a dignidade da pessoa humana parte do pressuposto de que o homem, tão somente na sua condição humana, é titular de direitos que devem ser reconhecidos por todos e, inclusive, pelo Estado. E assim também explica Barcelos (2008, p. 124):
“(…) e de uma forma bastante simplificada, pode-se dizer que, para Kant, o homem é o fim em si mesmo – e não uma função do Estado, da sociedade ou da nação – dispondo de uma dignidade ontológica. O Direito e o Estado, ao contrário, é que deverão estar organizados em beneficio dos indivíduos.”
O conceito de dignidade humana veio à lume como reação às atrocidades cometidas durante toda a história da humanidade, a exemplo do episódio da Santa Inquisição mas, sem dúvida, o que mais se evidenciou e foi como um estopim para finalmente ser a dignidade humana efetivamente consagrada no plano internacional, foram as barbáries cometidas pelos nazistas e fascistas com os judeus durante a Segunda grande Guerra Mundial (NUNES, 2009; BARCELOS, 2008).
Assim, consagrada a dignidade no Plano Internacional e interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos, vários países também aderiram, introduzindo em suas constituições a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado. E o Brasil também aderiu, pois o constituinte, com a preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social, levou-o a consagrar a dignidade da pessoa humana como o valor nuclear da ordem constitucional (DIAS, 2009).
Para Dias (op. cit.), a dignidade humana é o “[…] princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais, carregados de sentimento e emoções”, é um “macroprincípio” e o “mais universal de todos”, de onde irradia todos os valores da Carta Maior. Assim, consubstanciada no inciso III do artigo 1° da Constituição Federal de 1988, é ele o Princípio maior, o qual dá guarida a todos os demais direitos e garantias individuais conferidos na Carta Maior.
Os Princípios são as balizas que, sejam legisladores ou aplicadores do direito, devem ter como respaldo legal sempre, sob pena de serem as normas editadas ou uma decisão proferida, nulas, por afronta aos preceitos maiores do Ordenamento Jurídico Brasileiro. Nas palavras de Nunes (2008, p. 41):
“Os princípios exercem função importantíssima dentro do ordenamento jurídico positivo, uma vez que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral, pois os princípios se impõem de forma absoluta. (…) Os princípios funcionam como verdadeiras supranormas, isto é, uma vez identificados, agem como regras hierarquicamente superiores às próprias normas positivadas no conjunto das proposições escritas ou mesmo às normas costumeiras.”
Já a dignidade é a mestra a qual dá suporte e é a base que norteiam os princípios. É o valor supremo da ordem jurídica, é, como diz Silva (2008), “um desses conceitos a priori”, que preexiste até mesmo a pessoa humana. Ela não é somente mais um princípio do ordenamento jurídico, mas o é também seja da ordem política, econômica, social e cultural, que dá base a toda a vida nacional. Silva (op. cit. p. 38) ainda complementa dizendo que:
“A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Concebido como referencia constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, o conceito de dignidade humana obriga a uma densificação valorativa, que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais[…].”
A dignidade humana é, pois, um valor intrínseco, nem mesmo um comportamento indigno é motivo para se privar um ser humano dos direitos fundamentais que lhe são inerentes. Como exemplo, um réu em cumprimento a uma pena de reclusão em regime fechado terá seu direito de liberdade restringido, mas nunca ser-lhe-á tirada sua dignidade, uma vez que a Constituição proíbe qualquer tratamento degradante ou desumano (CF, art. 5°, inc. III), portanto, seja a quem for dirigida, a dignidade da pessoa humana precisa ser observada e obrigatoriamente preservada, pois se trata de um princípio maior.
Quaresma (2006) acrescenta ao exposto que os princípios são normas constitucionais dotadas de certo grau de abstração elevado, uma vez que se constituem em fontes para as demais normas jurídicas, bem como em fundamento para as mesmas. Neste contexto, Canotilho (apud NUNES, p. 42), classifica-os levando em consideração seu grau de abstratividade em “princípios estruturantes”, “princípios constitucionais gerais” e “princípios constitucionais especiais”, assim explica-os:
“Os princípios estruturantes são os que representam o arcabouço político fundamental constitutivo do Estado e sobre os quais se assenta todo o ordenamento jurídico. São, pois, princípios desse tipo o Princípio Democrático e o do Estado de Direito. Daí, claro, pela junção necessária que se faz, só se pode falar em Estado de Direito Democrático. Os princípios constitucionais gerais são os que densificam os princípios estruturantes, clarificando seu sentido como princípio constitucional. Assim, por exemplo, no caso do princípio estruturante citado do Estado de Direito Democrático, surge o princípio da legalidade dos atos da administração, o da soberania popular e o da independência dos Tribunais como princípios constitucionais gerais. E esses princípios constitucionais gerais, por sua vez, concretizam-se um pouco mais mediante princípios constitucionais especiais, por exemplo, no caso do princípio geral da soberania popular, o princípio especial do sufrágio universal. “
A dignidade da pessoa humana ultrapassa a qualificação de um princípio constitucional, seja geral ou especial, ela é maior, pois se trata de um dos fundamentos de todo o sistema constitucional, que dá base para todos os demais princípios, sendo ela, portanto, um princípio estruturante.
Assim, clara foi a intenção do constituinte em conceder ao Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana a qualidade de norma embasadora e informativa de toda a ordem constitucional, pois, deste princípio decorrem todos os demais direitos e garantias individuais, como o direito à igualdade, à intimidade, à privacidade, de liberdade, e à vida, inclusive (SARLET, 2007).
Como exemplo da relevância desse Princípio, Nunes (2009) aduz em sua obra que, o Direito à vida pressupõe o Princípio da dignidade humana, explicando que, dependendo do ponto de vista em que os dois são conflitados, um pode se sobrepor ao outro.
Analisando a questão de um ponto de vista biológico, sem vida, nem haveria de se falar em dignidade, mas e o oposto, e eticamente? Uma vida sem dignidade assemelha-se ao fato de nem se estar vivo, afinal, a vida de um desabrigado e faminto que fora abandonado pela família por ter uma debilidade mental, este, certamente não goza de uma existência digna que lhe é inata.
Mas, afinal, o que vem a ser a dignidade humana? Nas palavras de Moraes (2007, p. 46):
“A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo vulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.”
Já na conceituação de Sarlet (2007, p. 62):
“Dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de priorizar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
É possível então dizer que, a dignidade é inata ao ser humano, nasce com ele, não podendo ser ela restringida – mas excepcionalmente, como no exemplo anteriormente mencionado, pode ela ser limitada, quando da imposição de uma pena de restrição de liberdade, pois, pelo simples fato de ter nascido, possui intrínseco em si, a dignidade.
Mas ela não pode ser considerada exclusivamente como fator inerente do ser humano, pois como explica Sarlet (2007, p. 48) em sua conceituação acerca da dignidade humana, ela possui também um sentido cultural, e assim, para que a dignidade seja efetivamente aplicada, é necessário que Estado e comunidade a veja como limite e tarefa.
E acertadamente concluiu Sarlet (op. cit.) evidenciando que não se pode negar o fato de que, a dignidade nasce com o indivíduo, mas se não houver o trabalho conjunto do Estado e da comunidade para garantir a aplicabilidade deste princípio, ele seria letra morta, e não passaria de belas palavras ao ser aplicado em uma história de conto de fadas.
Um exemplo elucidativo é o planejamento familiar. O Estado garante a eficácia desse por meio de normas e, aliás, estas mesmas são as que limitam o Poder Estatal, a exemplo do §7° do artigo 227 da Constituição Federal, que trata o planejamento familiar como sendo de livre decisão do casal, no qual compete ao Estado apenas a tarefa de propiciar os recursos necessários para o livre exercício desse direito, sendo vedada qualquer forma de coerção, pois, concedidos os meios básicos, a decisão final depende dos pais, posto que a Carta Maior preceitua que tal decisão deve ser pautada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.
Mas, na prática, nem sempre este princípio é efetivamente aplicado. A exemplo, o Governo Federal destina às famílias de baixa renda Programas Sociais como o Bolsa família que, segundo informações no site do Ministério do Desenvolvimento Social de Combate à Fome, vem a ser um dos programas que integram a Estratégia Fome Zero, que tem por objetivo principal assegurar aos mais necessitados o direito à alimentação, ou seja, um dos direitos fundamentais do homem.
O referido programa está regulamentando pela Lei n. 10.836 de 9 de janeiro de 2004 e tem como beneficiárias as famílias de baixa renda, externando o conceito de família da seguinte forma:
“Art. 2o Constituem benefícios financeiros do Programa, observado o disposto em regulamento: (…) § 1o Para fins do disposto nesta Lei, considera-se: I – família, a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros;”
Não há dúvida de que o programa tem um belo objetivo, mas, quando da sua aplicabilidade, o legislador o destinou apenas aos familiares consanguíneos e os por afinidade, restringindo-o, como se a pobreza e a fome atingissem apenas a esses. Hoje existem as mais variadas estruturas de famílias e a dignidade, para ser verdadeiramente aplicada, deve atingir a todos, sem distinções ou preconceito.
Nunes (2009) faz uma interessante ressalva acerca deste princípio, pois, segundo o autor, tendo em vista que o homem é por excelência um ser social, apesar de a dignidade lhe ser inata, ela é dita ilimitada até o momento em que não violar a dignidade de outrem. Vale dizer, como no velho brocardo, “nosso direito termina onde começa o do outro”.
Assim, para Nunes (op. cit.), o Princípio da Dignidade apresenta-se sob duas concepções, uma de cunho individual, que é a inerente à pessoa humana; e outra social, visto que a Constituição garante o direito a uma vida digna, assim, faz-se necessário, para a realização desta, que haja o respeito mútuo entre as pessoas. Nesta mesma linha, Moraes (2007, p. 46) preceitua que:
“O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante, tal qual a Constituição exige que lhe respeitem a própria. A concepção desta noção de dever fundamental resume-se em três princípios do direito romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudique ninguém) e suun cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido).”
E assim está inserto no artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos que “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Portanto, a dignidade é um valor moral intrínseco à pessoa, que nasce com o ser humano, bem como é adquirido culturalmente por meio da sociedade. É assegurada pelo Estado por meio de normas, para que efetivamente seja ele posto em prática, garantindo assim condições existenciais mínimas para que um indivíduo tenha uma vida saudável física e mentalmente, consigo próprio e com os demais que vivem ao seu redor.
Sarlet (2007) o sintetiza com maestria, evidenciando que o indivíduo terá sua dignidade respeitada quando seus direitos fundamentais forem preservados e realizados, direitos estes que se traduzem no conjunto dos direitos individuais, políticos e sociais que, por sua vez, dão origem aos direitos econômicos e culturais.
O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu primeiro parágrafo, preceitua que, “[…] o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. E assim a Carta Maior também a posicionou, com outras palavras, porém, com o mesmo objetivo.
Posto que a Constituição mesma colocou como dogma maior a dignidade da pessoa humana, como valor fundamental da República Federativa do Brasil, certamente que a “Constituição elevou o ser humano ao ápice de todo o sistema jurídico, sendo-lhe atribuído, o valor supremo de alicerce da ordem jurídica” (FARIAS, 2007, P. 52), acima de qualquer outro valor que ela mesma proteja, como a entidade familiar.
E este preceito fundamental busca garantir esses direitos, que a todos, sem iscriminação deve alcançar. E isso independe de raça, cor, sexo, basta para isso, ser uma pessoa. Afinal, ter dignidade é ter uma vida digna, feliz e completa.
3.2. DA AFETIVIDADE E SEU VALOR JURÍDICO NA CONSTITUIÇÃO DASFAMÍLIAS
Segundo Barros (2002), “afeto vem da palavra romana affectio ou affectus, palavras compostas da preposição ad (= para) e de uma forma nominal do verbo facere (= fazer). Literalmente, affectio e affectus traduzem a idéia de ser feito um para o outro”. No nosso Dicionário Brasileiro, afeto significa afeição, amizade, simpatia, paixão; estes são os adjetivos que caracterizam a família contemporânea.
Ao longo da história a família passou por diversas mudanças, dentre as quais a principal fora fruto das inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, que deu nova feição à família, pois, com o reconhecimento da união estável como entidade familiar; a proteção integral à criança e ao adolescente, prevendo sua colocação em lar substituto quando necessário e, desse modo, ainda os protegeu de toda e qualquer qualificação discriminatória, igualando em direitos e deveres, independentemente de sua origem; são exemplos de que o constituinte tutelou o elemento afetividade nas relações familiares.
Ademais, a consagração da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, que o colocou no ápice do ordenamento jurídico, somada à tutela do vínculo afetivo como um dos elementos primordiais para a formação da entidade familiar é, sem dúvida, nos termos utilizados por Farias (2009, p. 10) “[…] a valorização definitiva e inescondível da pessoa humana”, constituindo a verdadeira repersonalização do direito de família.
E por mais que o elemento afetividade não esteja expresso na Lei Maior, este certamente o incorpora pela enorme gama de valores éticos que constituem o “[…] suporte axiológico dos princípios do direito das famílias […]” (CALHEIRA, 2006, [s.p]). Torna-se possível afirmar que se trata de verdadeiro Princípio da Afetividade (DIAS, 2009).
Entretanto o fato de ser um princípio implícito não desobriga os aplicadores do direito e legisladores de contemplá-lo, pois a própria Constituição, em seu §2° do art. 5° preceitua que, “[…] os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Desse modo, tem-se que incluso está o Princípio da Afetividade no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Não há como negar que hoje a família possui novo paradigma, ela é o instrumento para se buscar a felicidade, a realização pessoal dos entes que a compõem, no dizer de Farias (2007, p. 12), “[…] a família é o lócus privilegiado para garantir a dignidade humana e permitir a realização plena do ser humano”.
Não só por meio dos laços consanguíneos ou matrimoniais a família atinge seu objetivo, mas independente destes, e certamente pelo afeto, pelo amor e carinho é que a família consegue atingir seu fim último. Assim preceitua Diniz (2005, p. 13):
“Deve-se, portanto, vislumbrar na família uma possibilidade de convivência, marcada pelo afeto e pelo amor, fundada não apenas no casamento, mas também no companheirismo, na adoção e na monoparentalidade. Ela é o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. É o instrumento para a realização integral do ser humano.”
E não é demais ressaltar que, como já dito, a afetividade não decorre dos laços de sangue ou da formalidade de um casamento, ela é maior, transcendendo-os. Então, para que nasça a afetividade, esta independe de qualquer vínculo formal, ela nasce da convivência, das demonstrações de carinho de todos os dias, dos cuidados e preocupações de uns com os outros, enfim, do amor.
Se há família, é porque aí existe o afeto. Ademais, há algumas passagens da Carta Maior que merecem ser aqui transcritas, como o preâmbulo da Constituição Federal e o inc. IV do art. 3°:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) IV -promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (grifo nosso).
O constituinte, por estas passagens, ao ter alocado a preocupação em promover o bem de todos, coibindo ainda qualquer forma de discriminação, mais nítida e clara se mostra a tarefa dos aplicadores do direito, legisladores e sociedade em preservar e buscar, acima de tudo a proteção do ser humano.
Como bem ressalta Simões (2007) o direito de família busca agora zelar por valores maiores, como a alegria, o amor e o respeito entre seus entes. E assim vem decidindo os Tribunais, protegendo as relações que, mesmo não advindo do vinculo sangüíneo, tem como base um elemento mais forte, o afeto:
“APELACAO. ADOCAO. Estando a criança no convívio do casal adotante há mais de 9 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retirá-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente quando os pais biológicos demonstram por ela total desinteresse. Evidenciado que o vinculo afetivo da criança, a esta altura da vida, encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar a paternidade socioafetiva sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse na criança. Desproveram o apelo. Unânime.” (Apelação Cível Nº. 70003110574, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 14/11/2001).
“EMBARGOS INFRINGENTES. ACAO DE ANULACAO DE REGISTRO DE NASCIMENTO MOVIDA POR IRMAOS DO FALECIDO PAI. No conflito entre a verdade biológico e a verdade sócio afetiva, deve esta prevalecer, sempre que resultar da espontânea materialização da posse de estado de filho. O falecido pai do demandado registrou-o, de modo livre, como filho, dando-lhe, enquanto viveu, tal tratamento, soando ate mesmo imoral a pretensão dos irmãos dele (tios do réu) de, após seu falecimento, e flagrantemente visando apenas mesquinhos interesses patrimoniais, pretender desconstituir tal vínculo. Desacolheram os embargos.” (Embargos Infringentes Nº 70004514964, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 11/10/2002).
Fachin (apud DIAS, 2009) aduz que a família busca construir uma história na qual exista comunhão afetiva, e, se finda esta, implica sua falência, ou seja, se pessoas se unem para terem uma vida em comum é porque nesta junção encontraram o lugar ideal para buscar a felicidade, mas a partir do momento em que dessa já não mais provêm a realização, o próprio Estado concede os meios para desfazer tais laços.
A família é tutelada enquanto estiver desempenhando seu papel, caso contrário, não há mais motivo para existir. Assim, clara a idéia do constituinte de que, findo o afeto, o é também a família. Entende-se, portanto, que a família tem como elemento formador o afeto.
4. ROL DO ARTIGO 226 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: TAXATIVO OU MERAMENTE EXEMPLIFICATIVO?
Segundo o artigo 226 e parágrafos da Constituição Federal, as espécies de famílias por ela reconhecidas são as decorrentes do casamento civil; ou religioso com efeitos civis; a união estável e a família monoparental. Mas há de se falar que o presente rol é numerus clausus? Primeiramente, mostra-se imprescindível se fazer algumas considerações que foram abordadas no decorrer do presente estudo, portanto:
a) Considerando que a Constituição Federal de 1988 em seu art. 1° consagrou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil;
b) Considerando que, em seu preâmbulo, bem como no inc. IV do art. 3° da Carta Maior, o constituinte assegurou a igualdade e a justiça como valores supremos, fundada na harmonia social e ainda como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consagrou a tarefa de promover o bem de todos, sem preconceitos e quaisquer outras formas de discriminação;
c) Considerando que, a união estável foi também reconhecida como entidade familiar; e que fora eliminada toda e qualquer designação discriminatória em relação aos filhos, independentemente de sua origem, e,
d) Considerando que, a Constituição Federal em seu art. 226, colocou a família como a base da sociedade, conferindo a essa instituição proteção especial.
Ante o exposto tem-se que a instituição família é um instrumento, ela é funcionalizada em razão de seus membros, é tida como base porque o indivíduo nela se sustenta para a busca de seus ideais, sonhos e objetivos. Mas esta base, a família, se forma pela soma dos indivíduos que a compõem e é a estes que a Carta Maior busca proteger. Nas palavras de Farias (2007, p. 10), “[…] não há mais proteção à família pela família, senão em razão do ser humano”.
Essa proteção especial do Estado, portanto, é conferida à família, enquanto esta estiver realizando sua função, que é a de promover a dignidade de seus membros, dignidade que se resume em garantir as condições mínimas existenciais para uma vida saudável e garantir que todos os direitos fundamentais do ser humano sejam respeitados.
Com o reconhecimento da importância da afetividade na formação dos vínculos familiares, que se sobrepõe até mesmo aos laços sanguíneos, não há como negar a relevância desse elemento para a constituição de uma família. O contexto atual mostra ser irrelevante se a família tem uma estruturação clássica do modelo patriarcal; ou se ela se compõe de apenas um dos genitores e seus descendentes; ou se ela tem uma estrutura psíquica, onde um tio faz o papel de tio e pai, ou então quando um irmão passa a cuidar dos demais, provendo-os não só de um teto e alimento, mas de amor e carinho. Todas essas são famílias, porque possuem o elemento formador primordial, qual seja, o afeto.
Dias (2009, p. 62), com relação a isso, faz uma importante observação:
“A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida de vida em comum -, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas e democráticas”
Ora, se a família tem como fim primordial promover a seus entes uma vida digna, então a família que consegue atingir esse objetivo é certamente merecedora da proteção especial do Estado, pois assim traz a redação do caput do art. 226 da Constituição Federal. Portanto, não há que se falar que o rol do precitado artigo é taxativo, pois, como já demonstrado, não só as famílias decorrentes do vínculo consangüíneo e do matrimônio atingem seu fim. Calheira assim explica ([s.d], [s.p]):
“O texto constitucional mudou e trouxe um conceito amplo de família, não determinando tipos de família específicos, ao revés, o caput do artigo 226 da CF/88 nada mais é senão, uma cláusula geral de inclusão, não sendo admissível, portanto, desconsiderar qualquer entidade que satisfaça os requisitos de afetividade, ostensibilidade e estabilidade, haja vista que se trata de rol exemplificativo.”
Nesta mesma linha, sustenta Lôbo (2004, não paginado) explicando que o artigo 226 da Constituição Federal é norma de inclusão das demais espécies de famílias, posto que o constituinte suprimiu o termo constante na Carta de 1967, que restringia o conceito de família apenas àquelas decorrentes do casamento:
“No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos. Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade”.
Dias (2009, p. 62) faz uma crítica quanto à exclusão das demais espécies de família, pois, dar tratamento diferenciado aos vários tipos de constituição de família é indigno, uma vez que o Princípio fundamental da dignidade humana significa oferecer “igual dignidade para todas as entidades familiares”.
Não se pode excluir uma realidade gritante por um mero detalhe formal. Não estender a proteção estatal às outras várias espécies de famílias é fazer da Constituição lei morta, é fechar os olhos para a sociedade, é simplesmente regredir à sociedade moralista e hipócrita do século passado.
E como bem ressalta Farias (2007) de nada adianta modificar toda a estrutura do direito de família, se a mudança não vier de dentro, das mentes e dos corações dos operadores do Direito, pois só assim se terá uma sociedade igualitária, justa e humana.
4.1. ESPÉCIES DE FAMÍLIAS
Superada a conceituação de família torna-se possível afirmar que a sociedade contemporânea se compõe por diversos modelos de famílias, sendo que sua estruturação nem sempre se caracteriza na figura do lar formado pelo pai, mãe e dois filhos. Esta estruturação, aliás, é a que mais raramente se encontra.
Hoje, as pessoas se unem umas às outras pela afinidade, pelos projetos de vida e propósitos em comum (DIAS, 2009). Assim, na constante busca de realização pessoal e de felicidade, as famílias mais rapidamente se formam, e na mesma proporção se desestruturam já formando outras. É um ciclo. E essas não seguem um modelo padronizado, elas se estruturam psiquicamente, desempenhando o papel no qual melhor se adéquam.
Seguindo ainda as denominações de Dias (op. cit.), a Carta Maior elenca explicitamente três espécies de família, sendo elas: a advinda do casamento civil ou religioso com efeito civil; a união estável; e a família monoparental; há, ainda, implicitamente, as que decorrem de uniões pautadas no elemento afetividade, algumas com conotação sexual, como a homoafetiva, e outras não, como a família substituta, a pluriparental, a paralela, a eudonista e a anaparental.
4.1.1. Da Família matrimonial
Segundo Dias (2009, p. 44) as uniões entre homem e mulher com fins reprodutivos precedem à história, isto é, existiam antes mesmo de se inventar o conceito de sociedade, de se formar o Estado. E estes, “[…] sob o pretexto de manter a ordem social, passaram a regular estas uniões afetivas, de forma conservadora e moralista, denominando-a de família, consagrando-a ainda, como um sacramento e impondo a indissolubilidade do vínculo conjugal”.
O Estado era o único legitimador do casamento, vindo a regulamentá-lo em todos os seus aspectos, mas, com atenção especial à seara patrimonial. Afinal, tendo em vista que o nosso ordenamento jurídico decorre do direito romano, a estrutura familiar, com todas as suas peculiaridades, também por nós fora herdada, pois era matrimonizada, patriarcal, hierarquizada, patrimonial e heterossexual (DIAS, 2009; VENOSA, 2008).
Só a titulo de curiosidade, conta Venosa (2008) que, a cerimônia religiosa romana era denominada confarreatio, e possuía esta designação porque havia a tradição de se dividir uma torta de cevada entre os nubentes, que era o símbolo da vida em comum, sendo esta a origem do bolo de noiva dos nossos dias atuais.
Segundo Venosa (op. cit.) havia, ainda, outra forma de união além do casamento, era a união que decorria de um negócio jurídico de compra e venda, denominado mancipatio, na qual o pater, detentor do pátrio poder, negociava a mulher como um objeto, ocorrendo também no Brasil, mas em termos mais abrandados, porém, consistia igualmente em um negócio jurídico.
Hoje, o casamento é definido, segundo Monteiro (2007, p. 22), como a “[…] união permanente entre homem e mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os filhos”, acrescentando Diniz (2005) que esse auxílio mútuo não é só material, mas também espiritual.
Nas palavras de Pereira (2007, p. 53) “[…] o casamento é a união de duas pessoas de sexo diferente, realizando uma integração psíquica permanente”, já Rodrigues (apud VENOSA, 2008), o casamento se resume em um contrato que tem por fim promover a união de homem e mulher, de conformidade com a lei, para regularem suas relações sexuais, prestarem assistência mútua e cuidarem da prole comum, mas para Dias (2009) o casamento é também um contrato, só que de adesão, posto que o Estado o regula desde sua celebração até depois de sua dissolução.
Apesar de todas as solenidades do matrimônio, a união hoje decorre, sim, da vontade dos nubentes, pois lei alguma consegue manter unidos homem e mulher se não for de vontade mútua, pois, o Estado pode apenas controlar meras formalidades, mas não o principal ingrediente para esse perdurar: o amor.
4.1.2. Família Monoparental
Consubstanciada no parágrafo 4º do artigo 226 da Constituição Federal, a família constituída por só um dos genitores e sua prole é a espécie mais comumente vista no Brasil, é a denominada família monoparental, que segundo Bravo (2001, não paginado) “[…] esta expressão foi usada inicialmente na França, inobstante a Inglaterra já lhe dedicar atenção especial desde a década de 60, denominando-o de lone-parents families”.
Tal modalidade de família passou a ter maior visibilidade com o declínio do patriarcalismo e da inserção da mulher no mercado de trabalho, tendo em número expressivo a presença da mulher na titularidade do vínculo familiar. Ressalta, ainda, que por muitos anos a monoparentalidade fora associada ao fracasso pessoal, pois antigamente essa constituição decorria, quase que em geral, pelo rompimento do vínculo matrimonial (DIAS, 2009).
Porém, hoje, trata-se de uma escolha, seja pelo fim de relacionamento, seja por uma viuvez, seja pela opção de ter um filho sozinha ou sozinho – afinal, a monoparentalidade também é caracterizada pela vivência do pai com o filho -, pela adoção ou até por uma inseminação artificial, mas independentemente da forma pela qual se origine, ela é uma família e é pelo Estado protegida.
4.1.3. Família Informal
A união informal é tão antiga quanto o matrimônio, aliás, o precede, uma vez que a essas uniões é que o Estado, por suas leis, passou a dar juridicidade, resultando no matrimônio. As uniões informais, por muito tempo ficaram à margem da lei, sem reconhecimento legal e sem amparo jurídico algum e, segundo Monteiro (2007), eram fortemente combatidas porque se considerava que essas uniões concorriam indiretamente para a desagregação da família oriunda do matrimônio.
Após vários anos de muito clamor da sociedade, os juristas se viram compelidos a dar uma resposta às milhares de ações judiciais que despencavam nos Tribunais pelo reconhecimento daquela união informal e seus conseqüentes efeitos jurídicos. Nas primeiras decisões foram elas tidas como uniões de fato, e quando não havia bens a serem partilhados, à mulher cabia o direito de ser ressarcida pelos serviços domésticos prestados, aplicando-se, por analogia, o direito comercial (DIAS, 2009).
A partir de então, vários julgados e leis infraordinárias vieram a dar proteção às uniões de fato, passando a reconhecer mais e mais direitos decorrentes daquela união, quando então o constituinte não viu outra alternativa que não fosse a de reconhecer o que a doutrina e jurisprudência há muito já vinham dando amparo legal, estendendo, assim, a proteção estatal àquela união, reconhecendo-a como entidade familiar, denominando-a de união estável.
Leis surgiram para regular o novo instituto, como a Lei n. 8.971 de 29 de dezembro de 1994, que estabeleceu os requisitos essenciais à união estável, sendo a primeira a reconhecer o direito a alimentos e sucessórios dos companheiros; posteriormente veio a Lei n. 9.278 de 10 de maio de 1996, mas com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, aquelas foram ab-rogadas, passando-se a regular a matéria concernente à união estável (MONTEIRO, 2007).
Nos termos do § 3° do artigo 226 da Constituição Federal, “[…] é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” e, conforme preceitua o artigo 1.723 do Código Civil, “[…] é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
Nem a Constituição Federal e menos ainda o Código Civil conseguiram responder efetivamente a todas as dúvidas acerca da constituição da união estável, afinal, o que se entende por convivência duradoura? Existe um limite temporal para que se configure a união estável? E no que tange ao requisito subjetivo de constituir família, é indispensável para isso que o casal habite sob o mesmo teto? A jurisprudência e doutrina divergem acerca dessas respostas, mas não convém aqui entrar no mérito dessas questões.
Porém, nas decisões mais recentes, os Tribunais têm entendido que, no que tange ao requisito temporal, não existe prazo máximo nem mínimo para se configurar a união, bem como é dispensável a convivência no mesmo lar, isso segundo a Súmula 382 do STF que diz:
“A vida em comum sob o mesmo teto, ‘more uxório’, não é indispensável à caracterização do concubinato”.
Dias (2009) faz uma crítica às leis infraconstitucionais que vieram a regular a união estável, pois, segundo ela, fora apenas copiado o modelo do matrimônio, transformando-a em um “casamento por usucapião” que, pelo decurso de tempo, confere o estado de casado, não conferindo aos conviventes a possibilidade de escolha alguma.
4.1.4. Da família homoafetiva e da família substituta
Muito vem se discutindo quanto à admissibilidade ou não do reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas como entidade familiar. Porém, não há como fechar os olhos para uma realidade que é tão evidente na sociedade brasileira. Trata-se, pois, de uma família socioafetiva, na qual os laços familiares se pautam na afetividade. Menezes (2005) assim explica:
“A família é a célula da sociedade. Basta analisarmos a forma como ela é constituída, para percebermos o quanto o preconceito perde o sentido, numa demonstração de enorme equívoco social. Uma família não se forma com a assinatura de um papel perante um juiz de paz ou com a celebração de uma cerimônia religiosa ou ainda com a realização de uma grande festa social. Uma família surge de um lindo sentimento chamado afeto. O afeto é que norteia qualquer relação entre pessoas que se unem e somado a muitos outros atributos como o respeito, a fidelidade e assistência recíproca é que irá fazer surgir a família. Então, não é apenas a união entre um homem e uma mulher casados que terá a faculdade de gerar uma família. A família é a realização plena do amor, podendo ser constituída pelo casamento, pela união estável, pelas famílias monoparentais (um pai ou mãe e um filho) e também pelas uniões homoafetivas.”
De fato, se analisada a união homoafetiva sem os olhos do preconceito, ela em nada difere das demais uniões, como o casamento ou a união estável, pois nessa também se faz presente o amor, o companheirismo, a assistência mútua; é uma união pública e com o objetivo de constituir família. Enfim, em termos dos requisitos legais, para tal união se adequar ao conceito de família, nada falta.
Quanto a tal discussão, Venosa (2008) e Gama (2008) posicionam-se em sentido contrário, alegando, para tanto, que a união homoafetiva não pode ganhar status de entidade familiar porque a Constituição Federal expressamente protege a união formada apenas por homem e mulher, e, para existir o reconhecimento do companheirismo, é necessário que não haja impedimento algum para o casamento.
Porém, Gama (op. cit., p. 142) também faz uma interessante observação no sentido de que as famílias, além das elencadas no rol do art. 226 da Carta Maior, para receberem o status de família jurídica, “[…] deve-se, tão somente observar a presença de condicionantes relativos a valores sociais e culturais que admitam a recepção destas unidades de vivência”, então, vale dizer, conforme o preconceito ou não da sociedade, o que culmina em verdadeira discriminação, vedada pela Carta Maior.
Ademais, além dos requisitos explícitos já estarem preenchidos, é de se estranhar que os Magistrados ainda consigam fundamentar suas decisões no sentido de negar reconhecimento a um direito que é tão gritante e evidente. Ao negá-la, por obediência restrita à letra da lei, estão eles a afrontar um Princípio Maior, que é a dignidade da pessoa humana.
Se a dignidade humana, para ser aplicada, se funda no mínimo no respeito e na aplicação dos direitos fundamentais do homem, que são a igualdade, o respeito, a não discriminação, a promoção do bem de todos; então, com quais fundamentos ainda se denega o reconhecimento à união homossexual como entidade familiar?
Atualmente, depois das muitas lutas e batalhas judiciais, as decisões dos Tribunais têm sido no sentido de se reconhecer ao menos os efeitos patrimoniais decorrentes da união estável, aplicável por analogia à união homoafetiva. E várias são as decisões nesse sentido:
“APELAÇÃO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. COMPETÊNCIA. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. A competência para processar e julgar as ações relativas aos relacionamentos afetivos homossexuais. A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres humanos com o intuito relacional. Uma vez presentes os pressupostos constitutivos, é de rigor o reconhecimento da união estável homossexual, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Via de conseqüência, as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. NEGARAM PROVIMENTO.” (Apelação Cível Nº 70023812423, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 02/10/2008).
“APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. SEPARAÇÃO DE FATO DO CONVIVENTE CASADO. PARTILHA DE BENS. ALIMENTOS. União homossexual: lacuna do Direito. O ordenamento jurídico brasileiro não disciplina expressamente a respeito da relação afetiva estável entre pessoas do mesmo sexo. Da mesma forma, a lei brasileira não proíbe a relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Logo, está-se diante de lacuna do direito. Na colmatação da lacuna , cumpre recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, em cumprimento ao art. 126 do CPC e art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Na busca da melhor analogia, o instituto jurídico, não é a sociedade de fato. A melhor analogia, no caso, é a com a união estável. O par homossexual não se une por razões econômicas. Tanto nos companheiros heterossexuais como no par homossexual se encontra, como dado fundamental da união, uma relação que se funda no amor, sendo ambas relações de índole emotiva, sentimental e afetiva. Na aplicação dos princípios gerais do direito a uniões homossexuais se vê protegida, pelo primado da dignidade da pessoa humana e do direito de cada um exercer com plenitude aquilo que é próprio de sua condição. Somente dessa forma se cumprirá à risca, o comando constitucional da não discriminação por sexo. A análise dos costumes não pode discrepar do projeto de uma sociedade que se pretende democrática, pluralista e que repudia a intolerância e o preconceito. Pouco importa se a relação é hétero ou homossexual. Importa que a troca ou o compartilhamento de afeto, de sentimento, de carinho e de ternura entre duas pessoas humanas são valores sociais positivos e merecem proteção jurídica. Reconhecimento de que a união de pessoas do mesmo sexo, geram as mesmas conseqüências previstas na união estável. Negar esse direito às pessoas por causa da condição e orientação homossexual é limitar em dignidade a pessoa que são. A união homossexual no caso concreto. Uma vez presentes os pressupostos constitutivos da união estável (art. 1.723 do CC) e demonstrada a separação de fato do convivente casado, de rigor o reconhecimento da união estável homossexual, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Via de conseqüência, as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, tal como a partilha dos bens, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO. (SEGREDO DE JUSTIÇA)” (Apelação Cível Nº 70021637145, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 13/12/2007).
“APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seuscuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (SEGREDO DE JUSTIÇA)” (Apelação Cível Nº 70013801592, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 05/04/2006)
Desta última decisão, além do reconhecimento da união homossexual como entidade familiar, essa deve ser entendida duplamente como uma família, posto que se caracteriza, ainda, como família substituta. Como bem ressaltou o Relator da decisão, às crianças e aos adolescentes é destinada uma proteção especial pela Carta Maior, garantindo que elas sejam colocadas em lares substitutos quando suas famílias consanguíneas não desempenham sua primordial função, que é dar uma vida digna ao menor.
Uma vida digna não se resume ao provimento das necessidades materiais, o que, aliás, não é nem requisito essencial, mas a preocupação maior é quanto ao seu desenvolvimento psicológico, pois o dinheiro não pode comprar carinho, amor, atenção, enfim, uma família de verdade, que dê a estrutura necessária para, futuramente, tornar-se um ser humano íntegro e feliz.
4.1.5. Família Pluriparental
Termo utilizado por Dias (2009, p. 49), a família pluriparental ou mosaico “[…] resulta de uma da pluralidade das relações parentais, especialmente provocadas pelo divórcio, pela separação, pelo recasamento, seguidos das famílias não-matrimoniais e das desuniões”, ou seja, essa se constitui pela reconstituição de outras famílias desfeitas.
Rörhmann (2008, p. 5) a caracteriza em “[…] uma multiplicidade de vínculos, pois a especificidade deste modelo familiar decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamento ou união anterior”. E explica que, fala-se em núcleo para se referir à família primeira.
Dias (op.cit.) aduz que a tendência dessas uniões é de serem consideradas monoparentais – quando um ou ambos trazem consigo filhos do relacionamento anterior -, uma vez que a dissolução do vínculo anterior e a contração de novas núpcias em nada altera os direitos e deveres com relação aos filhos.
Porém, há um detalhe a mais nesta família, pois, enquanto as demais decorrem da consangüinidade ou do afeto, nesta, mais do que em nenhuma outra, é indispensável o afeto para que subsista, pois, de seus membros, e em especial dos filhos que também se unem, é exigida uma enorme capacidade de adaptação e paciência, pois se já é difícil se conjugar uma família à dois ou que já convive desde sempre, complicação maior deve ser consolidar duas famílias monoparentais em uma só (RÖRHMANN, 2008).
Assim, dificuldade maior se apresenta em relação exatamente aos filhos que já vêm com os novos conviventes. Como exemplo, ocorrendo a separação de um casal, o padrasto – na falta do genitor do menor – pode vir a ser chamado a prestar alimentos ao menor? Haverá a divisão do poder familiar e guarda dos menores entre o cônjuge, genitor e o ex-companheiro?
Hoje, o que vem se admitindo é apenas o direito de visitas (RORHMANN, 2008; DIAS, 2009).
Assim, essas famílias, assim como as demais, merecem o amparo legal do Estado, pois, diante das dificuldades que já enfrenta, sua regulamentação se mostra imprescindível, principalmente em relação aos direitos e deveres decorrentes da união entre o companheiro e o cônjuge genitor, do que, conseqüentemente, decorre o reconhecimento dessa espécie de união como uma entidade familiar.
4.1.6. Família Paralela
Também denominada de concubinato impuro ou adulterino, a família paralela é aquela decorrente de uma relação extraconjugal, ou seja, quando um dos concubinos ou ambos já são casados, o que caracteriza o impedimento da sua conversão em casamento (art. 1.727, CC), diferenciando-se da união estável, visto que esta não possui tal impedimento (MONTEIRO, 2007).
É uma relação de caráter não eventual, ou seja, contínua e constante, assim, é possível que durante a relação os concubinos venham a adquirir bens comuns. O único direito que tem sido garantido à concubina, pelos Tribunais, é a restituição do valor empregado com juros e correções, quando ela comprovadamente demonstrar que houve esforço mútuo para a aquisição dos bens comuns (DIAS, 2009).
Mas, a dúvida que surge: é possível tal união constituir uma entidade familiar e ser merecedora de amparo legal por estarem presentes os requisitos da convivência contínua, duradoura e do elemento afetividade? Esta é a discussão que ultimamente tem trazido calorosos debates no mundo jurídico.
Um exemplo é o recente julgamento do Recurso Especial n. 590779, o qual tinha por relator o Ministro Marco Aurélio, em que se discutia a possibilidade do rateio da pensão por morte entre a esposa e a concubina. Em decisão, o Ministro entendeu que, não há a possibilidade de uma união se configurar como estável quando há o impedimento legal por um dos dois já ser casado. Tal entendimento consta do Informativo n. 535 do STF de fevereiro de 2009:
“A Turma, por maioria, deu provimento a recurso extraordinário no qual esposa questionava decisão de Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Vitória-ES, que determinara o rateio, com concubina, da pensão por morte do cônjuge, tendo em conta a estabilidade, publicidade e continuidade da união entre a recorrida e o falecido. Reiterou-se o entendimento firmado no RE 397762/BA (DJE de 12.9.2008) no sentido da impossibilidade de configuração de união estável quando um dos seus componentes é casado e vive matrimonialmente com o cônjuge, como na espécie. Ressaltou-se que, apesar de o Código Civil versar a união estável como núcleo familiar, excepciona a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento relativamente aos integrantes da união, sendo que, se um deles é casado, esse estado civil apenas deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato. Concluiu-se, dessa forma, estar-se diante de concubinato (CC, art. 1.727) e não de união estável. Vencido o Min. Carlos Britto que, conferindo trato conceitual mais dilatado para a figura jurídica da família, desprovia o recurso ao fundamento de que, para a Constituição, não existe concubinato, mas companheirismo.” (grifo nosso).
Convém dizer que o entendimento acima exposto é majoritário na doutrina e jurisprudência. Em sentido contrário, o ministro Carlos Ayres Britto, em seu voto, argumentou que, no caso em tela, existente era o companheirismo, não o concubinato, e, que face à duração do vínculo, era dever do Estado dar amparo legal àquela união, como se entidade familiar fosse.
Dias (op. cit., p. 50), na mesma linha, alega que, presentes os requisitos legais, o vínculo merece sim reconhecimento jurídico, uma vez que essas uniões configuram a união estável, […] sob pena de dar uma resposta que afronta a ética, chancelando o enriquecimento injustificado”, e complementa que, “[…] é descabido que, depois de anos de convívio, o varão deixe a relação sem qualquer responsabilidade pelo fato de ele – e não ela – ter sido infiel, enquanto o responsável é absolvido”.
Pereira (apud JALES, 2008) explica que a expressa diferenciação feita pelo legislador acerca da união estável e do concubinato impuro existe em decorrência do preceito da monogamia adotado pelo Estado Brasileiro, e ademais, dar guarida jurídica a essa união em detrimento do casamento ou união estável é “[…] instalar verdadeira insegurança jurídica no meio social, que deve ser a todo custo evitada”, e complementa dizendo que:
“seria um paradoxo para o Direito proteger as duas situações concomitantemente. Isto poderia destruir toda a lógica do nosso ordenamento jurídico, o qual gira em torno da monogamia, mas, ao mesmo tempo, não significa uma defesa moralista da fidelidade conjugal. Trata-se de invocar um princípio jurídico ordenador, sob pena de se desinstalar a monogamia. Em síntese, a proteção jurídica às relações concubinárias como entidades familiares seria somente aplicável àquelas não adulterinas.”
Ademais, pode-se dizer que, o concubinato adulterino em muito se assemelha à união estável, mas não só estes requisitos devem ser observados. Dias (op. cit.) ainda alega que, não outorgar reconhecimento ao concubinato se configura em afronta ao Princípio da dignidade da pessoa humana em relação à convivente e aos filhos.
Primeiramente, importante lembrar que, em relação aos filhos, a Constituição e o Código Civil garante amplo amparo à eles. O não reconhecimento da relação adulterina em nada prejudica os filhos decorrentes desta, pois à eles é conferido o direito ao reconhecimento paterno, aos alimentos, à sucessão do genitor, enfim, tem todos seus direitos resguardados, e inclusive, a Carta Maior proíbe qualquer tratamento desigual ou discriminatório entre os filhos.
No que se refere à dignidade humana da concubina, ela, assim como qualquer um tem esta garantia que lhe é intrínseca, nasce com ela, bem como é pela sociedade adquirida, por meio da proteção estatal que garante sua aplicabilidade. E como já anteriormente explicado, nem um comportamento índigo é motivo para privar quem quer seja de ter sua dignidade protegida.
Porém, conforme explica Nunes (2009), tendo em vista que o homem é, por excelência, um ser social, a dignidade humana é dita ilimitada até o momento em que não violar a dignidade de outrem, e, assim, é necessário que haja o respeito mútuo entre as pessoas. Vale dizer, certamente que, convalidando-se uma união paralela em detrimento do cônjuge que não tinha conhecimento de tal fato, é violar sua dignidade, afinal, utilizando do mesmo brocardo “o direito de um termina onde começa o do outro”.
Assim, por mais que o rol do artigo 226 da Constituição Federal não seja taxativo, e, levando em consideração que a afetividade, a ostentabilidade e a estabilidade são elementos que caracterizam a constituição de uma família, o que, somado ao fato de que a dignidade da pessoa humana deve ser preservada – mas sempre respeitando a dignidade de outrem – conclui-se que, esses são os requisitos formadores de família.
Ponzoni (2008) explica a existência de três posicionamentos doutrinários acerca do tema, sendo que a primeira entende que a relação concubinária não constitui união estável, uma vez que há o impedimento legal e moral da monogamia; a segunda é a defendida por Maria Berenice Dias, que despreza a fidelidade como fator imprescindível à união estável.
Já a terceira corrente, segundo Ponzoni (op. cit.), sustenta que, preenchidos os requisitos de ostentabilidade, publicidade e se presente o animus de constituir família, neste caso, e se um dos parceiros estiver de boa-fé, e provar que não tinha conhecimento do fato de o outro cônjuge já ser casado, são aplicadas por analogia as regras do casamento putativo, sendo essa a corrente adotada pela maioria da doutrina. Defendem o posicionamento em tela: Álvaro Villaça Azevedo, Rodrigo da Cunha Pereira, Francisco José Cahali, Zeno Veloso, Euclides de Oliveira, Flávio Tartuce e José Fernando Simão.
4.1.7. Da Família Eudonista
Dias (2009, p. 54) define a família eudonista como sendo aquela em que “[…] se enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade”, ou seja, é a busca individual da realização pessoal. Pois, com o deslocamento da proteção estatal do instituto família para a família enquanto instrumento, a proteção é agora em razão dos entes que a compõem, ou seja, do ser humano.
4.2. DA FAMÍLIA ANAPARENTAL E A POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO COMO ENTIDADE FAMILIAR
Termo criado por Barros (2003), a família anaparental decorre do prefixo “ana”, de origem grega, indicativo de “falta”, “privação”, ou seja, se caracteriza pela família sem a presença dos pais. Ela se constitui basicamente pela convivência entre parentes ou pessoas, em um mesmo lar, “[…] dentro de uma estruturação com identidade de propósito” (DIAS, 2009).
A família não mais se restringe àquele modelo tradicional, ela ganhou as mais variadas estruturas, nas quais cada ente desempenha um papel não pré-estabelecido, onde um tio para o sobrinho é tio e pai, um irmão mais velho é também o pai dos demais irmãos, ou seja, cada um desempenha um papel psicologicamente definido. E como bem ressalta Dias (op. cit. p. 48), “Não é a verticalidade dos vínculos parentais em dois planos que autoriza reconhecer a presença de uma família merecedora da proteção jurídica”.
A verticalidade dos vínculos, ou seja, os parentes em linha reta resultam na família monoparental; já a família anaparental consiste em uma modalidade da família pluriparental, ou seja, resulta da colateralidade de vínculos, então ela pode ser composta por vários irmãos, ou dos tios e sobrinhos, ou então duas primas, dentre tantas outras possibilidades.
Assim, a estrutura formada por vários irmãos que foram abandonados pelos pais, que continuaram por muitos anos a viverem juntos, e tendo o primogênito assumido as responsabilidades da figura paterna para com os demais irmãos, dando amparo não só material, mas também emocional, de carinho, afeto, amor e cuidados, constitui um dos possíveis modelos de família anaparental.
Gama (2008, p. 143) posiciona-se contrariamente. Segundo ele a afetividade, isoladamente, não é elemento que possa dar respaldo jurídico para constituir vínculos familiares, “[…] porque aí teria que se reconhecer a união (sexual) entre parentes em linha reta, cuja proibição de casamento e de união estável fundada no companheirismo é patente no ordenamento jurídico brasileiro”. E ainda complementa:
“No que tange às denominadas famílias anaparentais, frise-se que, existe vínculo de parentesco entre irmãos, por exemplo, sendo que a questão propriamente não é a identificação se existe ou não uma família (já que os parentes são familiares), e sim qual deve ser o regime a ser observado no campo dos direitos pessoais e direitos patrimoniais familiares, ou seja, o conteúdo da relação jurídicofamiliar.”
Primeiramente, sabe-se que, para efeitos jurídicos, os parentes colaterais englobam sim o conceito de família, dependendo da extensão da norma a que ela se refere, como exemplo, o conceito de família é extensivo quando se trata dos direitos sucessórios.
Ademais, se a colateralidade de vínculos não precisa de uma norma que a reconheça como uma entidade familiar, então Gama deve entender que inútil se mostra o rol do art. 226 e parágrafos da Constituição Federal em que se elenca, como uma das entidades reconhecidas como familiar, a composta por somente um dos genitores e seus descendentes, já que essa decorre de vínculos da verticalidade, ou seja, em linha reta.
Santos (2009, p. 21-23) em seu artigo acerca da monoparentalidade defende que a “[…] positivação constitucional da família monoparental garantiu a tais famílias o direito à ampla tutela estatal”, e complementa:
“seu reconhecimento na Carta Magna foi uma evolução legislativa, com o fim de adequar a realidade a este fenômeno tão significativo. Embora a legislação ordinária não tenha acompanhado tal iniciativa, a proteção decorrente do texto constitucional prova o interesse em combater a discriminação e o preconceito e auxiliar a integração dos membros destas famílias à sociedade. (…) A monoparentalidade, independente do lugar de sua manifestação, vem, em geral, atrelada a uma queda do poder aquisitivo dessas famílias, ou mesmo, à uma situação de pobreza. Este e outros problemas, decorrentes da monoparentalidade podem ser transitórios ou não, mas enquanto existirem, precisam de soluções. A partir do reconhecimento jurídico da família monoparental pela Constituição Federal, o Estado se tornou responsável pela proteção destas famílias, e conseqüentemente, pela busca de repostas para tais problemas.”
E pelos mesmos motivos é necessário reconhecer as entidades familiares formadas por aqueles que já são parentes. Gama (2008) ainda lembra que a monoparentalidade ocorre em todas as classes sociais, ricos ou pobres, e igualmente se aplica às famílias anaparentais, fenômeno mais facilmente constatado nas classes de baixa renda, necessitando ainda mais da proteção Estatal.
Ademais, a parentalidade não possui as mesmas proteções jurídicas que são garantidas às entidades familiares propriamente ditas, como o direito aos alimentos e a impenhorabilidade do bem de família. E, se entidade familiar fosse, certamente não precisaria de decisões dos Tribunais, interpretando que, um caso de irmãos que vivem juntos, configura sim uma entidade familiar:
“EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. LEI 8009/90.IMPENHORABILIDADE. MORADIA DA FAMILIA. IRMÃOS SOLTEIROS. OS IRMÃOS SOLTEIROS QUE RESIDEM NO IMOVEL COMUM CONSTITUEM UMA ENTIDADE FAMILIAR E POR ISSO O APARTAMENTO ONDE MORAM GOZA DA PROTEÇÃO DE IMPENHORABILIDADE, PREVISTA NA LEI8009/90, NÃO PODENDO SER PENHORADO NA EXECUÇÃO DE DIVIDA ASSUMIDA POR UM DELES. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.” (STJ. REsp 159851/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 19/03/1998, DJ 22/06/1998 p. 100).
Outrossim, para Dias (2009), a família anaparental é, como já anteriormente conceituada, “[…] a convivência entre parentes, ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito”, ou seja, ela não atribui o conceito de família anaparental a qualquer convivência, pois um dos requisitos é que haja uma identidade de propósito, vale dizer, que seja efetivamente a de constituir uma família, que possua assistência mútua material e emocional.
E não só da parentalidade decorre a família anaparental, mas também da convivência de pessoas, do mesmo sexo ou não, que, sem conotação sexual, vivem como se família fossem. A exemplo de duas amigas aposentadas que resolveram compartilhar um mesmo lar, e que, vivendo juntas por muitos anos, dividem alegrias e tristezas, e pelo esforço mútuo acabam por adquirir bens na constância da convivência.
O Estado, similarmente ao que ocorre com a família composta pelos irmãos, não a vê como uma entidade familiar. Mas não há como negar que essa união, bem como a existente na família formada pelos irmãos, são sim, entidades familiares, afinal, todos os pressupostos para se configurar uma família em ambas se fazem presentes.
Ademais, verifica-se nessa o elemento principal, que é o afeto e o carinho como bases de sua constituição. E a família, para assim ser entendida, não precisa possuir aquela estrutura clássica formada biologicamente por pai, mãe e filhos, hoje, as famílias não possuem mais um molde pré-definido; eles vivem com amigos, primos, tios, enfim, vivem com aqueles que melhor lhe proporcionem os meios para alcançar a realização pessoal, vivendo uma vida digna, plena e feliz, o que, afinal, é o fim precípuo da família, e, alcançado este, é ela também uma entidade familiar, merecedora da proteção especial do Estado.
5. POSSÍVEIS EFEITOS CIVIS DECORRENTES DO RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA ANAPARENTAL COMO ENTIDADE FAMILIAR
Reconhecida a família anaparental como entidade familiar, outros fatores vem a decorrer deste, como seus efeitos civis. Dias (2009) defende que a convivência, por se caracterizar uma comunhão de esforços, nos casos em que se adquire patrimônio, por exemplo, quando da sua dissolução, é por mais que justo partilhar os bens, cabendo então, por analogia, a aplicação das disposições compatíveis que tratam da união estável, ou até do casamento, pois essas em nada diferem de uma entidade familiar como qualquer outra.
Mas a aplicação de todos os efeitos decorrentes de um casamento seria por demais incompatível com a família anaparental, posto que, apesar de os dois institutos se igualarem em sua finalidade, que é a de constituir família, o casamento possui muitas peculiaridades, como por exemplo, a conotação sexual e a finalidade natural – não obrigatória – à procriação (PEREIRA, 2007).
Assim, melhor seria a aplicação das disposições concernentes à união estável que forem compatíveis, pois, a convivência em comento não possui outra finalidade a não ser a de conferir aos seus integrantes a busca pela realização pessoal, que muitas das vezes resulta de uma necessidade financeira, ou então para apenas ter uma companhia amiga que lhe dê apoio, compreensão.
Como bem ressalta Farias (2007, p. 132), “[…] é a família servindo de instrumento para o desenvolvimento da personalidade humana e para a realização plena de seus membros”. O afeto pode ter vários significados, dependendo do contexto sob o qual é visto e, neste, há o de verdadeira amizade e companheirismo.
E em casos que não há previsão legal expressa, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que é vedado ao Juiz se eximir de dar uma solução à lide, alegando falta de norma expressa que regule uma situação concreta:
“PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. 1. Não há ofensa ao princípio da identidade física do juiz, se a magistrada que presidiu a colheita antecipada das provas estava em gozo de férias, quando da prolação da sentença, máxime porque diferentes os pedidos contidos nas ações principal e cautelar. 2. O entendimento assente nesta Corte, quanto a possibilidade jurídica do pedido, corresponde a inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. 3. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. 4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. 5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. 6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. 7. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ. REsp 820.475/RJ, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/09/2008, DJe 06/10/2008).
Portanto, aplicando os efeitos civis da união estável, previstos no Código Civil à família anaparental ter-se-á o direito aos alimentos, à sucessão hereditária e ao direito real de habitação.
5.1. DOS ALIMENTOS
Para os que não podem prover sua própria subsistência, aos parentes, cônjuges e companheiros cabe a obrigação de promover o sustento do que se encontra necessitado. Justifica-se tal procedimento, como ressalta Dias (2009), no primeiro direito fundamental que é o de ter uma vida digna, ou seja, ter meios de sobreviver.
O fundamento da obrigação é, conforme preceitua Pereira (2007), a solidariedade familiar e de sangue, e que, segundo Farias (2007, p. 142) se estende também aos vínculos formados pela afetividade:
“Os alimentos devem obediência a uma perspectiva solidária (CF, art. 3°), norteada pela cooperação, pela isonomia e pela justiça social – como modo de consubstanciar a imprescindível dignidade humana (CF, art. 1°, inc. III). Nesta linha de idéias, é fácil compreender que, comprometida em larga medida à concretização dos direitos afirmados pelo Pacto Social de 1988, a obrigação alimentar cumpre a relevante função de garantir a própria manutenção de pessoas ligadas por vínculos de afeto que, eventualmente, não podem prover a sua própria subsistência.”
Os alimentos são classificados em naturais, que compreendem a alimentação, vestuário e habitação, e os alimentos civis, também denominados de côngruos, consistem na assistência, instrução e educação. Os alimentos do artigo 1.694 do Código Civil fazem alusão aos alimentos naturais ou necessários, pois são os indispensáveis à subsistência (PEREIRA, 2007).
Aduz o artigo 1.694 e parágrafos do Código Civil que, “[…] podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”, devendo este ser fixado na “[…] proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada”. Inicialmente, os legitimados a prover os alimentos são os parentes em linha reta, que são os ascendentes e descendentes, os cônjuges ou companheiros, pois a obrigação de alimentar se estende à união estável.
O artigo 1.696 do Código Civil determina, ainda, a reciprocidade alimentar, ou seja, quando os primeiros legitimados a prestar alimentos não têm condições de cumprir com tal obrigação, esta recai sobre os parentes nos graus mais próximos, ou seja, aos colaterais, vindo tal obrigação a se estender aos irmãos, tanto germanos como unilaterais Pereira (2007), que, segundo Venosa (2008), se estende até os colaterais de segundo grau, estando excluídos os demais parentes e afins.
Assim, os irmãos já estão obrigados a prestar alimentos entre si, mas, com o reconhecimento da família anaparental, eles passariam a integrar o rol dos primeiros legitimados nessa obrigação. Já no que tange às amigas aposentadas, quando da dissolução da convivência, são cabíveis por analogia as disposições da união estável, isto é, o pedido de alimentos entre elas.
Pois, se demonstrado que a reclamante aos alimentos, não possui meios de se manter, o Magistrado terá que se valer da analogia, para a aplicação do direito em comento, pois, conforme preceitua o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, “[…] quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, passando essas, pelo vínculo da afetividade, a integrar o rol do artigo 1.694 do Código Civil.
Nesses termos se faz a redação do artigo 115 do Projeto de Lei n. 2.285/07, o Estatuto das Famílias que “Podem os parentes, cônjuges, conviventes ou parceiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver com dignidade e de modo compatível com a sua condição social”.
Ademais, como a obrigação de alimentar entre os companheiros da união estável se finda pela constituição de uma nova união estável ou quando se contrai matrimônio, a melhor solução aplicável à família anaparental seria que esta se findasse quando sobreviesse uma melhora nas condições financeiras da alimentanda, podendo, assim, ser a alimentante até exonerada de tal obrigação, conforme redação do artigo 1.699 do Código Civil.
Preceitua o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil que o Juiz, ao aplicar a lei, “[…] atenderá os fins sociais a que ela se dirige, e às exigências do bem comum”. Ou seja, o Juiz, ao aplicar a uma lei abstrata ao caso concreto, ainda mais quando se trata de família deve ele sempre procurar agir com bom senso e, principalmente, primar pela efetiva aplicação da dignidade humana.
5.2. DA SUCESSÃO
No que tange aos bens adquiridos durante a convivência comum, e advinda a morte de um dos conviventes, nada mais sensato do que, aquele que onerosamente ajudou a construir o patrimônio seja também beneficiário na sucessão.
Assim, no que tange aos direitos sucessórios, aplicando analogicamente o disposto do artigo 1.790 do Código Civil, destinado a regular a sucessão na união estável, a amiga convivente participará da sucessão, quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência. O artigo 1.790 do Código Civil preceitua que:
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”
De primeira leitura, nota-se que a participação do convivente será apenas limitada à parte a qual onerosamente ajudou a adquirir durante a convivência, ou seja, não é herdeiro necessário (CAHALI, 2008; DINIZ, 2005). Cahali (2008) faz ainda uma ressalva, pois o convivente só terá direito à sucessão, se o óbito do outro sobrevier ainda durante a convivência.
Pela redação do inciso I do precitado artigo, já se descarta sua aplicação, uma vez que, por se tratar de uma convivência sem conotação sexual, não haverá de se falar em filhos comuns. Já quanto ao inc. II, chamada a convivente a suceder, quando o de cujus virago possuir descendentes, caberá à convivente, a metade do que couber a cada um dos filhos.
Cahali (2008) exemplifica que, sendo três o número de filhos, multiplica-se este número por dois e soma-se mais um pela sobrevivente, o que resulta no número sete. Deste, dois sétimos vão para cada filho e um sétimo é a parte que cabe à convivente. E igualmente se aplica a convivência entre os irmãos, em caso do de cujus possuir filhos.
Na falta de descendentes do de cujus, mas havendo ainda ascendentes ou colaterais até o quarto grau, aplica-se o inc. III do precitado artigo, passando assim a convivente a ter o direito a um terço da herança, o que já seria aplicado ao irmão convivente, por ser ele parente colateral do de cujus.
E na hipótese de o de cujus virago não possuir ascendentes, descendentes ou colaterais, prevê o inc. IV que terá a convivente o direito à totalidade da herança, porém, como bem ressalva Cahali (op. cit.), se observado o disposto no caput do art. 1.790 do Código Civil, ao convivente cabe a metade daquilo que onerosamente foi adquirido durante a convivência.
Em suma, caso não existam bens adquiridos onerosamente durante a convivência, a sobrevivente nada receberá, e os bens vacantes serão declarados jacentes e serão, em sua integralidade, destinados ao Poder Público (CAHALI, op. cit.).
Diniz (2005) tem uma posição contrária. Entende ela que o Poder Público, representado pela União, Estados e Municípios, por ser um sucessor irregular, não é admissível que receba toda a herança, pois, se existente um herdeiro sui generis, que é um sucessor regular, afasta-se assim o Poder Público da condição de beneficiário.
Assim, só no caso da inexistência de qualquer sucessor regular é que o Poder Público entraria na condição de sucessor regular, recebendo a totalidade da herança jacente. Fato que não ocorreria com o irmão sobrevivente, pois na qualidade de irmão, ou seja, parente, receberia a integralidade da herança do de cujus.
5.3. DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO
À união estável é garantido o direito real de habitação, ou seja, “[…] dissolvida a união por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá o direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”. Esta é a redação do parágrafo único do artigo 7° da Lei n. 9.278/96. Primeiramente, a discussão doutrinária é: esse dispositivo ainda vigora ou foi revogado pelo Código Civil de 2002?
Segundo Cahali (2008) a supracitada lei foi revogada, pois com a redação do artigo 1.790 do Código Civil de 2002, que expressamente estabeleceu as condições da sucessão do convivente, a elas se restringe, não participando de nenhuma outra forma à sucessão do de cujus. E tendo o Código Civil disciplinado toda a matéria sucessória, sem fazer menção alguma a este, entende que o legislador o revogou.
Para Diniz (2005), diante da omissão do Código Civil, o direito real de habitação, por ser direito garantido por lei especial, ainda está vigente, assim explicando:
“Por força da Lei n. 9.278/96, art. 7°, parágrafo único, e, analogicamente, pelo disposto nos arts. 1.831 do Código Civil e 6° da CF (Enunciado n. 117 do STJ, aprovado nas jornadas de Direito Civil de 2002), também terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família; mas pelo Código Civil, tal direito só é deferido ao cônjuge sobrevivente”.
A questão que Diniz (op. cit.) coloca é o fato de o referido direito ser aplicável apenas ao cônjuge – conforme expressamente prevê o artigo 1.831 do Código Civil – porém, para ela, resolve-se esse aparente problema com a aplicação da analogia (LICC, art. 4°), que, em busca do justo (LICC, art. 5°; CF, art. 6° e 226, §3°), também se aplica à união estável.
Dias (2009) entende que, tendo o Código Civil se omitido sobre o direito real de habitação, este não foi revogado e, tendo sido ele expressamente previsto no artigo 1.831 do Código Civil como direito do cônjuge sobrevivente, nada justifica sua não aplicação também à união estável.
Assim, seguindo a linha de raciocínio das autoras, sendo cabível a aplicabilidade do direito real de habitação à união estável, é possível que ele seja também aplicado à família anaparental por analogia, pois, se comprovadamente o irmão ou o convivente demonstrar não ter condições de suprir suas necessidades básicas e menos ainda de moradia, nada impede que o referido direito seja a eles estendido. Como bem ressalta Diniz (2005), a aplicabilidade da lei deve sempre buscar o fim social a que ela se dirige e ao bem comum.
Este se constitui em um dos direitos fundamentais básicos do ser humano, não podendo ser ele suprimido por mera lacuna na lei, devendo sempre o legislador humanizar a lei ao aplicá-la ao caso concreto, tendo sempre em vista o preceito fundamental maior da República Federativa do Brasil, a dignidade humana e a busca do bem comum.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fruto do Direito Romano, o Ordenamento Jurídico Brasileiro por muitos anos teve sua estrutura fundada em valores moralmente conservadores e exclusivamente patrimoniais. E no Direito de Família não foi diferente.
A família brasileira era simplesmente a cópia da família patriarcal romana, que era uma família nuclear, hierarquizada, matrimonizada e patrimonialista, ou seja, toda a autoridade se concentrava nas mãos de pater familia, sendo a mulher e os filhos meros coadjuvantes, sem direito a escolha e decisão, até mesmo sobre suas próprias vidas.
Porém, a sociedade foi aos poucos evoluindo, mudando conceitos e adquirindo novos valores, e a família como fruto da sociedade que é, a cada mudança social, seja econômica ou cultural, a família a ela se adequou, ganhando novos contornos em sua estrutura.
E o fenômeno que perfeitamente se fez evidenciar estas mudanças foi a inserção da mulher no trabalho, ganhando ela seu espaço na sociedade e na família. Que do papel de mera dona de casa e mãe de família passou a ser também a provedora do lar. Pode-se dizer que, este fora o fator primordial na reestruturação da família brasileira.
Com as constantes alterações nas estruturas familiares, a família patriarcal foi aos poucos perdendo forças e novos modelos de famílias começaram a se formar, buscando agora um novo objetivo: a felicidade.
E assim a Constituição Federal de 1988 foi editada, resguardando valores completamente estranhos à ela até então. O ser humano foi colocado no ápice de todo o Ordenamento Jurídico Brasileiro, com a consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, resultando no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
E com o reconhecimento da importância da afetividade na formação dos vínculos familiares, que se sobrepõe até mesmo aos sangüíneos, não há como negar a relevância deste elemento para a constituição de uma família. Que independentemente de sua estruturação, se clássica do modelo patriarcal, ou se ela se compõe de apenas um dos genitores e seus descendentes, ou se ela se constitui por tios e sobrinhos, por amigos, todas estas são famílias, porque possui o elemento primordial em comum, o afeto.
A partir de então, as normas de direito de família passaram a ser nelas pautadas tanto para sua edição e mais ainda quando da sua aplicabilidade, sob pena de nulidade por afronta aos Princípios Constitucionais que agora são a basilar do direito de família.
Ademais, preceitua o caput do artigo 226 da Constituição Federal que, a família é a base da sociedade, e sendo base, o Estado a protege quando esta consegue alcançar o seu fim ultimo que é o de ser o meio para o indivíduo alcançar seus objetivos de realização pessoal, promovendo assim, uma vida digna aos entes que a compõe.
Houve uma democratização da família, que de instituto passou a status de instrumento, funcionalizada em proporcionar aos seus componentes o lócus para a busca da realização pessoal. E esta é a família que a Carta Maior concedeu proteção especial do Estado, a que de fato desempenha sua função, que para tanto, não necessariamente precisa possuir um modelo pré-moldado, com fórmulas certas e estruturas definidas, pois, se matrimonial, monoparetal, anaparental, todas são dignas de assim ser denominadas: entidade familiar.
A família hoje é plural, onde as estruturas se compõem da melhor forma para se alcançar a felicidade, e alcançada esta, não há de se falar que o rol do artigo 226 e parágrafos da Carta Maior é taxativo, pois como já demonstrado, não só as famílias decorrentes do vinculo consangüíneo e do matrimonio atingem seu fim, portanto, trata-se o caput do artigo 226 da Constituição Federal, uma norma de inclusão para as demais espécies de famílias.
O ser humano é eudonista, busca acima de tudo sua realização pessoal, financeira e emocional, que para tanto, utiliza-se do instrumento família, onde nela encontra os meios necessários, como o apoio, compreensão, carinho, amor e o afeto. E só quando presentes estes pressupostos é que pode se dizer que ali existe uma família. Afinal, onde há o afeto, há a família.
Mas não há que se falar que se trata de elemento único para se constituir uma família. Ele é sem dúvida o elemento que faz a família se manter unida, como um verdadeiro basilar das estruturas familiares.
Porém, quanto ao seu valor jurídico na constituição das famílias, outros requisitos devem ser somados a ele, sob pena de se caracterizar em verdadeira banalização das relações familiares. Sabe-se que, o ser humano tem o direito a ter uma vida digna, sendo essencial para isso, que seja respeitado e respeite os demais, pois a dignidade humana é também um fruto da sociedade. Ela resguarda o valor do justo, onde não se protege um ser humano em detrimento do outro, como é o exemplo da família paralela.
Assim, é necessário que estejam presentes os requisitos formadores de família, em que se evidenciava o apoio mútuo, o respeito e o afeto. Havendo harmonia, onde todos os componentes da família tenham uma vida digna e feliz, o Estado certamente a estará protegendo.
A aglomeração de pessoas que possuem todos estes requisitos é uma família merecedora de proteção estatal, assim, não há como negar que a família anaparental é digna de ser elevada a posição de entidade familiar. Pois nesta há a preservação e o respeito à dignidade humana dos seus componentes em todos os aspectos, e primordialmente, o elemento afetividade, que independentemente de laços consangüíneos, estes se mantém unidos não pela obrigatoriedade, mas pelo afeto de uns para com os outros, sendo, portanto, o elemento caracterizador da família anaparental.
E do reconhecimento desta, os integrantes que a formam passariam a auferir outros direitos, tais como figurar na sucessão hereditária dos bens que onerosamente a convivente sobrevivente ajudou na aquisição, isso no caso das duas amigas; já quanto ao exemplo dos irmãos, o irmão sobrevivente seria chamado a suceder em concorrência com os ascendentes que o de cujus possa vir a ter.
E passam também a ter o direito aos alimentos, que decorre da solidariedade familiar, de sangue, bem como dos laços da afetividade, passando os ex-conviventes a figurar entre os legitimados primeiros a prestar alimentos, quando o outro comprovadamente demonstrar a necessidade pelo auxílio do outro.
A família anaparental assim como qualquer outra das alencadas no rol do artigo 226 da Constituição Federal, busca construir uma história, uma família que zela por valores maiores, como a alegria, o amor, o apoio e o afeto entre seus componentes, garantindo uma vida digna aos seus membros, o que certamente a faz merecedora de ser protegida pelo Estado e digna do título de entidade familiar.
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