Resumo: O presente artigo trata da ocupação irregular de terceiros de boa-fé em área pública e a possibilidade de haver ou não indenização pelas benfeitorias efetuadas.
Sumário: 1. Introdução – 2. Da indenização por benfeitorias em imóvel privado – 3. Da Ocupação irregular de área pública– 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo trata da ocupação irregular de terceiros de boa-fé em área pública e a possibilidade de haver ou não indenização pelas benfeitorias efetuadas.
É constitucionalmente proibido que imóvel público seja usucapido, porém, a jurisprudência se divide ao denominar o ocupante de boa-fé de imóvel público de possuidor ou mero detentor. Tal diferenciação tem como alvo a possibilidade ou não de serem aplicados os ditames do Código Civil – artigos 1219 e 1220 – a respeito de indenização por benfeitorias efetuadas por possuidor de boa-fé, que, como é de conhecimento geral, aplica-se tão-só aos imóveis privados.
2.DA INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS EM IMÓVEL PRIVADO
Quando se diz respeito à imóvel privado, restando comprovado pelo possuidor que se está diante de posse de boa-fé, ou seja, que há ignorância quanto aos vícios que impedem a aquisição legal da coisa, o Código Civil tutela o direito à indenização por benfeitorias no imóvel efetuadas. Leia-se benfeitorias como melhoramentos, obras, plantações, construções.
O possuidor de boa-fé – inquilino, comodatário, usufrutuário – terá, portanto, direito à indenização pelas benfeitorias efetuadas, porém não será por todos os tipos de benfeitorias. Será indenizado, além de poder exercer a retenção da coisa até ser ressarcido apenas quanto às necessárias e úteis, ressalvada, quanto às últimas, a necessidade de autorização expressa do proprietário, como preceitua o art. 578, do CC.
Ilustra a questão de forma bastante clara o professor Cesar Fiuza ao alegar que:
“A regra é bastante simples. O possuidor de boa-fé tem direito a ser indenizado por todas as benfeitorias necessárias e úteis. Se tomo casa emprestada, restaurando-lhe o telhado que estava a desabar, ou instalando grades nas janelas, para evitar assaltos, terei que ser indenizado pelo comodante. Ademais, poderei reter a coisa até que seja ressarcido, ou seja, poderei recusar-me a restituir a casa até ser reembolsado pelo comodante.” (FIUZA, 2008, p.875)
Quanto às benfeitorias voluptuárias, que visam tão-só mudanças estéticas, não aumentando ou facilitando o uso do imóvel, terá o possuidor apenas o direito de levantá-las, desde que tal não traga prejuízos à coisa.
É o que diz o art. 1219, do Código Civil:
“O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis” (BRASIL, 2002)
Por sua vez, o possuidor de má-fé, aquele ocupante consciente da ilegalidade que permeia o seu ato de ocupação, terá direito de ser ressarcido apenas pelas benfeitorias necessárias, ou seja, aquelas executadas com o fim de conservar e manter o bem. Não lhe assiste o direito de retenção nem o de levantar as benfeitorias voluptuárias, como expressa o art. 1220, do Código Civil:
“Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias; não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias” (BRASIL, 2003)
A respeito, acrescenta o Magistrado e Professor Rafael de Menezes ao falar a respeito dos Efeitos da Posse:
“Já ao possuidor de má-fé se aplica o 1220, ou seja, nunca cabe direito de retenção, não pode retirar as voluptuárias e só tem direito de indenização pelas benfeitorias necessárias. Não pode nem retirar as voluptuárias até para compensar o tempo em que de má-fé ocupou a coisa e impediu sua exploração econômica pelo proprietário (= melhor possuidor).” ( MENEZES, 2004, p. 01)
Cumpre-nos ressaltar que benfeitorias não se assemelham com acessões imobiliárias. Benfeitorias, na maioria das vezes indenizáveis, previstas nos artigo 96, 97 e 1219 e seguintes, ambos do Código Civil, são melhoramentos, acréscimos sobrevindos ao bem com a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor da coisa, com o propósito de conservar, melhorar ou simplesmente embelezar. Acessões imobiliárias, de quem cuidam os artigos 1253 e seguintes do CC, são, segundo Cesar Fiúza em “Direito Civil. Curso Completo”, 12 ed., Editora Del Rey,p.875, “ (…) todas as edificações e plantas que se agregarem ao solo artificialmente. Passarão a pertencer ao proprietário do terreno, que é o bem principal”.
Maria Helena Diniz, Ricardo Fiúza e outros ao tecerem comentário ao art.97 do vigente Código Civil em “Código Civil Comentado”… diferenciam da seguinte maneira:
“Benfeitoria e Acessão natural:Se benfeitorias são obras e despesas feitas pelo homem na coisa, com o intuito de conservá-la, melhorá-la ou embelezar, claro está que não abrangem os melhoramentos (acessões naturais) sobrevindos àquela coisa sem intervenção do proprietário, possuidor ou detentor por ocorrerem de um fato natural (p. ex. o aumento de urna área de terra em razão de desvio natural de um rio).
Melhoramentos que constituem acessão natural: A acessão natural é o aumento do volume ou do valor do bem devido a forças eventuais. Assim sendo, não é indenizável, pois para sua realização o possuidor ou detentor não concorreu com seu esforço, nem com seu patrimônio. (…) ”. ( DINIZ; FIUZA; FIGUEIRA JR.;MALUF;ALVES; ASSUNÇÃO; VELOSO;SILVA; REGIS, 2002, p.63)
Tratando-se de possuidor de boa-fé de imóvel privado, portanto, e, a depender da espécie de benfeitoria executada e da necessidade de autorização expressa do proprietário, o Código Civil tutela o seu direito à indenização e à retenção do bem diante um possível não ressarcimento, nos casos de benfeitorias necessárias e úteis, e, ao levantamento, tratando-se de benfeitorias voluptuárias.
3.DA OCUPAÇÃO IRREGULAR DE ÁREA PÚBLICA
Inicialmente cumpre ressaltar que, apesar de haver tímido posicionamento jurisprudencial em sentindo oposto, a nosso ver não há que se falar em posse quando se trata de bem público, o que, consequentemente demonstra a impossibilidade de o mesmo ser usucapido, como regra os artigos 102, do CC, e, art. 183 § 3º, e, 191, PÚ, ambos da CF/88.
Partindo-se da premissa, portanto, que usucapião tem como principal característica a presença da posse, e, bem público não é passível de usucapião, não restam dúvidas que quem invade/ocupa área pública não é considerado possuidor, mas sim mero detentor do bem, não havendo que se falar, diante de benfeitorias ali executadas, em aplicação do Direito Privado exposto em tópico anterior.
Esse foi o entendimento da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, nas palavras do ilustre Ministro Herman Benjamin, ao julgar recurso especial em que se discute o direito à indenização por benfeitorias realizadas em imóvel público ocupado de boa-fé por mais de 20 anos, assim se manifestou:
“Seria incoerente impor à Administração a obrigação de indenizar por imóveis irregularmente construídos que, além de não terem utilidade para o Poder Público, ensejarão dispêndio de recursos do Erário para sua demolição”
. “Entender de modo diverso é atribuir à detenção efeitos próprios da posse, o que enfraquece a dominialidade pública, destrói as premissas básicas do Princípio da Boa-Fé Objetiva, estimula invasões e construções ilegais, e legitima, com a garantia de indenização, a apropriação privada do espaço público”
Em julgado anterior, o STJ já demonstra a mesma posição:
“Ementa: PROCESSO CIVIL – ADMINISTRATIVO – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – IMÓVEL FUNCIONAL – OCUPAÇÃO IRREGULAR – INEXISTÊNCIA DE POSSE – DIREITO DE RETENÇÃO E À INDENIZAÇÃO NÃO CONFIGURADA – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – EFEITO INFRINGENTE – VEDAÇÃO. 1. Embargos de declaração com nítida pretensão infringente. Acórdão que decidiu motivadamente a decisão tomada. 2. Posse é o direito reconhecido a quem se comporta como proprietário. Posse e propriedade, portanto, são institutos que caminham juntos, não havendo de se reconhecer a posse a quem, por proibição legal, não possa ser proprietário ou não possa gozar de qualquer dos poderes inerentes à propriedade. 3. A ocupação de área pública, quando irregular, não pode ser reconhecida como posse, mas como mera detenção. 4. Se o direito de retenção ou de indenização pelas acessões realizadas depende da configuração da posse, não se pode, ante a consideração da inexistência desta, admitir o surgimento daqueles direitos, do que resulta na inexistência do dever de se indenizar as benfeitorias úteis e necessárias. 5. Recurso não provido”. (REsp 863939 / RJ – Relator(a): Ministra ELIANA CALMON – Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA – Data do Julgamento: 04/11/2008) (grifos nossos)
De acordo com o Código Civil, em seu art. 100, os imóveis públicos, bens de uso comum do povo e de uso especial, são inalienáveis, considerados bens fora do comércio, sendo insuscetíveis de posse por parte de ocupante particular, mesmo estando tal de boa-fé. Já em seu art. 101, o CC traz a possibilidade de alienação quanto aos bens dominicais, posto que estes fazem parte do comércio jurídico do direito privado.
A respeito do uso privativo dos bens de uso comum do povo e de uso especial, diz a doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“Os bens das duas primeiras modalidades estão fora do comércio jurídico de direito privado, de modo que só podem ser objeto de relações jurídicas regidas pelo direito público; assim, para fins de uso privativo, os instrumentos possíveis são apenas a autorização, a permissão e a concessão de uso”( DI PIETRO,2007,p.636)
Já quando trata a respeito da ocupação de particular em bens dominicais, observa a doutrinadora:
“Diversa é a situação dos bens dominicais, já que estes são coisas que estão no comércio jurídico de direito privado. Embora possam ser cedidos aos particulares por meio dos mesmos institutos de direito público já mencionados, também podem ser objeto de contratos regidos pelo Código Civil, como a locação, o arrendamento, o comodato, a concessão de direito real de uso, a enfiteuse.” (DI PIETRO, 2007, p.636)( grifo nosso).
Restado claro, portanto, que diante a impossibilidade de classificar o ocupante privado que não se utilizou de algum dos instrumentos autorizadores para ocupação de área pública – a autorização, a permissão e a concessão de uso – como possuidor, mas sim como mero detentor, é errôneo alegar que este teria direito à indenização por benfeitorias feitas por possuidor de boa-fé.
Por lado outro, como dito no início da nossa explanação, há posicionamento jurisprudencial no sentido oposto apresentado até o presente momento. Tribunais como o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro defendem o direito de o ocupante de boa-fé de área pública ser indenizado por benfeitorias feitas, sob o substrato de que o poder público foi omisso durante todo o tempo de ocupação, o que gerou uma convicção ao ocupante de que estava agindo de boa-fé.
Assim se manifestou o TJMG no julgamento da seguinte apelação cível:
“DIREITO CIVIL – AÇÃO REIVINDICATÓRIA – BEM PÚBLICO – ALEGAÇÃO DE QUE O IMÓVEL FOI CEDIDO À EMPRESA APELANTE PELO ENTÃO PREFEITO COMO IMÓVEL PERTENCENTE À MUNICIPALIDADE – MÁ-FÉ – POSSE EXERCIDA HÁ LONGOS ANOS, SEM OPOSIÇÃO – AFASTAMENTO – DIREITO À INDENIZAÇÃO E RETENÇÃO PELAS CONTRUÇÕES REALIZADAS NO ALUDIDO TERRENO – PROVIMENTO DO RECURSO. ( TJMG. Proc. n. 1.0592.05.930468-9/001(1) Relator: JOSÉ DOMINGUES FERREIRA ESTEVES. Data da Publicação: 03/02/2006) ( grifos nossos).
No mesmo sentido se pronuncia o TJDFT:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – BEM PÚBLICO – MANDADO DE IMISSÃO – SUSPENÇÃO – POSSIBILIDADE – BENFEITORIAS – EXISTÊNCIA RECURSO – APELAÇÃO .
Havendo tolerância por parte da administração pública, durante vários anos no que tange a ocupação de terra pública, enseja a obrigação de indenização pelas benfeitorias realizada. Neste caso, deve o mandado de imissão de posse ser sobrestado até julgamento do recurso de Apelação.” ( TJDFT. Proc. n. 2004 00 2 006870-8 Relator: ASDRUBAL NASCIMENTO LIMA. 5a turma cível. Data da Publicação: 18/10/2006) ( grifos nossos).
Somos impelidos a discordar em parte da manifestação dos tribunais ora citados, pois restou claramente demonstrado que se tratando de imóvel público, não há que se falar em possuidor, em posse. Porém, por sua vez, entendemos ser legítimo o direito de o ocupante irregular de boa-fé, do cidadão de boa-fé que investiu todas as suas economias na construção da sua moradia, da plantação, por ex., sem imaginar que aquele terreno se tratava de área pública, em receber indenização por tal valor despendido.
Grifa-se que entender como legítimo o direito de o cidadão, ocupante de boa-fé de imóvel púbico por longos anos sem qualquer interrupção estatal, em receber indenização pelo valor despendido, investido no imóvel, em nada se assemelha na defesa de aplicação do artigo 1219, do CC, que diz respeito à posse.
O desconhecimento do cidadão de boa-fé, ocupante de imóvel público, citado supra deve-se à atuação omissa do poder público que, na maioria dos casos, se queda inerte por décadas e mais décadas. A convicção do então ocupante de que não está agindo de má-fé se acentua com o passar do tempo, sem a presença de ninguém para cobrar o terreno, para fiscalizar, enfim, para advertir o ocupante sobre a impossibilidade de se construir no imóvel, porque este era público. A falsa idéia de que está agindo de boa-fé deve-se, portanto, à falta de zelo do próprio poder público, pela sua omissão e sua “tácita concordância” diante à ocupação
Apesar do correto entendimento de que não há que se falar em posse em ocupação irregular de área pública, deve-se resguardar a falta de malícia na atitude de cidadãos, que, deparando-se com um ‘imóvel baldio em local ermo’, passa a levantar, ali, uma casa para sua própria moradia, por exemplo.
4.CONCLUSÃO
Quando tratamos a respeito de ocupação em imóvel privado por possuidor de boa-fé, límpido é o seu direito de ser indenizado pelas benfeitorias, pelos melhoramentos, como cuida o Código Civil em seus artigos 1219 e seguintes.
É digna de contornos outros a situação em que ocorre a ocupação irregular de particular em área pública, sem que tenha havido autorização, permissão ou concessão por parte do poder público. Ao ocupante de área pública não é permitido fazer-lhe a nomeação de possuidor, sendo mero detentor.
A jurisprudência do STJ é unânime em entender não ser possível a aplicação do direito privado à ocupação irregular de área pública. Alguns Tribunais, no entanto, entendem não só ser possível caracterizar tal ocupação de posse de boa-fé, como legítimo o direito do “possuidor de boa-fé” de área pública ser indenizado por benfeitorias ali feitas.
Coberto de razão está o STJ ao alegar que não há que se falar em posse de imóvel público, porém é digno de relevância o posicionamento dos tribunais a quo a respeito da necessidade de haver uma indenização quanto a ocupação aparentemente lícita daqueles que de boa-fé acreditam ocupar “terra sem dono”.
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