Da presunção de inocência do servidor público – no processo disciplinar brasileiro o ônus da prova incumbe à administração

O princípio da presunção de inocência vem contido no art. 5º, LVII da CF. Funciona esse princípio como uma garantia que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

No processo administrativo disciplinar incide o mesmo princípio, que possui uma presunção juris trantum, podendo ser elidida ou afastada mediante “a existência de um mínimo necessário de provas produzidas por meio de um devido processo legal e com a garantia da ampla defesa.”[1]

Em boa hora a era da verdade sabida foi descartada do cenário do processo administrativo, para dar lugar a verdade real, onde os fatos e as provas devem desconstituir a presunção de inocência do servidor público.

Não se julga mais administrativamente pelo fator político, onde a vontade da Administração Pública era a prevalente, independentemente da materialidade ou das provas do procedimento serem contrárias ao entendimento do poder público.

Isto porque, a “presunção de inocência condiciona toda condenação a uma atividade probatória produzida pela acusação e veda taxativamente a condenação, inexistindo as necessárias provas.”[2]

Por esse princípio, necessariamente, deverá o acusador provar que o servidor praticou um ato delituoso, pois é vedada a condenação se inexiste as necessárias provas que atestem o apenamento:

“1 – O ônus da prova dos fatos constituídos da pretensão penal pertence com exclusividade à acusação, sem que se possa exigir a produção por parte da defesa de provas referentes a fatos negativos (provas diabólicas).”[3]

O Estado Democrático de Direito, do qual o Brasil é signatário, tem na presunção de inocência um de seus princípios, onde qualquer cidadão, inclusive o agente público, não poderá entrar no rol dos culpados pelo cometimento de ato ilícito se não for provado, pelo órgão ou ente apurante, que ele cometeu qualquer ilícito ou falta disciplinar. As chamadas provas diabólicas, que são plantadas de maneira irregular, obtidas por meios ilícitos ou não, não são admitidas, pois o acusado no processo disciplinar não tem que provar que é inocente de qualquer acusação a ele imputada. Quem tem o dever e a obrigação de provar a culpa disciplinar do agente público é a Administração Pública. Exemplo: no caso de haver uma acusação de estelionato, onde é dirigido ao agente público a acusação contida no art. 171 do Código Penal, quem deverá provar que houve ou não lesado?

Ora, a resposta é bem clara, tendo em vista que o agente público, por militar em seu favor a presunção de inocência, não terá que provar nada, se a Comissão Disciplinar não obtiver provas contundentes que houve ou não um lesado e que foi na condição de servidor público que foi cometido o ato ilícito.

O princípio da prova é inverso, tendo em vista que competente acusação provar que o servidor público é culpado, militando em favor do acusado o princípio da presunção de inocência.

Essa presunção de inocência só poderá ser elidida com a devida prova (constatação) de que houve falta disciplinar, pois in dubio pro reo.

Aliás, sobre a presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reo, o STF[4] assim sentenciou:

“Nenhuma acusação pessoal presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao MP comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico, do processo político brasileiro (Estado Novo), criou para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência. (Decreto-Lei nº. 88, de 20/12/37, art. 20, nº. 5)”

Assim, deverá a Comissão Disciplinar, irrecusavelmente, verificar a ocorrência dos seguintes elementos de prova a ser produzida contra o acusado:

– que ela seja licitamente obtida;

– que se pratique e desenvolva com observância do devido processo legal;

– e que ela seja suficiente para elucidar os fatos apurados.

A suficiência da prova é a questão mais intrigante na apuração disciplinar, porque mesmo ela sendo analisada em caráter subjetivo pela Comissão Disciplinar, ela deverá ser robusta, sob pena de se invalidar apenamentos construídos sobre seu manto. Tendo em vista que “a previsão do in dubio pro reo é um dos instrumentos processuais previstos para garantia de um principio maior, que é o princípio da inocência”[5], que só poderá ser ilidido com robusta e suficiente prova em contrário.

A jurisprudência da Corte Constitucional da Espanha,[6] sobre a presunção de inocência, se encaixa perfeitamente nos princípios declinados, pois também se coaduna com os elementos embasadores do Estado Democrático de Direito:

“La presución de inocencia rige sin excepciones en el ordenamiento administrativo sancionador garantizado el derecho a no sufrir sanción que no tenga fundamento en una previa actividad probatoria sobre la cual órgano competente pueda fundamentar un juicio razonable de culpabilidad. La apreciación que el órgano administrativo realice solo es suscetibile de revisão ante la jurisdicción ordinaria, sin que la valoración que ésta haga de la prueba pueda ser sustituida por la que mantenga la parte que discrepe de ella, no por la de este tribunal cuya función de defensa de la presunción de inocencia en la via de amparo se limita a comprobar si esta prueba existe, debiendo en tal caso considerar satisfechas las exigencias de la presunción, la cual sólo se vulnera no ha habido prueba o cuando la apreciación judicial de la misma es arbitraria o carente de conexión lógica con el contendio de las pruebas sobre las que se realza.”

Pois bem, deixando de lado os princípios citados, deverá a Administração provar que os acusados cometeram as transgressões que a eles são imputados.

Essa prova deverá ser inequívoca, suficiente para o apenamento proposto. Não basta a Comissão Processante refutar as alegações do servidor, com a inversão de posições, tendo que vista que compete ao poder público provar a ocorrência de fatos que desencadeiam em inobservância das normas disciplinares.

O ônus da prova, como dito alhures, é da Administração, por intermédio da Comissão Processante, como se extrai também da lição de Rigolin:[7]

“No processo administrativo disciplinar originário, o ônus de provar que o indiciado é culpado de alguma irregularidade que a Adminsitração lhe imputa pertence evidentemente a esta. Sendo a Administração a autora do processo a ela cabe o ônus da prova, na medida em que ao autor de qualquer ação ou procedimento punitivo sempre cabe provar o alegado.”

Da mesma forma, Hely Lopes Meirelles,[8] ao pronunciar-se sobre a instrução, concluiu que nos “processos punitivos as providencias instrutórias competem à autoridade ou comissão processante e nos demais cabem aos próprios interessados na decisão de seu objeto, mediante apresentação direta das provas ou solicitação de sua produção na forma regulamentar.”

Portanto, não basta a Comissão Processante presumir a culpabilidade do servidor, deixando ele a tarefa de provar sua inocência. No processo administrativo disciplinar, o ônus da prova incumbe à Administração, autora do procedimento. Inverte-se essa posição se afigura como ilegal e inadmissível em um Estado de Direito como o nosso, onde o acusado não precisa demonstrar sua inocência, pois compete ao acusador demonstrar, cabalmente, a culpa do servidor.

Essa é a jurisprudência administrativa, inclusive:

“(…) II – No Processo Administrativo Disciplinar o ônus da prova incumbe à Administração.

III – Para a configuração da inassiduidade habitual imputada ao servidor era imprescindível a prova da ausência de justa causa para as faltas ao serviço. A Comissão Processante não produziu a prova, limitando-se a refutar as alegações do servidor. Inverteram-se as posições, tendo a Comissão presumido a ausência de justa causa, deixando ao servidor a incumbência de provar sua ocorrência.

IV – Não provada a ausência de justa causa, não seria de aplicar-se a penalidade extrema ao servidor.

V – O pedido de revisão deve ser provido para invalidar a demissão do servidor, com a sua conseqüente reiteração, na forma do art. 28, da Lei nº. 8.112, de 1990.”[9]

“A penalidade do servidor deve adstringir-se às faltas sobre as quais existam, nos autos, elementos de convicção capazes de imprimir a certeza quanto à materialidade da infração. No processo disciplinar, o ônus da prova incumbe à Administração.”[10]

A inexistência de provas, retira a possibilidade de qualquer punição ao servidor público, visto ser necessário, para a apenação, a liquidez e certeza. Não se admite a condenação ou a imposição de penalidades no caso de se “ouvir dizer” que determinado servidor público transgrediu as normas disciplinares. Sem prova concreta e robusta, que não dê margem de dúvidas, não há como se punir o acusado em processo disciplinar.

Essa é a conclusão do Parecer CJ nº. 1/98 da AGU:

“(…) Inexistência de provas concretas, precisas e definidas, comprovando irregularidades atribuídas aos indiciados. Ausente a materialidade do fato. Meros indícios sobrestecidos pela conduta tendenciosa da Comissão Processante não servem para qualificá-los de veementes. Inexistência de vícios processuais que maculem o apuratório. Absolvição de todos os servidores é a medida mais adequada, consubstanciada na máxima in dubio pro reo.”

Sem materialidade[11] e autoria, devidamente comprovada,[12] através de robustas provas, fica comprometida qualquer apenação ao servidor público, que tem em seu favor, a presunção de inocência.

Portanto, sem que sejam demonstradas, a materialidade e autoria do servidor, a Comissão Processante fica desautorizada em imputar fatos delituosos ao servidor público.

No direito disciplinar, só a certeza possui o condão de levar o servidor público a condenação. Sem esse requisito, in dubio pro reo.

Por essa razão é que o art. 168 da Lei nº. 8.112/90 condiciona o julgamento às provas dos autos:

“Art. 168 – O julgamento acatará o relatório da Comissão, salvo quando contrário às provas dos autos.”

Nessa moldura, a Comissão Processante não poderá ser julgador autoritário, “espécie de dono do processo” ou da “verdade”, pois ela deverá ser fiel a materialidade e autoria, presentes nas provas do autor.

Coube à Advocacia Geral da União, pelo Parecer GQ 149, advertir que o poder-dever do julgador não é absoluto, descambando para o autoritarismo, devendo ser motivada a decisão correspondente a que foi provado no respectivo procedimento disciplinar, sob pena de nulidade.

“A destacada e a superior posição do julgador colocam-no numa situação acima dos interesses porventura existentes na tramitação processual inquisitiva.Daí que o uso do poder-dever, que lhe é atribuído legalmente, não é arbitrário, tampouco discriminatório. Não age quando lhe aprouver, nem como preferir. Age sim, quando observar que a Comissão Processante atuou de maneira dissonante em relação às provas dos autos. Com sua discordância resguardam-se, simultaneamente, o interesse da Administração, tomada na sua generalidade, e o da Secretaria de Estado a qual dirige, com auxiliar que é do Excelentíssimo Senhor Presidente da República.

Então nos parâmetros do sistema da livre apreciação das provas, pode a autoridade julgadora desvincular-se das conclusões das comissões processantes e até julgar em sentido contrário, desde que o faça de maneira expositiva, fundamentada, levando sempre em consideração aos elementos de prova do processo que autorizaram a repelir a opinião dada no relatório conclusivo.

Na formação de sua livre convicção, deve, ainda, a autoridade julgadora cimentar-se não em elementos vagos, às vezes imprecisos, porém nos pontos lacunosos, conflitantes ou relegados a segundo plano pela Comissão Processante. Numa síntese, pode-se afirmar que as atividades do julgador deverão se pautar pelo princípio da legalidade, sem se deixar levar por influências exógenas, estranhas aos autos do processo, baseando-se em parecer fundamentado, dimanado do órgão que lhe presta assessoramento jurídico.”

Na dúvida,[13] a Comissão Processante não poderá apenar o servidor público, pois a impessoalidade breca o sentimento pessoal do administrador, que tem nas provas a devida evidência capaz de elucidar os fatos apurados.

Assim, deverá a Comissão Processante provar, através de provas contundentes e irrefutáveis, que o servidor transgrediu normas e condutas indispensáveis ao seu múnus. Não compete ao acusado provar que ele é inocente e que não cometeu falta funcional. Essa inversão de valores é ilegal e divorciada do princípio da legalidade.

Notas:
[1]
Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, Atlas, 2002, p. 385.
[2] Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, Atlas, 2002, p. 385.
[3] Alexandre de Moraes, cit. ant., ps. 385.
[4] STF, Rel. Min. Celso de Mello, HC nº 73.338/RJ, 1ª T., in RTJ 161/264.
[5] Alexandre de Moraes, cit. ant., p. 388.
[6] José Maria Queiroz Lobo, Princípios de Derecho Sancionador, Editorial Comares, Granada, 1996, ps. 92/93.
[7] Ivan Barbosa Rigolin, Comentários ao Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis, Saraiva, 1992, p. 283.
[8] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo, Malheiros, 1995, 20ª ed., p. 591.
[9] AGU, Processo nº. 10168.001291/95-93, Parecer AGU/MF – 04/98, Parecer GQ 147 de 23 de abril de 1998, aprovado pelo Presidente da República em 27/04/98.
[10] AGU, Processo nº. 03000-005894/95-10, Parecer GQ nº. 136, de 19 de janeiro de 1998, aprovado pelo Presidente da República em 26/01/98.
[11] “A apenação é imprescindível que demonstradas, de maneira convincente, a materialidade e a autoria da infração, hipótese em que a edição do ato disciplinar torna-se compulsória. A caracterização da inobservância da proibição de receber a própria, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, compreendida no art. 117, XII, da Lei nº. 8.112, de 1990, pressupõe o exercício regular das atribuições cometidas ao servidor.” (Parecer GQ 139 – AGU, de 30/01/98, aprovado em 19/02/98.”
[12] “Na hipótese em que a veracidade das transgressões disciplinares evidencia a conformidade da conclusão da Comissão de Inquérito com as provas dos autos, torna-se compulsório acolher a proposta de aplicação.” (Parecer AGU nº. GQ 135, 8/12/97, aprovado em 18/12/97.
[13] “A Administração pode editar o ato punitivo apenas na hipótese em que esteja convencida quanto à responsabilidade administrativa do servidor, a que imputa a autoria da infração. A dúvida deve resultar em benefício do indiciado.” (AGU – Processo nº. 0800.00328/97-56, Parecer GQ-173, de 19/11/98).

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Mauro Roberto Gomes de Mattos

 

Advogado no Rio de Janeiro-RJ. Autor de inúmeras Obras Jurídicas. Vice Presidente do Instituto Ibero-Americano de Direito Público (Capítulo Brasileiro) – IADP; Membro da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Membro do IFA – International Fiscal Association; Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Co-Coordenador da Revista Ibero-Americana de Direito Público – RIADP (Órgão de Divulgação Oficial do IADP).

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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