1. PRIMEIRAS LINHAS
Este presente artigo tem a intenção de se compreender o que vem a ser o débito conjugal no mundo contemporâneo. Este é uma denominação criada no Direito Canônico, cujo objetivo era disciplinar as relações sexuais havidas entre os cônjuges. Ou seja, era uma forma de legalizar e disciplinar um dos deveres matrimoniais, qual seja, o dever de coabitação.
Sabemos que o dever de coabitação significa a vida em comum, no lar conjugal. Uma série de outras alternativas foi construída a partir disso, como, por exemplo, a vida sexual em comum do casal. Todavia, como vamos dissertar mais à frente, não se pode simplesmente afirmar que existe um “dever” de homem e mulher cederem seus corpos mutuamente, sob pena de, se houver vício da parte da esposa, por exemplo, e havendo a coação ou mesmo a violência por parte do marido, estar caracterizado nada mais do que o estupro intra-matrimônio.
E, por isso mesmo, faz-se necessário volver ao passado, a fim de se entender toda a influência histórica que existe por trás disso. Nesse sentido, magistral é a posição de Martins, ao indicar:
À luz da história, podemos compreender com mais acuidade os problemas atuais. A concepção histórica mostra como foi o desenvolvimento de certa disciplina, além das projeções que podem ser alinhadas com base no que se fez no passado, inclusive no que diz respeito à compreensão dos problemas atuais. Não se pode, portanto, prescindir de seu exame. É impossível ter o exato conhecimento de um instituto jurídico sem se proceder a seu exame histórico, pois se verifica suas origens, sua evolução, os aspectos políticos ou econômicos que o influenciaram.
Ao analisar o que pode acontecer no futuro, é preciso estudar e compreender o passado,estudando o que ocorreu no curso do tempo. Heráclito já dizia: “o homem que volta a banhar-se no mesmo rio, nem o rio é o mesmo rio, nem o homem é o mesmo homem”. Isso ocorre por que o tempo passa e as coisas não são exatamente iguais como eram, mas precisam ser estudadas para se compreender o futuro. Para fazer um estudo sobre o que pode acontecer no futuro é necessário não perder de vista o passado. Não se pode romper com o passado, desprezando-o[1].
Quando o estudo em foco é a família, é ainda mais importante um comedimento nos estudos das fontes históricas, haja vista muito do que é de nosso interesse fica apenas no “mundo da imaginação”, posto que é um passado muito longínquo. Concordamos com a afirmação de Leite:
Pretender estabelecer um quadro completo da evolução é extremamente difícil e complexo por inúmeras razões, e os problemas suscitados pelas questões podem ser solucionados dentro da absoluta margem de segurança. Quando se trata de investigar o início dessa cadeia, grande parte da história da família e do casamento – senão a mais decisiva, porque inicial, original – encontra-se envolvida em total mistério, pela ausência de documentos e inexistência material de fontes que retratem um estado de espírito e de atitudes. O primórdio da família está definitivamente voltado ao mistério […]. Logo, as origens, as primeiras manifestações e reações do homem nesse campo só podem ser avaliadas através de suposições, hipóteses, conjunturas que tentam reconstruir uma época fugidia e indecifrável[2].
No mesmo sentido, destacamos Pereira, ao externar:
Quem rastreia a família em investigação sociológica, encontra referências várias a estágios primitivos em que mais atua a força da imaginação do que a comprovação fática; mais prevalece a generalização de ocorrências particulares do que a indução dos fenômenos sociais e políticos de franca aceitabilidade[3].
Assim sendo, a dita “força da imaginação” deve-se ao fato de não haver bastantes registros que possam ratificar que o desenrolar dos fatos realmente se deram como descritos nos livros. Devemos deixar claro que muito se perdeu nas brumas do tempo, momentos imemoriais que já não voltam mais. Por isso mesmo, as sociedades primevas não poderão ser foco deste estudo.
2. RASTREANDO CONCEITOS: O DEBITUM CONJUGALE
O débito conjugal é colocado em tona como uma das facetas do dever de coabitação entre os nubentes. Coabitar, para Ferreira, é “habitar em comum; viver em comum”[4]. Também pode ser conceituado, de acordo com o mesmo autor, como “ter relações sexuais habituais, lícitas ou não, com pessoa do sexo oposto”. Entendemos, porém, que ditas relações sexuais não podem nunca ser tidas como ilícitas, uma vez que o conceito de ilicitude foge àquilo que é tido como normalidade pela sociedade, haja vista existirem sanções para os atos ilícitos.
Gomes, por outro lado, é convincente quando informa que “a coabitação representa mais que a simples convivência sob o mesmo teto […]. Não só convivência, mas união carnal […]. Importa-se assim a coabitação a permanente satisfação desse débito”[5].
O eventual direito de um consorte sobre o corpo do outro, bem como o respectivo dever de prestação carnal aponta para algumas conceituações que merecem ser externadas. Barassi informa: “a coabitação é empregada também como eufemismo para aludir ao exercício efetivo das relações sexuais entre os cônjuges”[6]. Por sua vez, Fernando Pinto expõe ser:
[…] dever que ambos têm de habitar juntos e, mais do que isso, de viverem tão intimamente que sejam duos in carne una, o que implicaria não só o compartilharem o mesmo teto, mas a demanda conjunta dos mesmos objetivos, de uma vivência irmanada que dê satisfação aos seus ideais de vida e aos seus instintos, entre os quais assume maior relevo o sexual[7].
Azevedo, que perfaz um dos grandes nomes que se dedicam a dissecar o tema, percebe a coabitação como sendo: “a imposição legal, de ordem pública, aos cônjuges de seu relacionamento fisiológico, sexual, recíproco, enquanto durar a convivência no lar conjugal”[8].
Também é importante dizer que esta prestação não abrange outras formas além da cópula carnal. Apenas a penetração do pênis na vagina, perfazendo o coito, é que pode ser levada em consideração para o entendimento do débito conjugal. A este respeito, convém analisarmos a seguinte passagem, de Vainfas:
O reconhecimento da cópula como algo inerente ao casamento implicou a valorização da antiga noção do “débito conjugal”. Já Paulo dizia: “que o marido proporcione à mulher o que lhe deve, e que a mulher atue do mesmo modo para com o marido” (I Cor, VII, 3). No entender de Paulo – e dos teólogos patrísticos – o debitum conjugal existia, principalmente, para evitar o adultério e a impudicícia[9].
Assim sendo, notamos, enfim, que o acometimento do débito conjugal foi cristalizado como um canal para evitar o adultério no casal. Sendo um dever intransponível, irrenunciável e imprescritível, conforme nos informa Diniz[10], acalmaria os desejos dos consortes (e, em especial, do marido, haja vista a sociedade era – e às vezes ainda o é – , patriarcal e machista). Isso evitaria, também, a concupiscência, que sempre foi preocupação dos teólogos.
Entendemos com propriedade que o débito conjugal pode ser classificado por nós como é a cessão dos corpos do casal um para com o outro, sob uma conotação sexual. Convém deixar latente que essa prestação carnal, como já evidenciado, engloba apenas o coito carnal.
O dever de coabitação e o débito conjugal faziam-se presentes já entre os romanos[11], na medida em que havia a possibilidade de repúdio e do divórcio bona gratia por questões relativas ao inadimplemento deste dever.
Com o aparecimento do Direito Canônico, o casamento passou a ser disciplinado por três elementos básicos: seu caráter sacramental, a cópula e a indissolubilidade. Assim sendo, o casamento canônico era aquele em que se dava “a união legal de um homem e de uma mulher, elevada por Cristo a Sacramento, para a comunhão de vida recíproca e perpétua, não só espiritual, mas, também, corporal”[12].
Para o direito canônico, portanto, o importante era a cópula. O inadimplemento ao dever de coabitação, poderia ensejar a dissolução do matrimônio, uma vez que “o impotente para a cópula é incapaz de contrair matrimônio, quer seja o impedimento a idade, quer a natureza[13]”.
Na Idade Média, no atinente ao debitum, aos cônjuges não lhes era permitido recusar a prestação, mas os mesmos poderiam, entre si, convergir num pacto de continência. Esse tipo de pacto era comum à época, e poderia durar alguns meses, ou mesmo alguns anos, a depender da vontade do casal.
Em sendo ligado à eclesiástica, foi visto no passado como remedium concupiscentiae. A este respeito, vale a pena transcrever excerto da Carta de São Paulo aos Coríntios, no que tange à legitimidade e direitos do casamento:
E agora trato sobre aquilo que escrevestes: é bom para o homem não tocar em mulher. Mas, por causa dos perigos da continência, cada homem tenha sua esposa e cada mulher o seu marido. O marido cumpra o dever para com a esposa e do mesmo modo a esposa para com seu marido. A esposa não pode dispor do seu corpo, porque ele pertence a seu marido. Do mesmo modo, o marido não pode dispor do seu corpo, porque ele pertence à sua esposa. Não vos negueis um ao outro, a não ser de comum acordo, por breve tempo, para vos entregardes a oração. Depois, voltai a conviver (grifos nossos)[14].
3. DO ESTUPRO NO CASAMENTO
Essa espécie de delito contra a liberdade sexual teve sempre repreensão no decorrer das civilizações. Para os egípcios, a punição consistia na mutilação, enquanto que na Roma Antiga, era aplicada a pena capital. Na Idade Média, punia-se primeiramente com a morte, mas, depois, houve substituição para a pena de castração e de perda dos olhos[15].
A legislação hebraica evidenciava a punição para a possibilidade da concretização do estupro da seguinte forma:
[…] aplicava-se a pena de morte ao homem que violasse mulher desposada, isto é, prometida em casamento. Se se tratasse de mulher virgem, porém não desposava, devia ele pagar cinqüenta ciclos de prata ao pai da vítima e casar com ela […][16].
Leite, em artigo, também pontua os contornos históricos atinente à matéria, quando indica:
A Lex Julia de adultenus (18 d.C.) empregava-o [o estupro] para designar o adultério, indiferentemente, com a palavra adulterium. Posteriormente, procurou-se distinguir tais conceitos significando o estupro a união ilícita com viúva, e o adultério, com a mulher casada […]. Em sentido geral, porém, era estupro toda união sexual ilícita, com mulher não casada.
O vocábulo stuprum (do grego tupro) incluía todo o ato impudico com homens e mulheres e isto incluía a virgem como a viúva honesta, como também a pederasta e o adultério. A Lex Scatinia (sic) fez reprimir os bacanais e as sodomias romanas[17].
Mais adiante, a mesma doutrinadora complementa o pensamento nos seguintes termos:
No período medieval, seguiu-se aplicando a pena capital ao estuprador. Os praxistas nessa época chamavam de próprio o estupro praticado contra a mulher virgem de que resultasse defloramento, sendo impróprio, no caso contrário. O direito canônico proibia e condenava, como condena até hoje, toda relação sexual fora do matrimônio, aplicando sanções espirituais[18].
Sznick, a respeito do período medieval, contribui da seguinte forma:
Na Idade Média, na Inglaterra, em seus primórdios, punia-se o estupro com a pena de morte (que era a última fase do direito romano, de punição severa contra os crimes sexuais), Guilherme, o Conquistador, substituiu a pena de morte – que era muito severa – pela pena de castração e perda dos olhos[19].
Dessa feita, podemos entender que o delito em tela sempre teve punição ao longo das civilizações, por ser ato que afronta a dignidade da pessoa humana. Sabemos que, em tempos primevos, imperava a lei do “olho por olho, dente por dente”. Por essa razão, a punição era severa, uma vez que se buscava extirpar o mal cometido. No Brasil, as Ordenações Filipinas já teciam comentários acerca do delito em análise.
Há na doutrina criminal muitas discussões a respeito da possibilidade ou não de o marido ser condenado pela prática de estupro contra a sua mulher. A jurisprudência evidencia já variados casos, em sua maioria, favoráveis à possibilidade de cominação de culpa do consorte. Concordamos com esse posicionamento, uma vez que, havendo as condicionantes objetivas, quais sejam, o constrangimento mediante violência ou grave ameaça, além da condicionante subjetiva, que é o dolo, ter-se-á configurado o tipo penal e o agente causador deverá ser apenado. Não é pelo simples fato de serem casados os consortes que o marido tornar-se-á isento de responsabilização.
França aponta essa questão da seguinte forma:
Tem sido motivo de controvérsias o fato de ser ou não admissível o crime de estupro entre os cônjuges. Embora moralmente seja de todo condenado, há opiniões isoladas de que não há amparo legal para a punibilidade em tais circunstâncias a não ser diante de moléstias venéreas ou transmissíveis. Para estes, há um crime quando o agente o pratica no exercício regular de um direito, pois as relações sexuais constituem, para aqueles, direito e dever recíprocos exigidos pela vida conjugal. Ao aceitar a vida em comum e a proteção afetiva e material, não poderia a mulher se furtar ao congresso sexual, muitas vezes por mero capricho ou por motivos insignificantes, insistem os defensores desse ponto de vista tão absurdo. O mesmo se diga do ato sexual diferente da cópula vagínica, o qual se constituirá num atentado violento ao pudor[20].
Concordamos com o referido autor, que merece de nós todo o aplauso, uma vez que é bastante condizente com o nosso entender. Não se pode simplesmente, dizer que ainda remanesce no século atual a concepção totalmente machista e até mesmo sexista, qual seja, o da possibilidade de se entender lícita a conduta do marido que atente contra o direito ao corpo de sua referente esposa. Sobre esse aspecto, Jesus explana da seguinte forma,
Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual (…). Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa [grifos nossos][21]
Do que podemos denotar, a explicitação do autor supra-citado já é bem voltado para as mudanças societárias. A única coisa que não concordamos nessa passagem é a expressão “justa causa para a negativa”. Não entendemos assim. Ora, nenhum dos consortes precisa demonstrar justa causa para ter proteção legal contra a prática de um delito. Seria o mesmo que legalizar um marido traído à prática de aborto, só porque o filho que está sendo gerado não é seu.
A proteção penal vai mais além… Afinal de contas, numa sociedade em que há a proteção maior aos direitos personalíssimos, não podemos simplesmente firmar o posicionamento de que, se a esposa (única que pode ser sujeito passivo nesse delito) alegar, por exemplo, dor de cabeça ou cansaço, não sendo essas causas “justas”, o marido teria então o direito de “tomar o corpo” da sua esposa, sendo legalizada, portanto, a coação à prática carnal. Tomar esse tipo de posicionamento é mais do que primário e repleto de preconceitos, herança da sociedade patriarcal a qual ainda estamos imersos.
Ferraz, em ímpar comentário, explicita que:
O estupro da mulher casada, praticado pelo marido, não se confunde com a exigência do cumprimento do débito conjugal; este é previsto inclusive no rol dos deveres matrimoniais, se encontra inserido no conteúdo da coabitação, e significa a possibilidade do casal que se encontra sob o mesmo teto praticar relações sexuais, porém não autoriza o marido ao uso da força para obter relações sexuais com sua esposa. (…) A violência sexual na vida conjugal resulta na violação da integridade física e psíquica e ao direito ao próprio corpo. A possibilidade de reparação constitui para o cônjuge virago uma compensação pelo sofrimento que lhe foi causado (grifos nossos)[22].
É interessante externar o demonstrativo apresentado por Dias[23], acerca do estupro:
Tabela 2 – O estupro no Brasil
No Brasil | 69% das mulheres já foram agredidas ou violadas |
Uma em cada dez mulheres sofre ao menos um estupro na vida, na maioria dos casos por homens conhecidos | |
25% das vítimas de estupro conhecem o agressor pelo nome | |
Apenas 14% das vítimas de agressão sexual notificam a ocorrência do crime | |
Somente 7% dos estupros são cometidos por pessoas desconhecidas | |
54% dos estupros são cometidos pelo marido |
Tabela 3 – O estupro no mundo
No mundo
| 20% das mulheres foram vítimas de abuso sexual na infância |
Nos conflitos de Ruanda, mais de 15 mil mulheres foram estupradas em um ano | |
Na África, ocorre um milhão de estupros por ano, pois se cultiva a lenda de que um soropositivo pode se curar ao violentar uma virgem. |
4. DO ESTUPRO NA UNIÃO ESTÁVEL[24]
É importante ressaltar, também, que o estupro pode ocorrer na constância da união estável. A Carta Magna de 1988, no artigo 226, assim dispõe:
Art. 226 A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§1º omissis
§2º omissis
§3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§4º omissis
§5º omissis
§6º omissis
§7º omissis
§8º omissis
Dessa forma, podemos informar que os consortes em união estável terão a mesma forma de interpretação daqueles que se casaram, haja vista que, perante a sociedade, apresentam-se como se casados fossem.
O que deve ser colocado em plano de destaque é que o próprio tipo penal, ao discorrer sobre o tipo, nada dispõe sobre a condição de casada da mulher. No artigo 213, há os seguintes termos: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Pena – reclusão, de seis a dez anos”[25]. De acordo com o penalista Jesus, “por intermédio do dispositivo penal protege-se a liberdade sexual da mulher, o seu direito de dispor do próprio corpo, a sua liberdade de escolha na prática da conjunção carnal”[26].
Dessa forma, entendemos que tanto a esposa quanto a companheira podem sim ser vítimas do crime de estupro, quando praticados contra seus consortes.
A este respeito, inclusive, há Projeto de Lei no sentido de majorar a pena do sujeito ativo do crime de estupro quando é praticado pelo marido contra a sua esposa. Vamos mais além no projeto no sentido de atingir também às mulheres que vivem em estado de união estável. O Direito necessita sempre manter a paz social. As lacunas existentes a este respeito precisam ser extirpadas do ordenamento.
Há pouco tempo, o governo deu um salto na fase pré-histórica a que encontrava-se o Código Penal Brasileiro. Foi sancionado, no final do mês de março do corrente ano, o conjunto de mudanças que há muito já não tinham razão de existir no ordenamento pátrio devido ao seu caráter de “letra morta”. Assim, conceitos como “mulher honesta” e o tipo legal do adultério foram extirpados[27]. O fato de ter sido sancionadas essas mudanças é merecedor de aplausos de toda a comunidade jurídica. Todavia, o que deve ser evidenciado é que o governo nada mais fez do que extirpar do ordenamento algo que já não mais era invocado. O termo “mulher honesta”, por exemplo, não poderia ser pleiteado. Não ensejaria impunidade o fato, por exemplo, de se cometer atentado violento ao pudor ou estupro em relação a prostitutas, exemplificativamente.
O que deve ser pontuado é que a violência sexual contra a mulher, e contra a esposa, está cada vez mais freqüente. É preciso que o governo e a sociedade como um todo despertem para essa questão. Afinal de contas, o sujeito ativo não pode ficar impune diante o cometimento de um crime, sob pena de estar sendo instaurado um caos.
Delmanto, por sua vez, ratifica esse posicionamento, quando indica que
Quanto à possibilidade de o marido ser agente de crime de estupro praticado contra a esposa, a doutrina tradicional entende que não pode sê-lo, porquanto seria penalmente lícito constranger a mulher a conjunção carnal, sendo que esta, por si só, não é crime autônomo. Assim, embora a relação sexual voluntária seja lícita ao cônjuge, o constrangimento ilegal empregado para realizar a conjunção carnal à força não constitui exercício regular do direito, mas sim abuso de direito, porquanto a lei civil não autoriza o uso de violência física ou coação moral nas relações sexuais entre os cônjuges (grifos nossos)[28].
Dessa forma, somos do entendimento de que sim, o marido ou o companheiro deve ser responsabilizado penal e civilmente pela prática de violência sexual contra a sua consorte. O brado das vítimas é nesse sentido… É preciso que alguma coisa seja feita. Antes que isso torne-se banalidade.
5. À GUISA DE UM MELHOR ENTENDIMENTO: EXISTE DÉBITO CONJUGAL NO MUNDO HODIERNO?
Do que levantamos até então, chegamos ao momento de discutir se ainda hoje existe a figura do débito conjugal que, como já evidenciamos, seria o “direito-dever dos consortes de cederem seus corpos mutuamente à prática da conjunção carnal”.
Sabemos que hoje a sociedade está mais concentrada no “homem e mulher são iguais perante a lei”. Na sociedade atual, falar em “débito” dá, como sempre deu, a idéia de pagamento, o que é totalmente retrógrado e machista.
E o pior, a violência sexual contra as mulheres está cada vez mais latente. Vejamos a tabela abaixo[29]:
As múltiplas manifestações das violências contra as mulheres
De 20 a 50% das mulheres no mundo são vítimas, em diferentes graus, de violências conjugais |
No mundo inteiro, avalia-se em 5 000 o número de mulheres e jovens vítimas de crimes “de honra” por ano. |
O UNICEF avalia que uma mulher entre 10 no mundo é vítima de um estupro uma vez em sua vida. |
Segundo a maioria dos estudos publicados sobre o tema, as mulheres violentadas o são na maioria das vezes por um homem que elas conhecem. |
O número de mulheres excisadas é estimado em 130 milhões no mundo e todos os anos, por volta de 2 milhões dentre elas são submetidas a esse costume, num ritmo de mais ou menos 6000 casos por dia, ou seja, 5 meninas por minuto. |
Acredita-se que existam, por baixo, 9 milhões de mulheres na industria do sexo. Algumas estimativas chegam a 40 milhões pelo mundo. |
Acredita-se que a industria mundial do sexo renda 52 bilhões de dólares por ano para as redes de crime organizado. |
Segundo as avaliações, 4 milhões de mulheres e de meninas são compradas e vendidas no mundo inteiro por ano, aos futuros esposos, aos proxenetas ou a comerciantes de escravas. |
Somente na região da Ásia do Sudeste, por volta de 70 milhões de mulheres e de crianças foram vítimas do tráfico sexual nos últimos 10 anos |
Uma pesquisa realizada nos quinze países membros da União Européia em 2000 revela que 2% das trabalhadoras (=3 milhões) foram assediadas sexualmente no trabalho e 9% de trabalhadoras e trabalhadores foram intimidados e assediados moralmente. |
Este triste cenário deve ser transmudado o mais rapidamente possível. Ainda a este respeito, cumpre explicitar:
No universo pesquisado 17% das entrevistadas reconhecem já ter sofrido algum tipo de violência doméstica. Deste total, 54% afirmam ter sofrido violência física, seguida pela violência psicológica (24%), violência moral (14%) e, apenas, 7% assumiram ter sofrido violência sexual doméstica. Das mulheres que reconhecem nesta pesquisa que já sofreram violência doméstica, 66% responderam ser o marido/companheiro o autor da agressão. A pesquisa ratifica dados da OMS, segundo os quais metade dos crimes cometidos contra a mulher é de autoria dos maridos em todo o mundo. Dados históricos divulgados em pesquisas anteriores já mostravam que o sentimento de posse do homem, o ciúme e o uso de bebidas alcoólicas são as principais causas da violência doméstica. (fonte Portal da Violência contra a mulher)[30].
O que deve ser levado em consideração é que, se o casal já não mais está se dando bem na convivência marital, o mais sapiente a fazer é enveredar por uma separação conjugal ou divórcio, a depender do caso. Já foi-se o tempo em que a mulher era subjulgada aos caprichos do marido. Uma vez que o tipo penal não descrimina a questão, somos do entendimento de que os parlamentares volvam os olhos para essas questões. Afinal de contas, são cada vez mais comum os casos de violência sexual registrados nas Delegacias de Proteção à Mulher.
É preciso extirpar o falso entendimento de que ainda hoje perdura o débito conjugal como dever do casamento. O mundo mudou, a sociedade também. Falta agora extirpar de uma vez por todas mais este tipo de violência. Que os culpados paguem pelos seus crimes. Que assim seja. Pois, é a partir de uma conjugação dos novos valores societários com a capacidade de mudança que o ordenamento pátrio ficará mais justo para todos, independentemente de sexo, cor, raça. Assim esperamos.
Advogada, Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Universidade Católica de Pernambuco
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