Os últimos acontecimentos têm trazido à tona a necessidade de análise de alguns institutos jurídicos já existentes em nosso ordenamento jurídico, mas até agora, me parece, ainda muito pouco explorados. Um deles é a delação premiada.
É instituto que deve ser utilizado com cautela e critério para que não se transforme em “joguete” entre os próprios criminosos e em prejuízo da administração da justiça. Imagine-se o exemplo em que, em uma quadrilha de sete integrantes, um delata o outro, um de cada vez, e sucessivamente, até que o último, por eles eleito, não tendo quem “delatar”, acaba sendo o único punido… Não é exatamente o alcance que se pretende com o instituto. Enfim, há inúmeros questionamentos a serem enfrentados em torno do tema.
Ao que tudo indica, a delação premiada encontra a sua origem no “Acordo” de vontade entre as partes, mas, sem ser “acordo” propriamente dito, revela sua característica e como tal opera efeitos. Não pode ser considerado acordo porque envolve a decisão por uma terceira parte – o Juiz, que não participa da “negociação”. A situação da revelação dos dados existe entre o acusado, diretamente ou por seu Advogado, com o Promotor de Justiça e, ainda que com a expressa concordância por parte deste, a decisão final caberá ao Juiz, por conceder ou não algum benefício como troca.
Instituto pouquíssimo utilizado na prática, mas de enorme eficiência para a justiça penal, sua natureza decorre, entendemos, do chamado “Princípio do Consenso”, que, variante do Princípio da Legalidade, permite que as partes entrem em consenso a respeito do destino da situação jurídica do acusado que, por qualquer razão, concorda com a imputação. No Brasil, pelo teor da legislação, esta aplicação do Princípio do Consenso pode atingir aquele que colaborou eficazmente com a administração da justiça.
Há Leis diversas que prevêem a aplicação da delação premiada. Citamos como exemplos, a Lei nº 9.034/95, a Lei nº 9.613/98 e a Lei nº 9.807/99. Dentre as questões que advém da vigência de todas elas, estão a forma de aplicação e o seu alcance, mas quer nos parecer que a principal será definir eventual existência de conflito entre as normas. Apresentaremos nossas opiniões nas colunas das próximas semanas, para as quais remetemos o leitor. Já tivemos oportunidade de realizar superficial análise desse tema em colunas anteriores, às quais remetemos o leitor interessado no tema.
Interpretamos, desde logo, que cada uma destas Leis tem sede própria de aplicação, com âmbito definido. Só assim torna-se possível a coexistência de todas, cada uma para determinadas situações, conforme o alcance e o espírito da própria Lei.
Assim, a Lei nº 9.034/95, que "Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas" deve ser aplicada nas situações em que o acusado, através de sua colaboração espontânea, leve as autoridades ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria, de fatos criminosos que não sejam aqueles pelos quais se encontra investigado ou processado – mas por outros fatos que tenham sido praticados por organização criminosa qualquer, inclusive eventualmente a que participe.
A Lei nº 9.613/98, que "Dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para o ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências", torna-se aplicável exclusivamente para os casos em que se investigue a prática de crime de lavagem de dinheiro. Com relação aos crimes associados a lavagem, previstos nos incisos do artigo primeiro da Lei, através dessa interpretação sistemática, deverá ser aplicada, se couber, a Lei nº 9.034/95.
Já a Lei nº 9.807/99, que "Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenha voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal", ao contrário do que ocorre com a aplicação do instituto na Lei nº 9.034/95, tem âmbito de aplicação em relação aos mesmos fatos, objetos da investigação ou processo criminal, e, diferentemente daquela Lei, podem ser aplicáveis ainda que inexistente organização criminosa.
Há outros casos, como o da Lei n° 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional).
O fato é que a delação premiada deve ser utilizada como instrumento eficiente para o combate ao crime, especialmente organizado, mas com os critérios de forma e momento adequados, no âmbito do processo penal. Carecemos de regulamentação da matéria, ficando a interpretação mais uma vez ao encargo do aplicador da lei.
De toda sorte, tanto melhor que a sua previsão já esteja contemplada nas legislações, que, todavia, sinceramente, necessitam urgentemente de aprimoramento.
Promotor de Justiça/SP – GEDEC, Doutor em Processo Penal pela Universidad de Madrid, Pós-Doutorado na Università di Bologna/Italia
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