Delação premiada às avessas e a sua ilegalidade durante o cumprimento da prisão preventiva decretada no curso das investigações relacionadas às organizações criminosas

Resumo: O presente trabalho traz à baila a aplicabilidade do instituto da delação premiada no atual palco jurisdicional brasileiro. Mais especificamente, tratar a sua ilegalidade durante o cumprimento da prisão preventiva decretada no curso das investigações relacionadas às organizações criminosas, visto que, no período em que o investigado encontra-se recolhido ao cárcere, inexiste o espírito da voluntariedade, um dos requisitos de validade do instituto. Tal prática está transformando o cárcere num instrumento de tortura requintado com vistas a obter a confissão daquele que se encontra fragilizado.

Palavras-chave: Direito Público. Processo Penal. Delação Premiada. Colaboração Premiada. Aplicabilidade. Prisão Preventiva. Crime Organizado.

“A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto”.(Cesare Beccaria)

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1. INTRODUÇÃO

No Brasil, a delação premiada, em alguns casos, tem sido utilizada como instrumento de tortura para obter a confissão daqueles que se encontram encarcerados. Sob a égide da prisão preventiva, os organismos de persecução penal têm tomado o instituto como atalho para cercear o devido processo legal e, sorrateiramente, inverter o ônus probandi por parte do acusador – garantias constitucionais asseguradas àqueles que supostamente cometeram o delito.

Ao perquirirmos um dos requisitos que devem estar presentes na aplicação do instituto – a volição do agente – nos deparamos com o óbice das condições de extrema fragilidade psicológica do indivíduo que foi inserido no sistema prisional e o seu desespero em subtrair-se da pena. Nesse diapasão, não há como fugir da breve análise do modus operandi adotado na Operação Lava Jato, na qual, ao menor indício de participação do investigado, persegue-se a todo custo à subsunção normativa para a expedição da segregação cautelar, e com isso obter o que podemos considerar uma delação premiada às avessas, ou seja, utiliza-se o fim para obter o meio.

Cabe aos Operadores do Direito, identificando tal situação, movimentar a máquina legislativa no sentido de redesenhar o instituto que, se utilizado observando às limitações impostas pelo ordenamento pátrio, trará maior segurança jurídica aos seus jurisdicionados.

2. A ORIGEM DA DELAÇÃO PREMIADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

O termo delação tem sua origem no latim: “delatio”, “de deferre”, na acepção pátria: denunciar, delatar, acusar, deferir.

O instituto teve sua origem mais remota nas Ordenações Filipinas (1603), cuja parte criminal, constante do Livro V, vigorou até janeiro de 1603 quando da entrada em vigor do Código Criminal de 1830. Já no regramento moderno, em decorrência da ineficácia dos meios investigativos tradicionais à década de 90, bem como, pelo recrudescimento da criminalidade, ressurgiu com a edição da Lei n° 8072/90, que trata dos crimes hediondos. Em seu artigo 8°, parágrafo único, passou a prever que “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”. Este mesmo dispositivo legal trata no seu artigo 4° que “Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o coautor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços."

Ademais, está previsto em diversas legislações extravagantes, quais sejam: Lei dos Crimes Hediondos (Lei n° 8.072/90, art. 8º, parágrafo único); Lei de crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo (Lei n° 8.137/1990, art. 16°, parágrafo único); Código Penal (art. 159, 4º Extorsão mediante sequestro); Lei de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98, art. 1º, §5º); Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei n° 9.807/99, arts. 13 e 14); Lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Lei n. 11.343/2006, art. 41); Lei do Crime Organizado (Lei n. 12.850/13, art. 4º).

3. A LEI 12.850/13 – ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E A COLABORAÇÃO PREMIADA

Inicialmente, cabe observar a distinção doutrinária para os termos “delação premiada” e “colaboração premiada”, visto que há entendimentos divergentes.

“A nosso ver, delação e colaboração premiada não são expressões sinônimas, sendo esta última dotada de mais larga abrangência. O imputado, no curso da persecutio criminis, pode assumir a culpa sem incriminar terceiros, fornecendo, por exemplo, informações acerca da localização do produto do crime, caso em que é tido como mero colaborador. Pode, de outro lado, assumir culpa (confessar) e delatar outras pessoas – nessa hipótese é que se fala em delação premiada (ou chamamento de corréu). Só há falar em delação se o investigado ou acusado também confessa a autoria da infração penal. Do contrário, se a nega, imputando-a a terceiro, tem-se simples testemunho. A colaboração premiada funciona, portanto, como o gênero, do qual a delação premiada seria espécie.” (LIMA, 2016, p. 521)

Para Mossin e Mossin (2016), foi uma tentativa do legislador no sentido de amenizar o termo “delação premiada”, bastante carregado, com vistas a caracterizar a conduta daquele que denuncia seu comparsa na prática delitiva. A consequência de cunho jurídico para a “colaboração” e a “delação” são as mesmas: premiar aquele que denuncia os outros coautores ou partícipes.    

Filiando-nos a corrente que entende ser a colaboração premiada gênero do qual a delação é uma espécie, vamos nos deter ao ponto central da discussão.

“Seção I

Da Colaboração Premiada

Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados(…)

§ 6o  O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

§ 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor”.

Notória é a preocupação do legislador em afastar o juiz da fase investigatória, quando da propositura do acordo pelas autoridades que, em tese, terão o primeiro contato com o investigado. Muito provavelmente, para garantir a imparcialidade e a lisura no julgamento futuro do feito. Estranheza nos causa o disposto no § 8° do artigo supracitado:

“§ 8o O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.”

Além do mais, não podemos ignorar que quando o Delegado de Polícia ou o Parquet se deparam com este delito de alta complexidade, por vezes, terão que envolver o magistrado na investigação também, a fim de obter, por exemplo, medidas cautelares, como no caso em comento a prisão preventiva.

Nesse diapasão, temos todas as autoridades atuando numa fase inicial investigatória, na qual diante de diversas dificuldades para apurar o delito, seja tecnológica ou qualquer outra, elegem a “vaca sagrada”, ou seja, aquele investigado que aparenta ter a maior quantidade de informações a respeito da organização criminosa e com menor possibilidade de oferecer resistência psicológica diante do cumprimento de uma pena na prisão, vide o papel do doleiro Alberto Youssef na Operação Lava Jato, e lhe oferecem a tábua da salvação, a colaboração premiada.

Torna-se um cenário hediondo na busca de elementos para fundamentar o pedido da cautelar. Depois de subjugado, o investigado, já sem perspectiva de sair do cárcere, visto que mais absurdos são os prazos de duração da prisão preventiva hodiernamente, não tem outra opção a não ser aceitar tornar-se colaborador, comprometendo assim o compromisso com a verdade, bem como com a vontade do agente.

Assim, o legislador, pensando de maneira esparsa e baseando-se no Direito Penal de Emergência, acaba por permitir que o magistrado empunhe a espada de Dâmocles sobre a cabeça daquele que se encontra fragilizado com o fito de arrancar-lhe a confissão.

3.1 Ausência de vontade

O Supremo Tribunal Federal entende que o acordo de colaboração é válido se for resultante de um processo volitivo, querido com plena consciência da realidade, escolhida com liberdade e deliberado sem máfé – liberdade esta psíquica e não de locomoção, bem como o objeto ser lícito, possível e determinável.

Observemos novamente os dispositivos legais:

“Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados (…) grifo nosso

§ 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor”. grifo nosso

Ora, diante do que já discorremos acima, não há que se falar em liberdade psíquica quando o indivíduo está recolhido ao cárcere. Não lhe resta outra opção a não ser assumir qualquer compromisso para dali ser ver livre. Concessa venia, o Egrégio Tribunal parece compactuar com a ineficiência dos órgãos de investigação e permitir que o Estado utilizando de um meio de tortura obtenha as informações necessárias para dar andamento na persecução penal.

3.2 Falta de compromisso com a verdade

Apesar de o art. 4°, § 14, da Lei n° 12.850/13, fazer remissão ao compromisso legal de dizer a verdade a que o agente estaria adstrito, daí não se pode concluir que o colaborador possa responder pelo crime de falso testemunho. Como o art. 342 do CP refere-se exclusivamente à testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete, revela-se inadmissível a inclusão de corréu como sujeito ativo deste delito, sob pena de evidente violação ao princípio da legalidade. Na verdade, a única situação em que o colaborador pode ser ouvido como testemunha é na hipótese de não ter havido o oferecimento de denúncia contra ele, consoante disposto no art. 4°, § 4°, da Lei n° 12.850/13. Nesta hipótese, quando o colaborador não denunciado prestar declarações sobre fatos que dizem respeito à responsabilidade criminal alheia, adquire a qualidade de verdadeira prova testemunhal incriminadora, limitada, à evidência, aos fatos por ele declarados, daí por que deve responder segundo a verdade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Voltemos nossos olhares novamente para o “modus operandi” da Operação Lava Jato. Percebe-se que o Estado juiz se utiliza de um viés que permitiu o combate à “cleptocracia” instalada pelo Partido dos Trabalhadores no Brasil. Entretanto, precisamos ponderar que, quando já fora firmado mais de cinquenta acordos de delação premiada numa investigação, é porque algo não vai bem.

Ainda que boa parte da população não se dê conta disso, essa estratégia midiática passou a fazer parte de um verdadeiro plano de comunicação, que tem por espúrios objetivos incutir na coletividade a crença de que os acusados são culpados, mesmo antes de serem julgados.

Num dia os investigados estão encarcerados por força de decisões que afirmam ser imprescindíveis à medida cautelar, visto que, se postos em liberdade, representariam risco à ordem pública. Mas no dia seguinte, após concordar em assinar o acordo de colaboração são libertados. No mínimo, a prática evidencia o quão retóricos são os fundamentos utilizados nos decretos de prisão.

Estamos diante de uma nova aberração jurídica: a delação premiada às avessas. O Estado utiliza os fins para obter os meios.  Urge uma nova regulamentação para a aplicação do instituto da colaboração premiada, bem como determinar sua incompatibilidade para àqueles que se encontram recolhidos ao cárcere.

 

Referências
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único/Renato Brasileiro de Lima – 4° ed. rev. atual. e ampl. – Salvador: JUSPODIVM, 2016.
MOSSIN, Heráclito Antônio. Delação premiada: Aspectos jurídicos / Heráclito Antônio Mossin, Júlio César O. G. Mossin. 2. ed. Leme: J. H. Mizuno, 2016.
Sítio eletrônico Badaró Advogados: O valor probatório da delação premiada: sobre o § 16 do art. 4° da Lei 12.850/13. Disponível em: <http://badaroadvogados.com.br/o-valor-probatorio-da-delacao-premiada-sobre-o-16-do-art-4-da-lei-n-12850-13.html>. Acesso em 15/09/2016.
Sítio eletrônico DireitoNet: A prisão preventiva e a execução provisória da pena à luz do princípio da presunção de inocência. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5466/A-prisao-preventiva-e-a-execucao-provisoria-da-pena-a-luz-do-principio-da-presuncao-de-inocencia>. Acesso em 20/09/2016.

Informações Sobre o Autor

Jeferson Dessotti Cavalcante di Schiavi

Acadêmico de Direito na faculdade UNAERP em Ribeirão Preto. Agente de Polícia Federal


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Equipe Âmbito Jurídico

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