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Democracia: razão e sentimento

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Um dos temas mais discutidos no âmbito das ciências sociais é a democracia. Podemos no decorrer da história encontrar uma grande e rica viagem do seu sentido, desde sua inicial construção no pensamento e na prática da Grécia antiga até as sofisticadas e variadas discussões sobre a democracia participativa, a democracia dialógica e a construção do Estado democrático de Direito.

Quando, depois de toda esta longa caminhada do conceito de democracia começamos a vislumbrar sua complexidade e seu caráter processual na contemporaneidade, percebemos que sua prática pode anteceder os gregos, pois presente nas sociedades de comunismo primitivo como razão prática fundada na aceitação dos limites do outro, na não apropriação privada egoísta e na divisão do fruto do trabalho.

Assistimos nestes tempos de profundas transformações a crise da democracia liberal, da democracia social e a insuficiência da democracia representativa além da apropriação do discurso democrático pelo poder econômico privado, concentrado nas mãos de poucos, incluindo o importante poder de controle e manipulação da mídia global. No mesmo momento, entretanto percebemos claramente o surgimento e fortalecimento de alternativas. A globalização das comunicações, a Internet, a mídia alternativa, as TV s comunitárias, os jornais locais, as rádios comunitárias, enfim toda uma gama de informação democrática alternativa, que, uma vez organizadas em rede (e obviamente não me refiro aqui as falsas redes meramente reprodutoras de um conteúdo produzido por uma única fonte, mas em uma rede democrática, sem centro, multi paradigmática, uma rede de comunicações entre diversas culturas, que se unem em torno de princípios – e não conceitos – comuns) o mundo pode ser transformado em direção a um processo dialógico de construção permanente de uma grande democracia global.

a) Opinião Pública

Partindo de um conceito de democracia participativa e dialógica, podemos ir percebendo outros impasses contemporâneos. Um desafio muito claro está na necessidade de democratizar o que no senso comum ainda é aceito como democracia, ou seja, desenvolver mecanismos que possam fazer com que a democracia representativa, vitima do marketing, da concentração econômica e da opinião pública possa ser mais democrática do que ela já conseguiu ser no passado. Os exemplos do comprometimento e da necessidade de adaptar esta democracia representativa de forma que ela possa ser democratizada estão claros a nossa volta, pois se acentua nos momentos de graves conflitos de interesses como no caso da segunda guerra do golfo. Várias indagações surgem a partir da constatação de fatos:

a) na Espanha o Primeiro Ministro Aznar decide contra mais de oitenta e cinco por centro da opinião pública apoiar a guerra e os espanhóis se perguntam se vivem em uma democracia;

b) nos Estados Unidos o presidente manipulando uma mídia concentrada e controlada consegue o apoio de setenta por cento da população para uma guerra injustificada perante a opinião pública mundial e os norte-americanos, em sua maioria, tem certeza que vive em uma democracia (na realidade americana percebemos como é mais importante a crença na democracia do que sua efetividade);

c) nos países árabes governos alinhados com os EUA são obrigados pelas manifestações públicas a mudar seu discurso para acalmar os ânimos que podem, se mais exaltados, ameaçar o seu poder não democrático.

Diante destas três assertivas podemos nos perguntar: democracia e opinião pública são conceitos complementares. Responder sim a esta questão seria de uma insuportável simplificação, ao passo que ao justificar o não, poderemos sempre parecer parciais, coisa que obviamente sempre somos, uma vez que somos inevitavelmente auto-referenciais, somos seres históricos e culturais e vemos o mundo através deste olhar histórico e cultural (e obviamente não paramos aí, pois somos seres bioquímicos com todas as limitações e implicações que isto pode representar para nosso comportamento).

Entretanto, há um ponto central nos três fatos acima enumerados: o atendimento da opinião pública não é sinal de democracia, não se confunde com democracia e pode ser usado contra a democracia, enquanto de outro lado a opinião pública pode forçar a democratização e limitar o autoritarismo. Então podemos concluir que há uma opinião pública a serviço da democracia e outra opinião pública (como aquela amplamente favorável a Hitler na Alemanha antes da segunda guerra) que serve ao autoritarismo. Como saber uma e como saber a outra. O primeiro passo é jamais reduzir opinião pública à democracia. A construção de uma sociedade democrática e o funcionamento de processos democráticos dialógicos exigem uma análise extremamente mais complexa da sociedade, das instituições, da cultura, da história e do momento histórico vivido, do que simplesmente a sua redução ao normal funcionamento de um parlamento, de eleições periódicas e da realização de consultas populares através de referendos e plebiscitos, ou pesquisas de opinião.

b) O senso comum democrático: a mídia

Um outro aspecto referente a construção do senso comum sobre democracia está no discurso econômico: a cultura jornalística ocidental como a construção teórica simplificadora dos manuais de Direito adotados nos cursos jurídico reproduzem ainda hoje o conflito do pós segunda guerra. Desta forma países onde não há a adoção de uma economia capitalista[1] não podem neste senso comum, ser democráticos, mesmo que tenham eleições periódicas com grande participação popular.

Situações grotescas surgem a partir desta manipulação dos meios de comunicação: os leitores devem se recordar dos discursos recorrentes dos presidentes norte-americanos no sentido de recuperar a democracia e os Direitos Humanos em Cuba. Este discurso foi repetido pelo presidente George W. Bush em 2003 quando afirmou que o seu governo não poupará esforços para resgatar os Direitos Humanos nas ilhas cubanas. Ora se procurarmos os dados divulgados pela ONU anualmente vamos verificar que Cuba detém os melhores índices na América Latina no que diz respeito ao oferecimento de direitos sociais como saúde e educação, com um índice de criminalidade muito baixo e uma população carcerária pequena. De forma diferente os EUA oferecem índices alarmantes, com uma população carcerária que ultrapassa 2.700.000 (dois milhões e setecentos mil detentos), população permanente entre os milhões que entram e que saem do sistema carcerário, com um número de condenações a morte só superado pela China. Segundo dados divulgados pela Revue Manière de Voir[2] em artigo do sociólogo da London School of Economics, Megan Comfort, dos 9.000.000 (nove milhões) de detentos liberados no curso do ano 2002, mais de 1.300.000 (um milhão e trezentos mil) eram portadores do vírus da hepatite C, 137.000 (centro e trinta e sete mil) portadores do vírus da AIDS e 12.000 (doze mil) com tuberculose, o que representa respectivamente 29%, 13% a 17% e 35% do número de norte-americanos tocados por estas doenças.[3]

O presidente norte-americano ao se referir a situação dos Direitos Humanos em Cuba talvez se referisse aos mais de 600 presos na base militar dos Estados Unidos em Guantanamo (território sob ocupação norte-americana na ilha principal de Cuba), sem direito a advogado, a um processo com ampla defesa e contraditório, sem sequer direito a uma acusação formal e submetidos a torturas sofisticadas diariamente, como a supressão dos seus cinco sentidos e a perda da referência de tempo e espaço. Muitos destas pessoas se encontram nesta situação a mais de dois anos, inclusive cidadãos norte-americanos.

Segundo o Patriot Act II nomeado de Domestic Security Enhancement Act, proposto pelo governo dos EUA, e mais duro que o USA Patriot Act, está previsto o fichamento do DNA de estrangeiros suspeitos ou de cidadãos norte-americanos suspeitos de terrorismo, prevendo ainda os pontos seguintes:

a) um cidadão norte-americano pode ser expulso dos Estados Unidos. Isto se com a intenção de se desfazer da sua nacionalidade, um cidadão norte americano se torna membro ou fornece aporte material a um grupo que os Estados Unidos tenham qualificado de organização terrorista;

b) um juiz poderá então decidir que um norte-americano não merece mais ser cidadão, si sua conduta demonstrar sua intenção de não sê-lo;

c) abandono dos procedimentos judiciais que enquadram as atividades de segurança nacional permitindo detenções secretas.

Estes são alguns exemplos da nova lei proposta, que, entretanto encontra alguma resistência desde a esquerda do partido democrata a direita do partido republicano.

a) A democracia representativa é apenas tolerada.

b) Um exemplo recente de como a democracia representativa se torna intolerável quando esta afeta os interesses da elite econômica minoritária é o caso da Venezuela de Hugo Chaves, que guardadas as diferenças históricas nos faz lembrar do golpe de 1964 no Brasil ou do golpe de 1973 no Chile.

O atual governo da Venezuela foi eleito democraticamente com amplo apoio da população, embora tivesse contra si a grande mídia privada, o que mostra que o poder da mídia e grande, entretanto não infalível. Após o governo ser eleito (primeira eleição) convocou um processo constituinte democrático como raros na história. Foi eleita (segunda eleição) uma assembléia constituinte, a constituição foi votada e aprovada, depois submetida a referendo popular (terceira eleição). A assembléia foi dissolvida (pois se trata de poder temporário) e foram convocadas eleições para o parlamente e novamente para presidente da república (quarta e quinta eleição). Após todo este processo o governo eleito começou a promover mudanças na economia e na sociedade que afetaram interesses de uma elite que sempre se beneficiou de privilégios deixando 80% da população na pobreza ou abaixo da linha de pobreza. Esta elite então, em nome da democracia, patrocina um golpe de estado com apoio de parte das forças armadas, depois de campanha da mídia, de sua propriedade, desmoralizando o governo. O golpe fracassou e seguiu-se uma greve na estatal de petróleo (principal fonte de recursos da Venezuela) com a intenção de inviabilizar economicamente o governo. A greve foi superada com enormes prejuízos econômicos. Agora depois de tudo a oposição tenta um plebiscito para tirar o governo, que não pôde governar como devia diante de tamanha instabilidade, mas que mesmo assim apresenta resultados positivos. A quem pertence a palavra democracia. Quem procura deter o monopólio da construção e divulgação do conceito de democracia. Os mesmos que quando a democracia, que lhes é favorável se torna desfavorável, em nome da democracia, acaba ou tenta acabar com a democracia.

Muitas outras questões podemos formular a respeito do conflito em torno da palavra democracia. Muitos se apropriaram e procurarão se apropriar do seu conceito, mas a democracia se constrói do dialogo livre, no livre pensar no seio de uma sociedade onde a construção de espaços de comunicação sejam possíveis, o que depende da construção da cidadania como idéia de dignidade, libertação da miséria e respeito humano. Não há efetiva liberdade sem meios para exercê-la, e estes meios são os direitos que libertam o ser humano da miséria e da ignorância.

A seguir outras questões para reflexão, que serão objetos de outros artigos:

Os mecanismos de controle dos limites da democracia;

Carl Schmitt e a secularização da teologia;

A emoção como desvirtuamento da democracia;

Matrix ou como o poder nos EUA se mantém ao fazer com que seu povo se sinta livre e se sinta em uma democracia;

Liberdade: sentimento ou realidade;

Como democratizar a democracia;

Democracia e território: espaço e tempo na construção da democracia.

Notas:
[1] Remeto o leitor a leitura do capitulo dois do meu livro Direito Constitucional, tomo I, e dos capítulos 1, 2 e 9 do Direito Constitucional, tomo II, da editora Mandamentos, Belo Horizonte, edição de 2002.
[2] COMFORT, Megan. Manière Voir, n.71, bimestriel, octobre-novembre 2003, Lê Monde diplomatique, pag.66.
[3] National Comissiono on Correctional Health Care,  The health status of soon-to-be-released imates, Chicago, 2002.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

José Luiz Quadros de Magalhães

 

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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