A segunda turma do STF em ação de Habeas Corpus (HC 112936) decidiu que o desacato proferido contra militar das forças armadas, exercendo funções de policiamento ostensivo em atividade de pacificação de comunidades é crime comum e não militar, tendo em vista que o militar enfocado está exercendo função que é eminentemente de natureza civil. Em se tratando de funcionário militar federal, o crime é de competência da Justiça Comum Federal.
A decisão do STF não merece reparos. Realmente a função de policiamento ou a função policial em geral é eminentemente civil. Infelizmente há um ranço das ditaduras que proliferaram por toda a América do Sul, inclusive no Brasil, confundindo Segurança Pública com funções militares sob o pálio da chamada Ideologia da Segurança Nacional. Essa é uma das grandes explicações para a terrível e contraproducente dicotomia existente em nosso país entre Polícias Civis e Militares.
De qualquer forma, uniformizado e sujeito a patentes ou não o Policial é sempre um funcionário público que exerce atribuições de caráter civil e jamais militar, ao menos no exercício de policiamento ou atividades de investigação, repressão e prevenção criminal.
Quando atipicamente militares das Forças Armadas são designados para o exercício de policiamento em apoio às forças de segurança pública dos Estados, passam também eles a exercer funções tipicamente civis.
Em matéria, por exemplo, de Abuso de Autoridade (Lei 4898/65), já se firmou jurisprudência, inclusive nas Cortes Superiores, de que a competência para processo e julgamento é da justiça comum, embora o crime seja perpetrado por Policial Militar em serviço, isso porque não há previsão no CPM de crime equivalente e também devido ao fato de que a atividade de policiamento é de natureza civil (FREITAS, FREITAS, 1997, p. 19 – 20).
No específico caso do crime de desacato previsto no artigo 299, CPM é ainda mais clarividente que a competência é da Justiça Comum (no caso a federal, já que se trata, no caso concreto, de militar das forças armadas, executando serviço de interesse da União – inteligência do artigo 109, IV, CF). Isso porque esse dispositivo exige que a ofensa se dê contra o militar “no exercício de função de natureza militar, ou em razão dela” (grifo nosso).
Como explica Loureiro Neto:
“O dispositivo prevê duas hipóteses: na primeira, é necessário que a ação ocorra quando o militar esteja no exercício da função (in officio), praticando ato relativo ao ofício, isto é, aquele que se compreende dentro de suas atribuições funcionais ou regulamentares. Na segunda hipótese, o desacato ocorre em virtude da função, não estando o militar no exercício da atividade funcional (propter officium). Consequentemente, não há se cogitar o desacato se o militar é ofendido extra officium, como particular e as ofensas não dizem respeito com sua atividade funcional” (LOUREIRO NETO, 2010, p. 206 – 207).
Reforçam essa lição Neves e Streifinger ao asseverarem que “o militar (…) deve estar em função de natureza militar ou, ainda, o desrespeito deve ter – lhe sido dirigido por decorrência da função” (NEVES, STREIFINGER, 2012, p. 1330).
Por seu turno, Romeiro define o que seja função de natureza militar nos seguintes termos:
“Função de natureza militar, com base no art. 23 do Estatuto dos Militares, é o exercício das obrigações inerentes ao cargo militar, devendo-se, no entanto, restringir a compreensão para as atividades ligadas às constitucionalmente destinadas às Instituições Militares” (ROMEIRO, 1994, p. 84). Isso obviamente impede o reconhecimento de que a função policial seja de natureza militar, tendo em vista o disposto no artigo 144, CF, que, ao regular a Segurança Pública, não faz qualquer menção às Forças Armadas.
Ora, se o militar das forças armadas está exercendo função atípica de policiamento ostensivo – preventivo, de caráter claramente civil, não está em atividade militar. Se for ofendido em razão desse exercício ou no seu cumprimento, obviamente o crime que ocorre é comum nos termos do artigo 331, CP, o que afasta a competência da Justiça Castrense. Não há sequer subsunção ao artigo 299, CPM.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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