Resumo: O ensaio discute a repercussão da tecnologia nos negócios jurídicos. Através do paradigma de científico de Erik Jayme e de Friedrich Müller, e com uma metodologia que nitidamente separa o ambiente cultural pré-dado ao sistema jurídico dogmático, o recorte da questão se aprofunda no aspecto social que mais se incrementa com o fenômeno da desterritorialização – os contratos eletrônicos e as decorrentes estruturações desses negócios frente ao direito privado, em especial, o direito do consumidor. Não se trata de uma mera justaposição de aspecto cultura mais o jurídico, antes a preocupação é levantar que o sistema jurídico posto já dispõe de normas cuja vigência podem regulamentar o crescente campo econômico de significativa expressão.
Palavras-chave: direito privado – consumidor – contrato eletrônico – desterritorialização
Abstract: The object is the repercussion of technology in legal business or new relationships issues. Through the scientific paradigm of Erik Jayme and Friedrich Müller, and with a methodology that clearly separates the pre-given (cultural environment) from the dogmatic legal system, the question is how this paradigm happens in the social aspects, because the increases of non territorialization – it’s a discussion about the electronic contracts and the law structure of these businesses, in special, about the consumer rights. There is not a strict law system, in brazilian terms, but rather than juridical aspects, the system that nowadays treats already support standards that can regulate the growing economic field of this significant segment in course.
Keywords: private law – consumer – electronic contract – non territorialization
Sumário: Introdução. 1 A relação jurídica no modelo cultural da pós-modernidade. 1.1 A pós-modernidade e o primado da pessoa (dignidade do ser humano) sobre o sujeito (estado de sujeição). O esquema do Estado Constitucional Brasileiro. 1.2 A experiência virtual como modo-de-vida da relação jurídica pós-moderna e a decorrente desterritorialização. 1.3 A relação jurídica desterritorializada (ancoragem do pluralismo metódico ou substancializado). 2 Os efeitos da desterritorialização das relações jurídicas nos contratos eletrônicos interativos. 2.1 A hivervulnerabilidade do “não-lugar” virtual e o decorrente avatar da confiança em novas relações eletrônicas. 2.2 A substancialização jurídica do elemento de conexão ou o caminho para uma definição das normas aplicáveis aos contratos eletrônicos desterritorizalizados. 2.3 A essência da formação dos contratos eletrônicos na demografia massificada. O tempo e o local da relação como contingências do espaço virtual. Conclusão. Referências
Summary: Introduction. 1 The legal relationship in the cultural model of postmodernity. 1.1 Postmodernity and the primacy of the person (dignity of the human) over the rejection (state of subjection). The scheme of the Brazilian Constitutional State. 1.2 The virtual experience as a way-of-life of the postmodern legal relationship and the consequent non territorialization. 1.3 The non territorialized relationship (the method or substantial pluralism system). 2 The effects of non territorialization of relationships by the interactive electronic contracts. 2.1 The super vulnerability of virtual "non-place" and the avatar issue of trust in new electronic relationships. 2.2 The substance of the connection or the path to a definition of rules applicable to electronic contracts that are non territorialized. 2.3 The essence of the formation of massified electronic contracts. The time and place as contingencies of virtual relationships. Conclusion
Introdução
As ciências trabalham com relações entre os elementos ou objetos que as diferenciam enquanto experiências com determinada utilidade para a vida das pessoas. A matemática, a química, ou a física tratam de elaborar fórmulas que predispõem entidades capazes de remeter o operador a uma conclusão ou para a continuidade de procura de conclusões ao estudo dos casos[1]. A experiência jurídica também atende a essa necessidade decisória.
A noção savignyana da relação jurídica encerra essa fórmula que envolve objeto, pessoa e vínculo. O importante é situar o ambiente cultural no qual Savigny identificou tal estratagema, porque, naquela época da sociedade classicista, estamental e com o discurso da “vontade geral” ideologicamente neutra, os critérios levados em conta, hoje, passaram a serem aspectos auxiliares, sem toda aquela relevância de outrora. Em suma, os critérios de Savigny deixaram de ser axiomas para serem contingências de uma metodologia mais abrangente.
Em uma época na qual o direito consistia em uma construção monopolizada pelo Estado[2], a relação jurídica entre duas pessoas encerrava uma posição de proeminência de um sujeito ativo sobre um sujeito passivo, daí que o objeto somente atendia a noção de imputatividade que a regra jurídica predispunha entre os interessados[3]. O direito organizava uma coerção, uma imperatividade pelo medo da sanção. Assim, Savigny teve sucesso na empresa na qual uma relação jurídica estava vinculada à soberania do Estado Nacional, segundo a metodologia unitária de feições pandectísticas, naquele movimento inercial onde as coisas se mantinham em seus lugares – fossem objetos, fossem sujeitos, ou fossem os critérios que coligavam uns aos outros.
A relação jurídica é basilar no direito privado e, devedora da supervivência positivista, no Brasil, a relação jurídica passou a ser entendida nessa modalidade vinculativa entre dois sujeitos, por ocasião da interferência soberana do monopólio estatal. Kelsen resume que “o direito de um apenas existe sob o pressuposto do dever de outro, e uma tal conexão jurídica, de acordo com a ordem jurídica objetiva, apenas pode constituir-se, no domínio do direito privado, em regra, através da manifestação concordante da vontade de dois indivíduos. E isto também somente na medida em que o contrato é assumido pelo Direito objetivo como fator criador de Direito, de tal forma que a regulamentação jurídica, em última análise, resulta precisamente desde Direito objetivo e não do sujeito jurídico que lhe está subordinado. Sendo assim, também no direito privado não existe qualquer autonomia plena”[4].
O espaço virtual modifica esse estado de coisas, trata-se de um “não-lugar” empírico.
Todavia, a nitidez daquela compleição estática da relação jurídica desvenda um elemento de conexão pouco flexível como pressuposto da relação: basta que a norma jurídica impute um vínculo de atributividade e imponha uma posição de preferência de determinado sujeito ativo sobre outro sujeito passivo, então, confere-se confere uma “vontade geral ou razão” de proeminência no tocante a algum objeto.
Um conceito deducionista porque estático, porque devedor da lógica-formal. Em primeiro lugar, porque reflete o interior da relação jurídica, sem vislumbrar o sentido de novas estruturas que podem ser formadas na pós-modernidade; em segundo lugar, porque uma percepção funcional disciplina situações nada restritas ao monopólio estatal, pelo contrário, em uma perspectiva dinâmica se fala em ordenação objetiva de valores que estão em tensão, fala-se em heterogeneidade, hipercomplexidade, contingência, novas relações, evolução dos arranjos sociais, abertura sistêmica, fechamento operativo, mobilidade interna, enfim, o pós-moderno se trata de uma realidade cultural que relativiza tempo-espaço, e ocasiona a desterritorialização da relação jurídica.
Tudo o que era sólido e fincado em raízes entrincheiradas no poder da soberania acaba se dissipando na incerteza do relativismo autorregulatório porque funcionalizado, porque tendente a valores que estão em tensão. Falar em cultura é falar em valores, porém, nas antigas sociedades, os valores não destoavam daquilo que o Estado dizia ser o “melhor” ou o “ótimo”.
O próprio Savigny previa a modificação dos institutos, quando ele propõe uma metodologia de leitura crítica e, sobretudo, histórica, das questões jurídicas[5]. Ou seja, a conduta normativista, fundada no legicentrismo, jusestatalismo e formalismo interpretativo não acompanha, na atualidade, a dinamicidade das relações. O direito pauta uma estabilidade marcada, porém, não afasta das regulações o que pode acontecer como novidade, não deixa a descoberto inéditas relações jurídicas, sendo reflexo de reluzente modalidade o fenômeno da desterritorialização da relação jurídica.
A desterritorialização da relação jurídica arrefece a estrutura originária encerrada nos conceitos basilares do direito privado. Desterritorizalizar é desmaterializar, algo contemporâneo e inimaginável no século XIX.
Então, o presente ensaio chega a ser uma espécie de metadiscurso, pois discorre sobre a maneira de ver a natureza da relação jurídica – agora, um metadiscurso que toma o cuidado de não recair em um irrealismo metodológico: o texto pauta a importância do método que elabora o vínculo de atributividade da relação jurídica, vale dizer, o texto enfatiza o fundamento ou o sentido (para onde vai) da força normativa que regulamenta a relação jurídica.
Contudo, a reflexão não perde de vista a utilidade e a funcionalidade dos conceitos até então utilizados, pelo contrário, o objetivo é aproximar tais conceitos das novas relações atualmente alinhavadas, conferindo-lhe as feições culturais atualmente vigentes. Quer dizer, a tentativa é trazer, para o direito, o que os valores culturais reclamam: a intervenção e a positivação de elementos éticos.
Nesse sentido, é facilmente identificado um recorte do trabalho em duas partes, que ressalvam as perspectivas metodológicas do direito na atualidade: a natureza cultural do direito e a necessidade de dotar as decisões de uma estruturação científica porque normatizada. Um perfil realista e crítico cujo referencial teórico ressalta os trabalhos de Erik Jayme e de Friedrich Müller.
No primeiro plano do ensaio, salienta-se o fundamento de uma nova perspectiva da relação jurídica, a questão da pós-modernidade como um fenômeno diverso daquele sobre o qual Savigny estabeleceu as bases da relação jurídica clássica. Não se trata de uma conversação desconstrutiva, aliás, é a partir dessa nova maneira de observar as coisas jurídicas, por intermédio de um referencial do diálogo das fontes e de um referencial que contextualiza o sincretismo entre direito e fato (modelo hermenêutico), que se resulta em um arsenal jurídico que permite o manuseio de ferramentas maleáveis – porque abertas e móveis – às tendências outrora não previstas nos séculos passados.
A única certeza que existe, no mundo atual, é a certeza da mudança.
E, na medida em que nem tudo o que acontece está previsto no ordenamento jurídico, são necessárias as soluções de continuidade e de integridade do sistema jurídico, para que as novas relações jurídicas reflitam a previsibilidade inerente ao sistema jurídico. Em especial, a questão da desterritorizalização das relações jurídicas como um fenômeno crescente e decorrente do espaço virtual.
No segundo momento do ensaio, em decorrência da própria ressalva histórica de Savigny, salientam-se os efeitos de uma nova realidade para a dogmática do direito privado, particularmente, na temática das relações jurídicas efetuadas por intermédio do ambiente virtual.
A eleição do comércio eletrônico, e mais, a eleição do contrato interativo como matérias-primas é consequência do significativo volume dessa modalidade relacional celebrada pela internet. Alguns autores falam em “colocação eletrônica à distância”, em “tráfico negocial eletrônico”, em “contratos eletrônicos”, em “contratos por computador”, mas o que interessa, nessa polissemia, é constatar que esse meio ou essa modalidade de contratação tem algo em comum – a desmaterialização do espaço, a oferta e a disponibilização globalizada dos produtos, daí a intimidade desses fenômenos com alguns referenciais do Direito Internacional Privado.
Em realidade, mais que um meio ou mais que uma modalidade de contratação, o contrato eletrônico, sobretudo, o contrato interativo assumiu um “modo-de-vida” das pessoas. Atualmente, as pessoas passam 24 horas por dia conectadas, sem limitações com base na outrora deusificada soberania. Portanto, o objetivo da reflexão é fomentar ou discutir sobre as ferramentas com as quais se decidem algumas questões referentes à desterritorialização das relações jurídicas. Qual o direito material se lhe aplica? Qual o foro competente para a resolução dos litígios? Problemática cotejada ao panorama do direito brasileiro, repleto de normas cogentes porque imperativas, e que faz confrontar o DIP, o CDC, e traz em reboque os velhos cânones savignyanos como ferramentas mais subsidiárias que essenciais.
A ética alavancou o direito do consumidor como um direito fundamental. Logo, não basta a lógica-formal ou o dedutivismo para solucionar heuristicamente qualquer problema. O motivo-guia, o retorno dos sentimentos, a assunção do paradigma da vulnerabilidade operou uma rotação epistêmica no direito – a figura do consumidor assume uma postura que embasa axiologicamente a decisão jurídica, com o reforço do método, que está substantivado por valores encerrados na Constituição.
1 A relação jurídica no modelo cultural da pós-modernidade
Durante séculos, o direito privado firmou conceitos que regulavam situações jurídicas em um plano firmado pela equidistância subjetiva e pela inércia dos objetos. Em decorrência, o próprio conceito de relação jurídica não apresentava questões complexas pertinente à metodologia daquilo que ele denomina “atributividade” ou “imputatividade” da força normativa que encerrava o vínculo jurídico, porque, esse liame jurídico seria decorrente da imputação, da vontade prevista na regra jurídica.
A natureza das coisas tratadas pelo direito privado era estática. Portanto, não causava surpresa que a maneira de trabalhar essas matérias-primas fosse regrada por critérios fixos, uma maneira pontualista de resolver os casos – caracterizada pela axiomática ou pela lógica formal do positivismo normativista.
A modus moderno do direito privado, o individualismo e o primado da soberania chega a ser supervivente, no Brasil, é verdade. Afinal, na prática das instituições brasileiras, desgraçadamente, o direito continua sendo somente aquilo que é regulamentado pelo Estado, e o Estado seria o átimo soberano que o direito determina, tudo compondo uma circularidade onde aquilo que fosse “alheio” ao Estado configurava um antagonista, algo refratário ao ambiente jurídico. Vive-se de axiomas e de deducionismos “intuitivos”.
A soberania estatal, portanto, para grande parte dos operadores, é o ponto de partida e o ponto de retorno das soluções jurídicas, um continuum fechado que sustentou ou sustenta o formalismo interpretativo, o jusestatalismo e o legicentrismo[6], fenômenos que se centralizaram nas regras do Código Civil todas as diretrizes do direito privado.
Um esquema dicotômico porque cartesiano – e resulta no seguinte: ou a questão está(va) prevista no código, e pertencia à força da soberania, ou estava fora do código, e deveria ser rechaçada como matéria refratária ao sistema do direito privado moderno (que se alastrou para além da contemporaneidade, nas cabeças que insistem em pensar nas metodologias unitarizantes dos séculos passados).
1.1 A pós-modernidade e o primado da pessoa (dignidade do ser humano) sobre o sujeito (estado de sujeição). O esquema do Estado Constitucional Brasileiro
O pressuposto da pós-modernidade é o “tornar-se diferente” do mundo moderno.
Aliás, o pós-moderno pretende assumir todas as formas e conceitos não admitidos pela modernidade – época na qual se fixaram noções pontualistas, ideias do “comum”, do “normal”, o que deve ser feito porque sempre foi efetuado daquela mesma forma; a modernidade, vale dizer, fixava conceitos que pretendiam sobrepujar o tempo e o espaço, conceitos que pudessem identificar perenemente a natureza das coisas[7]. Ou seja, conceitos abstratos com pretensão de imutabilidade.
Justamente, o Estado Constitucional, o Estado contemporâneo não somente encerra as noções particularistas e pluralistas, que o diferencia da inércia modernista, como também admite a corrosão crescente do supedâneo vertical da soberania como produtora e recebedora de todas as forças jurídicas da atualidade.
Zagrebelsky[8] chega a comentar que forças corrosivas internas e externas implicam uma releitura da soberania, com ascensão da primazia do ser humano como o centro do pluralismo valorativo que unifica os sistemas jurídicos. Por exemplo: as contingências políticas fragmentadoras do poder central; a formação de centros alternativos de poder; os imperativos econômicos, ideológicos, religiosos e culturais, em dimensões que acabam por fragmentar o próprio território; a neoinstitucionalização de contextos arregimentados por novos costumes e práticas, como o próprio comércio eletrônico; e a tendente supremacia de Tribunais supranacionais; cada questão influencia, à sua maneira, e compõe um circuito de forças que descentraliza o poder, para daí revalorizar o sentimento do ser humano como o início e o ponto de chegada das soluções jurídicas.
A internet chegou para implodir as certezas dos limites do soberano[9].
Aliás, a soberania é contestada, inclusive, internamente, um reflexo do pluralismo cada vez mais desencontradiço, e de coalizões cada vez mais inconstantes, que flertam com interesses voláteis porque imprecisos, mais tendentes aos interesses do mercado que aos efeitos meramente jurídicos.
Tudo sopesado, o direito atual convive com a desterritorizalização das relações jurídicas, que reflete um aspecto tecnológico altamente vinculado ao manejo da internet.
Em outras palavras, a internet é peça fundamental dessa descentralização. Por intermédio da internet, o mundo se transformou em uma aldeia global, e as distâncias foram dizimadas e desprivatizadas. O que acontece na China, nesse exato momento, pode ser avistado na tela de um celular. Um míssil atômico ou uma arma diabólica pode ser detonada por um clique computadorizado. Daí que a internet, definitivamente, abriu as relações jurídicas e as relações mercadológicas, extinguindo as inflexões da soberania clássica.
Isso teve um preço.
A desumanização das relações, no debate entre Irti e Oppo, desencobre a desconfiança das pessoas no espaço virtual. O debate leva em conta dois aspectos[10]: a internet deixou de considerar a vontade das partes e, sobretudo, deixou de considerar a pessoa humana? Ou a internet apenas qualificou a vontade das partes, daí lhe atribuindo uma qualificação comportamental, como se fora cognitiva-comportamental?
De qualquer maneira, após a segunda guerra mundial, torna-se inaceitável uma formação jurídica formalista e fundamentada unicamente na vontade como algo subjetivo ou interno ao sujeito. Valores éticos, pluralistas, sobretudo, valores que contestam as noções modernas se sobrepuseram ao sistema da metódica jurídica.
Nesse sentido que se fala que a condição humana é uma condição “social”, e não meramente estatal. O ser humano é um organismo em relações e para relações, sendo que o direito é nota instrumental ao ser humano – não o contrário. Portanto, Giorgio Oppo[11] é contundente ao resumir que a juridicidade que regulamenta as relações sociais não pode ser confundida com o poder estatal. O Estado não é apenas uma relação entre os indivíduos, antes o Estado é uma ferramenta que tutela as relações humanas sem, contudo, retirar a essência humana que, naturalmente, pode evoluir e organizar novas tendências contratuais, ou relações jurídicas ainda não previstas.
Logo, se a modernidade enfatizou esquemas dicotômicos e com pretensão de perenidade, a pós-modernidade se movimenta na dinâmica da velocidade do tempo-espaço. Aliás, a única certeza do pós-moderno é que tudo é passageiro, tudo é dinâmico, hipersensitivo, heterogêneo, repleto de particularidades, interdisciplinado, ou seja, comprometido com o pluralismo de valores em permanente tensão, e devedor de uma comunicação entre as fontes que estão cada vez mais abertas a novas ideias e sentimentos.
“O comum, o igual não será negado, mas aparece como subsidiário, como menor”[12], como uma contingência que vai ao encontro da contradição das premissas do sistema pós-moderno.
De qualquer maneira, as teorias da autoridade positiva, ou da ordenação objetiva dos valores, dentre outras, acabam cedendo espaços para uma nova composição das coisas jurídicas – na medida em que os objetos são dinâmicos e fugazes, na perspectiva que as pessoas já assumem o “presente” como um imaginário “entre-lugares” que está somente separando o passado e o futuro, o fundamento normativo está configurado pelo pluralismo metodológico, ou melhor, por um conjunto heterointegrado que reúne o direito posto e as novas composições linkadas nos comportamentos que se repetem como tendências de relações sociais cuja consciência está deprimida, está no divã, tentando entender se a humanidade está no início de uma nova era, ou no final de seus dias.
O fundamental é visualizar o ponto de partida e o ponto de chegada dessa hiperperformance jurídica, que decorre da cultura pós-moderna.
O Estado Constitucional tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da CF). Além disso, firmou o compromisso de promover a liberdade e a igualdade, com a crescente solidarização, em todos os campos do direito. Isso somente é possível através de mecanismos que encerram previsibilidade, ou seja, uma metodologia de trabalho que envolva fatos (o valor da verdade) e normas, em um perfil estruturante até o atingimento dos resultados esperados. Quer dizer, o Estado Constitucional privilegia uma solução de coerência com o sistema verticalizado “desde a Constituição” – daí se dizer que qualquer método de trabalho a ser adotado deve privilegiar os valores em tensão, valores que a própria Constituição, em alguma medida, já predispõe como prementes, sejam eles explícitos ou implícitos[13].
Por entre a dignidade e os valores a serem atingidos, está a desterritorialização das relações jurídicas – nisso, a importância de uma metodologia que permita avistar a maneira do direito trabalhar com tal realidade. A metodologia que elabora a ancoragem, o sustentáculo da relação no espaço virtual.
1.2 A experiência virtual como modo-de-vida da relação jurídica pós-moderna e a decorrente desterritorialização
A pós-modernidade alavanca particularismos, é como se o direito tivesse que reelaborar o cenário normativo ou a maneira de pensar tal cenário frente ao supedâneo de novidades que rapidamente se dinamiza. A globalização, os imperativos do mercado, sobretudo a comunicação e a velocidade das contratações, veiculadas pela internet, desfizesse o império da soberania absoluta dos Estados, ou melhor, fixassem que os limites – os borders – utilizados como matérias-primas e como ferramentas jurídicas devessem uma revisitação.
Um fenômeno não meramente ontológico ou epistêmico, sobretudo, uma recategorização axiológica – porque ela depende de uma nova metodologia, porque encerra valores.
Lorenzetti chega a comentar que “se a norma se refere ao lugar ou ao tempo, e essas noções mudam, pode ser produzida sensível desestruturação do direito. Existe um novo espaço: o cibernético (ciberespaço), diferente do espaço físico, com uma arquitetura caracterizada por sua maleabilidade, posto que qualquer um pode redefinir códigos e interagir neste espaço, o que converte em um objeto refratário às regras legais, as quais levam em conta tais elementos para decidir numerosos aspectos jurídicos”[14].
Em realidade o ciberespaço é um “não-lugar”, quer dizer, um veículo não palpável aos sentimentos modernos, um desenquadramento das estruturas inerciais de outrora, tanto que a relação de tempo e espaço assumem dimensões não pontuais. Ou melhor, o tempo e o espaço estão fragmentados porque a internet e a dinamicidade das relações jurídicas que ela implica são imediatistas e concomitantes. O regime espaço-temporal, outrora uma essência das relações jurídicas, torna-se uma contingência de objetivos a serem alcançados – sejam objetivos econômicos, sexuais, comunicativos, religiosos, ou, inclusive, terroristas.
O direito atual, não meramente, tenta enquadrar ou efetuar uma sotoposição dos fatos às regras. Evidente que novas normas devem acompanhar, marcadamente, esse ritmo de evolução do espaço virtual, em especial, na regulamentação das relações jurídicas.
De qualquer maneira, o que se pretende, e aquilo que se dispõe, na atualidade, é um regime jurídico cuja abertura permite a operacionalização de diretrizes regulamentadoras dessa relativização do “não-lugar” espaço-tempo, tudo através de uma metodologia de trabalho que reflita, com coragem e veemência, sobre o pluralismo identificado.
Os clássicos cânones da aplicação hermética de normas – como a hierarquia, a especialidade, a cronologia, a gramática – acabaram se tornando pontos de vista auxiliares.
Em primeiro lugar, porque uma metódica contemporânea não dispensa uma separação ortodoxa do fato e do direito; em segundo lugar, porque o fenômeno da desconstrução dos limites espaço-temporalmente, outrora absolutos, reclama um diálogo entre as fontes para que as funções, para que as finalidades das programações sociais sejam, juridicamente, também respaldadas pela maneira de compreender e aplicar o direito.
O fenômeno da desterritorizalização reflete, no direito, uma nova estrutura de um sistema social, ou uma desestruturação do classicismo da modernidade. Justamente, Luhmann reitera, desde seus primeiros escritos, que a sociedade é um sistema e o direito deve responder, com elasticidade, às reformulações desse sistema – que está em constante transformação. “No decorrer do desenvolvimento social em direção à complexidade mais elevada, o direito tem que abstrair-se crescentemente, tem que adquirir uma elasticidade conceitual-interpretativa para abranger situações heterogêneas, tem que ser modificável através de decisões, ou seja: tem que tornar-se direito positivo”[15].
Em escritos mais recentes, Luhmann deixou ainda mais clara a noção de “abertura” do sistema, para o atingimento de finalidades.
Mesmo assim, evidente que novas relações jurídicas – relações cibernéticas, contratos eletrônicos, comunicações dinâmicas, imediatistas, entre-lugares ou não-lugares – subentendem uma nova maneira de entender o regime jurídico que pauta a vida das pessoas.
A internet[16], inclusive, está deixando de ser um meio de comunicação, para transformar-se em um modo-de-viver. Porque se contrata pela internet, pratica-se crime pela internet, movimentam-se milhões em dinheiro, e até o sexo virou matéria das telas do celular.
Assim, o “não-lugar” ou o espaço cibernético assumiu a ponta das relações jurídicas, chegando-se a classificar produtos e pessoas pelo site em que são encontradas, e não pela essência ou pelo grau de satisfação que tais produtos ou pessoas podem alcançar em uma relação.
As barreiras do Estado soberano estão superadas, daí que a grande massa de contratações se tratam de contratos à distância, contratos entre pessoas e empresas de países diversos. O próprio Estado Nacional, para fazer parte desse sistema social, deve interagir para que seja reconhecido. Do contrário, ele estará fora do pluralismo e da comunicação que a pós-modernidade implantou – algo em constante movimento, cuja única certeza é a falta de certeza em termos de fixação do objeto e das pessoas.
Considerada a desterritorialização como um “não-lugar”, como um recurso da virtualização das relações jurídicas, o problema é como o direito pode atuar para regulamentar os negócios ou os empreendimentos.
Afinal, se a sociedade está em constante movimento, o que sobra nisso tudo?
A saída é tender para o desforço metodológico, no sentido de estabelecer uma imperatividade que encerra a inerente tensão de valores mínimos que, em alguma medida, mantenham uma previsibilidade nas relações.
O ponto de contato entre o movimento cultural pluralista e o direito são os valores. Porque falar em cultura é falar em valores. Ainda, o direito atual, o direito do Estado Constitucional reclama uma posição e uma positivação de pautas éticas. Em outras palavras: o direito se aproximou da moral. Por isso que, para além da técnica, é necessária a ética, a alma, o retorno dos sentimentos.
Com efeito, a metódica estruturante (Müller) e o diálogo das fontes (Jayme), que, respeitosamente, em grande medida evoluem aspectos das teorias dos sistemas desde Parsons, Luhmann e Teubner, fornecem encerramentos de regulação jurídica significativos para ajudar a resolver diversos problemas jurídicos que se apresentam, pelo menos, no cenário brasileiro.
A desterritorialização é diretamente proporcional à desregulamentação[17] das relações. Daí que tais fenômenos estão marcados pela ubiquidade (possibilidade de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo), pela dinamicidade (aceleração das relações) e pela liberdade. Com a relativização dos conceitos do objeto e do sujeito, porque tudo passa a depender da interação ou comunicação pluralista, assume relevo a nota metodológica que empresta previsibilidade (leia-se: qualificação jurídica) a situações tão díspares quanto aparentemente incertas.
A estraneidade, outrora observada como elemento estático, hoje se trata de uma dinâmica desterritorializada. Para qualificá-la ou, nos termos do Direito Internacional Privado, para a conectar ao direito ou ao foro de um ou de outro lugar, não basta pensar em critérios de especialidade, hierarquia ou anterioridade – os padrões savignyanos; é preciso método.
O método pressupõe axiologia, ou seja, o revival da ética nas relações, o privilégio dos paradigmas consagrados como fundamentais.
1.3 A relação jurídica desterritorializada (ancoragem do pluralismo metódico ou substancializado)
O “não-lugar”, a ubiquidade, a falência dos lugares privativos, a heterointegração, os particularismos, o descrédito resolutivo dos cânones ou das lógicas-formais, as transições velozes e os imediatismos, enfim, reconfiguram figuras jurídicas em todos os compartimentos do direito privado. Desde o direito das obrigações até o direito de família.
A inter networking ou o ciberpaço deixou de ser um meio ou uma modalidade de contratação. Provável que ela tenha sido promovida a uma forma de vida, um “modo-de-viver”.
Nesse carrossel interminável de informações miscigenadas, díspares, concomitantes e, sobretudo, desmaterializadas dos átomos do corpo sensível do homem de carne e osso, perde importância investigar a regra jurídica estrita. De outro lado, ganha relevo saber que a interconectividade entre fatos e direito chega a não seguir regras prontas, esse pluralismo de valores e de diferenças, mesmo, possui espaços de autorregulação, o que demonstra um perfil aberto, movediço, dúctil, que ora se aproveita de normas prontas, ora apresenta uma experiência jurídica cujo modelo ou estado de coisas remete ao desempenho de uma função – uma finalidade social.
Daí a importância do realismo metodológico[18].
Sendo a relação jurídica um conglomerado entre um objeto movediço, sujeitos impessoais, e tendências cada vez mais dinâmicas, é preciso manter a força da vinculação dessas entidades por intermédio de uma metódica que implica previsibilidade ao esquema jurídica dessas relações. Para tanto, em especial, vale-se de três referenciais que integram tais elementos, em uma circularidade hermenêutica que reflete a perspectiva desde a Constituição, e desde o direito internacional – afinal, os contratos à distância não respeitam limites geográficos e a soberania, no ciberespaço, virou peça de museu.
A supervivência da dogmática positivista trabalha com uma separação ou justaposição entre fatos e normas, entre ser e dever ser, entre texto da norma e normatividade. Com efeito, a maneira ortodoxa de resolver os problemas novos é a “adaptação”, é tentar ajustar o contrato eletrônico – por exemplo – àquilo que já existe no ordenamento. Sem possibilidades de lacunas, sem chances de tensões valorativas, porque, “questões jurídicas efetivamente em aberto não podem surgir. Cada nova questão jurídica da práxis já foi solucionada pelo sistema”, conforme a crítica de Friedrich Müller[19].
As perspectivas metodológicas do direito, na atualidade, em especial, no tocante ao modo-de-vida internáutico, podem ser sintetizadas em duas ideias fundamentais: a natureza cultural do direito, ou seja, existe um ambiente pré-dado que, através da tradição, por intermédio das novidades sociais, estabelece uma natureza comum às coisas praticadas pelos grupos que marcam as relações jurídicas; além disso, as decisões jurídicas sempre estão pautadas em uma estruturação normativa, em normas jurídicas[20].
Quer dizer que a “norma é mais do que um enunciado de linguagem que está no papel, a sua ‘aplicação’ não pode se esgotar somente na interpretação, na interpretação de um texto. Muito pelo contrário, trata-se da concretização, referida ao caso, dos dados fornecidos pelo programa da norma, pelo âmbito da norma e pelas peculiaridades do conjunto de fatos. A partir do conjunto de fatos do caso – não importando se ele deve ser decidido concretamente ou se ele apenas é imaginado – destacam-se como essenciais ao caso aqueles elementos que cabem no âmbito da norma e são apreendidos pelo seu. Programa da norma e âmbito da norma são, por sua vez, interpretados no mesmo processo de formação de hipóteses sobre a norma com vistas ao caso concreto e, no decurso desse processo, não raramente modificadas, clarificadas e aperfeiçoadas”[21].
Realidade e direito, ou sociedade e normas encerram um “processo estruturado e estruturante” de soluções decisórias. Ou seja, as normas apresentem um âmbito de incidência que, avistados na perspectiva cultural (da tradição), demanda-se um constante circuito avaliativo que firma tanto a importância da substancialização (observação dos novos ou inéditos fatos) como a criteriosa tensão entre os sentidos que podem ser conferidos a tais fatos – isso é possível através de um diálogo entre as fontes jurídicas, porque o ordenamento jurídico não positivou tudo o que acontece no “não-lugar” virtual. Pelo contrário, a cada dia surgem novidades cuja valoração remete ao complemento metódico que transcende a mera analogia jurídica.
A teoria do diálogo das fontes vem ao encontro das metódica estruturante de Friedrich Müller, ainda mais, tratando-se do comércio eletrônico, temática majoritariamente utilizada pelas contratações massificadas que, atualmente, movimentam a economia. Em especial, os contratos interativos “business to consumer”, ou seja, os contratos tipicamente de consumo, mas veiculados pelo espaço da internet.
O art. 5º, XXXII, da Constituição, determina que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. A elaboração do Código de Defesa do Consumidor (art. 48 do ADCT) complementa esse mandamento constitucional e estabelece normas de ordem pública e de interesse social (art. 1º do CDC), declarando direitos subjetivos ao consumidor (art. 6º) e fixando o compromisso com a ativação de uma política nacional de relações de consumo (art. 4º) que, na verdade, são dispositivos que resumem as pautas internacionalmente reconhecidas na contínua evolução do direito do consumidor. O Estado promoverá, então, a defesa do consumidor em todas as modalidades de sua atuação, inclusive, com intervenção nas relações privadas, considerando o efeito “irradiador”[22] da previsão constitucional. O que implica a utilização do Código do Consumidor ao comércio eletrônico.
Na verdade, o Estado deve interferir com razoabilidade e suficiência no mercado, e fornecer meios e oportunidades a todos, sendo que a isonomia prometida pela Constituição não representa apenas um limite negativo, antes configura uma meta para concretizar os “verbos de ação ao tratar da igualdade”[23], ainda mais porque a defesa do consumidor é um princípio da ordem econômica cuja finalidade é assegurar uma existência digna a todos (art. 170, V, da CF).
A dignidade da pessoa é uma empresa em construção, porque esse padrão de igualdade não é um dado da realidade, mas um objetivo a ser construído através de ações estatais positivas. Daniel Sarmento refere que “os mecanismos de jurisdição constitucional ao longo do século XX, conferiram ao Judiciário a possibilidade de exercer o controle sobre as ofensas aos direitos fundamentais perpetradas pelo próprio legislador. Assim, ao lado da igualdade perante a lei – que se destina ao aplicador da norma e veda que ele a empregue com discriminações ou favoritismos – tornou-se possível combater também a igualdade na lei, convertendo-se a isonomia em parâmetro de valoração de todos os atos normativos”[24]. Para além da previsão de um contexto de normas jurídicas abstratas, a fundamentalidade material e formal do direito do consumidor implica a preferência das normas e da própria posição jurídica do consumidor perante outras normas e outras posições jurídicas – as normas e posições que estão ao lado dos demais agentes do mercado –, quando essas normas e posições são confrontadas no plano concreto, aponta Bruno Miragem[25].
Os efeitos irradiantes ou as implicações decorrentes da fundamentalidade do dever de tutela do consumidor, consoante Ferrajoli[26], encerra imposições de ordem normativa, pragmática e hermenêutica. O efeito normativo condiciona as regulamentações infraconstitucionais e derroga as normas que não se conforma ao sistema. O efeito pragmático enseja a organização de procedimentos e técnicas que devem ser entregues para efetivar a tutela do consumidor. O efeito hermenêutico[27] está na imposição da integração, da interpretação e da construção dos sentidos das normas de maneira adequada à unidade de sentidos funcionalizada à defesa do consumidor. Com efeito, falar em perspectiva objetiva ou subjetiva, em eficácia vertical ou horizontal, ou eficácia vertical com repercussão horizontal, bem como falar em multifuncionalidade dos direitos fundamentais, é uma terminologia alexyana[28] que ratifica as indicações polissêmicas da teoria de Ferrajóli. A teoria de um autor não precede à outra, o que interessa é consolidar que a elevação da defesa do consumidor como um direito fundamental e como um princípio da ordem econômica torna imperiosa uma sistematização de normas e uma concretização de sentidos que preencha o compromisso da experiência jusconstitucional brasileira.
“O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (art. 5º, XXXII) afirma uma ponderação ou tendência, resolve uma preordenação de finalidades e condiciona praticamente a aplicação de uma norma em direção à defesa do consumidor. A força normativa tensionada pelo sistema jurídico brasileiro polariza-se em busca de uma perspectiva, ao encontro de um paradigma, seja quando o legislador elabora uma lei, seja quando o administrador aplica a norma, ou mesmo quando o juiz efetua um julgamento. Logo, no confronto entre a posição jurídica do consumidor e a posição jurídica do fornecedor, a solução de sentidos que o ordenamento condiciona é pelo privilégio da defesa do consumidor[29].
A defesa do consumidor é um “leitmotiv” (motivo-guia) densificado como direito fundamental. Assim, na regulamentação dos contratos eletrônicos, as normas não refletem uma lógica de aplicação axiomática, antes elas dialogam entre os diversos regimes jurídicos que podem estão em tensão, que podem se coordenar para a solução dos casos concretos. Nesse sentido, Erik Jayme estabelece uma teoria metodológica na qual, observado o pluralismo e demais aspectos da pós-modernidade, entre eles, a comunicação, a narratividade e primazia dos direitos fundamentais, as normas jurídicas que aparentemente podem estar em conflito devem convergir para uma solução de continuidade funcionalizada dos objetivos predispostos pelo sistema jurídico. Notável o referencial semelhante à teoria dos sistemas que, em outras, palavras, fala em finalidade, adaptação, manutenção da estrutura e integração[30].
Para tanto, um diálogo entre as fontes[31] se vale de critérios de solução de aparentes conflitos de normas: (a) aplicação simultânea de normas, quando uma serve de conceito para outra (diálogo sistemático de coerência); (b) a complementação ou a aplicação conjunta de normas, quando couber a integração da solução do caso por mais uma norma (diálogo sistemático de complementaridade e subsidiariedade); (c) influenciação recíproca das normas, quando uma complementa os espaços tangenciados pela outra norma (diálogo de coordenação ou de adaptação sistemática)[32].
A proposta de Jayme é um método (um caminho) e uma metodologia (um processo) de trabalho, onde a proposta é a coordenação das fontes é flexível[33], sendo que todas as diretrizes se voltam, coerentemente, para os valores verticalizados pela Constituição. Daí a grande contribuição – o realismo metódico que não apenas se estanca em regras, não apenas afirma critérios, antes fala em valores.
Ora, falar em valores é ressaltar a cultura e, sobretudo, dizer que o direito reclama a aproximação da ética.
Vale repetir: o direito reclama a aproximação da ética. Justamente, a ética é uma inteligência compartilhada para a melhoria da convivência que, de tão importante, os principais valores estão previstos como direitos fundamentais. Nisso reside a grande mensagem das novas modalidades metodológicas estruturalistas: o paradigma ético ao qual o direito está conectado e através do qual está operando e resolvendo os problemas concretos.
A pós-modernidade e as relações hipercomplexas, sobretudo, desterritorializadas, abrem campo fértil para que diversas normas sejam manejadas para a regulamentação ou para a afirmação do vínculo de atributividade das relações jurídicas. O comércio eletrônico, seja denominado um meio de contratar, uma nova modalidade de contrato, ou até um meio de vida das pessoas, com toda a gama de inimagináveis consequências que ele pode ensejar, tendo em vista a impessoalidade crescente bem como a ductibilidade dos objetos, resta significativo o desforço do método como uma marcação da relação.
Não se trata de uma metodologia unitária.
Pelo contrário, atualmente, a multimetódica ou o pluralismo metodológico é conglobante, mas sempre voltado ao atingimento dos objetivos precípuos que o ordenamento pré-dispõe.
A defesa do consumidor é um desses objetivos para o qual o comércio eletrônico deve estar voltado. Assim, a estrutura do direito atribui sentidos que valorizam e se adequam a tal hipercomplexidade virtual, porém, verticalizada na convergência dos valores previstos na Constituição[34]. A tutela do vulnerável.
2 Os efeitos da desterritorialização das relações jurídicas nos contratos eletrônicos interativos
As relações jurídicas desterritorializadas porque virtuais não significam que elas são irreais ou que não existem no plano humano, porém, elas indicam que são atemporais, ubíquas e velozes na medida em que se encontram para além da sensibilidade táctil do ser humano. Trata-se de um evento alavancado pela internet, em especial, pela interatividade proporcionada entre as pessoas.
No presente ensaio, a temática das relações jurídicas no ciberespaço está focada naquilo que a desterritorialização mais evidencia – a desmaterialização das relações e seus desdobramentos.
Os contratos eletrônicos, segundo classificação doutrinária corrente, assumem três espécies: (a) contratos intersistêmicos; (b) contratos interpessoais; e (c) contratos interativos[35].
O contrato intersistêmico é estabelecido entre sistemas e aplicativos previamente programados, sendo que a vontade das partes já está formatada em um momento anterior. No geral, trata de comercialização entre empresas. De outro lado, os contratos interpessoais são tipicamente humanizados, sendo que essse contrato é apenas o meio ou instrumento por intermédio do qual se formulam as propostas e as aceitações, comumente, através do email ou demais ferramentas digitais. Ambas as figuras não produzem peculiaridades distintas da normatividade geral da teoria dos contratos, afinal, a comunicação é intercalada por momentos identificáveis, o que permite a inferência das regras pertinentes aos contratos em geral.
Seja com a aplicação do Código Civil (contratos entre “iguais”), ou seja com a aplicação do CDC (quando constatada a vulnerabilidade), o importante é verificar que a qualificação é tendente ao deducionismo, quando em discussão tais espécies, porque não se exigem elaborações ou coordenações entre as fontes no sentido de “traduzir” juridicamente um contrato em relação ao regime jurídico aplicável. A virtualidade não chega a ser um “modo-de-vida” inédito, mas o ciberespaço acaba sendo o meio para a formação do negócio.
A peculiaridade está nos contratos interativos – esses compõem a significativa e crescente parcela de contratos eletrônicos, e que merece destaque. Primeiro, porque a qualificação jurídica que eles demandam é diferente das regras gerais da teoria geral dos contratos; segundo, porque eles estão sendo negociados em todos os lugares, 24 horas por dia, independentemente da classe social dos operadores ou do compartimento de hardware utilizado, desde que tal instrumento permita o manuseio da internet (computador ou celular).
O contrato interativo, no comércio eletrônico, na medida em que ocorre a interação entre o consumidor e um aplicativo – por intermédio da internet, seja pelo computador ou celular, tablet, dentre outros –, elege a virtualidade como eixo da contratação. Até por isso se trata de mercado crescente, onde o consumidor, o sujeito vulnerável, trata-se de pessoa bombardeada por imagens, informações e dados que o impulsionam ao mundo do consumo.
Consumo, logo, existo – diria o clássico pensador. Consumir é ostentar, é fazer parte da tribo mais incrivelmente autorregulamentada do planeta. Daí que o suporte técnico é o meio e a medida de estímulo para a caracterização da relação jurídica[36].
No contrato interativo, a pessoa interage com um sistema operacional. Chega-se ao ápice da desmaterialização, descentralização, enfim, virtualização e desterritorialização da relação jurídica. O sujeito contrata junto a um aplicativo. Não se fala em leilões ou em vendas intermediadas pela internet – da espécie e mercado livre ou peixe urbano –, sistemas interpessoais que aproximam pessoas. Pelo negócio interativo, o consumidor atua diretamente junto ao fornecedor, portanto, o aplicativo colocado à disposição e à estimulação do consumo acresce a vulnerabilidade (ou esquema de desigualdade) entre as partes.
Nisso está o interesse em recortar o objeto do ensaio.
O consumidor do espaço virtual-global está remetido a um alto nível de vulnerabilidade, outrora não imaginado pelo clássico Direito Internacional Privado. Com o bombardeio do marketing agressivo, e considerada a popularização dos celulares, bem como o irrefreável apelo ao consumo, a segunda parte do ensaio reflete a massificação das relações jurídicas, em especial, através do fenômeno dos contratos eletrônicos. Trata-se do click-agreement, o negócio jurídico que mais cresce na atualidade.
De qualquer maneira, se uma relação jurídica é virtual e relativiza o tempo e o espaço das pessoas, bem como os objetos do negócio, torna-se evidente que o eixo de substancialização das relações deve estar no vínculo jurídico pautado pela metodologia jurídica empregada para regulamentar o sentido dos institutos jurídico.
O contrato eletrônico é desterritorializado porque pode estar em qualquer lugar ou em vários lugares. O contrato eletrônico é virtual porque pode ser instantâneo ou se perenizar no futuro ou no passado.
Diretamente conectado a essa natureza das coisas, três situações serão discutidas: (a) a questão da confiança ou da hipervulnerabilização do consumidor, frente à massificação do contrato eletrônico; (b) a sinergia entre fato e direito como elemento de conexão como propulsores de uma metodologia estruturalista; (c) finalmente, a análise de alguns aspectos do contrato eletrônico, que salientam que os clássicos conceitos da teoria geral do direito privado, atualmente, devem ser tratados como avatares ou elementos dinamizados a uma nova realidade libertina, veloz e ubíqua.
Tudo sopesado, a conclusão assume uma posição crítica frente à questão da estraneidade e da conexão, ou seja, o confronto entre o DIP clássico e a aproximação da ética ao paradigma jurídico do Estado Constitucional, que alavanca o direito do consumidor como um direito fundamental.
2.1 A hipervulnerabilidade do “não-lugar” virtual e o avatar da confiança em novas relações eletrônicas
A hipercomplexidade da pós-modernidade estipula uma nova vulnerabilidade.
O ser humano que manuseia a internet não sabe o que está por acontecer, tudo pode mudar, de uma hora para outra, e de um local para o outro. Em realidade, o local é o que menos importa, porque o vínculo de marcação da mínima estabilidade, para a relação jurídica, está na metodologia que estrutura normas e pauta a funcionalidade e os objetivos a serem alcançados.
O contrato eletrônico desmaterializou as relações[37]. Vale dizer que ele desconstruiu o paradigma meramente subjetivo (com base na vontade) ou comportamental (meramente objetivo) que pautavam as expectativas da confiança que fundamentavam a boa-fé ortodoxa.
Daí que a massificação das contratações, alinhada à despersonalização dos sujeitos e dos estabelecimentos comerciais acabam exigindo outros níveis de cooperação para, assim, prevenirem um nível de informação e de reversibilidade que ensejem a manutenção de um sistema de dados passível de conferir transparência às comunicações.
Ou seja, na medida em que o comércio eletrônico pode ser entendido como um “novo método” de fazer negócios através de redes eletrônicas, ou melhor, como um meio-de-vida onde as pessoas estão 24 horas por dia conectadas, isso envolve um encerramento operativo que reúne aspectos cognitivos e comportamentais que transcendem as regras gerais do Código Civil, e implicam uma leitura do Código do Consumidor e do ordenamento jurídico no prisma de uma hipervulnerabilidade – um revival da proteção do consumidor como direito fundamental, com o reforço das rotinas técnicas para amplificação de garantias para que seja efetivada a execução das relações jurídicas, o que, de lege ferenda, poderia ser encampado pelo art. 39, IV, do CDC.
No ciberespaço, a teoria da aparência perde espaço.
Em primeiro lugar, porque o tempo-espaço estão perdidos em um “não-empirismo”; em segundo lugar, porque as relações não fincam mensagens com linguagens universais, antes elas estabelecem diálogos pela interface de dados que cada sistema pode autorregulamentar. A hipercomplexidade ocasiona inéditas situações, e as contingências apresentam dados fora do campo de cobertura das expectativas.
O elemento da estraneidade – o que permite aplicar mais um ordenamento jurídico ou mais de uma jurisdição para a solução das questões jurídicas que acontecem em mais de um país ou em mais de um local com legislações diferentes – hipervulnerabiliza o consumidor.
Nesse amontoado de informações massificadas, várias causas contribuem para o incremento da desconfiança: os métodos de contratação estandardizados, a agressividade do marketing, a falta de continuidade das relações, que passam a ser instantâneas, a falta de garantia no desenlace do pós-venda, e a ausência de credibilidade de ter uma pessoa de carne e osso para quem reclamar[38].
Justamente, para além da estraneidade, que tornaria imperiosas as velhas técnicas do DIP, hoje, fala-se em aplicação “imediata”, porque de ordem pública e de valor constitucional, do CDC; com efeito, a conexão que o CDC elabora, em termos de fazer aplicar o direito e o foro brasileiro, em transações internacionais, pelo fato da vulnerabilidade e do paradigma da proteção do consumidor como direito fundamental, assume importância mais significativa que as ortodoxas pretensões do DIP – logo, a aplicação do CDC é imediata[39], não mediatizada, como norma de conexão para aplicação de outra norma que, talvez, não fosse protetiva do vulnerável.
Aqui o ponto que reivifica a praxe e os costumes como notas do comércio eletrônico: os dados assumem particularismos que, embora se fale em relações massificadas ou, de outro lado, até em particularismos possivelmente customizados, em grande medida, os dados ficam registrados em algum lugar cujo valor é identificado como digno de proteção pelo regime jurídico.
O retorno dos valores é reflexo da cultura pós-moderna.
Nem que seja em uma “nuvem” de dados, a tendência é conferir tutela ou técnica que amplifique a proteção do consumidor. Daí que o back up ou técnicas de rastreamento ou anti-hackeamento identificam fórmulas que consistem um verdadeiro espaço de “reipersecução no direito obrigacional”. Evidente que se trata de uma “reipersecução” de dados virtuais, de dados que estão em um “não-lugar” sensível, de qualquer maneira, isso estabelece um novo paradigma da confiança diretamente ligado ao risco dos negócios entabulados por um click.
“A sociedade digital rompe com a barreira da delimitação territorial: no mundo virtual, constrói-se um novo território, não demarcável, no qual a riqueza consiste na informação e no domínio que sobre ela se exerce. É um espaço onde, em regra, reina o anonimato. O indivíduo despersonaliza-se, não interessando sua história pessoal”[40], inclusive, redefinindo-se questões sobre a capacidade dos sujeitos para participar de negócios jurídicos.
Na verdade, o contrato eletrônico pode ser negociado em um click do celular. Compras, participações, empresas e demais transações, incorrem na perda do diálogo[41]. As pessoas já estão se escolhendo por catálogos, que envolvem saídas, namoros e sexo. A falência institucional da família se deve, em grande parte, à facilidade das trocas, o que desencobre que ligada à facilidade da internet está presente um esquema de dados cujo rastreamento confere um mínimo de confiabilidade – ou uma vida com riscos mensurados naquilo que os dados podem armazenar.
Um risco comprado pelo grau de abertura sensitiva de cada usuário. Aliás, quanto mais disposto e dinâmico o usuário, quanto mais ubíquas as fórmulas das respectivas reações, maior possibilidade de ganhos e, em contrapartida, de danos marginais que, em alguma medida, podem ser rastreados pelo regime de uma informatividade virtual.
Um registro que está em um “não-lugar”, guardado por chaves que alguém “sem-rosto” monitora, em algum tempo que não está no presente, mas transita dinamicamente dentre a sorte de quem procura pela informação.
Isso é hipercomplexidade, isso é contingência, mas o direito somente consegue lidar com a estruturação das expectativas. Ainda, naquilo que os próprios usuários permitirem, na medida do próprio anonimato “comprado” pelos riscos do negócio. Uma grande maioria ganha, mas o regime também apresenta baixas colaterais significativas – desde riscos quanto aos negócios como exposições a práticas criminosas diversas.
A confiança e a desconfiança são valores em tensão. Por exemplo, todo mundo deposita dinheiro no banco, e deixa o dinheiro guardado, sem que verifique o saldo todos os dias. Imagina se todos verificarem o saldo todos os dias, ou melhor, se todos resolverem retirar o dinheiro do banco no mesmo dia – o banco quebra. Isso ocorre porque o banco não tem aquele dinheiro à disposição, justamente, o banco lida com a venda de uma expectativa, de uma confiança do depositante, que acaba se autorregulamentando pelo conjunto de relações que a tradição construiu ao largo do tempo. Trata-se de questão de ética de relacionamento.
Assim, também, no ambiente virtual, a ética afirma valores que são dignos, ou não, de confiança. Para tanto, o direito encerra uma série de ferramentas que previnem o consumidor de falseamentos, atribuindo poderes e deveres aos sujeitos, na medida em que o valor-guia – a tutela do vulnerável – está em permanente discussão na contratação virtual.
A confiança que leva ao consumo no espaço virtual, portanto, é um avatar, consiste em uma crença. A coletividade de consumidores pretende que tudo aconteça como o combinado, conferindo credibilidade maior ou menor ao fornecedor; porém, os danos marginais e o fator descartabilidade também estão presentes, lado a lado, ao avatar da confiança, afinal, no paralelo do ciberespaço a contingência deixa de ser figurante para protagonizar todos os aspectos de novuum das relações.
2.2 A substancialização jurídica do elemento de conexão ou o caminho para uma definição das normas aplicáveis aos contratos eletrônicos desterritorizalizados
A desmaterialização, a despersonalização e o terrível incremento da vulnerabilidade do consumidor, considerada a desterritorialização das relações jurídicas, nos contratos eletrônicos, não permite uma escalada metodológica de simples aplicação do direito vigente a uma nova realidade hipercomplexa que se modifica diariamente. Tampouco se trata de reiterar uma teria geral dos contratos e, em seguida, segmentar os contratos eletrônicos como um capítulo à parte, um capítulo especialiforme cujas diretrizes são retiradas, por analogia lógica, daquilo que outrora foi estruturado para os contratos do século passado.
Pensar em contratos eletrônicos e, sobretudo, atribuir efeitos jurídicos a essa espécie de relações, é questão que envolve qualificação jurídica no sentido de uma metódica substancializada – ou seja, uma metódica por intermédio da qual as peculiaridades dos fatos interferem no direito, e vice-versa, como fatores que não são justapostos, antes eles acabam conformando uma realidade que, embora virtual, impliquem uma gama de sentidos peculiares e diferentes dos padrões ortodoxos da clássica contratação pela mensagem de papel.
Daí a importância classificatória dos contratos. Conforme MacCormick[42], classificar também é decidir, porque decisões atributivas ou determinações de diferenças entre determinadas espécies de contratos não afastam a dedução, todavia, elas conduzem qualquer elemento dedutivo ao mundo real. Isso basta para conectar – como uma operação substancializada – a classificação de contratos desterritorizalizados, que estão vigorando em um “não-lugar” palpável. Mais que os contratos típicos de outrora, tais ferramentas reúnem fatos e normas como elementos sinergéticos produtos de uma caótica profusão pluralista.
Conforme referido, no contrato interativo, o consumidor é bombardeado por uma série de dados e eventos que o conduzem, inclusive, subliminarmente, para permanecer no consumo. O sujeito é social se pertence à tribo dos consumidores. Isso abrange todos que abrem qualquer dispositivo de internet, porque as ofertas, spams, chamadas e propagadas estão ilustradas em todas as cores e tamanhos.
O CDC estabelece como consumidor:
“Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”.
Quer dizer, a pessoa exposta ao marketing, a pessoa exposta à oferta ou à propaganda, trata-se de um consumidor por equiparação.
Portanto, ao lidar com essas máquinas – computador, celular, tablet, entre outros –, está-se formando um contrato interativo, quando o consumidor interage com um sistema operacional.
“O exemplo mais comum dessa espécie é o contrato via internet, pela World Wide Web. Em geral, são as compras de produtos ou serviços acessados em sítios ou páginas eletrônicas. Não só é a forma mais comum da espécie como, também, das contratações eletrônicas em geral. Ao contratar via web, o usuário/contratante acessa o sítio que coloca o produto/serviço à disposição e interage com um sistema aplicativo, escolhendo o que quer, as condições a manifestando sua vontade quanto à aceitação da proposta apresentada”[43].
O problema é que a desenfreada corrida para vender não tem limites, e o consumidor mais desavisado, não raramente, mal sabe o que está contratando. Em um click, ele pratica um contrato existencial, que pode ser de trato continuado ou instantâneo. O importante é notar que na variação do objeto, e na impossibilidade de maiores informações sobre quem seria o fornecedor, o que fica de rastro para a definição do direito aplicável é o vínculo entre as partes.
O vínculo não se trata de critério estéril ou axiomático, como a hierarquia, a especialidade, a antiguidade, ou a cronologia das normas em aparente conflito. Se o conflito for sobre a qualificação sobre a estraneidade da relação jurídica, e para se definir qual o regime jurídico a ser aplicado, também não se aplicam critérios lógicos decorrentes do mero deducionismo.
Justamente, na rotação cultural desde Savigny até o franco estruturalismo de Jayme e Müller, fala-se em valoração e na limitação da autonomia da vontade do consumidor, porque o direito do consumidor assumiu a categorização normativa de direito fundamental. Em outras palavras, a ética se aproximou do direito para, enfim, relativizar as regras do DIP ou as regras que solucionam antinomias legais para, vislumbrando-se os valores imperantes no sistema, a solução do caso resultar na percepção dos preponderantes aspectos juridicizados.
Nesse sentido que se fala em paradigma como uma posição antecipada de compreensibilidade. Na medida em que o efeito de uma norma se trata do valor condicionado, é necessário ter presente o que é mais importante ou o que é ótimo a determinada coletividade de pessoas. Daí que a ética – a inteligência compartilhada para a melhoria das relações –, considerada a tradição, marcou a proteção do consumidor como um direito fundamental.
Logo, a vulnerabilidade do consumidor (no caso do contrato virtual, a hipervulnerabilidade do consumidor), é fator com força normativa para relativizar o DIP e os axiomas savignyanos. Em outras palavras, a vulnerabilidade do consumidor, por consistir em uma norma de ordem pública e de efeitos imediatos, não cede muitos espaços à autonomia passível de negociação em contratos virtuais, sejam eles à distância, ou não – aliás, não interessa, porque a hipervulnerabilidade já predispõe um esquema protetivo especial, como verificado abaixo.
2.3 A essência da formação dos contratos eletrônicos na demografia massificada. O tempo e o local da relação como contingências do espaço virtual
A disparada da internet democratizou e descentralizou o acesso das pessoas aos objetos de consumo. Independente da espécie das relações jurídicas, se intersistêmicas, interpessoais ou interativas, se business to government, se business to business, se business to consumer, chama a atenção que o mundo virtual estabeleceu novos padrões e novas “faltas de medidas longitudinais”, porém, insiste-se em se valer de analogias para definir efeitos jurídicos pautados pela presença ou ausência dos sujeitos quando da contratação.
Uma realidade é inafastável – presente ou ausente, sendo meio ou espécie de contrato, a internet assumiu uma rotina na vida das pessoas. O mutável é a única constante, e a internet, na prática, consiste em um meio de vida.
Logo, parece forçada – para não dizer imputativa do texto da lei sobre a realidade – a tendência para querer definir conceitos como teoria da expedição, da declaração ou do recebimento, como notas autoritativas para a formação da relação jurídica virtual.
Consoante ressaltado, uma metódica substancializada não pode separar o direito da realidade, não deve somente sotopor os fatos ao mundo do direito. Pelo contrário, deve compreender uma realidade cuja única constante é a mutabilidade como algo que deve ser funcional aos métodos integrativos propostos pelos modelos jurídicos que estabelecem soluções aos problemas que concretamente se apresentam.
Tudo sopesado, pouco importa se o contrato é entre ausentes ou presentes.
O fato é que o mundo virtual é um cenário paralelo, a proposta é global, que, nesse exato momento, está acontecendo em todas as direções e em todos os momentos do planeta, envolvendo hipercomplexidades cujo conhecimento humano atual pouco ou nada conhece.
Pode-se estar discutindo desde a compra de um sapato até sobre a fórmula de um antídoto diabólico ou sobre a compra de uma bomba atômica teleguiada. A “des-localização” entre os negociantes é mais que uma simples distância, pois “permite a qualquer um, a qualquer hora, ultrapassar fronteiras nacionais na “segurança fake” de estar em casa; tudo aliado ao tempo virtual, que é imediato e atemporal, tempo de trabalho e de lazer”[44].
Trata-se de um novuum que agrava a vulnerabilidade do consumidor.
No especial, na escala mínima que toca os mortais brasileiros, o que interessa é que a internet elaborou uma massificação de ofertas ao consumo. Tudo está à venda. Pode até sobrar algum aspecto para a customização, o sujeito pode escolher a cor do carro, pela internet, ou o tamanho do sapato, pelo celular, todavia, o decisivo é o caráter de adesividade dessas opções – o sujeito compra com um click, seja “on” ou “off line”, o sujeito compra sem olhar nos olhos do vendedor, vale dizer, a virtualização estabeleceu uma desterritorialização e um silenciamento das relações que consagrou situações tão massificadas quanto desumanizadas.
A técnica ganhou foros de preferência sobre a discussão sobre a preferência subjetiva das pessoas. Inclusive, porque o consumidor já sabe, de antemão, o que ele pretende adquirir, ele pesquisa, informa-se, acessa o “reclame aqui”, pesquisa a seara do Procon, e daí investe na opção cujo preço seja o mais atrativo ou a entrega seja a mais facilitada. Reflexos de uma densidade demográfica que expandiu os limites do controle territorial, sobretudo, estipulou uma modus de vida no qual a vontade é cambiada pelo comportamento: a relação jurídica, eventualmente, é discutida previamente, mas, o que realmente interessa é o click de aceitação da oferta e a impressão do boleto bancário ou a colocação do número do cartão de crédito no campo de especificidade.
Apesar de repetidas e respeitáveis doutrinas falarem em contratos entre ausentes ou entre presentes, discutindo sobre a adaptação dos negócios ao Código Civil, ou entabulando dizeres óbvios sobre a anulação de cláusulas leoninas em contratos de adesão, o que importa é identificar que a relação jurídica virtual reclama atenção para um vínculo no qual a metódica consiste no eixo de segurança e de confiança da proposição. Assume relevo, então, uma superação dos meros axiomas savignyanos, para a fazer incidir a abertura do sistema a uma funcionalidade onde a comunicação das fontes e a narratividade desaguam na funcionalidade dos direitos fundamentais – o verdadeiro quadrante de importância funcional que os problemas jurídicos suscitam ao sistema (Jayme).
Por “contingência” se entende o fato de que as possibilidades apontadas para as experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, “que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível, ou a algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao ponto determinado), não está lá está. Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos”[45].
Quanto mais massificada a oferta, quando mais típico ou padronizado o contrato, mais incrementada a vulnerabilidade do contratante. Isso não significa que a presença ou ausência do sujeito faça alguma diferença qualificativa. Não importa se o sujeito está efetuando uma compra dos serviços da SKY, falando com um robô pelo telefone, ou se ele está comprando um míssil de última geração, pela internet, em um site da Coréia do Norte. A questão é diferenciar que a vulnerabilidade do contratante é acrescida pela função que a comunicação implica na função de defesa do consumidor, fator ético determinante como estruturação dessa sistemática cada vez mais rotineira na sociedade.
Assim, as teorias da recepção, da expedição ou da declaração se transformam em contingências de um imediatismo e de uma ubiquidade liquefeita nas escalas propostas pela dinâmica das relações jurídicas atuais. A desumanização ou a desterritorialização dos negócios deixou em segundo plano a determinação implacável do lugar e do tempo dos negócios, que outrora era pautado em um plano de regras.
Atualmente, a solução, inclusive, na qualificação de direito internacional, está funcionalizada na comunicação das normas que subentendem a finalidade das empresas construídas pelas relações jurídicas – a maior ou menor vulnerabilidade do contratante, o que pode reclamar a incidência do CDC, ou não. Se a internet reduz custos, aproxima pessoas, e relativiza a ausência física, evidente que o direito é sensível à modelagem virtual estipulada[46]. A solução aparece “desde fora”, desde que a ética das relações colocou o direito do consumidor como direito fundamental.
O fato é que as ofertas e as aquisições não possuem mais limites territoriais, o que se reflete nas compras efetuadas perante outros países[47].
A Lei de Introdução ao Código Civil estabeleça:
“Art. 9o Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.
§ 1o Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.
§ 2o A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.”
Na atualidade, o proponente está em todos os lugares, ele está no celular de cada pessoa, no bolso de qualquer casaco. “Apps” de compras e de negociações estão popularizados e perambulando por todas as estações.
Portanto, os “borders” ou limites clássicos do território não cabem mais na ortodoxia do art. 9, §2º, da LICC, na medida em que a residência do proponente está no tempo e lugar do mundo virtual – ou seja, um tempo e lugar não sensível, cujo passado e presente estão confusos, e os territórios são mais funcionais que estáticos, como outrora.
O texto da norma do art. 9º, §2º, da LICC se vale da lex fori, o elemento de conexão que vincula o direito aplicável ao local da proposta. Daí surge a questão: em relações massificadas, quase sempre o direito aplicável será o direito estrangeiro, ou o direito que é conhecido pelo fornecedor (art. 30 do CDC). Logo, a conexão seria um axioma que contraria os basilares princípios do direito brasileiro – o direito do consumidor como direito fundamental. Assim, é incoerente pensar que ainda vigora, perante o consumidor, a norma da LICC, porque, nos moldes formulados, o DIP desprotege o vulnerável, deixa a descoberto aquele que mais precisa de informações e menos dispões de condições técnicas, linguísticas ou cognitivas de compreender os encerramentos da relação jurídica. Em conseqüência, a LICC reclama uma solução convergente à Constituição e à imperatividade de ordem pública prevista pelo CDC. O direito do consumidor é direito fundamental (art. 5º, XXXII), assim, prevalece sobre os ortodoxos mecanismos de conexão de outrora[48].
Nesse ponto, a disciplina do DIP – pautada pelas bases da estraneidade e da conexão – demanda a inserção do elemento ético, do elemento que retorna os sentimentos, porque a proteção do consumidor se trata de direito fundamental. Fala-se em um Direito Internacional Privado impregnado de valores sociais.[49]
Agora, em realidade, apenas se trata de conferir aos fatos os valores que estão condicionados pelos efeitos das normas jurídicas. Isso parece muito difícil de ser compreendido, tendo em vista a supervivência do positivismo, no Brasil.
Dizer sobre valores é dizer sobre cultura, é remeter a solução das questões a paradigmas que encerram a ética. Ninguém consegue ser mais preciso em suas conclusões que nas respectivas premissas, então, o negócio é organizar premissas que elaborem critérios voltados àquilo que mais interessa – a Constituição; e o direito do consumidor, a proteção do vulnerável, é mais importante que a obediência cartesiana da LICC[50].
Necessário, portanto, que a inteligência do art. 9, §2º, da LICC, seja conduzida ao encontro funcionalizado do art. 101 do CDC:
“Art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:
I – a ação pode ser proposta no domicílio do autor;”
As normas se comunicam frente a uma nova realidade que substancializa o método de trabalho de composição das soluções jurídicas dialogadas. A questão é metódica porque tem substância e tem resultado, a questão é metódica porque norteada pelos valores que são tendentes à proteção de figuras identificadas no panorama do retorno dos sentimentos. O mundo virtual, uma realidade dos sistemas contemporâneos, estrutura-se como um cenário a ser pelo qual o direito imputa um polo metodológico deveras nítido – a proteção do vulnerável, no revival dos sentimentos, conforme o diálogo substancial das fontes determinado pelos citados referenciais.
O art. 9º, §2º, da LICC, no confronto com o CDC, acaba sendo inaplicável, porque pode conduzir à falta de transparência e de informações necessárias ao consumidor. Isso pode remeter a uma hipervulnerabilização do sujeito contratante, daí que a certeza quanto à proteção legal – tanto em termos do direito material aplicável quanto em termos de instituição nacional a julgar o caso – é uma garantia pétrea que marcada nos direitos fundamentais da Constituição. A proteção do consumidor é direito fundamental, e por proteção no sentido amplo, de tutela normativa-material como de tutela organizacional-institucional[51].
A Lei 12.965/14, o marco civil da internet, também conecta o “clique” da internet ao local do sítio do sujeito vulnerável, sendo que em razão dele é que existe a relação jurídica. Na virtude desse sujeito é que critério do lugar do “clique” é valorizado[52].
A lei estabelece:
“Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”.
Os contratos eletrônicos, que são resultantes de uma adesão por click por intermédio da internet, em geral, a questão se limita a “uma simples adesão ou não de uma parte ao conteúdo do contrato (objeto, preço, prazo de entrega etc) escrito por outra, ou uma pequena parcela de discussão quanto a poucas cláusulas, verdadeira relação consumidor/fornecedor, o regramento a ser aplicado não será mesmo o Código Civil – com exceções raras, repetimos –, mas sim o Código de Defesa do Consumidor, de modo que o que terá realmente importância é o chamado prazo de arrependimento (CDC, art. 49, que dá 7 dias ao consumidor para desistir do negócio feito fora do estabelecimento comercial proponente/fornecedor, com o direito de ver devolvido o valor pago), pois a concretização do contrato, conforme o meio: pode ir do simples clique no “OK”, ao final do contrato, até o envio de email confirmatório pelo consumidor, passando por recebimento de mensagens oriunda do fornecedor, ou telefonema”[53].
Com efeito, tendo em vista que o contrato é aderido on line, a, pelo consumidor, em seu respectivo computador ou telefone celular, o local da contratação reenvia a solução da questão para o domicílio do sujeito vulnerável, até porque ele não tem todas as informações empíricas a respeito do objeto. Do contrário, a cláusula que retirasse a situação de vantagem predisposta por lei de ordem pública, seria nula, conforme o CDC:
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;”
A venda por intermédio do computador ou por intermédio do “app”, hipervulnerabiliza o consumidor. Em primeiro lugar, porque a agressividade do marketing o coloca em situação de “necessidade de consumo”, de “consumismo existencial”; em segundo lugar, porque o consumidor não tem contato direto com o que está adquirindo, o consumidor não experimenta – à moda antiga – o produto ou serviço que está negociando[54].
A questão da cláusula de arrependimento, em contratos eletrônicos, não está adstrita a tentar descobrir onde está o “ip” ou a “fonte” do sítio da internet que veicula o produto ou o serviço. Salvo juízo diverso, o ponto de inflexão não está na suposta ausência ou presença do contratante – conforme referido, em contrato eletrônico, o tempo e o lugar são contingências (fatores inesperados, diferentes dos fatores comuns) que remetem a solução para outro paradigma – a natureza do objeto.
Daí que se a natureza do objeto está diretamente conectada à natureza do contrato. Se o contrato é informático ou negocia produtos eletrônicos cuja fungibilidade ao meio eletrônico não permite uma prova empírica, torna-se dispensável um prazo de arrependimento. Por exemplo, se a compra é um livro eletrônico, ou um jogo eletrônico, é desnecessário falar em prazo de arrependimento[55].
De outro lado, quando a aquisição é decorrente de contrato telemático – contrato eletrônico pelo qual se adquire outra coisa, que não algum produto digital, então, é imperioso fixar o prazo de arrependimento. Isso é muito comum, e está expresso quando alguém compra um sapato ou algum produto físico por intermédio do computador ou do celular[56].
Conclusão
O direito não é meramente aplicado, de maneira axiomática, aos fatos da vida.
A lógica-formal oitocentista é mecânica intuitiva mais condizente com a história do direito.
Tampouco o caso concreto, o problema da vida, pode ser compreendido como algo que deva ser sotoposto a uma posição jurídica estanque.
O comércio eletrônico é fato jurídico original, inédito. Portanto, ele merece uma nova maneira de operação jurídica.
As velhas ferramentas do positivismo normativista oferecem duas alternativas estanques, inadequadas para a dinâmica do mutável, para o desterritório, e para as constantes inovações das novas relações jurídicas virtuais: (a) de um lado, existe uma posição dita “ontológica”, que defende criação de regras especiais para um inédito padrão de casos que se apresentam; de outro lado, (b) existe uma posição “instrumental” ou “analógica” que pretende adaptar as normas existentes para o mundo virtual[57].
O problema de uma e de outra corrente, é que a técnica soterra o que mais importa – o valor[58], o efeito jurídico condicionado pela norma.
Daí que cada qual dessas teorias acaba retornando aos excessos pretensamente puritanos do positivismo. Ninguém consegue ser mais preciso em suas decisões que nas respectivas premissas.
Isso posto, os trabalhos tendem a formular uma agenda de ancoragem de valores que identifique, inclusive, a título de soft law, “desde fora” da aplicação da norma de conexão, ou seja, desde a qualificação do direito aplicável, qual o valor preponderante.
Assim é que se trabalha com paradigmas, o que significa dizer que os “fatos”, a realidade do mundo, as necessidades do direito material são imperativas e implicantes às velhas fórmulas savignyanas, hoje, vazias, na hipótese de aplicação unitária.
As velhas fórmulas de antinomia do clássico DIP somente seriam prestáveis para declarar qual o regime jurídico aplicável – porém, deixaria a descoberto a função social da norma mais benéfica que não está, meramente, na cabeça do julgador, antes está presente na estrutura que o ordenamento jurídico elabora, com base em um encerramento operativo que considera os sentimentos.
Vale dizer que estraneidade, conexão, qualificação não são meras técnicas, no Estado Constitucional. Antes elas afirmam uma implicação ética sobre o direito: os direitos fundamentais, a garantia da liberdade, da igualdade, e da igualdade especial – a vulnerabilidade – são reflexos dessas disposições[59].
Ricardo Lorenzetti resume: “Há que se aceitar as inovações e também inovar. É prudente que se as examine mediante o “paradigma da ancoragem”, o que significa estabelecer pontos fixos que permitam a inovação, mas não a insensatez, a hipótese aventureira ou a improvisação. A ancoragem significa estudar as inovações, aceitá-las, mas num contexto de valores, de normas claras e de rigor”[60].
Isso é metódica estruturante, que resume e vai ao encontro das teorias de Müller e de Jayme. Conforme Müller, a normatividade é um processo estruturado, ele é repetitivo ao ressaltar que norma é diferente do texto da norma. Daí que a normatividade – ou a elaboração de valores aos fatos – “não é nenhuma propriedade substancial dos textos do código legal, mas um processo efetivo, temporalmente estendido, cientificamente estruturável: a saber, o efeito dinâmico da norma jurídica, que influi na realidade que lhe deve ser atribuída (normatividade concreta) e que é influenciada por essa mesma realidade (normatividade materialmente determinada)”[61].
Importante é ressaltar que Erik Jayme, em alguma medida, traduziu a metódica estruturante de Müller, da qual também se vale o modelo hermenêutico de Lorenzetti. Daí que a teoria do Jayme acabou sendo mais compreensível, porque ele sistematizou, analiticamente, os fatores que encerram uma série de normas sobre fatos e normas. Todavia, com a sempre ressalva do leitmotiv: o retorno dos sentimentos, o vértice dos valores plurais, a salvaguarda dos direitos fundamentais, o que significa, na temática do comércio eletrônico, adaptar, integrar, fazer interagir, e manter o sistema, com o norte de proteção do vulnerável e, somente subsidiária ou coordenadamente, demandar um subsistema para a completude na solução de um caso concreto de qualificação.
O método serve a um objetivo.
Inclusive, em direito internacional privado, necessário ter presente a dinâmica das relações, ou o imperativo do polo metodológico que orienta as premissas. “Differente dal classico rinvio alla legge più strettamente collegata al caso, cioè quello del riconoscimento di situazioni giuridiche create all’estero. Il diritto internazionale privado serve – sempre secondo le intenzioni del legislatore comunitario – all’integrazione europea”[62].
O funcional-estruturalismo contemporâneo supera as ortodoxas separações elaboradas pela soberania moderna, aquela soberania onde o direito era o Estado, e o Estado era o direito.
No mundo pós-moderno, com a disseminação confusa porque hipercomplexa, com a virtualização das relações do espaço-tempo ora desmaterializados, o resgate dos valores estabelece a ordem de prioridades a ser normativamente pautado. Assim, a vulnerabilidade orienta, e a vulnerabilidade ancora, para, então, desenvolver uma estrutura jurídica para inteligência das normas que assente a flexibilização dos métodos do direito internacional – o que está diretamente ligado aos métodos de solução dos problemas no comércio eletrônico, haja vista que as lacunas do sistema reclamam qualificações e conexões que priorizem o mais vulnerável[63], que coloquem os plúrimos valores em tensão, para daí elencar uma ancoragem razoável à temática a ser resolvida.
Portanto, o direito está em fase de elaboração de uma qualificação compartilhada para a regulamentação dos contratos eletrônicos interativos. Uma sorte de “soft law in action” oppure “l’atività dello diritto mitte”. Quer dizer, “desde fora”, o paradigma que aparelha a conexão entre as fontes se trata de um valor que estabelece um valor a ser respeitado – porque a ética está em diálogo com o jurídico.
O método analítico-estruturante, portanto, um método de compartilhamento de dados onde os fatos se fundem às normas, justamente, densificam as prioridades constitucionais, dentre elas, no caso particular do contrato interativo, o contrato global eletrônico, a premente tendência de aceitação da vulnerabilidade como pedra de toque condutora das reconstruções jurídicas tendentes à universalidade que a convivência/tradição ensejaram – o que ressalta a inserção da ética na formação das primazias jurídicas positivadas.
Juiz de direito no Rio Grande do Sul. Especialista em Ciências Criminais. Especialista em Direitos Fundamentais e Direito do Consumidor. Mestre em direito pela UFRGS. Doutorando em Direito pela Ufrgs
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