Dilemas Ambientais em áreas urbanas: Uma nova face da “Tragédia dos Comuns”

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Resumo: Considerando que as pessoas não podem ser excluídas de desfrutar os benefícios produzidos por um bem público (ou um recurso comum), alguns indivíduos (os “caronistas”) evitarão pagar por este bem, esperando que outros financiem o mesmo. Na exploração de recursos comuns, isto conduz a “tragédia dos comuns”. A existência de uma norma social pode proporcionar para um indivíduo informação sobre a extensão de custos externos associada com o seu comportamento e, assim, prover meios eficientes de internalizar estes custos externos. Neste contexto, o impacto da norma social em política pública associado à externalidades é examinado. O presente texto objetiva criar as bases para estudos sobre regimes de propriedade, com ênfase nos recursos comuns, apresentando o quadro conceitual da “tragédia dos comuns” e exemplificando este fato com a concepção e os impactos ambientais associados de dois condomínios de grande porte, localizados em uma bacia hidrográfica, na cidade de Porto Alegre.


Palavras-chave: Tragédia dos Comuns, Externalidades, Normas Sociais, Economia, Bacia Hidrográfica, Gestão Ambiental Urbana .


Abstract: Considering that the people cannot be excluded of enjoying the benefits produced by a public good (or common resource), some individuals (the “free-riders”) will avoid paying this, hoping others finance their own use. In the exploitation of common resources, this would lead to the “tragedy of the commons”. The existence of a social norm may provide an individual with information on the extent of external costs associated with his behavior, and thus provides an perfect means of internalizing the external costs. In this context, the impact of the social norm on public policy towards externalities is examined. The present text objectifies to create the bases for studies on property regimes, with emphasis in the common resources, presenting the conceptual picture of the tragedy of the common and exemplifying this fact with the conception of two condominiums of great demand, and the associated environmental impacts, located in a watershed, in the city of Porto Alegre.


Key-words: Tragedy of the Commons, Externalities, Social Norms, Economics, Watershed, Urban Environmental Management.


1.Introdução


A maioria dos bens econômicos em uma economia de mercado, como a brasileira, é alocada por mercados econômicos, constituídos por agentes econômicos. Para estes bens, uma sinalização que guia os vendedores e compradores são os preços. Porém, quando alguns bens são disponíveis de forma gratuita, observa-se uma ausência das forças de mercado que normalmente permitiriam uma alocação através dos preços.


Quando um bem não possui um preço associado a ele, os mercados econômicos privados não podem garantir que este bem seja produzido e/ou consumido em quantidades adequadas. Em tais casos, políticas de governo podem remediar potencialmente as falhas de mercado, incrementando o bem-estar socio-econômico.


Neste quadro, vários bens de nossa economia podem ser agrupados em função de duas características: 1) Exclusão e 2) Rivalidade. No caso da exclusão, as pessoas podem ser impedidas de desfrutar o bem econômico, por seu acesso ser regulado. Na propriedade da excludabilidade, as leis reconhecem e obrigam os regimes de propriedade privada. No caso da rivalidade, o uso de um bem econômico por uma pessoa reduz os benefícios para outras. Os bens públicos – tais como a defesa ou o conhecimento nacional – não são excludentes nem rivais. No caso dos recursos comuns, os bens são rivais, mas não excludentes, como peixes em um rio ou o meio ambiente de qualidade. Estes bens (públicos e recursos comuns) contêm um elemento de externalidade[1], por não possuírem nenhum preço associado.


Neste contexto dos bens públicos (e recursos comuns), surge a figura do “caronista” (Free-rider em Pindyck and Rubinfeld, 2002), que se define como uma pessoa que recebe o benefício de um bem, mas evita pagar por isto. Considerando que as pessoas não podem ser excluídas de desfrutar os benefícios produzidos por um bem público (ou um recurso comum), alguns indivíduos (os “caronistas”) evitarão pagar por este bem, esperando que outros (a comunidade) financiem o mesmo.


O presente texto objetiva criar as bases para estudos sobre regimes de propriedade, com ênfase nos recursos comuns, apresentando o quadro conceitual da “tragédia dos comuns” e exemplificando este fato com a concepção e os impactos ambientais associados de dois condomínios de grande porte, localizados na mesma bacia hidrográfica, na cidade de Porto Alegre.


2.Marco conceitual da Tragédia dos Comuns


A Tragédia dos Comuns (Hardin, 1968) é uma história com uma lição geral: quando uma pessoa usa um recurso comum, ela diminui os benefícios decorrentes da utilização por outra pessoa, pois:


– Recursos comuns tendem a ser usados excessivamente quando os indivíduos não são cobrados pelo uso destes.


– Isto cria uma externalidade negativa.


No trabalho de Hardin (1968), a “tragédia dos comuns” é exemplificada na Inglaterra medieval, onde vários fazendeiros criadores de gado possuem o direito a acesso e uso de uma pastagem (recurso comum). É de se esperar que cada fazendeiro tente manter tantos animais quanto possíveis na área comum (pastagem), maximizando o seu ganho individual (com a venda do leite e/ou da carne). Mas esta é a mesma conclusão a que chega todo e qualquer fazendeiro racional que divide uma área comum. Neste contexto, quando se adiciona mais um animal ao pasto, cada fazendeiro tem um componente positivo e outro negativo:


1) O componente positivo decorre do incremento de um animal, pois o fazendeiro recebe todos os bônus adicionais da venda de um animal (e seus produtos);


2) A componente negativa é derivada do desgaste adicional do pasto, criado por mais um animal.


Esta é a tragédia descrita no artigo: “The Tragedy of the Commons”, de Garrett Hardin (1968). A motivação de tal comportamento é que os indivíduos usam um recurso comum disponível, mas limitado, somente com base nas necessidades individuais. Inicialmente, cada indivíduo é recompensado por usar isto; e eventualmente, eles percebem uma diminuição dos benefícios decorrentes deste uso, causando uma intensificação dos esforços de utilização. O recurso ou é esvaziado significativamente, corroído, ou completamente usado.


A utilização de modelos matemáticos fornece um meio de aprendizagem dos padrões que evoluem ao longo do tempo como resultado de uso de um recurso comum. As figuras 1 e 2 apresentam um diagrama de relações causais[2] e os resultados da exploração de uma área de recursos comuns por dois fazendeiros “A” e “B” com acesso a uma pastagem (recurso comum) que suporta um número máximo de 100 cabeças de gado. Inicialmente, o fazendeiro “A” possui 20 cabeças e “B”, 15 cabeças de gado. Observa-se, no gráfico da figura 2, a evolução temporal do número de vacas que são somadas à área, causando inicialmente um aumento do benefício individual – com a maximização do número de vacas entre os meses de fevereiro e março – e, por exaustão do pasto, a diminuição de vacas ao longo do tempo, caracterizando o desdobramento da “tragédia dos comuns”. Usando-se modelos semelhantes, pode-se observar as mudanças e investigar a efetividade de várias soluções propostas para a “tragédia dos comuns”.


 


 


Feeny et al., (1990), defendem que o maior legado do texto de Hardin (1968) é a metáfora do gerenciamento dos recursos comuns, destacando as diferenças entre o pensamento individual e coletivo – “a liberdade dos comuns leva à ruína de todos” (Hardin, 1968). Esta conclusão ganhou o status de lei científica e foi utilizada na formulação de políticas de gerenciamento de recursos (Matthews, 1988 apud Feeny et al, 1990). Hardin (1968) cita mais alguns exemplos de “tragédia dos comuns”:


– Os oceanos do mundo continuam a sofrer com a sobrevivência da filosofia dos comuns. Nações marítimas ainda respondem automaticamente com a senha “liberdade nos mares”. Considerando inesgotáveis os recursos dos oceanos, cada vez mais espécies de peixes e baleias estarão se extinguindo.


– Os parques nacionais apresentam um outro exemplo da tragédia das áreas comuns. Atualmente, eles estão abertos a todos, sem limites. Os parques por si mesmos são limitados em extensão. Os valores que os visitantes buscam nos parques estão inevitavelmente ruindo.


Em decorrência da livre utilização, é criada uma externalidade na qual o excesso de usufruto do recurso prejudica aqueles que poderiam utilizá-lo no futuro (Pindyck e Rubinfeld, 2002). Segundo Berkes (1989), apud Feeny et al (1990), os recursos de propriedade comum constituem a classe de recursos para os quais a exclusão é difícil e o uso conjunto envolve possibilidade de subtração ou rivalidade. Feeny et al., (1990) salientam que uma teoria nova e ampliada para os recursos de propriedade comum deve ser capaz de considerar a capacidade de auto-organização e sua ausência.


É importante salientar, nesse contexto, o discernimento entre regime de propriedade comum e recurso de propriedade comum. Um recurso de propriedade comum pode ser um bem do governo nacional, regional ou local, de grupos comunitários, de indivíduos ou corporações, ou utilizado como um recurso de acesso livre. Arranjos de propriedade comum são contratos divididos e possuem problemas similares de comportamento oportunista potencial. (Ostrom, 2000).


A variedade de recursos de uso comum é enorme e leva em consideração atributos relacionados a incentivos proporcionados aos usuários dos recursos e à disposição de alcançar resultados melhores. A dificuldade e o preço para desenvolver meios de excluir não-beneficiários dependem da viabilidade e do custo das soluções do problema de exclusão e da relação entre este custo e os benefícios esperados para o recurso em particular. Os sistemas de propriedade comum não existem isoladamente e são, usualmente, utilizados em conjunção com propriedades individuais. Os benefícios obtidos neste sistema são proporcionais aos custos de investimento e de manutenção da propriedade comum. Muitos problemas locais são resolvidos com baixos custos, pela relação entre os indivíduos da comunidade (Schlager, 2002).


Diversos benefícios coletivos e ganhos ambientais são observados em propriedades comuns bem administradas, como por exemplo, o uso de melhores práticas de irrigação, menor incidência de abandono do campo, ausência de problemas de potabilidade, suprimento de água confiável mesmo nos anos de seca, elevada geração de impostos, provendo pequenas indústrias baseadas na produção da propriedade comum, manutenção do gado e melhorias nas escolas locais, com menor dependência de políticas governamentais. (Jodha, 1995).


Hardin (1968) faz também uma incursão no problema da poluição, colocando-o como um reaparecimento da tragédia das áreas comuns e identificando-o como conseqüência do crescimento populacional, que acaba por sobrecarregar os processos químicos e biológicos da reciclagem natural e exigir uma redistribuição dos direitos de propriedade. Os cálculos da utilidade são os mesmos de antes. O homem acha que sua parte nos custos de gerenciamento dos resíduos descartados por ele nas áreas comuns é menor do que os custos de reciclagem. Desde que isso seja verdade para todo mundo, nós ficamos presos em um sistema de “sujar nosso próprio ninho”. O ar e a água que nos rodeiam não podem ser prontamente cercados e, assim, a tragédia das áreas comuns tem que ser prevenida através de leis coercitivas ou mecanismos de taxação que tornam mais barato para o poluidor tratar seus poluentes do que descartá-los sem tratamento. O proprietário de uma fábrica às margens de um rio cuja propriedade se estende até o meio do rio geralmente tem dificuldade em ver o porque não é seu direito natural sujar as águas que correm pela sua porta. A lei sempre atrasada requer costuras e ajustes elaborados para se adaptar a estes aspectos, recentemente percebidos nas áreas comuns. Segundo Pindyck e Rubinfeld (2002), a poluição é um exemplo comum de externalidade que resulta em ineficiência de mercado; e pode ser corrigida por meio de padrões ou taxas de emissões de poluentes, ou permissões transferíveis de emissões de poluentes.


O modelo jurídico contemporâneo mostra-se pouco adequado a um mundo complexo, superlotado e mutável. Luhmann, jurista e sociólogo, com apoio na teoria sistêmica e na teoria da auto-organização, procura dar uma nova compreensão ao direito, cuja síntese da epistemologia atual pode ser expressa na função de reduzir a complexidade do ambiente em uma sociedade globalizada. A sociedade contemporânea é um lugar de conflitos com problemas que não são isolados e que não existiam anteriormente. Visando antecipar-se a estas contingências, o direito, ligado à sociedade, usa a estratégia de no passado, dar interpretação ao futuro, constituindo-se em um controle do tempo. Diz antes o significado do que pode ocorrer no futuro, criando “expectativas normativas” o que trás uma noção de contingência e cria mecanismos a priori que permitem uma programação. Torna-se necessário estudar e entender a sociologia, em uma perspectiva dinâmica, e que tenha como objeto as pessoas agindo na sociedade (Luhmann, 1983).


Saliente-se ainda que Hardin (1968) associa a “tragédia dos comuns” à densidade populacional, revelando um princípio não freqüentemente reconhecido, de moralidade, a saber: a moralidade de um ato é uma função do Estado, do sistema, no tempo em que ele é executado. Há um século atrás um camponês na Amazônia podia matar uma onça, usar somente sua língua para o jantar e descartar o resto do animal. Ele não estava em nenhum sentido sendo esbanjador. Hoje, só com alguns milhares de onças sobrando, fica-se espantado com tal comportamento.


Hardin (1968) também analisa os chamados efeitos patogênicos da consciência ao questionar: Se pedirmos a um homem que está explorando uma área de recursos comuns, para que ele desista “em nome da consciência”, o que diríamos a ele? O contraditório estabelece-se de duas formas: 1- (comunicação pretendida) “Se você não fizer como se pede, iremos abertamente condená-lo por não agir conforme um cidadão responsável”; 2- (a comunicação não pretendida) “Se você se comportar como pede, iremos secretamente condená-lo por ser um ingênuo que pode se envergonhar de ficar de lado enquanto que o resto de nós explora as áreas de recursos comuns”. Invocar a consciência nos outros é tentador para qualquer um que deseje estender seu controle além dos limites legais. Prossegue na reflexão, em defesa da “coerção mútua, mutuamente consentida” como arranjos sociais que produzam responsabilidade, que criem coerção, de algum tipo. Há a necessidade de arranjos sociais definidos. A regulação do acesso também se constitui em um bom mecanismo de coerção. Tome-se como exemplo parquímetros de uma cidade. Não se precisa necessariamente proibir um cidadão de estacionar, necessita-se simplesmente tornar isso caro para ele.


Em suas considerações finais, Hardin (1968) desenvolve as seguintes reflexões ao analisar os problemas populacionais do homem:


– As áreas comuns são justificáveis só sob condições de baixa densidade populacional.


– O que significa “liberdade”? Quando os homens mutuamente consentiram em passar leis contra o roubo, a humanidade se tornou mais livre.


A partir da publicação da “Tragédia dos Comuns”, apareceram várias críticas às soluções dadas por Hardin. Mostrou-se (Jodha, 1995; Schlager, 2002) que havia muitos exemplos de “áreas comuns” que eram geridas de forma sustentável durante séculos, e não eram nem privatizados nem sofriam um controle estatal rigoroso. As comunidades criaram regras de gestão comum para estes recursos e desta forma conseguiram seu bom manejo. Também há casos em que a gestão privada ou estatal não deu os resultados esperados, como inúmeros exemplos de estatização de recursos na antiga União Soviética ou o problema da degradação dos lençóis subterrâneos privatizados em Los Angeles. Experiências ao redor do mundo (Jodha, 1995; O’Toole, 1998) mostram que existem recursos ambientais sendo tratados de forma sustentável com uma gestão feita de diversas formas, e não só através da propriedade privada ou estatal, até mesmo pelas características de alguns recursos ambientais, como no caso do ar, onde os recursos são de difícil privatização ou estatização (Schlager, 2002). Daí a necessidade de ver os recursos ambientais como recursos comuns que devem ser geridos com regras de uso, mas podem ter diferentes tipos de direitos de propriedade.


A Tragédia dos Comuns (Hardin, 1968) prevê uma exploração excessiva ou degradação dos recursos de uso comum. Porém, Feeny et al., (1990), comprovaram a existência de um grande número de casos onde os usuários restringiram o acesso ao recurso e estabeleceram regras próprias para o seu uso sustentável. Feeny et al (1990) sustentam que o modelo de Hardin é “visionário”, mas incompleto. A conclusão de “tragédia inevitável” só se aplica à propriedade de livre acesso, com falta de coerção no comportamento individual, condições nas quais a demanda excede ao fornecimento e os usuários de recursos são incapazes de alterar as regras sem responsabilidades individuais. Os autores discordam da atribuição de notas entre o regime de direito e propriedade e os postulados de Hardin, que não consideraram o papel dos arranjos institucionais provendo a exclusão e regulação dos usos. Ainda, destacam que o atual interesse na propriedade comum está relacionado ao ressurgimento das raízes da democracia, participação pública e planejamento a nível local.


Em síntese, a publicação da “Tragédia dos Comuns” permitiu o aparecimento de diversos questionamentos em torno do direito de propriedade e suas externalidades, inclusive com estudos para concepção de instrumentos legais com a finalidade de dirimir este problema.


3.Distorções do crescimento urbano associados a Tragédia dos Comuns


A vida e o meio ambiente abiótico constituem um sistema acoplado, sendo que uma mudança em qualquer um deles acarretará conseqüências sobre o outro. Nos últimos duzentos anos, o meio ambiente global passou a ser afetado significativamente pelo ser humano. Nas últimas décadas, com o surgimento de novas tecnologias, o impacto desta ação tornou-se grave, a ponto dessas influências humanas acarretarem sérios riscos ao nosso ambiente, evidenciados pelas enchentes, furacões, poluição das águas, ondas de calor, depleção da camada de ozônio. A conservação dos grandes equilíbrios naturais e o uso adequado das novas tecnologias disponíveis em diversas áreas se apresentam como desafios a serem equacionados, uma vez que estão ligados à própria sobrevivência da espécie humana (Oliveira, 2006). Nas áreas urbanas, os efeitos do uso inadequado dos recursos ambientais são potencializados, em decorrência da concentração populacional existente.


Segundo Mendes e Grehs (2006), a poluição e degradação dos recursos ambientais representam externalidades negativas decorrentes da economia de mercado e que comprometem a sustentabilidade no espaço geográfico envolvido. A crescente incidência de alagamentos, congestionamento de veículos e demais impactos ambientais negativos nas cidades, especialmente em áreas metropolitanas, constitui dilema que não tem sido adequadamente enfrentado pelas políticas governamentais. As forças econômicas, que num primeiro momento representam benefícios e bem estar ao cidadão urbano, intensificam alterações do uso do solo com modificações geomorfológicas, impermeabilização do solo e modificações do ciclo hidrológico local; que se expressam como degradação ambiental, pelo fato de não ser considerada a bacia hidrográfica como unidade de planejamento territorial (Mendes e Grehs, 2006). Este fato pode ocasionar o esgotamento da capacidade de suporte do meio natural, onde as estruturas estão inseridas, bem como da infra-estrutura disponibilizada pelo poder público municipal, o que acarreta em prejuízos a todos os usuários da bacia hidrográfica.


Os mesmos autores afirmam que a alocação de terras pelo mercado, nos dias atuais, é ineficiente, uma vez que os preços da terra não refletem seu custo de oportunidade. A utilização de terras urbanas gera custos e benefícios que não são captados no sistema de mercado. Este fato, associado à elevada densificação de áreas com a infra-estrutura saturada, acaba ocasionando impactos negativos, considerados de responsabilidade do órgão governamental, como o aumento da incidência de cheias em áreas urbanas, devidas principalmente à impermeabilização das superfícies e ao rápido sistema de drenagem implantado em novos loteamentos e condomínios. Citam como exemplo desta problemática a bacia do Arroio da Areia na cidade de Porto Alegre, onde estão localizados os loteamentos Projeto Hermes e Parque Germânia, ambos próximos do divisor da bacia, como mostra a Figura 3. É fácil imaginar que a implementação destes grandes projetos pode encadear a ocorrência de uma “tragédia dos comuns” aos futuros moradores e aos usuários da região, uma vez que com a concepção destas áreas de uso comum as vazões pluviais e de esgotos domésticos serão incrementadas em diversas ordens de grandeza, promovendo a ocorrência de cheias em pontos da bacia relacionados ao acesso dos usuários. Somado a isso, a infra-estrutura de comércio e serviços existente se tornará saturada pela excessiva demanda de consumidores, que terão o acesso à compra de bens, relacionados à sua rotina dificultado, além de um maior tempo de viagem até seus destinos.


 


No caso do Projeto Hermes, estimou-se aumento de vazões geradas pelo Projeto da ordem de 3,5 (três vezes e meia) em consideração às vazões originais (atuais), decorrentes única e exclusivamente das águas pluviais. Acrescente-se a estes volumes parcela da vazão dos esgotos, da ordem de 450 m3/dia, gerados a partir dos 12 edifícios a serem implantados. Face às peculiaridades geológicas desta área, – onde incidem diversas fraturas e falhas geológicas, que polarizam e controlam o fluxo das águas subterrâneas, aflorando sob a forma de “olhos d’água” – deve ser ressaltada uma contribuição extra às tubulações da drenagem pluvial mesmo na ausência de chuvas. A atual rede de águas na Bacia do Arroio da Areia é deficiente em várias posições. Em conseqüência disto os canais, bueiros e poços de visita extravasam causando inundações em vários pontos da bacia.


No mesmo trabalho é simulado um congestionamento na Av. Assis Brasil, uma via expressa que liga o centro de Porto Alegre a vários bairros periféricos e que está parcialmente situada na bacia hidrográfica em questão. Nos dias chuvosos a estrutura de drenagem não suporta a vazão acarretando em extravasamento de águas das galerias pluviais, constituindo as inundações urbanas. Essas incidências implicam diminuição da velocidade do tráfego e, conseqüentemente, um maior tempo de viagem. Como se observa na Figura 4, até um determinado volume de tráfego (no caso do exemplo, de 400 veículos por hora), o aumento do volume de tráfego não interfere no tempo e no custo de viagem. A partir desse volume, é considerado um custo de oportunidade, ou seja, o custo causado pela renúncia do ente econômico, e os benefícios que poderiam ser obtidos a partir da oportunidade renunciada ou a renda gerada em uma aplicação alternativa. Também são considerados os custos de depreciação e utilização do veículo. Ao somatório desses dois custos se denomina “custo social de viagens” que é aumentado em mais de 500 % quando o volume de tráfego sobe de 400 para 2000 veículos por hora. Os autores ainda fazem referência a uma curva de demanda onde para cada volume de tráfego apresenta-se a disposição a pagar dos motoristas para transitar na via. Este acréscimo nos custos representa as externalidades econômicas causadas por enchentes urbanas e seus efeitos no custo dos tempos de viagem. Esse exemplo permite que se vislumbre a ocorrência da “tragédia dos comuns” nos dias atuais em grandes centros urbanos.


 


4.Considerações Finais


A Tragédia dos Comuns descreve problemas reais no mundo contemporâneo. Nossa água, ar, paisagem, solos e muitos outros recursos comuns estão sentindo a pressão do “desenvolvimento” devido à “racionalidade” da psicologia do curto prazo que é explorada neste modelo de desenvolvimento. Entender o modo como a Tragédia dos Comuns funciona e investigar as formas de gestão sustentável é vital para se manter a saúde e longevidade de recursos comuns.


Mesmo nos dias atuais tem-se problema em definir os regimes de propriedade e suas regras de utilização, por isso a ocorrência da “tragédia dos comuns” em várias áreas. Não há uma clara definição de até aonde vão os direitos e as obrigações de cada um nesse processo.


Enfatize-se que a abordagem simplificada deste artigo deixa muitos caminhos abertos à investigação adicional. Como elementos basilares para pesquisas futuras na área de gestão de áreas comuns poder-se incluir:


– Necessidade de participação multidisciplinar, com abordagem sistêmica e utilização de instrumental jurídico e econômico no ambiente urbano.


– A tendência dos agentes econômicos de maximizar o lucro das atividades através de uma superexploração de recursos é crônica, o que limita o manejo de recursos comuns, de forma sustentável. Neste contexto, sugere-se a adoção de bacias hidrográficas como unidades territoriais de planejamento, compatibilizando a atividade econômica com a manutenção dos recursos comuns.


Como conclusão, podemos assinalar que a “tragédia dos comuns”, tão bem comentada por Hardin, longe de ter sido minorada no decorrer dos tempos, cada vez mais se amplia.


 


Bibliografia

FEENY, D.; BERKES, F.; MCCAY, B.J.; ACHESON, JM. The Tragedy of the commons: TwentyTwo years later. Human Ecology, 18(1): 1-19, 1990.

HARDIN, G. The Tragedy of the Commons. Science, 162: 1243-1248, 1968.

JODHA, N.S. Common Property Resources: A Missing Dimension of Development Strategies. World Bank Discussion Papers, WDP 16, 1995. 149 pp.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

MENDES, C.A.B.; GREHS, S.A. Enfoques Econômicos para Dilemas Ambientais de Cidades: Análise em Bacias Hidrográficas. Submetido a Revista de Desenvolvimento Econômico, 2006. 22 pp.

OLIVEIRA, Celmar C. Gestão das Águas no Estado Federal. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2006.

O’TOOLE, R. The Tragedy Of The Scenic Commons. P. 181-187 in J.A. Baden and Noonan, D.S., eds. Managing The Commons. 2nd edition. Indiana University Press, Bloomington, 1998.

OSTROM, E. Private and Common Property Rights. In: BOUCKAERT, B., DE GEEST. Encyclopedia of Law and Economics: Volume II. Civil Law and Economics. Cheltenham, Edward Elgar, 2000. 807 p.

PINDYCK, R.S.; RUBINFELD, D.L. Microeconomia. 5a. Edição. São Paulo: Prentice Hall, 2002.

SCHLAGER, E. Rationality, Cooperation and Common Pool Resources. American Behavioral Scientist 45: 801-819, 2002.


Notas:

[1] Uma externalidade ocorre em economia quando o impacto de uma decisão não se restringe aos participantes desta decisão. A externalidade pode ser negativa, quando prejudica os outros, por exemplo, uma fábrica que polue o ar, afetando uma comunidade próxima. Ou pode ser benéfica, quando os outros, involuntariamente, se beneficiam, por exemplo, com a melhora da eficiência em um determinado mercado.

[2] O diagrama de Relações Causais (Causal Loop Diagram) mostra a interdependência de todos os componentes de um problema.

Informações Sobre os Autores

Ana C. Passuello

Engenheira Civil, Aluna do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Pesquisas Hidráulicas – IPH/UFRGS –- Porto Alegre, RS

Celmar Corrêa de Oliveira

Doutorando em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental no Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS. Possui mestrado em Direito, linha de pesquisa: Direito Ambiental e Biodireito pela Universidade de Caxias do Sul (2002), especialista em Direito e em Educação, graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992), graduação em Educação Física pela Escola de Educação Física do Exército (1977); professor concursado da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, na área de Gestão Pública. Tem experiência na área de Direito Público Gestão Pública, Gestão de Recursos Hídricos e Saúde Coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: direito constitucional, direito ambiental, gestão ambiental, gestão pública, gestão de recursos hídricos direitos sociais, sociedade de risco, democracia.

Carlos A. B. Mendes

Engenheiro Civil, M.Sc., Ph.D., Professor no Instituto de Pesquisas Hidráulicas – IPH/UFRGS


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Equipe Âmbito Jurídico

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