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Direito comparado: uma análise comparativa acerca do direito no Egito Antigo e o direito nos dias atuais

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Resumo: O presente artigo busca apontar através do método dedutivo e se valendo de pesquisas bibliográficas históricas as similitudes entre certas normas de Direito verificadas no Egito Antigo com aquelas praticadas nos dias atuais ressaltando a modernidade de um sistema jurídico ancestral que já possuía preceitos fundamentais determinados por Maat elevados a um patamar que no Brasil apenas agora começamos a compreender em virtude do neoconstitucionalismo. Verificar-se-á que as normas eram abrangentes a todos não havendo distinção em virtude de posição social cor ou gênero. A mulher não era tida como um ser alheio ao Direito e seus direitos eram igualmente assegurados em igualdade. O escalonamento do judiciário do período em questão é outro ponto que é abordado comparando-o aquele verificado no período contemporâneo destacando-se ainda a forma do processo e a possibilidade de se optar já em 2.800 a. C pela arbitragem como forma de dirimir controvérsias entre os contratantes.

Sumário: 1. Introdução. Noções preliminares. 2.1 Egito antigo e os direitos humanos. 2.2 A mulher no Egito antigo: igualdade de gênero família e proteção jurídica. 2.3 Aspectos de direito civil contratual. 2.4 Sistema judicial e suas similitudes com o sistema atual. 3. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

Quando abordam-se questões inerentes ao Direito, por vezes, tem-se a impressão de que o instituto deriva dele mesmo e não de vivências passadas. Michael Foucault ensina em sua Teoria das Grades que o ser humano está predisposto ao conhecimento que, contudo, acaba por ser substituído por outros e esquecido em diversas camadas de grades de conhecimento.

O presente artigo visa justamente desenterrar o que foi esquecido e apontar as similitudes entre experiências jurídicas passadas e aquelas que vivenciamos nos dias atuais.  

Para tanto escolheu-se uma das civilizações mais fascinantes da história da humanidade que, embora existam diversos estudos, em áreas distintas, sobre aspectos dos mais variados dessa civilização, bem pouco se estudou sobre as questões jurídicas inerentes ao Egito Antigo.

Assim, abordar-se-ão diversas questões interessantes ao mundo jurídico que, contudo, se perderam em meio a evoluções e involuções ocorridas no Direito de modo geral ao passar s séculos.

Verificar-se-á que muito do que se entende hoje como institutos jurídicos modernos possuem similitudes gritantes com os que gozavam um povo que viveu a mais de 5.000 anos.

2. NOÇÕES PRELIMIARES

Ao falarmos sobre uma comparação entre o Direito nos dias atuais e o Direito que era aplicado no Egito antigo, faz-se necessário passarmos pelos princípios que as regiam.

Embora as 42 confissões negativas sejam dotadas de um misticismo evidente, vez que se destinavam a um ritual de passagem entre a vida e a morte, pode-se claramente encará-las como princípios que regiam todos os aspectos da vida do egípcio antigo, sendo assim, diferente não seria com as leis que obviamente seguiam a regra de Maat, deusa responsável pela ética, moral e justiça.

Tais confissões negativas tratam-se de uma espécie de prestação de contas do morto para com cada uma das 42 divindades que compunham o panteão egípcio. Sendo assim, para cada divindade e levando-se em conta o aspecto da vida que aquela divindade regia, fazia-se 42 confissões.

Foi através do Papiro de Ani (aproximadamente 1.300 a.C), também conhecido como “O Livro dos Mortos” (erroneamente traduzido desta forma) que chegou até os dias atuais tais informações.  

Feitas essas considerações, ao analisar-se cada uma das 42 confissões, consegue-se estabelecer vínculos com alguns princípios de Direitos Humanos, tais como o respeito à propriedade privada (confissões 2, 3, 5, 6, 7, 9, 16, 40 e 42), a dignidade da pessoa humana (confissões 18, 20, 23, 31 e 41), o direito a vida, bem como, a integridade física e mental (confissões 4, 12, 14, 23 e 28). Assim, a princípio, analisar-se-á cada uma deles.

2.1 EGITO ANTIGO E OS DIREITOS HUMANOS

Em nossa Carta Magna de 1988, coube ao art. 5º, inciso XXII, contemplar o princípio da propriedade privada ao dispor, in verbis, que:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [..]

XXII – é garantido o direito de propriedade;” (BRASIL, 1988)

  A propriedade, segundo Clóvis Beviláqua (2003, p. 127) conceitua-se como um “poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida física e moral”. Em outras palavras, é o direito que determinada pessoa possui de usar e dispor sobre determinada coisa que compõe seu patrimônio físico, moral, intectual e religioso.

A defesa a propriedade é percebida de forma mais clara no Código Penal, que possui título destinado aos crimes contra o patrimônio, dispondo de 32 artigos que tipificam como condutas criminosas ações que visem à diminuição de patrimônio alheio através de condutas positivas ou negativas.

Entre tais dispositivos, destacam-se os artigos 155 e 157. O primeiro trata-se da conduta de subtrair, independente de ser para si ou para outrem, coisa alheia móvel. Essa conduta é conhecida como furto. A segunda, diz respeito a prática de subtrair, mediante violência, grave ameaça ou qualquer outro meio que impossibilite a resistência da vítima, coisa alheia móvel.

Tais artigos, assim como os demais dispostos no Título II do Código Penal, são a mais perfeita representação da defesa do princípio da propriedade insculpido em nossa Constituição Federal.  

Quando se colaciona as 42 confissões negativas, e sabendo-se de sua função norteadora, nota-se em 09 ocasiões que a propriedade, seja ela material ou religiosa, é objeto de defesa impar. Assim, transcreve-se as oito ocasiões:

“02. Eu não roubei com violência. 03. Eu não furtei. 05. Eu não furtei grãos. 06. Eu não me apropriei de oferendas. 07. Eu não furtei propriedades do deus. 09. Eu não desviei comida. 16. Eu não furtei de terras cultivadas. 40. Eu não desviei os bolos khenfu dos espíritos dos mortos. 42. Eu não matei o gado pertencente a deus”. (S/I)

A preocupação com a propriedade no Egito, como pode-se notar, vai além da propriedade das pessoas físicas e abrange também a propriedade de pessoas metafísicas, assegurando o direito a propriedade de divindades. Pode-se ainda traçar certa similitude entre as confissões 06, 07 e 40 e o que está disposto na última parte do inciso VI do art. 5º da CF/88 que assim dispõe: “e inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;”

Segundo definição literal, liturgias são entendidas pela “reunião dos elementos ou práticas que, regulamentados por uma igreja ou seita religiosa, fazem parte de um culto religioso, ou ainda, pelo conjunto dos modos usados no desenvolvimento dos ofícios e/ou sacramentos; rito ou ritual. ”[1]

Assim, pode-se admitir os bens dos templos que, destinados a ritos religiosos, passam a compor as alfaias liturgias daquela seita ou religião, e, desta forma encontram-se sob o manto da égide constitucional, proteção está igualmente identificável nas confissões retro.

Outro interessante ponto a se ressaltar é o esboço de uma preocupação com a dignidade do indivíduo, e, é justamente isso que se observa quando nos deparamos com as confissões negativas de número 18, 20, 23, 31 e 41, que assim são transcritas:

“18. Eu não caluniei; 20. Eu não desmoralizei verbalmente a mulher de homem algum. (repete-se duas vezes essa afirmação); 23. Eu não dominei alguém pelo terror; 31. Eu não pressionei em debates (entende-se aqui uma pressão excessiva no sentido de forçar o indivíduo a algo contrário a suas convicções) e; 41. Eu não arranquei o pão de crianças nem tratei com desprezo o deus da minha cidade”. (S/I)

Aqui novamente verificamos que certas preocupações egípcias apresentam-se deveras modernas, vez que tais confissões demonstram o cuidado com aspectos morais e individuais que apenas foram considerados em sua totalidade milênios depois quando da primazia do conceito de dignidade da pessoa humana que, em nossa Carta Magna, aparece como preceito fundamental insculpido no Inciso I de seu art. 1º que assim dispõe: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] III – a dignidade da pessoa humana;”.

O direito a vida e a integridade física e mental também ganha destaque, nas confissões 4, 12, 14, 23 e 28. A saber: 04. Eu não assassinei homem ou mulher; 12. Eu não levei alguém ao choro; 14. Eu não ataquei homem algum; 23. Eu não dominei alguém pelo terror.  Estes direitos, assim como na época, encontram-se amparados nos dias atuais e em nossa CF/88 dispostos no caput do Art. 5º (direito a vida), em seu inciso XLVI (integridade física e mental do preso), assim como em seu art. 40, §. 4º, III (diferenciação de aposentadorias para servidores cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física) e em seu art. 201, §1º (diferenciação dos segurados do regime Geral da Previdência Social cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física).

No ponto, apenas um pequeno adendo já que mencionou-se questões previdenciárias, é importante frisar que já no Egito Antigo é possível detectar referências sobre a existência de associação de doenças ao trabalho, semelhantes ao Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário, havendo ainda um esboço de Seguridade Social, vez que existiam atendimentos médicos organizados em certos locais de trabalho, bem como, casos de pensão por invalidez de origem laboral, reintegração ao trabalho e de solicitação de indenização e cobertura de gastos médicos motivados por acidente de trabalho semelhante ao SAT, contudo, podendo ser pago pelo Estado egípcio ou pelo contratante. (BRITO, 2012)

Novamente se faz um comparativo com as leis brasileiras, vez que, tais preocupações, encontram-se insculpidas também dentro de nosso ordenamento jurídico, ganhando destaque, inclusive, em diversos pontos de nossa Constituição Federal de 1988, constando no rol dos direitos sociais insculpidos no caput do art. 6º, além de dispor de Capítulo Próprio (Título VII, Capítulo II).

O mais interessante é que os Direitos Sociais aludidos foram reconhecidos, contemporaneamente, apenas após 1948 com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que culminou com o surgimento do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, bem como pela Constituição da República de 1988.

Assim, nota-se um modernismo incomum ao período, comparável apenas nos dias atuais quando comparados a princípios de Direitos Humanos que, não seria nenhum absurdo, aceitar-se como originados tanto no Egito como na Mesopotâmia.

Em relação a esse fato, destacam-se as palavras de Sidney Guerra (apud NASCIMENTO FILHO, 2011, p. 13)

“O estudo dos direitos humanos tem como marco teórico a origem dos direitos individuais da pessoa humana no antigo Egito e na Mesopotâmia, onde já existiam ferramentas que possibilitavam a proteção individual contra o arbítrio do estado, sendo a civilização egípcia a primeira a desenvolver um sistema jurídico nesse sentido”.

Alexandre de Moraes (1998, p. 21) caminha na mesma direção ao dispor que “a origem dos direitos individuais do homem pode ser apontada no antigo Egito […], no terceiro milênio a.C., onde já eram previstos alguns mecanismos para proteção individual. ”

Embora o autor considere que o primeiro Código a abranger com mais profundidade esses assuntos tenha sido o de Hamurab escrito por volta de 1.700 a.C, é inevitável não considerarmos que suas raízes venham de períodos anteriores, já que o próprio autor atribui tal surgimento ao povo egípcio por volta do terceiro milênio a.C., ou seja, durante o Império Antigo.

O historiador e jurista espanhol Felix Alonso Royano (1998, p. 62) vai ainda mais além.

“Así pues, nuestro derecho es, por ahora, el último escalón de una serie de hitos jurídicos que naciendo en Sumer y en Egipto, han ido conformando el mundo del derecho occidental, tal y como lo conocemos y aplicamos, con mutuas influencias, impregnando de particularismos, pero en el fondo

emergiendo las instituciones egipcias a poco que nos preocupemos de inquirir […]”

Para o autor, o nosso Direito ocidental é uma última etapa de uma série de marcos legais nascidos tanto na Suméria quanto no Egito e que acabaram por conformar o mundo jurídico do ocidente.

Destaca ainda que:

“Hoy en día es ya científicamente incontestable la preponderante influencia egipcia sobre las culturas minoica, griega y romana. Desde los criticados trabajos científicos de Revillout, a principios de este siglo, hasta las últimas certezas de Martin, Iniesta y Diop, entre otros a los que me sumo, y el reconocimiento del Coloquio de la UNESCO, en El Cairo, voy a demostrar que, en el campo jurídico el Egipto faraónico influyó, a manera de osmosis, sobre la cultura occidental.”

Royano defende essa ideia baseado no fato de que existem documentos que comprovam a sedimentação das leis egípcias entre os países que mantinham relação com o Egito (entre eles Creta, Chipre, Grécia e por último Roma), vez que durante milênios foi a maior potência do Mundo Antigo.

O que de certo pode-se afirmar é que, sem dúvida alguma, aspectos jurídicos verificados em um Egito de 5.000 anos, são absurdamente parecidos com aqueles percebidos nos dias atuais, o que demonstra o modernismo desse sistema.

2.2 A MULHER NO EGITO ANTIGO: IGUALDADE DE GÊNERO, FAMÍLIA E PROTEÇÃO JURÍDICA

Quando se analisa a batalha travada pelos movimentos feministas ao longo da história, verificamos que mesmo hoje, em pleno século XXI, as mulheres ainda encontram barreiras monstruosas em relação a sua condição e direitos.

Seja no Ocidente ou no Oriente, sejam por motivos culturais ou sociais, é comum deparar-se com situações onde o sexo feminino é motivo para toda sorte de abusos e excessos, onde, em alguns casos, a violência corporal inicia-se logo nos primeiros dias de vida.

Segundo relatório da Organização das Nações Unidas – ONU, cerca de 120 milhões de meninas foram forçadas a manter relação sexual ou realizar outros atos sexuais em algum momento de suas vidas e 133 milhões de mulheres e meninas foram submetidas à mutilação genital feminina.[2]

Diante destes fatos, a maior parte das nações do mundo vem aprimorando suas legislações no sentido de aumentar a proteção tanto física quanto jurídica ao sexo feminino.

Inúmeras evoluções resultaram em uma mudança gradual acerca da condição da mulher, e, por consequência, acarretando mudanças jurídicas que acabaram por tomar corpo, principalmente durante a segunda metade do século XX.

No Brasil, até o ano de 2002, nosso Código Civil (Lei 3.071 de 1º de janeiro de 1916) ainda trazia reflexos de um período onde a mulher era figura relegada, submissa ao marido e sujeita ao pátrio potestas deste, refletindo essa condição tanto em questões sucessórias, quanto nas demais questões da vida civil, chegando, até mesmo, a condição semelhante a um semi-imputável. (DIAS, S/I)

E nesse diapasão, menciona-se o artigo 242 do Código Civil de 1916 (Lei 3.071 de 1º de janeiro de 1916), que restringia a prática de determinados atos da mulher sem a autorização do marido:

“A mulher não pode, sem o consentimento do marido: I. Praticar atos que este não poderia sem o consentimento da mulher; II. Alienar, ou gravar de ônus real, os imóveis do seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens; III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem; IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado; V. Aceitar tutela, curatela ou outro múnus públicos; VI. Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos indicados nos arts. 248 e 251; VII. Exercer profissão; VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal; IX. Aceitar mandato”. (BRASIL, 1916)

No processo de luta pela restauração da democracia, o movimento de mulheres teve uma participação marcante, ao visibilizar um conjunto de reivindicações relativas ao seu processo de exclusão, assim como ao lutar pela inclusão dos direitos humanos para as mulheres. (BRASIL, 2013)

E nesse sentido, destaca-se que:

“Seu marco foi a apresentação da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes (1988), que indicava as demandas do movimento feminista e de mulheres. A Carta Magna de 1988 incorporou no Artigo 5°, I: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. E no Artigo 226, Parágrafo 5°: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos pelo homem e pela mulher”. Esses dois artigos garantiram a condição de equidade de gênero, bem como a proteção dos direitos humanos das mulheres pela primeira vez na República Brasileira.”

Após a abordagem constitucional acerca da igualdade de gêneros, as leis nacionais passaram por uma revolução no sentido de adequar-se a nova realidade. Assim, abandonou-se as práticas que a muito permeavam a legislação brasileira e paulatinamente uma nova legislação, mais igualitária, surgiu em nosso ordenamento. Corroborando com uma mudança que vinha em sentido global.

Maria Bernadete Miranda (2011, p. 1) lembra que:

“A Declaração Universal dos Direitos Humanos reconheceu em 1993 os direitos das mulheres, no item 18 do Programa de Ação de Viena. As inovações nessa área foram consideráveis a partir da Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ratificada pelo Brasil em 1984) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (ratificada pelo Brasil em 1995).”

Já em 1990, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente que consagrou, definitivamente, o princípio constitucional da igualdade, estabeleceu-se que o pátrio poder seria exercido "em igualdade de condições pelo pai e pela mãe" e que o dever de sustento, guarda e educação dos filhos caberia a ambos, direito apenas reservados ao pai como verifica-se nos art. 186[3], 380[4] e 385[5] do Código Civil de 1916.

O Código Civil de 2002, Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002, veio no sentido de corrigir de vez os equívocos passados, assegurando às mulheres os mesmos direitos dos cônjuges ou companheiros, abandonando de vez “a visão patriarcalista que inspirou a elaboração do revogado Código Civil de 1916, quando o casamento era a única forma de constituição da família e nesta imperava a figura do marido, ficando a mulher em situação submissa e inferiorizada.” (MIRANDA, 2011, p. 13)

Essa relativamente longa introdução vem no sentido de apontar que mesmo em um período marcado pelo surgimento do Estado Democrático de Direito, até bem pouco tempo atrás, não era lá tão democrático assim, e os direitos estavam longe de ser para todos. No entanto, quando voltamos os olhos para o Egito de 3.100 a.C, constata-se que já observava-se naquela época uma relação igualitária de direitos e deveres entre homens e mulheres. 

“No tocante às decisões reais e aos procedimentos e penalidades legais, tudo indica que homens e mulheres de todas as classes eram considerados iguais perante a lei.” (MOKHTAR, 2010, p. 95)

Nesta seara, Santos (2005) aduz que a mulher egípcia teve um status privilegiado em comparação com outras civilizações antigas. A igualdade entre os sexos era um fato natural e comum aos egípcios, que nunca se referiram a relações de inferioridade ou qualquer outro tipo de problema relacionado com a posição da mulher em sua sociedade, ressaltando que eram iguais tanto em dignidade como em direito, embora essa condição tenha sofrido inúmeras mudanças conforme os hábitos egípcios eram sobrepujados pelos hábitos e costumes de seus conquistadores.

Ciro Flamarion Cardoso (2007 b) sobreleva a ideia de que a mulher egípcia era sui juris, vez que detinha o poder de se autodeterminar podendo possuir bens próprios, decidir quanto a disposição destes, contrair obrigações, desempenhar atividades produtivas e demandar em nome próprio em juízo.

No que diz respeito à vida privada, mantinha-se o amplo direito da mulher. Detinha igual participação na herança e controle de seus bens pessoais. No aspecto público, a mulher podia intervir na gestão do patrimônio familiar, ação essa considerada normal em muitos casos como, por exemplo, na ausência do marido ou durante a viuvez. (SANTOS, 2005)

Fernando Fournier Acuña (apud LIMA FILHO, 2009, p. 66), por seu turno, menciona que:

“O fato é que a mulher, na sociedade do Egito, conservou uma posição elevada, quase única na Antigüidade. Prossegue o jurista costa-riquenho: a mulher tinha acesso às grandes posições políticas, sendo que algumas delas ocuparam o trono; permitia-se que as mulheres fossem sacerdotisas, e, em suma, gozavam de uma enorme liberdade, quase que só comparável à da mulher contemporânea. O nome da mãe antecedia o do pai, e a mulher podia ser proprietária.”

A mulher egípcia também não estava sujeita a tutela nos moldes romanos que transpassaram os milênios e se instalaram no seio das famílias modernas. O poder dos pais vinha no sentido de zelo e guarda, bem semelhantes àquela que verificamos nos dias atuais.

Santos (2005, p. 2) aponta que, assim como os dias atuais, “sua capacidade era plena e completa com a maioridade; apesar de não sabermos exatamente quando esta se iniciava, devia ser com uma idade que permitisse o uso de discernimento e que a responsabilizava pelos seus atos.”

E nesse sentido:

“Registra Gilissen que o filho maior pode possuir um patrimônio próprio, do qual pode dispor livremente.160 Como podemos verificar, trata-se de uma orientação muito mais liberal do que a do Direito Romano, no qual o “pecúlio castrense” apareceu relativamente tarde, em função das conquistas militares.Se, na esteira do saudoso Professor Thomas Marky, lembrarmos que o “Peculium Castrense” remonta a Augusto, veremos que o Direito egípcio da época do Antigo Império era, a respeito do assunto, notavelmente evoluído”. (LIMA FILHO, 2009, p. 66)

No que diz respeito ao casamento, em que pese dependesse de anuência dos pais, o noivo era de livre escolha da mulher. Outro ponto interessante sob a igualdade de gênero e a similitude com os dias atuais é que, assim como hoje, no Egito Antigo a virgindade da noiva não era motivo de preocupação e tratada como uma questão de honra, e ao que tudo indica, não possuía qualquer relevância, embora esse assunto não seja pacífico no seio acadêmico. (SANTOS, 2005)

Poliane Vasconi dos Santos (2005, p. 3) acerca do casamento no Egito relata que:

“O casamento era considerado um ideal social cujo desenvolvimento harmonioso dependia exclusivamente dos seus noivos e que devia ter por objetivo seguir o caminho da Maat, a deusa da justiça e da retidão. A fidelidade era considerada a maior garantia da manutenção dessa ordem que afastaria os noivos do grande crime do adultério. Não havia uma lei para o casamento, pois se tratava de uma anuência pessoal entre os dois interessados que se comprometiam a um pacto social.”

Cardoso (2007 b) acredita que a importância atribuída ao casamento por parte dos egípcios decorria das consequências econômicas e jurídicas, tais como, legitimidade, herança e sucessão, que eram institutos tidos como essenciais na sociedade do Egito Antigo, cuja formação familiar era o liame que assegurava tais direitos.

Gilissen (2011) ensina que a célula social por excelência era a família em sentido restrito, composto por pai, mãe e filhos, onde assim como já apontado acima, não havia qualquer autoridade marital, tampouco tutela da mulher.

No que concerne à famíliae completando os ensinamentos de Gilissen, Acácio Vaz de Lima Filho (2009, p. 66) leciona que “os filhos e as filhas se encontravam em pé de igualdade, não existindo, o que nos parece muito significativo, nem direito de primogenitura, nem privilégio de masculinidade”

Como não havia uma proibição religiosa para a separação entre os cônjuges, a manutenção do casamento e a estabilidade do lar dependiam da moralidade. Os motivos de separação vão desde o adultério até conflitos de interesse e infertilidade. A mulher estava protegida contra uma separação injusta e os homens sabiam que poderiam ser submetidos a duras penalidades caso o fizessem. (SANTOS, 2005)

Santos (2005, p. 6) destaca ainda que:

“Poderia-se fazer um contrato formal garantindo o bem-estar material da mulher no caso de separação ou viuvez. Os contratos de casamento não eram obrigados por lei, mas estavam solidamente arraigados ao costume da população. Mas a mulher tinha ampla liberdade se desejasse estabelecer um contrato de casamento beneficiando seu marido em caso de separação. No Papiro de Salt, a mulher promete restituir os bens do marido se o expulsasse de casa por amar outro homem: “Se eu me afastar de ti não poderei pôr em causa as nossas aquisições comuns”.

Nesse ponto nota-se certa similitude com o Pacto Antenupcial cuja previsão verificamos em nosso ordenamento, vez que, assim como no Egito Antigo, observadas as questões inerentes a falta de informação acerca de Códigos no período, quando da realização do casamento, os nubentes optam por uma das opções previstas no Código Civil vigente, cuja regulamentação está contida entre os art. 1.639 a 1.688.

Recentemente a revista Galileu (2015) publicou matéria acerca de um papiro datado de 480 a.C, cujo teor tratava-se de um acordo pré-nupcial onde o noivo se comprometia a indenizar a noiva caso o casamento acabasse, com 1,2 peça de prata e 36 sacos de grãos pelo resto de sua vida.

Como já demonstrado em outrora, tais documentos eram levados a registro, que era realizado por um escriba que dava publicidade ao ato, não bastando, todavia, que o contrato fosse registrado, vez que a lei exigia que houvesse a transcrição do negócio jurídico ou em cartório, ou em juízo, ou até mesmo no tribunal para que pudessem ser depositados no cartório do conservador dos contratos, o que tornava o contrato executável perante o Grande Tribunal do Vizir.

Fugindo um pouco do tema deste título, contudo tratando de mais uma similaridade com o direito contemporâneo, transcreve-se a seguinte matéria em relação aos notários e registradores no Egito Antigo.

Uma forma bem sofisticada de publicidade registral existiu no antigo Egito. Os registros denominados katagrafe foram organizados na época ptolomaica, por volta do século III ªC, que tinham à frente funcionários encarregados do registro de contratos e da cobrança dos impostos. Já nesta época, os notários (que redigiam os contratos) eram obrigados a exigir certidões dos teminai (responsáveis pelos registros) para que se pudesse dispor de imóveis.

[…] Na praxe egípcia se encontravam a escritura, o cadastro, o registro e o importo de transmissão, sendo exigência da lei que os contratos fossem depositados no conservador dos contratos. Chegou-nos um processo judicial egípcio no qual um tal Hermias reivindica a propriedade de uma casa. Para tanto, alega a existência de uma lei segundo a qual os contratos egípcios não inscritos no Registro não tem valor”. (MAGALHÃES, 2004, S/I)

O art. 1.245 do C.C determina que só se adquire a propriedade sobre bens imóveis pelo registro. A Lei 6.015/1973 (Lei dos registros Públicos) reforça esse entendimento em seu artigo 169, quando determina que todos os atos enumerados no artigo 168, que se destina a elencar as atribuições dos Registros de imóveis, são obrigatórios.

Assim, a propriedade de um bem imóvel apenas se comprova, em regra, com o registro desse bem junto ao Cartório de Registro de Imóveis, muito semelhante com o registro que Magalhães se refere no final de seu texto.

Feitas essas considerações e voltando ao tema que se destinou o presente título, o que deparar-se-á ao analisar a relação formada entre homem e mulher no Egito Antigo, ao menos até o Império Novo, a mulher gozava de um status social e jurídico que apenas voltou a ser observado já no período contemporâneo, cujos certos aspectos são muito semelhantes aqueles observados em nosso Direito Civil e Constitucional. 

2.3 ASPECTOS DE DIREITO CIVIL CONTRATUAL

A vida em sociedade enseja uma série de observações acerca de condutas individuais que passam a ser regulamentadas pelo Estado com o finco de zelar pela paz e harmonia do todo coletivo.

Assim, os indivíduos sedem parte de sua liberdade ao Estado que, em contrapartida, promove, por intermédio de leis e interferência direta, meios para que esses mesmos indivíduos possuam certa tranquilidade e segurança.

Destarte, embora o contrato seja tão ancestral como a própria raça humana, foi somente a partir da intervenção estatal como intermediador das relações humanas que o instituto alçou a patamares diferentes daqueles observados anteriormente, onde a quebra do contrato ensejava uma vingança de cunho pessoal e não uma consequência patrimonial.

A evolução do instituto passou por diversos períodos de evolução, merecendo destaque aquelas observadas no Império Romano, quando o contrato ganhou aspectos formais, no Direito Francês de Napoleão Bonaparte, quando passou a ser entendido como lei entre as partes (pacta sunt servanda), impulsionado pelos princípios liberais da Revolução Francesa que se pautava na busca de retirar os entraves à circulação do capital e do BGB (Código Civil Alemão), quando outras relações foram consideradas negócios jurídicos e não mais somente os contratos, que passaram a integrar a categoria geral, o que reforçava a teoria liberal francesa, vez que ampliava o leque de situações livres de intervenção estatal.

O interessante no ponto é que, embora os liberais buscassem se desvencilhar dos braços do Estado pregando o jusnaturalismo, se utilizaram dele para que tais direitos fossem reconhecidos, ou seja, embora buscassem a liberdade vivenciada em períodos anteriores a formação dos Estados, buscavam a segurança deste, para que seus interesses fossem assegurados por lei.

Essa liberdade foi relativizada quando das severas consequências observadas em decorrência da Revolução Industrial, onde os contratos deixaram a individualidade e passaram por uma massificação onde, o contrato de adesão, já tipificado no Código Napoleônico, passou a ser a regra em virtude da própria massificação da produção, acabando por se tornar uma ferramenta de poder e opressão.

Em virtude destes fatos, o Direito Contratual se adequou e o Estado no afã de limitar as consequências dessa liberdade irrestrita, assim como em outrora, puxou para si a responsabilidade de regular certos aspectos do contrato, dando-lhes ares de matéria de ordem pública. É nesse cenário que nos encontramos nos dias atuais.

Assim como já foi utilizado no tópico anterior, essa breve introdução vem no sentido de nos situar no espaço e tempo e demonstrar as diversas evoluções e alterações que a forma de contratar sofreu ao longo dos séculos, tendo por intuito facilitar a visualização de quão modernas eram as práticas contratuais do Egito Antigo.

Para tanto, analisar-se-á a menção feita por Félix Alonso Royano (1998, p. 27-28) acerca de um contrato de compra e venda realizado por volta dos anos 2.700 a 2.400 a.C, retratado pelo autor da seguinte forma:

“Los investigadores hemos descubierto que sobre la existencia de leyes, algo parece ser cierto, porque entre otros soportes documentales que han llegado a nosotros, se encuentra la tan conocida estela de Gizeh, descubierta por Steindorff en 1910, cerca del templo de la pirámide de Kheos (Jeos), y datada entre la )V y V dinastías, es decir, entre el año 2.700 y el 2.400 a.C, que se puede ver en el museo de El Cairo, y que es uno de los documentos jurídicos más antiguos de la humanidad, pues se trata de la compraventa de una casa, en la villa de «Khwít Khwfw» (Juit Jufu). El vendedor es el escriba «Tnt» (Tenti), y el comprador el sacerdote «Km3pw» (Kemapu), que paga al vendedor el equivalente a 10 «sh3Tt« (Chait). Ese pago equivalente fue un mueble hecho con madera de anís, otro con madera de sicómoro, y una cama hecha con madera de cedro. […] parte de la estela se encuentra la declaración del comprador que dando su nombre y título sacerdotal dice: «He adquirido esta casa del escriba Tenti y he dado por ella 10 chatis». En el lado izquierdo de la estela, y en esta parte, se encuentra la declaración del escriba Tentí como vendedor: «Por la vida del rey que haré que todo se cumpla conforme al derecho, y que resultes satisfecho en este punto, de suerte que todo lo que forma parte de la casa te pertenezca». En esta otra parte se indica, arriba el precio: «1 mueble de madera de anís, 3 chati; otro de madera de sicómoro, 3 chati; y una cama de madera de cedro, 4 chati. Y debajo la descripción de la casa: «Construcción a cordel y con techo de madera de sicómoro». En el centro se encuentran descritas las formalidades de la venta, es decir, «sellado en la casa del sello, ante el consejo local de la pirámide de Jeos, y ante varios testigos» y abajo del todo están las firmas de los testigos asistentes a la compraventa, y que fueron el obrero Meji y los sacerdotes funerarios Sebni, Ini y Nianjor»”.

O contrato de compra e venda em questão trata-se da venda de uma casa por parte de um escriba de nome Tenti a um sacerdote cujo nome é Kemapu. Tal contrato foi encontrado gravado na famosa Estela de Gizeh, localizada entre as patas da Esfinge e descoberta em 1910 por George Steindorff[6].  

Da figura transcreve-se os seguintes dizeres do contrato:

“He adquirido esta casa del escriba Tenti y he dado por ella 10 chatis sellado en la casa del sello, ante el Consejo local de la pirámide de Jeos, y ante varios testigos. (Vienen las firmas de los testigos: obrero mejo y los sacerdotes funerarios Sebni, Ini y Nianjor).

1 mueble de madera de anís, 3 chati; outro de madera de sicómoro, 3 chati; y uma cama de madera de cedro, 4 chati.

Por la vida del rey que haré que todo se cumpla conforme al derecho,  y que resultes satisfecho en este punto de suerte que todo lo que forma parte de la casa te pertenezca. Construcción a cordel y con techo de madera de sicómoro”. (ROYANO, 1998, p. 29)

Da tradução feita por Royano, extrai-se, primeiramente, que o ato jurídico seguiu requisitos básicos dos contratos modernos, representados pela declaração de vontade, qualificação da figura do comprador e do vendedor, bem como, a descrição do bem sob negociação, os assessórios que o acompanham, e o valor que foi pago, bem como a forma que se deu esse pagamento.

O que chama atenção nesse contrato é que ele recolhe em si aspectos que denotam que, na época, já verificava-se o formalismo atribuído aos contratos romanos, a liberdade de contratar defendida pelos liberais e a existência de determinadas regras legais impostas pelo Estado para sua concretização assim como nos dias atuais. Senão, vejamos.

“En el centro se encuentran descritas las formalidades de la venta, es decir, «sellado en la casa del sello, ante el consejo local de la pirámide de Jeos, y ante varios testigos» y abajo del todo están las firmas de los testigos asistentes a la compraventa, y que fueron el obrero Meji y los sacerdotes funerarios Sebni, Ini y Nianjor»” (ROYANO, 1998, 28)

A formalidade é observada quando verifica-se que o contrato foi submetido a registros na casa do selo, bem como, no conselho local situado na pirâmide de Jeus, observando-se ainda a necessidade da existência de testemunhas do negócio jurídico. Nota-se com isso certo formalismo do ato, vez que atende a requisitos para sua concretização.

A liberdade consiste na livre disposição do bem sem que necessite de autorização estatal para tanto, cabendo ainda as partes definir a melhor forma de pagamento, que, em que pese ter sido determinado na moeda da época (Chait) foi paga através de utensílios e móveis de madeira, ato semelhante ao contrato de permuta, vez que, embora tenha-se dado um valor ao negócio, este foi substituído pela entrega de alguns itens. Contudo é evidente que esse contrato tinha o condão de fazer lei entre as partes, e assim destaca-se:

“La consensualidad de las partes en su celebración, y no la forma, tuvo que dar virtualidad a muchos, haciendo realidad el brocardo «Pacta sunt servanda», por el que los contratos nacen para ser cumplidos, seguramente tuvo que ser la generalidad’. (ROYANO, 1998, p. 32)

O fato de existir normas estatais a serem obedecidas para validação do negócio é percebido na parte final da declaração de vontade do vendedor, quando ele jura pela vida do Rei que: “todo se cumpla conforme al derecho”, além da existência de requisitos formais a serem preenchidos , o que nos indica que existiam leis a serem observadas para que o ato jurídico fosse válido.

Vislumbra-se algo muito semelhante à teoria moderna das obrigações contratuais, vez que para validade do contrato verificou-se a existência dos requisitos subjetivos, objetivos e formais.

Como vimos no tópico anterior, era livre a disposição de bens por parte dos maiores, embora não se tenha notícias de quando se daria essa maioridade, o que consiste dizer que havia a separação entre personalidade jurídica (aptidão para adquiri direitos e deveres) e capacidade jurídica (possibilidade de exercer pessoalmente os atos da vida pública)

Aplicando ao fato histórico sob análise, verifica-se que o vendedor gozava de plena capacidade jurídica para dispor de seus patrimônio, assim como o comprador, igualmente gozava de sua capacidade para adquiri-lo. Aqui reside o requisito subjetivo do ato.

O fato do objeto do negócio ser um imóvel, e ser livre sua disposição, o que demonstra que o negócio jurídico é lícito, bem como, ser possível se estipular o valor deste bem, demonstra o preenchimento dos requisitos objetivos do contrato.

Outrossim, quando existem requisitos predefinidos por lei, para que o ato se concretize, estamos diante de um ato formal, assim como verificamos no caso em questão, vez que sua validade estava sujeita, ao que tudo indica, ao registro do Compra e Venda perante as autoridades competentes.

Essas leis e os requisitos de validade impostos tinham o condam de gerar efeito erga omnis, ao negócio jurídico, que serviam como garantia ao comprador.

“Pero no es menos cierto que al objeto de garantizar «erga omnes» los derechos adquiridos por el comprador de bienes inmuebles, el principio formalista regía su vida jurídica. Tal es así que estelas como la de Gizeh no eran otra cosa que el anuncio permanente, o cuasiperpetuo, de que la casa, el fondo o el derecho en la fundación funeraria, pertenecían a aquella persona determinada en el pétreo documento.” (ROYANO, 1998, p. 32)

 Por fim, imperioso se faz mencionar que, se existe um direito aplicável ao negócio jurídico, é evidente que existiam mecanismos que resguardavam os direitos uma parte perante a outra. E outro não é o entendimento de Royano (1998, p. 30)

“También es dable pensar que, existiendo contratos de compraventa, como el que acabamos de citar sobre la estela de Gizeh, catalogada como «lE 42.787», tendrían que darse incumplimientos a los mismos, de tal suerte que la reparación a tal responsabilidad, se efectuaría sin duda a través de la satisfactoria sentencia al «petitum» del demandante, bien a través de la aplicación de una justicia real primero y administrativa después, o como fue muy frecuente, de una justicia arbitral.”

Canhão (2009) entende da mesma forma e remonta a existência de tribunais destinados a solução de lides Civis ao Império Antigo, ou seja, entre os anos 3.200 e 2.100 a.C. Destarte, destinar-se-á o próximo título a analisar essa estrutura judiciária e compará-la com a dos dias atuais.

2.4 SISTEMA JUDICIAL E SUAS SIMILITUDES COM O SISTEMA ATUAL

Ao longo dos séculos e com o aprofundamento dos estudos acerca das instituições jurídicas no Egito Antigo, ficou evidente que aquela nação gozava de uma estrutura judicial muito semelhante a que observamos nos dias atuais.

O escalonamento do judiciário em instâncias, deriva do fato de que o Egito Antigo era um estado altamente burocrático, onde, em que pesem as leis derivarem do rei e ser ele a ultima instância da maquina judiciária, seu funcionamento dependia de conjunto de instituições e funcionários que aplicavam as leis. E outro não é o entendimento de Théodoridès (apud MOTA, 2010, p. 11) 

“Se o rei era entendido como o único legislador e também como juiz supremo, instância máxima do aparelho judiciário, na prática era um conjunto de funcionários e instituições que aplicavam a lei. O rei delegava os seus poderes executivos num grupo de colaboradores, aconselhados por si a conciliarem a lei com as exigências de Maat, de modo a fazerem Justiça.”

Acerca dessa burocracia Lima filho (2009, p. 48) ensina que:

“Segundo o magistério de Gilissen, no período do Antigo Império havia desaparecido a nobreza feudal, sendo que o Rei (Faraó) governa com os seus funcionários. Existem departamentos da administração, à frente dos quais se encontram chefes. Estes chefes integram um verdadeiro “Conselho de Ministros” presidido pelo Vizir. Os funcionários são reunidos em departamentos: finanças, registros, domínios, obras públicas, irrigação, culto, intendência militar e assim por diante. Os funcionários são nomeados por um “djet”, vale dizer, uma “ordem real”; são remunerados e podem chegar às mais elevadas funções, sendo que existe uma “rigorosa carreira administrativa. Nos “nomos” (províncias) os governadores, assistidos por numerosos funcionários, exercem — em nome do Faraó — as funções administrativas e judiciárias. Convém assinalar que são separadas as funções civis, militares e religiosas.”

O aparelho judiciário egípcio era pois encabeçado pelo vizir. Acima dele só o faraó e, abaixo dele, uma imensa máquina burocrática que assegurava a “manutenção do funcionamento da administração do país e em particular do domínio jurídico. Isto é, tal como o faraó delegava poderes ao vizir, também este se apoiava num conjunto de funcionários que o auxiliavam no cumprimento das suas funções.” (MOTA, 2010, p. 12)

“Aparentemente a justiça egípcia estava bem organizada, embora num quadro de grande complexidade em relação ao que é mais comum nas civilizações contemporâneas ocidentais.” (CANHÃO, 2009, p. 69)

Aqui, já comporta a primeira análise acerca do modernismo desse sistema, que prezava pela solução do litígio por vias não judiciais. Assim, imperioso se faz falar-se um pouco acerca da arbitragem.

Arbitragem, segundo melhor definição, “é um sistema extrajudicial de solução de controvérsias, referentes a direitos patrimoniais disponíveis, em que as partes, de comum acordo, nomeiam um terceiro que irá solucionar o conflito” [7]

Esse instituto é regulado no Brasil pela Lei 9.307/1996, que foi recentemente reformada, e, entre outras coisas, possibilita que as partes, por intermédio de clausula compromissória, determinem que todo litigio existente em relação a um negócio jurídico, desde que verse sob direito disponível, será submetido à arbitragem. (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2015)

Assim como nos demais campos abordados até aqui, embora esse instituto tenha sido notado tanto na Grécia Antiga quanto em Roma, insta mencionar que no Egito Antigo, a arbitragem já era observada entre os séculos XXIV e XXVII a.C. E isso é o que se extrai das lições de Royano (1998, p. 30), ainda tratando acerca do contrato de compra e venda mencionado no tópico anterior.

“En la primera Acta, de la que hace algún tiempo hice un estudio arbitral que fue acogido en el ill congreso Peninsular de Historia Antigua, celebrado en Vitoria (España) en 1994, se comprueba la existencia de, junto a la justicia ordinaria, la justicia arbitral para aquellos conflictos que pudieran surgir entre los cofrades de la fundación funeraria, a través de la inserción voluntaria de una cláusula compromisoria que establecía el procedimento arbitral —como de idéntica manera sucede hoy en las leyes de arbitraje apartando a la justicia ordinaria de su conocimiento y, por tanto, de su ejecución”.

A arbitragem, ao que tudo indica, era utilizada, assim como nos dias atuais, como uma importante auxiliar da justiça. No ponto o Egito Antigo difere-se das demais vertentes pelo fato de existir a possibilidade de se optar, através de cláusula compromissória estipulada em contrato, pela arbitragem para solução dos conflitos, diferente dos romanos e dos gregos, povos que também se valeram da arbitragem.

No caso dos romanos a arbitragem era obrigatória em qualquer demanda no período clássico e foi perdendo força na medida em que o Estado romano se publicizava, instaurando a ditadura e depois assumindo, por longos anos, poder absoluto, em nova relação de forças na concentração do poder, que os romanos não mais abandonaram até o fim do Império.  (TEIXEIRA, apud DELGADO, 2011)

Já na Grécia, a arbitragem aparece apenas em documentos do século V a.C (DELGADO, 2011) o que comprova que os gregos conheceram a arbitragem nos moldes egípcios apenas 22 séculos após o povo do Nilo.

Royano (1998, p. 30) nos traz a forma com que esses processos tramitavam ao aduzir, in verbis, que:

“Promovido el litigio, el procedimiento comenzaba por una demanda escrita sobre los derechos que pretendidamente habían sido conculcados al demandante, por la fundación. Recibida la demanda se nombraba o bien un arbitro único. Se abría un período probatório en el que el demandante aportaba cuantas pruebas y alegaciones considerara necesarias y a las que hubiese lugar. Una vez aportadas dichas pruebas, tanto las del demandante, como las de la demandada institución funeraria, era pronunciado por los arbitros un laudo arbitral de obligado cumplimiento y absolutamente ejecutorio, pasando a ser a partir de esse momento cosa juzgada e impidiendo ningún tipo de recurso ante la justicia ordinaria. Una vez firme el laudo o sentencia se registraba en papiro en la «gy n wpiw» (aien upiu), o Casa del Juicio del «T.Sty» (Jati), siendo el registro de la sentencia y la certeza de la misma, una garantía administrativa y una seguridad jurídica absoluta”.

 A certeza de que o sistema tenha funcionado bem no Império Antigo e no Império Médio não existe. É provável que sim, uma vez que não foram encontrados até agora quaisquer vestígios do contrário. Mas também é provável que não, se levar-se em conta todo ambiente de denúncia que transborda do Conto do Camponês Eloquente. (CANHÃO, 2009)

Tal conto gira entorno de uma queixa feita por um camponês que viveu durante o primeiro Período Intermediário – 2.200 a.C – a um escriba que pretendia usurpar-lhe a única terra que possuía. O camponês ressalta o absurdo de um funcionário estatal que deveria prezar pela justiça e aplicação da regra de Maat estar decidido a retirar-lhe o bem que duramente conquistara.

De volta ao tema, competia ao vizir presidir o Grande Tribunal, sendo o responsável pelo julgamento dos casos de maior gravidade. “Enquanto juiz ouvia depoimentos, tratava das diligências necessárias e proferia as sentenças. Julgava essencialmente questões civis complexas, que escapavam aos tribunais locais e que poderiam estabelecer um precedente legal.” (TYLDESLEY, apud MOTA, 2010, p. 11)

Canhão (2009) destaca que em cada cidade existiam tribunais destinados a primeira instância cujos magistrados situavam-se na base da pirâmide hierárquica judicial. Os funcionários eram afetos a administração pública e aos assuntos judiciais, onde qualquer funcionário real poderia ser membro do Kenbet local, contudo, seus atos eram registrados por um escriba, em particular o escriba de Maat e estavam vinculados a um Kembet que podemos dizer se assemelhar com os Tribunais de Justiça modernos ou até mesmo com os Tribunais Regionais Federais.

E nesse sentido, menciona-se:

“Dissemos (“retro”, n. III) que o território do Egito era dividido em quarenta e duas circunscrições administrativas, depois chamadas de “nomos” pelos gregos, à testa das quais estavam governadores (“nomarcas”). Os governadores, em suas circunscrições respectivas, exercem — em nome do Faraó — funções administrativas e judiciárias. Fique claro, pois, que além do tribunal supremo referido acima, e cuja existência – enfatizese — é conhecida desde a V Dinastia, existem nas capitais dos “nomos” (que serão chamadas de “metrópoles” pelos gregos), tribunais regionais, dotados de jurisdição sobre o território da circunscrição administrativa. […] Os egípcios foram o primeiro povo a instituir tribunais, dado este de grande relevo para a História do Direito”.  (LIMA FILHO, 2009, p. 48)

Interessante é que dessas sentenças proferidas pelos tribunais locais, cabiam recursos às instâncias imediatamente superiores, como demonstra Royano (1998, p. 35).

“Dice el insigne historiador belga Pirenne, que contra las decisiones judiciales dadas en cualquier «Sepat», o provincia, podía apelarse ante el tribunal supremo de «Las seis cámaras de Menfis», presidido por el «T.3ty». Esto pasa en el Antiguo Imperio, porque ya desde Nebhepetré, esto es Mentuhotep III en la XI dinastía, allá por el 2060 a.C. es decir en el Imperio Medio, está ya acreditada la existencia de dos «T.Stys», uno para el Bajo Egipto y otro para el Alto Egipto. El primer «T.Sty» del que tenemos constancia histórica es Nefermaát, hijo de Uni, último faraón de la III Dinastía y muy probablemente Hermano de Snefru, primer faraón de la IV.”

No trecho transcrito Royano aduz que com base em informações do notável historiador Henri Pirenne[8], contra as decisões dadas em qualquer Sepat ou Kembet como diz Canhão[9] cabia recurso para o Tribunal Supremo das Seis Câmaras de Menfis, órgão colegiado presidido pelo vizir (T3ty ou Tzet), o que durou atpe a divisão do Vizirato em dois, onde cada vizir ficou responsável por presidir o Grande Tribunal de sua competência.

Fato importantíssimo que Lima Filho (2009) ressalta é que a sentença possuía requisitos similares as dos dias atuais, vez que as sentenças proferidas deviam conter exposição de motivos e, provavelmente, exposição de motivos, que tinha por intuito o reexame do julgamento pelas instâncias superiores no caso de ser necessária a reforma da sentença. O que não se tem informação é se os Tribunais eram incumbidos ex oficio de realizar esse reexame ou se apenas o fariam a pedido das partes.  

 Além disso, destaca Susana Isabel Silva Mota (2010) que as instâncias locais reportavam ao vizir, regularmente, os factos ocorridos e enviavam‐lhe os registos de processos, testamentos e contratos, para serem guardados nos arquivos do vizirato. Em caso de necessidade, o vizir criava comissões que eram expedidas ao local para averiguações em seu nome. Tais instancias são observadas desde o império antigo até a derrocada do poder faraônico, embora o direito aplicável, como vimos, tenha se modificado de acordo com o período.

Telo Ferreira Canhão (2009, p. 75) aponta a divisão de competência observada na justiça egípcia, que poderia ser definida, entre outras, de acordo com a importância do processo.

“Segundo a importância dos processos, poderiam ser julgados pelo «grande kenbet» ou por um kenbet local, dependendo a sua importância das matérias. Por exemplo, questões litigiosas sobre a posse de terras ou 0 envolvimento de determinadas pessoas, como por exempio, o caso relatado no Óstraco 1945-37 do Museu de Ashmolean, sobre a acusação à mulher de Ramsés II por ter ilicitamente aberto o armazém do faraó para roubar alimentos sumptuosos, seriam assuntos para o «grande kenbet», enquanto os casos menores pertenciam ao foro dos tribunais locais.”

Acerca dessa divisão, Mota (2010, p. 14) leciona que:

“[…] o Grande Tribunal pode ser visto como o Supremo Tribunal (Allam, 1991: 111). Era da sua competência o julgamento dos casos civis mais complexos e de todos os casos criminais (Tyldesley, 2000: 13). Ou seja, todos os que excediam as competências dos tribunais locais” (Allam, 1991: 111).

Essa divisão de competência também se dava de acordo com a matéria, vez que junto aos Tribunais locais existiam anexos destinados à preparação de listas de impostos bem como julgamento das questões tributárias, o que demonstra que o contencioso fiscal ocupava local distinto das questões criminais e cíveis. E o mesmo se aplicava aos processos destinados a discussões acerca das sepulturas e dos tesouros selados em seu interior, tendo em vista que existem indícios acerca da existência de um Tribunal Real Especial para estas questões, além da divisão entre matérias cíveis e penais. (LIMA FILHO, 2009)

Essa divisão, embora seja diferente em relação às matérias em si, demonstra similaridade impar com a forma que são divididas as competências no judiciário brasileiro. Na menção feita ao que ensina o historiador português Telo Canhão, notamos a divisão da competência de acordo com sua complexidade, assim como verificamos hoje na definição de competência do Juizado Especial cuja competência não é definida apenas pelo valor da demanda. Na segunda menção, onde demonstrou-se o que aduz o Dr. Acácio Vaz de Lima Filho, apontou-se a divisão de competência de acordo com a matéria, que se dividiu em penal, civil, fiscal e especial. 

Em relação ao processo, Lima Filho (2009) nos traz que, segundo Jean Gaudemet, desenvolvia-se por meio de procedimento escrito, já Gilissen afirma ser ele escrito pelo menos parcialmente, ao passo que Fernando Fournier Acuña, citando Deodoro da Sicília, assinala que o procedimento era sempre escrito, para evitar que os advogados influenciassem os juízes com a sua habilidade oratória.

Canhão (2009, p. 74) em relação à fase probatória ensina que:

‘as investigações preliminares de qualquer caso tinham de ser executadas pelo conjunto dos srw[10] de cada tribunal, do kenbet local ao «grande kenbet», sob a direcção do magistrado que o presidia. Deste modo, agindo como um corpo ou constituídas comissões por alguns dos seus elementos, verificavam pessoalmente as informações de pilhagem de túmulos, interrogavam suspeitos e testemunhas, ouviam testemunhos de litigantes, examinavam as […] provas escritas dos dois lados da disputa de uma herança. Nas investigações a que procedia, o grande kenbet podia enviar um comissário para trabalhar com o tribunal local mais perto da questão a resolver, recolhendo em conjunto testemunhos, outro tipo de provas ou fazer a divisão de terras.”

 Essa fase probatória poderia ser reaberta caso o Grande Tribunal assim o determinasse e isso é o que relata Royano (1998, p. 38 – 40) ao deparar-se com um hieróglifo que continha todo um litigio. A saber:

“En la tumba del escriba del dios Ptah, Khayri (Jairi), en Saqqara, necrópolis de Mentís de la época del Horus Usimaré (Ramsés II, 1301- 1234 a.C.) se encuentra documentado un pleito sobre la herencia de Neshi (Nesgui) de enorme duración y que merece la pena describir por el conocimiento que nos aporta sobre el desarrollo de los procedimentos judiciales.”

Nessa primeira parte Royano aponta que a ação tratava sobre a herança de um chefe de barcos de nome Neshi, cujo processo durou muito tempo.

“El Horus Nehpehtiré, esto es, Ahmosis que reinó de 1580 a 1558 a.C), fundador de la XVIII dinastía, regaló al patrón de barcos Neshi (Nesgui), 13 arure de tierra cultivable, equivalente a 3 hectáreas, al sur de Menfis em la orilla izquierda del Nilo. Este fundo pasó, en calidad de herencia, a través de diversas generaciones, hasta el protagonista. Reinando alguno de los reyes del período amarnense, probablemente Kheperkheperuré, llamado Ai, de 1344 a 1340 a.C, la herencia pertenecía a 12 hermanos, 6 varones y 6 hembras, y administraba la tierra Urnero, una de las Hermanas que estaba casada con Prehotep (Pregotep), de cuyo matrimonio tuvo um hijo llamado Hwy (Güi), que era el que por cesión, cultivaba la parte correspondiente a su madre. Por esas fechas una hermana de Urnero, llamada Takharu (Tajaru), reclamó la administración de la tierra, promovendo un pleito contra su hermana, que se resolvió por el magistrado presidente del tribunal, el sacerdote-funcionario Aniy que falló el reparto equitativo de la tierra entre todos los herederos.”

O historiador relata que a herança consistia em uma enorme propriedade localizada ao Sul da cidade de Mênfis na margem esquerda do Rio Nilo, e foi adquirida pelo autor da herança ainda no governo de Ahmosis (1.580 a 1.558 a.C), passando a propriedade por diversas gerações[11] até que passou a pertencer a um grupo de 12 irmãos composto por 06 homens e 06 mulheres. Ocorre que uma das irmãs contraiu matrimônio e o filho que resultou da união passou, quando adulto, a cuidar da parte que cabia a mãe, o que, ao que indica o texto, causou certa contrariedade a uma das irmãs, que recorreu a justiça para que fosse nomeada administradora das terras, todavia, a ação resultou na divisão da herança ancestral em partes iguais por determinação do Presidente do tribunal um Sacerdote-funcionário de nome, Aniy.

Mota (2010) destaca que nesse período, Império Novo, com uma jurisdição muitas vezes semelhante à dos tribunais locais, desenvolvem‐se os tribunais associados aos templos. Na realidade, o mundo sacerdotal intervinha de diversas formas no domínio jurídico, não só os sacerdotes cumpriam oficialmente funções de magistrados, e não só neste período, como os templos serviam de quadro a numerosos processos independentemente dos intervenientes. Feitas essas considerações prossegue-se o relato.

“Por otro lado, el esposo de Urnero, contrajo un nuevo matrimonio, fruto del cual resultó su hijo Tjawi (Jaui). Con ese motivo Prehotep (Pregotep), no se sabe cómo, registró la tierra que pertenecía a Urnero, a nombre de su hijo Tjawi (Jaui). Los hechos precedentes parece ser que ocurrieron reinando el Horus Djeserkheperuré, conocido como Horemheb, de 1344 a1314 a.C.”

O que aconteceu foi que houve o divorcio de uma das herdeiras e o seu ex-marido contraiu outro matrimônio gerando igualmente um filho. O que ocorreu é que, não se sabe como, o ex-marido conseguiu transferir o patrimônio de sua ex-esposa para o filho fruto de seu novo casamento.

“Más tarde, reinando ya Usimaré, es decir Ramsés II, desde 1301 a 1234 a.C. el registro ilegal de propiedad de la tierra efectuado por Prehotep (Pregotep) en su día, y con motivo de la muerte de su hijo Hwy (Güi), se promovió un nuevo litigio, al intentar Khayri (Jairi), el hijo del difunto Hwy (Gíji), cultivar la tierra de su abuela Urnero, e impedírselo Khay (Jai) el nieto de Tjawi (Jaui), que se consideraba el propietario por título de herencia de su abuelo Prehotep (Pregotep).”

Com a morte dos herdeiros surgiu uma nova demanda cujo objeto eram as terras, vez que o filho do primeiro casamento, herdeiro legitimo, continuou até seus derradeiros dias como administrador das terras de sua mão, transferindo a seu filho esse direito, contudo, em virtude da fraude, surgiu o neto do filho do segundo casamento reivindicando a propriedade que estava em nome de seu pai.

“El pleito lo inició la esposa del difunto Hwy (Güi) en el año 14 del Horus Usimaré. En el año 18, Khay (Jai) presentó al tribunal, en defensa de sus derechos, los documentos que acreditaban el registro de la tierra a nombre de su abuelo Tjawi (Jaui), declarando en su contestación a la demanda, que realmente Hwy (Güi), el padre del demandante, había sido un simple bracero. Con esas falsas pruebas, y con la aparente legitimación del registro, el tribunal, cuyo magistrado presidente era el sacerdote funcionário Amenemope, falló el pleito a favor del demandado Khay (Jai).”

Se valendo de falsas provas que atestavam que, os herdeiros legítimos, não passavam de funcionários braçais, aliado ao registro fraudulento das terras, os herdeiros do usurpador acabaram por ganhar a demanda.

Ante tan injusta sentencia que desposeía a los verdaderos propietarios de su bien inmueble, Khayri (Jairi) y su madre que aún vivía, promovieron un recurso de apelación ante el tribunal supremo de Heliópolis, ante el mismo «T.3ty», quien ordenó que se trajese la escritura del Registro de laresidencia real, que en esos momentos estaba en el Delta, en la ciudad de Pi-Ramsés, y con la que pudo comprobarse que, en efecto, el nombre de Khayri (Jairi) no aparecía por ningún lado. Ante las protestas de veracidade de éste en su contestación al Recurso, el «T.3ty» decidió que el tribunal de Menfis instruyese una nueva fase testifical, todo lo amplia que fuese necesario. Y en ella testificó el cabrero Mesman, quien bajo juramento dijo: «Como es cierto que el dios Amón es eterno, y también el Horus, Vida, Salud y Fuerza, lo es, diré la verdad. No mentiré, y si miento que me corten la nariz y las orejas y que me destierren al País de Kush. Se cuenta  que Hwy (Güi) el escriba, hijo de la ciudadana Limero, es el «ms>> (mes) de Neshi (Nesgui)». (Hay que aclarar que «mes» significaba en egípcio hijo y heredero)

Al fin el tribunal debió llegar al convencimiento necesario para revocar la anterior sentencia y fallar a favor de Khayri (Jairi), expresando en el Fallo que, en efecto era descendiente de Huy (Gui), su padre, y de su abuela Urnero, y así hasta remontarse al patrón de barcos Neshi (Nesgui) y por tanto su «mes» o heredero.

Y la inscripción funeraria concluye expresando: «Me dieron la tierra. Trece arure me dieron como heredero, ante los notables de la ciudad. Y en la sala del juicio se puso una copia del Fallo del tribunal junto con el nombre de los jueces sentenciadores».”

Royano destaca que inconformado com a sentença injusta o herdeiro legitimo interpôs recurso de apelação ao Tribunal Supremo de Heliópolis que determinou, por intermédio do vizir presidente, que trouxessem os registros acerca da terra, e ao constatar que o nome do apelado não constava em nenhum momento anterior ao registro fraudulento, ordenou que se reabrisse a fase probatória para que se analisasse a linhagem sucessória. As informações prestadas apontaram o equivoco da sentença e embasaram sua reforma nomeando-se como verdadeiro proprietário o herdeiro de fato das terras.

Em relação aos registros mencionados Mota (2010) aponta que os escribas dos tribunais registravam todos aos atos e seguidamente os encaminhava ao vizir que, após aprovação, os selava e arquivava, transformando‐os assim em documentos autênticos e válidos.

“Estas práticas, atestadas desde o Império Antigo, constituíam um procedimento simples e certamente aplicado aos outros tipos de registos: o indivíduo (ou indivíduos), perante a reunião dos membros do tribunal, registava por escrito o acto em questão, de modo a que este se tornasse autêntico. Posteriormente, o documento era enviado ao vizir para que fosse guardado nos arquivos”. (MOTA, 2010, p. 15)

Esse processo iniciou-se em 1.334 a.C com a primeira ação acerca da herança e se encerrou em 1.234 a.C com a declaração final acerca da propriedade do imóvel. Esse relato é o mais completo processo judicial antigo que se tem história e demonstra a organização de um sistema judicial de mais de 5.000 anos de idade que guarda em si elementos observados nos sistemas contemporâneos, onde o que se primou foi a busca da verdade real por trás das provas apresentadas.

Em breve resumo do caso apresentado podemos apontar as fases que compunham o processo. Nos casos civis, o processo era aberto com a apresentação de uma petição ao tribunal, que podia ser exposta, oralmente ou por escrito, pelo queixoso. Era depois dado início ao julgamento, onde o queixoso apresentava o seu caso e, se necessário, apontava testemunhas e provas. Em algumas situações poderia ser interrogado pelos juízes. Seguidamente, era dada a palavra ao acusado, que tinha direito a defender‐se e a apresentar também as suas provas e testemunhas. Mais uma vez os juízes poderiam intervir interrogando‐o, e, caso não houvesse ainda certezas, poderia recorrer‐se a novas testemunhas e até a uma pequena investigação. Terminado o processo, era declarado o veredito e a sentença (MENU, apud MOTA, 2010)

A jurisprudência era talvez o aspecto mais vigoroso do Direito egípcio, vez que se tratava da aplicação prática das leis faraônicas aos casos concretos, fazendo com que as sentenças adquirissem importância tremenda, vez que qualquer decisão tomada por um tribunal fazia jurisprudência e essa decisão transformava-se num arquétipo aplicável a casos semelhantes. E nesse sentido:

“Quanto à Jurisprudência, ela é o aspecto mais vigoroso do Direito egípcio (Menu, 2004: 130). Entende‐se por Jurisprudência o conjunto de orientações que em matéria de determinação e aplicação da lei decorrem da actividade prática de aplicação do direito dos órgãos da sociedade de tal encarregues (Mendes, 1984: 90). Deste modo, qualquer decisão tomada por um tribunal fazia Jurisprudência, e essa decisão transformava‐se num arquétipo a aplicar em casos semelhantes, daí que encontremos, nas fontes, referências a precedentes que deviam ser modelo no caso em questão”.

A análise sobre os aspectos judiciais e processuais limitou-se ao período compreendido entre o Antigo e o Novo Império, épocas onde, em que pese os conflitos internos observados e as rupturas dos sistemas aqui abordados, a utilização da sistemática judiciária não foi de toda abandonada, ao contrário do que aconteceu a partir do terceiro período intermediário onde as leis, assim como o sistema judiciário, foram, como já abordado no capítulo anterior, destruídos e amoldados aos costumes e interesses dos conquistadores.

3 CONCLUSÃO

Em que pese não ter sido linear a história egípcia, seu Direito possui certos aspectos que muito se assemelham ao direito moderno.  A ênfase a direitos individuais patrimoniais, morais, físicos e voltados a dignidade observados nas 42 confissões negativas em muito se assemelham aos direitos humanos contemporâneos.

As normas egípcias, em que pesem emanarem de faraó, não poderiam contrariar a regra de Maat. Assim o sistema jurídico egípcio apresentava-se de forma deveras humanizado.

Exemplo disso é a própria escravidão, cuja existência no Egito Antigo é refutada pela maior parte dos autores, tendo em vista que os escravos no Egito Antigo, ao menos até a derrocada do Império Novo era vista muito mais como pena por tempo determinado do que como escravidão propriamente dita.

O escravo como conhecemos só foi ser observado no período ptolomaico, onde passaram a ser tratados como mercadorias.

A figura da mulher no Egito também é bem peculiar, principalmente quando comparada ao período. As mulheres gozavam dos mesmos direitos que os homens e não havia relação de subordinação entre um e outro. Dispunham de patrimônio próprio que administravam como queriam e o casamento também se dava de livre escolha.

O regime de bens poderia ser pactuado e existia certa proteção a mulher no que se refere ao divorcio, podendo ser estipulado pelo vizir ou acordado entre as partes uma espécie de pensão em caso de divórcio, muito parecido com o que se observa nos dias atuais.

A livre pactuação igualmente se demonstra moderna. Os contratos recolhem em si aspectos que denotam que, na época, já verificava-se o formalismo atribuído aos contratos romanos, a liberdade de contratar defendida pelos liberais e a existência de determinadas regras legais impostas pelo Estado para sua concretização assim como nos dias atuais. Nos negócios jurídicos observavam-se a existência dos requisitos subjetivos, objetivos e formais, o que consiste em dizer que estavam presentes os requisitos da teoria moderna dos contratos.

O sistema notarial e de registro também era muito evoluído e no caso dos registros de contratos formais como a compra e venda de imóveis os procedimentos eram similares aos de hoje. Primeiro registrava-se o contrato de compra e venda no cartório de notas e depois se transferia a propriedade pelo registro do imóvel.

Outro aspecto interessante é a existência de um esboço de seguridade social, com institutos semelhantes ao NTEP e ao SAT.

O Judiciário era igualmente moderno. Composto de órgãos escalonados formavam um sistema judiciário que, como demonstrado, é muito similar ao nosso. O vizir era o representante máximo do judiciário, subordinado apenas ao rei, e possuía um enorme aparelho estatal sob seu cuidado.  A administração pública contava com 42 tribunais locais que se subordinavam a tribunais regionais que por sua vez se subordinavam a um Tribunal Supremo.

O processo se dava de forma organizada, escrito e era dividido em fase inicial, onde o caso era apresentado, abria-se uma fase de instrução que se encerrava com o termino da produção de provas, e realizava-se o julgamento, onde da sentença proferida cabia recurso aos órgãos superiores.

Analisando todas as informações trazidas neste trabalho, verifica-se que na caminhada evolutiva dos seres humanos, tendemos a buscar soluções para os nossos conflitos através da busca de inovações, sejam, elas jurídicas, tecnológicas ou sociais. Contudo, ao voltarmos nossos olhos a uma civilização que teve seus áureos dias em tempos tão recuados, nos deparamos com aspectos que ainda nos dias atuais se demonstram modernos e podem nos auxiliar na solução de nossos conflitos.

Quando se verifica a extensão da representação das regras de Maat, pautadas na ética, moral e justiça na concepção literal do termo, dentro do Direito egípcio, constata-se que o que nos falta é encararmos os princípios que regem nosso direito, com a mesma seriedade e respeito que os egípcios antigos possuíam.

 

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Notas:
[1] Disponível em: <http://www.dicio.com.br/liturgia/> Acessado em: 26 out. 2015.
[2]   Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/onu-mulheres-violencia-contra-mulheres-e-a-pior-manifestacao-da-desigualdade-de-genero-radio-onu-11032015/> Acessado em: 28 out. 2015
[3]    Art. 186.   Discordando  eles  entre  si, prevalecerá a vontade paterna, ou, sendo separado o casal por desquite, ou anulação do casamento, a vontade do cônjuge, com quem estiverem os filhos. Parágrafo único. Sendo, porém, ilegítimos os pais, bastará o consentimento do que houver reconhecido o menor, ou, se este não for reconhecido, o consentimento materno.
[4]   Art.  380.  Durante  o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe da família (art. 233), e, na falta ou impedimento seu, a mulher.
[5]  Art. 385. O pai e, na sua falta, a mãe são os administradores legais dos bens dos filhos que se achem sob o seu poder, salvo o disposto no art. 225.
[6]  Georg Steindorff (1861-1951). Egiptólogo alemão formado na Universidade de Göttingen, foi responsável pelo Museu e pela cátedra de egiptologia da Universidade de Leipzig na Alemanha,
[7]  Definição disponível em: <http://www.saopauloarbitragem.com.br/arbitragem.asp> Acessado em: 30 de out. 2015.
[8]   Henri  Pirenne  (1862-1935) foi  um  historiador belga. A sua influência foi decisiva na historiografia contemporânea
[9]   A diferença dos nomes dados à mesma instituição decorre das traduções feitas do grego e do egípcio antigo.
[10]  Funcionários.
[11] A herança no Egito tinha como autor o primeiro indivíduo que deteve os bens que a compunham.

Informações Sobre o Autor

Rodrigo Alves Cordeiro

Bacharel em Direito formado pelo Centro Universitário Filadélfia, sócio proprietário do escritório Cordeiro Molin Advogados Associados


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Equipe Âmbito Jurídico

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