Direitos da personalidade

1. Histórico


A integridade da pessoa humana, pode se afirmar, sempre foi objeto de preocupação do Direito, embora nem sempre sob a mesma perspectiva. Já há 2000 anos antes de nossa era, o Código de Hamurabi (arts. 195 a 214) prescrevia penas corporais e pecuniárias para alguns atentados contra a integridade física e moral das pes­soas.[1] O Direito Romano não cuidou do tema nos mesmos moldes de hoje. Havia certa proteção à pessoa, por meio da actio iniuriarum, que abrangia qualquer atentado à pessoa do cidadão, fosse físico ou moral. O mesmo se diga do Direito Grego, cuja proteção à personalidade partia da noção de hybris, o que legitimava a imposição de penas.[2]


A categoria dos direitos da personalidade é recente, fruto da doutrina francesa e tedesca de meados do século XIX. São direitos atinentes à tutela da pessoa humana, essenciais a sua dignidade.[3]


Na verdade, a preocupação com o ser humano surge antes, já no século XVIII, com as declarações de direitos. Já a Magna Carta, de João Sem-Terra (século XIII), demonstrava essa preocupação. Cuidavam esses diplomas de proteger a pessoa contra os abusos do poder estatal totalitário. Limitavam-se a conferir ao cidadão direito à integridade física e a outras garantias políticas.


Seu destaque e o desenvolvimento das teorias que visavam proteger o ser humano se devem, especialmente, ao cristianismo (dignidade do homem), ao jusnaturalismo (direitos inatos) e ao iluminismo (valorização do indivíduo perante o Estado).


A porta de entrada dos direitos da personalidade foi o Direito Público, procurando dar proteção ao homem, principalmente diante do Poder. Daí as declarações que se sucederam historicamente: a Magna Carta (1215), o Bill of Rights (1689), a Declaração americana (1776) a Declaração francesa, a Declaração Universal da ONU (1948). Devido a sua positivação escrita, para proteger o indivíduo contra o Poder, ganharam o nome de liberdades públicas.


Mas, na visão mais atual, seriam os direitos da personalidade públicos ou privados?


Para o Direito Civil, principalmente o Direito das Obrigações e das Coisas, não havia qualquer menção a direitos do cidadão, que se restringiam à esfera pública, de proteção contra o Estado.


Com a evolução do capitalismo industrial, a concentração, a massificação, os horrores da Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento da tecnologia, principalmente da biotecnologia etc., a perspectiva muda. O paradigma do Estado Liberal é substituído pelo do Estado Social intervencionista, protetor do mais fraco. Os direitos da personalidade passam a integrar a esfera privada, protegendo o indivíduo, sua dignidade, contra a ganância e o poderio dos mais fortes. Ao lado desse prisma privatístico, continua a subsistir o público, em socorro do indivíduo contra Estado. Tendo em vista essas duas esferas, privada e pública, os direitos da personalidade pertencem a ambas. Na esfera privada, fala-se em direitos da perso­nalidade, terminologia cunhada por Otto Gierke.[4] Na esfera pública, em direitos humanos ou direitos fundamentais.


2. Tipificação


Classicamente se discute acerca da tipificação dos direitos da personalidade dividindo-se a doutrina em duas correntes distintas: a monista e a pluralista.


Segundo os monistas, os direitos da personalidade, assim como o direito de propriedade, é uno. Assim, não haveria direitos da personalidade, mas um direito geral da personalidade, com vários desdobramentos, estes regulados em lei (Código Civil, Penal, Constituição etc.). Quando se fala em direito à vida, à honra, à saúde, não se está referindo a vários direitos distintos da personalidade, mas a desdobramentos de um único direito geral. Isto se dá porque a pessoa humana é una. Seus interesses acham-se todos interligados, sendo facetas de um mesmo prisma.[5]


De acordo com os pluralistas, os direitos da personalidade são vários, correspondendo cada um a uma necessidade ou exigência distinta. Assim, embora a pessoa seja una, suas necessidades são diversas. A necessidade de viver é diferente da necessidade de viver com honra; a necessidade de um nome é diferente da necessidade de viver com saúde e assim por diante. Assim, diante das diversas necessidades, temos diversos bens para satisfazê-las. Daí os diferentes direitos da personalidade, considerados bens jurídicos, de natureza incorpórea.


Uma definição de direitos da personalidade, no sentido clássico, poderia assim se esboçar:


São direitos da personalidade aqueles reconhecidos à pessoa humana, tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade. São previstos no ordenamento jurídico para a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade etc.[6]


O legislador brasileiro adotou a primeira tese, ou seja, a teoria monista, optando por não especificar os direitos da personalidade de modo taxativo.[7] Assim, considera a unidade da pessoa, sendo a ela inerente um direito geral da personalidade, com vários desdobramentos.


A crítica que se pode fazer às teorias clássicas – monista e pluralista – é que ambas tentam enquadrar os direitos da personalidade na mesma moldura tradicional dos direitos subjetivos de caráter­ patrimonial, principalmente na moldura do direito de propriedade. Disso decorre que se preocupam quase que exclusivamente em conferir à pessoa uma tutela de caráter ressarcitório e de tipo dominical.[8]


A escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada a objetivos maiores, tais como a erradicação da pobreza e outros, configura uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo para a interpretação de todo o ordenamento.[9]


Em outras palavras, os direitos da personalidade, mesmo considerados direitos subjetivos, não podem ser comparados aos modelos clássicos de direitos subjetivos pessoais ou reais. Tampouco se deve moldurá-los em situações-tipo, reprimindo apenas sua violação. Também será inconsistente a técnica de agrupá-los em um único direito geral da personalidade, se o objetivo for o de superar o paradigma clássico, baseado no binômio lesão–sanção). Há de se estabelecer uma cláusula geral de tutela da personalidade, que eleja a dignidade e a promoção da pessoa humana como valores máximos do ordenamento, orientando toda a atividade hermenêutica.


A diferença entre o tratamento monista e uma cláusula geral de tutela da personalidade é fundamental. A teoria monista considera a personalidade como fonte de um direito geral e originário de personalidade. Quando este direito for violado em alguma situação existencial, como, por exemplo, um contrato desequilibrado, ou uma prisão injusta, o ordenamento jurídico socorre o prejudicado. Para os adeptos da cláusula geral de tutela da personalidade, a personalidade seria um valor, ou o valor supremo de uma sociedade democrática, do qual decorreria não só a proteção à dignidade humana, mas também a promoção do ser humano. Assim, o ordenamento jurídico, com base na cláusula geral de tutela da personalidade, não só daria ensejo à reparação dos atentados aos direitos da personalidade como induziria a atuação do intérprete ao molde axiológico dessa cláusula, qual seja, a pessoa humana. Por este prisma, por exemplo, a legitimidade de um contrato ou de um ato de cobrança de dívida, pouco importa se se trata ou não de relação de consumo, estará condicionada a esses valores constitucionalmente eleitos, quais sejam, a dignidade e a promoção do ser humano. Ao contrário da teoria monista, a cláusula geral de tutela da personalidade não se resume ao tratamento dos casos patológicos, casos em que se atenta contra os direitos fundamentais da pessoa. Preocupa-se, acima de tudo, com sua promoção.


Outro exemplo emblemático da insuficiência das clássicas técni­cas jusprivatísticas para a proteção da pessoa humana, seja por meio da doutrina monista ou pluralista, ocorreu em Belo Horizonte, na década de 1990. Empresas de lava-a-jato contrataram belas garotas, que, seminuas, arrematavam a lavagem dos veículos, assim que estes saíam da máquina de lavagem automática. A intenção era a de atrair clientes do sexo masculino, ávidos por se deliciarem com a situação. Imediatamente, certa entidade de proteção dos direitos da mulher, chefiada por Helena Greco, protestou veementemente, tomando medidas no sentido de coibir a prática, evidentemen­te atentatória à dignidade feminina.


Sem aprofundar a discussão a respeito da prática em si, sua proibição só foi possível graças à interpretação constitucional que se fez do contrato entre as moças e as empresas. Com as ferramentas tradicionais de proteção aos direitos da personalidade, fornecidas pelo Direito Privado, isso só seria possível se uma das moças, alegando erro ou coação, atentado a sua dignidade, pedisse a resolução do contrato, mais perdas e danos. Contudo, com base numa cláusula geral de tutela dos direitos da personalidade, seria possível a intervenção externa para coibir este tipo de contrato, não só reprimindo os atentados à dignidade humana como também promovendo a pessoa humana.


Na verdade, como vimos, a razão de ser dos chamados direitos da personalidade não é apenas a de proteger o homem em suas relações existenciais e patrimoniais, seja contra atentados do Poder Público ou de outros homens, mas, principalmente, a de promovê-lo pessoal e socialmente, em sua dignidade e cidadania. Quando se fala em proteção, tem-se em vista situações patológicas, em que o homem sofre danos a sua personalidade. Melhor seria falar em tutela, abrangendo tanto as situações patológicas quanto todas as demais. Daí a denominada cláusula geral de tutela (não apenas de proteção) da personalidade.


3. Direitos da personalidade e pessoas jurídicas


Podem as pessoas jurídicas ser titulares de direitos da personalidade?


A resposta nos parece negativa, uma vez que os direitos da personalidade, seja na concepção monista, seja na pluralista, seja ainda sob a perspectiva de uma cláusula geral de tutela da personalidade, se destinam à proteção e ou promoção da pessoa humana, tendo por base a tábua axiológica constitucional.


A pessoa jurídica recebe proteção na medida em que é meio para atingir fins almejados pelas pessoas naturais. Por detrás delas estarão sempre pessoas humanas, estas sim, objeto da cláusula geral de tutela da personalidade. Quando se ofende a “honra” da pessoa jurídica, está-se prejudicando as pessoas naturais que dela dependem ou dela se utilizam para sua realização. Daí a proteção dispensada pela Lei, por exemplo, à “honra” e ao nome da pessoa jurídica.


Há quem entenda, porém, que as pessoas jurídicas podem ser titulares de direitos da personalidade, evidentemente daqueles que com ela sejam compatíveis, tais como o nome, símbolos, marca, crédito e mesmo direito à honra.[10] É posição, como vimos, um tanto quanto questionável, uma vez que não se pode conceber a pessoa jurídica, a não ser como irradiação do próprio ser humano e suas atividades econômicas. É a ele, em última instância, que se deseja proteger e promover.


O Código Civil, em seu art. 52, estabelece que se aplica às pessoas jurídicas a proteção dos direitos da personalidade. A norma pode ser interpretada de duas formas: a primeira, a mais óbvia e fácil, seria no sentido entender que o legislador concedeeu às pessoas jurídicas titularidade de direitos da personalidade. No entanto, de acordo a segunda interpretação, menos óbvia, a intenção da Lei não é a de considerar a pessoa jurídica titular de direitos da personalidade, mas tão-só a de conferir um meio de proteção e de reparação às lesões sofridas pelas pessoas jurídicas no respeitante a seu nome ou reputação, de vez que tais lesões atingem, seja os sócios ou acionistas, seja o desenvolvimento de suas atividades econômicas. Em última instância, mesmo o art. 52 do Código Civil visa, em última instância, proteger o ser humano.


4. Direitos da personalidade no sistema brasileiro


No Brasil, a sede principal dos direitos da personalidade é a própria Constituição. É ela que prevê de forma, pode-se dizer, implícita a cláusula geral de tutela da personalidade, ao eleger como valor fundamental da República a dignidade da pessoa humana, que deverá ser protegida e promovida individual e socialmente.


Arrola o legislador constituinte vários direitos da personalidade, que denomina fundamentais, tais como a liberdade, a honra e outros, deixando claro, evidentemente, que a lista não é exaustiva. Adota, pois, claramente, a tese pluralista dos direitos da personalidade.


O Código Civil de 2002, na mesma esteira, dedica, timidamente, aos direitos da personalidade o Capítulo II do Título I do Livro I da Parte Geral, arts. 11 a 21.


Não se pode dizer que o Diploma Civil contenha, de forma clara, uma cláusula geral de tutela da personalidade. Limita-se a dispor que os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo sofrer limitações voluntárias em seu exercício. Além disso, prevê a possibilidade de se exigir que cesse qualquer ameaça a esses direitos, além da indenização por lesão que venham a sofrer.


Em seguida, passa a tratar de alguns direitos da personalidade, a saber o direito ao próprio corpo, ao nome, à honra, à reputação e à intimidade.


O Código Brasileiro, ao contrário de outros, como o japonês,[11] por exemplo, preocupa-se muito mais, para não dizer tão-só, com as possíveis patologias dos direitos da personalidade, em vez de tutelar a personalidade de modo mais holístico, promovendo a dignidade humana e vinculando a interpretação das normas de Direito privado a este valor fundamental. Continua, pois, a ser necessário reportar-se à Constituição para a consecução desse objetivo hermenêutico.


Salta aos olhos, assim, que adota a teoria pluralista dos direitos da personalidade, a nosso ver, na contramão da doutrina mais moderna.


 


Notas:

[1] A título de exemplo, o art. 202, que dispunha: “Se um homem agrediu a face de um outro homem que lhe é superior, será golpeado sessenta vezes diante da assembléia com um chicote de couro de boi”. Agredir a face significava estapear sem ferimentos. Se houvesse ferimentos, a pena seria outra, que incluía indenização por despesas médicas.

[2] TALAMANCA, Mario. Istituzioni di diritto romano. Milano: Giuffrè, 1990, p. 614 et seq. GERNET, Louis. Droit et institutions em Grèce antique. Paris: Flammarion, 1982, p. 225.

[3] TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 24. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 19 et seq.

[4] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 3. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000,
p. 250.

[5] DÍEZ-PICASSO, Luis; GULLÓN, Antonio. Instituciones de derecho civil. 2. ed., Madrid: Tecnos, 1998, v. I/1, p. 212.

[6] BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade, cit., p. 7-10.

[7] CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 47.

[8] TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade, cit., p. 45.

[9] TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade, cit., p. 48.

[10] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução, cit., p. 249-250.

[11] Código Civil Japonês de 1896, revisto em 1947: “Art. 1-2. Princípio de interpretação: Esta lei deve ser interpretada conforme aos princípios da dignidade individual e da essencial igualdade jurídica entre ambos os sexos”.

Informações Sobre o Autor

César Fiuza

Doutor em Direito pela UFMG.
Professor titular na Universidade FUMEC.
Professor Adjunto de Direito Civil nos Cursos de Graduação e de Pós-graduação da PUCMG e da UFMG. Professor colaborador na Universidade de Itaúna.
Advogado militante.


Equipe Âmbito Jurídico

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