Resumo: Crítica à pretensão ministerial de que todo capturado apresentado à Autoridade Policial seja submetido automaticamente à elaboração de auto de prisão em flagrante.
Tem sido recorrente, em alguns casos isolados (e nem por isso menos absurdos), o recebimento de expedientes do Ministério Público, requisitando providências administrativas e criminais contra Delegados de Polícia, sob a alegação de prática de “Prevaricação” e “Improbidade Administrativa”, tendo em vista casos em que foram apresentados indivíduos capturados pela Polícia Militar com voz de prisão preliminar na dependência de ratificação pela Autoridade Policial em sentido estrito (Delegado de Polícia), sendo fato que tal ratificação não se deu pelos mais variados motivos fáticos e de Direito, devidamente fundamentados pelos Delegados de Polícia responsáveis de acordo com suas convicções jurídicas. Nessas situações, foram tomadas todas as providências de Polícia Judiciária, com elaboração de Boletim de Ocorrência, apreensões, requisições e até mesmo oitivas formais, apenas não se lavrando, o auto de prisão em flagrante. Tanto é fato que os casos chegam ao conhecimento ministerial pela instauração do respectivo Inquérito Policial por Portaria. Entretanto, os r. membros do Ministério Público vêm defendendo a tese de que é imperativa a lavratura de auto de prisão em flagrante sempre e invariavelmente que um Policial qualquer (v.g. Militar, Rodoviário, operacional civil etc.), apresente alguém no plantão conduzido e com a convicção pessoal de que há flagrância. Nesses casos, defendem extravagantemente os Srs. Membros do Ministério Público que caberia às Autoridades Policiais em sentido estrito (Delegados de Polícia), ratificarem sem mais a voz de prisão dada, lavrar o auto de prisão em flagrante e, se for o caso, torná – lo insubsistente, mediante despacho fundamentado, encaminhando a comunicação de prisão ao Judiciário e ao Ministério Público. A conduta de praxe de deliberar pela feitura do Boletim de Ocorrência quando a Autoridade Policial não se convence da flagrância seria irregular e, no entender dos i. membros do ministério público, poderia, ao menos em tese, implicar em “prevaricação” e “improbidade”.
Sabe-se trivialmente que esse procedimento adotado pelos Delegados de Polícia é comum não somente em uma ou outra localidade, mas em todo o Estado de São Paulo-SP, e mais, ao que se saiba, em todo o país, tratando-se de entendimento predominante na doutrina e na prática Policial Judiciária. A Autoridade Policial somente lavra flagrante, obviamente, quando convencida do “estado de flagrância”, da ocorrência de crime para o qual caiba flagrante, da tipicidade, de um mínimo indiciário que justifique a coerção etc. Sem esse convencimento, não se lavra flagrante, o que, aliás, constituiria constrangimento ilegal do conduzido. Não há subtração de conhecimento dos fatos ao Ministério Público ou ao Judiciário, pois o BO é elaborado e instaurado Inquérito Policial por Portaria, o qual inevitavelmente é encaminhado ao Fórum, eis que é inviável o arquivamento pelo Delegado de Polícia (inteligência do artigo 17, CPP).
Naturalmente não se desconhece o teor do artigo 304, § 1º., CPP, mas o entendimento unânime e a praxe policial judiciária em todos os locais de que se tem notícia, é de que a lavratura do auto de prisão em flagrante somente se dá quando a Autoridade Policial, ao menos num primeiro momento, forma sua convicção pelo Estado de Flagrância. Em ocorrendo, durante a lavratura, algum fato novo que altere o convencimento da Autoridade Policial, aí sim, e somente nestas circunstâncias excepcionais, fará o despacho de insubsistência do auto ou o relaxamento da própria prisão em flagrante. Nenhuma Autoridade Policial de qualquer local que se tenha notícia, tem o costume de agir de forma automática, ratificando prisões sem nenhuma avaliação das circunstâncias para, somente após uma série de formalidades, tornar insubsistente ou relaxar.
É bastante fácil constatar que o entendimento advogado por isolados membros do Ministério Público é o de que em qualquer caso de condução pela Polícia Militar de alguém capturado supostamente em flagrante, deverá a Autoridade Policial em sentido estrito (Delegado de Polícia) praticar ato automático de lavratura do respectivo auto de prisão em flagrante, sem nenhuma indagação, somente tornando insubsistente a prisão posteriormente.
Mesmo sem que em geral, ao menos nos casos presenciados por este autor, tenha sido apontada fundamentação para o entendimento acima mencionado, não é difícil perquirir na doutrina a defesa dessa tese que é altamente minoritária teoricamente e totalmente inaplicada em termos práticos.
Em texto da lavra de Afrânio Silva Jardim, encontrável na internet no site da Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro[1], tal autor defende exatamente a tese encampada excepcionalmente pelo Ministério Público. Tal se faz com base tão somente no escólio isolado de Hélio Tornaghi[2]. O texto é, em termos de fundamentação acadêmico – jurídica, de uma pobreza franciscana.
Jardim escreve tendo em mira os obviamente indesejáveis conflitos de entendimentos quanto à lavratura de autos de prisão em flagrante ocorridos comumente entre a Polícia Militar e a Polícia Civil. Apresenta a lavratura obrigatória, com base no ensinamento isolado de Tornaghi, como uma espécie de “remédio” para essas frustrações militares.
Certamente, como não seria de esperar diversamente, as intenções de Jardim e dos r. membros do Ministério Público são as melhores possíveis. Acontece que Jardim incide em um equívoco provocado pela absoluta falta de vivência policial (o que também não é criticável, já que não é policial e se aventura na área). Acredita o autor, com certo grau de ingenuidade, que a lavratura automática de um auto de prisão em flagrante pelo Delegado de Polícia iria satisfazer os milicianos e evitar conflitos causados por inconformismo, mesmo quando após tal lavratura, o “preso” (sic) fosse posto em liberdade. Obviamente esse é um engano enorme. Seria de se esperar, inobstante a não vivência policial, que Jardim e qualquer outra pessoa de bom senso, calculassem que o inconformismo existiria de qualquer maneira e os conflitos continuariam, senão se exacerbariam, pois que o miliciano veria toda uma formalização para após horas e horas ter seu “preso” (sic) liberado de imediato. Se há desencontros em termos de convicção, estes não desapareceriam como num passe de mágica pela simples lavratura automática do auto de prisão em flagrante. Aliás, esses mesmos inconformismos ocorrem em outras situações, tais como nos casos em que o próprio Ministério Público, por vezes, na mídia, critica decisões judiciais ou então, como é mais correto, recorre dessas decisões, utilizando expressões muitas vezes duras, embora admissíveis no debate processual. O mesmo ocorre com advogados, réus, vítimas etc. O formalismo não solve o inconformismo.
Ademais, não é somente sob esse prisma motivacional do texto de Jardim que a questão é analisada de forma equivocada. O autor em destaque faz uma confusão entre a mera “captura” e a efetiva “prisão” que se faz com a “lavratura” do auto de prisão em flagrante. Isso fica nítido quando Jardim afirma que “não se pode relaxar uma prisão sem antes documentá-la e senão através de decisão escrita e fundamentada”. [3] Ora, por obviedade, a não lavratura de flagrante quando fundamentadamente decide o Delegado de Polícia, não se constitui em “relaxamento” de prisão alguma, senão apenas na não ratificação da “captura” e sua não conversão em “prisão em flagrante” pela Autoridade Policial em sentido estrito. Essa distinção olvidada entre “captura”, “lavratura” e efetiva “prisão” é de trivial conhecimento. Desde antanho já lecionava Noronha que muitas vezes “a captura se dará, o que não haverá é a prisão, ou melhor, aquela não se converterá nesta”. [4]
Ainda fazendo essa confusão entre “captura”, “lavratura” e “prisão em flagrante”, Jardim incide em outro erro derivado de sua falta de vivência policial. Afirma que quando o Delegado de Polícia não lavra o flagrante, os fatos não são registrados e vem a ser tolhido o conhecimento do Judiciário e do Ministério Público, bem como fica a própria Autoridade Policial sem um registro para justificar sua decisão. Parece desconhecer o r. autor que em todos esses casos, salvo situações teratológicas e inusitadas, é efetuado todo o registro, fundamentada a não lavratura e tomadas todas as providências de Polícia Judiciária, tirante a lavratura do auto de prisão, já que prisão não há a ser formalizada. Após tudo isso, normalmente é instaurado o respectivo Inquérito Policial que tem a força de levar todas as questões à apreciação tanto do Judiciário como do Ministério Público, exatamente como ocorreu nos casos presenciados por este autor e ocorre por todo o país.
É preciso salientar que no decorrer deste parecer, como já ocorreu anteriormente, se fará menção ao isolamento doutrinário da posição de Hélio Tornaghi abraçada por Afrânio Silva Jardim. Porém, na realidade há ainda outro autor clássico que antecedentemente defendia tese similar a desses juristas. Trata-se de Eduardo Espínola Filho. Ele também defende que, mesmo em casos de clara ilegalidade ou falta de base para a prisão, deverá a Autoridade Policial lavrar o auto de prisão em flagrante e, somente depois, o relaxar ou tornar insubsistente, comunicando, incontinenti o Juiz. A questão, como alegam Jardim e Tornaghi, estaria no controle de legalidade tanto da não custódia do “preso”, como da atuação daqueles Policiais que efetuaram a captura. Acontece que Espínola Filho somente aponta essa solução, considerando em sua fundamentação o fato de que não cabe à Autoridade Policial arquivar inquéritos (inteligência do artigo 17, CPP).[5] O autor em comento está correto neste ponto. Não pode o Delegado de Polícia arquivar “sponte própria” inquéritos policiais. Aliás, também o Promotor, somente o Juiz e ainda assim, mediante requerimento do Ministério Público (artigo 28, CPP). Dessa forma, tendo como base de sua solução a proibição de arquivamento, é de se entender que a lição de Espínola Filho é diversa da de Tornaghi, abraçada por Jardim. Espínola Filho está falando do caso em que um Delegado de Polícia, diante de uma suposta situação de flagrante, não lavre o auto e simplesmente não tome nenhuma providência, fique inerte e arquive informalmente o caso. Ora, é impossível discordar de que nessa situação seria impositiva a documentação do caso e que não cabe à Autoridade Policial arquivar inquéritos, sejam eles iniciados por que forma for (v.g. Portaria, Autos de Prisão em Flagrante, Requerimentos, Requisições etc.). Portanto, fica a posição de Tornaghi, advogando a lavratura em qualquer caso, independente de que conduta é tomada pela Autoridade Policial, realmente isolada no contexto doutrinário nacional, inobstante sua ressuscitação por Jardim.
Para bem fundar nosso parecer sobre a questão, mesmo inexistindo uma fundamentação da manifestação do Ministério Público nos casos vistos, conforme demonstrado, e em face do pauperismo da fundamentação do r. autor Afrânio Silva Jardim, em absoluto respeito aos Membros do Ministério Público que têm esse entendimento e, em especial, à relação de consideração em que se devem pautar as convivências institucionais, procedeu-se a uma pesquisa ampla sobre o tema em detabe, cujo resultado passa-se a expor.
A questão da insubsistência do auto de prisão em flagrante pelo Delegado de Polícia e, especialmente, a obrigatoriedade de lavratura sem maiores perquirições pela Autoridade Policial em sentido estrito simplesmente não é tratada em obras como as de Eugênio Paccelli[6] e Heráclito AntonioMossin.[7]
Outros autores, embora não adentrem especificamente no tema em questão, deixam muito claro em suas exposições que a lavratura do flagrante depende da existência de uma situação legal de flagrância. Certamente porque isso é praticamente notório, esses autores não entram em maiores aprofundamentos. Assim como mais que notório é o fato de que a prisão somente se perfaz quando a Autoridade Policial em sentido estrito (Delegado de Polícia) ratifica a voz de prisão eventualmente dada pelo agente da autoridade. Não fosse isso, não teria sentido a determinação da apresentação imediata do preso à Autoridade Policial (Delegado de Polícia), pois que teríamos então (o que não temos) o chamado “ciclo completo”, onde o próprio agente da autoridade se confunde com a “autoridade” e toma todas as decisões sem qualquer controle de agente estatal dotado de formação jurídica. A figura do Delegado de Polícia ficaria reduzida a uma espécie de homologador inerte e acrítico de prisões. E não se diga que o Delegado ao depois poderia avaliar, nos termos do artigo 304, § 1º., CPP a legalidade da prisão, tornando-a, se o caso, insubsistente. Isso equivale a obrigar uma Autoridade Policial a compactuar por horas com uma prisão nitidamente ilegal ou sem base jurídica para somente depois de todo esse constrangimento ao “preso”, afirmar que a prisão, na realidade, inexistia. A situação é deveras extravagante e equivale a um engenheiro que analisa um terreno, percebendo que ali não pode ser erigido um prédio de pronto, mas, mesmo assim determina a construção para depois promover à demolição; ou então de um médico que sabe da desnecessidade de uma intervenção cirúrgica, mas, mesmo assim, a leva a termo, para depois costurar o paciente e informá-lo, no retorno da anestesia, de que uma aspirina resolveria o caso!
É mais do que notório o fato de que se o Código de Processo Penal determina quais são as situações de flagrância (vide artigos 302 e 303, CPP) para, em seguida, falar em apresentação “do preso à autoridade competente”, essa apresentação somente pode se referir àquele que esteja, efetivamente, no entendimento dessa autoridade competente, em situação de flagrância e, portanto, realmente preso. À evidência não se está falando em qualquer apresentação, em mera condução, em uma determinação de postura acrítica da “autoridade competente” que não analisa sequer a situação flagrancial e age como um autômato, lavrando um auto de “prisão” em flagrante onde inexiste claramente a seu sentir, flagrante algum.
Sem dúvida é a notoriedade da questão e o fato de que a posição de Tornaghi é algo atípico na doutrina que leva esses autores a sequer cogitar este suposto problema, que agora é objeto deste parecer. São eles: Luís Fernando de Moraes Manzano, [8]HidejalmaMuccio, [9]Denilson Feitosa Pacheco [10] e Aury Lopes Júnior. [11]
Também, por certo devido à notoriedade da situação, conforme acima exposto, fato é que a esmagadora maioria da doutrina, ao tratar da lavratura ou não do auto de prisão em flagrante, afirma que esta somente se dará se a “autoridade competente” (Delegado de Polícia) entender presente a situação de flagrância e demais requisitos necessários a justificar o constrangimento do suposto “preso”.
Nesta toada é bem claro Renato Marcão:
“Efetivada a captura e a condução, apresentado o agente à autoridade competente, esta, se entender ser mesmo caso de prisão em flagrante, deverá providenciar a lavratura do auto respectivo” (grifo nosso). [12]
O ensinamento é evidente: a lavratura somente se dará se a Autoridade Policial em sentido estrito (Delegado de Polícia) entender que se trata realmente de uma prisão em flagrante. Caso contrário, auto algum deverá ser lavrado, o que não significa que nenhum registro será feito.
Este próprio subscritor foi pego de surpresa com a postura ministerial extravagante, principalmente com o aceno de responsabilização criminal e até mesmo por ato de improbidade por parte das Autoridades Policiais que não agissem de acordo com um entendimento isolado e praticamente desconhecido ou levado em conta na praxe forense e policial. Isso porque, inclusive na atividade de pesquisa, em publicação especializada sobre as cautelares processuais penais e as alterações promovidas pela Lei 12.403/11, já se manifestou claramente sobre o tema, merecendo o Prefácio do Exmo. Sr. Dr. Rogério Sanches Cunha, laureado Membro do Ministério Público Bandeirante e Professor da Escola Superior do Ministério Público. [13] Nesse trabalho, comenta o subscritor sobre o teor do artigo 304, CPP:
“Estabelece o artigo 304, CPP que a Autoridade Policial deve inteirar-se dos fatos e, convencida do flagrante, lavrar auto próprio. Esta é uma conduta preliminar em que se delibera sobre a lavratura ou não do auto respectivo.
Importa salientar que cabe soberanamente à Autoridade Policial (Delegado de Polícia) formar convicção técnico – jurídica sobre a lavratura ou não de Auto de Prisão em Flagrante. Não se admite, inclusive por força, no Estado de São Paulo, da Recomendação DGP 01/05, item 1, ‘qualquer tipo de ingerência relativamente ao enquadramento típico da conduta e à existência de estado flagrancial” (grifos neste parecer). [14]
Note-se que ninguém está a afirmar que o Delegado de Polícia pode a seu bel prazer, por mero capricho, deixar de lavrar uma prisão em flagrante quando está configurada. É claro que não. O poder das Autoridades, sejam elas Policiais ou não, é sempre um “poder – dever” e depende de fundamentação. Mas, daí a exigir a lavratura de um auto de prisão quando a Autoridade percebe claramente ou está em dúvida razoável quanto à situação de flagrância, tipicidade penal etc., vai um longo e tortuoso caminho. O mesmo deve ser dito quanto à efetiva lavratura. Também não pode a Autoridade Policial lavrar um auto de prisão em flagrante sem o devido fundamento, por mero capricho, vontade de poder ou qualquer sentimento pessoal sem assento na legislação e nos fatos. Crê este subscritor que ninguém, nem mesmo Tornaghi, Jardim ou os r. membros do Ministério Público que adotam esse entendimento isolado, iriam colocar em cheque esta última afirmação. Pois então, onde há a mesma razão, há o mesmo Direito, conforme conhecido brocardo latino (“Ubi eadem ratio ibi idem jus”).
Greco Filho ensina que quando da apresentação deve a Autoridade Policial “decidir se é o caso, ou não, de flagrante, porque a prisão pode não ter sido feita dentro das hipóteses legais. Se não tiver sido, deverá liberar o detido. O autor em comento até entende que poderia haver uma previsão legal de lavratura de um auto de “não prisão” a fim de ser remetido ao Ministério Público para avaliação do relaxamento da prisão e eventual abuso de autoridade em sua realização. No entanto, reconhece Greco Filho, a inexistência “de norma legal dispondo a respeito”, de forma que então o relaxamento “se faz informalmente”, mediante lavratura de boletim de ocorrência. O autor critica essa situação fático – jurídica, afirmando que esses boletins de ocorrência permaneceriam arquivados na “própria dependência policial, sem qualquer controle”. Essa a motivação para seu pleito por uma normatização diversa da existente. [15] É preciso esclarecer que, embora seja de reconhecida capacidade, Greco Filho incide em uma base informacional equivocadíssima quando pleiteia a alteração legal por falta de um controle dos Boletins de Ocorrência. Acontece que, em primeiro plano, parece ter se olvidado do Controle Externo do Ministério Público sobre a Polícia, conforme mandamento Constitucional (artigo 129, VII, CF); também se esqueceu do controle do Judiciário em sua atividade correicional periódica. Esqueceu ainda do controle interno promovido pela Corregedoria e pela administração com correições ordinárias e extraordinárias. Finalmente, parece desconhecer o nobre doutrinador o fato de que todos os Boletins de Ocorrência permanecem registrados em livros próprios e aqueles arquivados em livro também obrigatório e pasta especial, sujeitos à livre consulta do Judiciário, Ministério Público, Corregedoria e Administração Superior (Vide Decreto n. 1762, de 22 de junho de 1973 – artigo 1º., “b” e Portaria DGP 18, de 25.11.1998 – artigo 3º.). De qualquer forma, desconsiderando a falta de informação do autor quanto às normas administrativo – policiais, fato é que reconhece a inexistência de base legal para obrigar o Delegado de Polícia a lavrar um auto de prisão em flagrante, mesmo em casos nos quais reconheça que não se trata de hipótese legal de prisão. Eis um dos caminhos para a compreensão da inanição de fundamentação dos requisitórios ministeriais em testilha e do pauperismo de fundamentação da “opinião” externada por Jardim com base no escólio isolado de Tornaghi.
Em obra especializada sobre a “Prisão em Flagrante”, altamente acatada em âmbito nacional, Castelo Branco assim se manifesta:
“A apreciação da notícia do crime (notitia criminis) que lhe chega ao conhecimento é a primeira tarefa da autoridade policial. O seu trabalho de classificação dos acontecimentos se inicia, portanto, a partir do momento em que procura se convencer da existência ou inexistência da tipicidade, para determinar o acionamento da máquina policial, mediante a instauração do inquérito policial e consequente prática dos múltiplos atos que lhe dizem respeito. Se a autoridade policial, após a análise da notícia do crime (notitia criminis), chega à conclusão de que inexiste crime a punir, o inquérito não será aberto, vale dizer: o auto de prisão em flagrante não será lavrado” (grifo nosso). [16]
Carvalho também se manifesta no mesmo diapasão:
“Para autuar em flagrante deve a autoridade certificar se há certeza absoluta da materialidade do crime e indícios da autoria; presentes esses requisitos, deverá lavrar o respectivo auto; do contrário, não, sob pena de ilegalidade e abuso de autoridade” (grifo nosso). [17]
Perceba-se a dissonância entre o escólio de Carvalho acima mencionado, o qual retrata a acachapante maioria da doutrina, e a posição extravagante de uma minoria do Ministério Público. Há o aceno de responsabilização por “prevaricação” e “improbidade” se o auto não é lavrado mesmo percebendo claramente a Autoridade Policial que não é o caso de uma prisão correta, que não há elementos para a prisão. Já a doutrina, de que é exemplo Carvalho, ensina o reverso. Ou seja, que se a Autoridade Policial, inobstante ciente de que a prisão é ilegal ou insubsistente, a lavra mesmo assim, pode incidir em ilegalidade ou abuso de autoridade. Há uma ingerência nefasta que coloca as Autoridades Policiais indevidamente num fio de navalha e as instituições em conflito desnecessário. Optando seguir a orientação esdrúxula do Ministério Público, pode o Delegado de Polícia, por este mesmo órgão ser perseguido por abuso. Optando por orientar-se pela clareza da lei e da doutrina altamente predominante, fica à mercê de uma espada de Dâmocles com a ameaça de responsabilização criminal, administrativa e até mesmo por ato “improbo”. Entretanto, parece bem mais fácil explicar que se agiu de acordo com a consciência, com o entendimento técnico – jurídico não lavrando um flagrante em caso específico, do que justificar uma lavratura, mesmo afirmando que, de plano, já se sabia ser ilegal o ato ao menos inicialmente convolado. Neste segundo caso a conduta é claramente informada por dolo, no mínimo, eventual. É muito diferente a situação em que a Autoridade Policial, inicialmente, entende haver crime e flagrante, começa a lavratura e depois, com fatos novos, vem a perceber a ilegalidade a que jamais aderiu e torna a prisão insubsistente.
Edilson Mougenot Bonfim, Membro do Ministério Público (Procurador de Justiça), Professor da EscolaSuperior do Ministério Público de São Paulo e do Instituto Superior do Ministério Público do Rio de Janeiro, não pensa de forma diversa:
“Apresentado o capturado à autoridade competente, se esta reconhecer estarem presentes os requisitos legais para a prisão, deverá lavrar o auto, circunstanciando a prisão em flagrante” (grifo nosso). [18]
Com ainda maior incisão se manifestam Demercian e Maluly:
“A decisão sobre a lavratura do auto de prisão é de exclusividade da autoridade. Vale dizer, que se a autoridade, após uma análise dos elementos existentes contra o conduzido, entender que a captura não se deu em estado de flagrância ou que o fato é penalmente atípico ou, também, que inexistem fundadas suspeitas contra o preso, não será confirmada a prisão e, consequentemente, será o preso colocado em liberdade. Não pode, outrossim, nessa ordem de ideias, ser a autoridade obrigada a lavrar o auto de prisão em flagrante, por quem quer que seja” (grifo nosso). [19]
Por seu turno, Tourinho Filho, antes de adentrar à análise das formalidades da lavratura do auto de prisão em flagrante, aduz que para que esse ato se realize deve ser atendido , “por primeiro”, um “pressuposto essencial, que é a prisão do indigitado autor” dentro das hipóteses legais de flagrância. Ou seja, em não havendo a presença da flagrância, por obviedade, não deverá haver lavratura alguma. [20]
Em seu clássico livro sobre Inquérito Policial, Barbosa se escora no pensamento de Tales Castelo Branco (já acima citado), para ensinar o seguinte:
“Quando da apresentação do preso à autoridade, esta deve, em primeiro lugar, ouvir o condutor. Trata-se apenas de um meio dado à autoridade para inteirar-se dos fatos a fim de prelibar se resultam ou não fundadas suspeitas contra o conduzido, podendo assim, tomar outras providências. Que providências são essas? Tales Castelo Branco, ensina que a apresentação do indiciado à autoridade competente não implica, obrigatoriamente, lavratura de auto de prisão em flagrante. Compete à autoridade, examinando o caso, exercer verdadeiro ato de julgamento sobre as suas circunstâncias objetivas e subjetivas, para ver se, realmente o auto deve ser lavrado. A autoridade poderá considerar que não se trata de episódio revestido das características próprias do flagrante, de acordo com a rígida conceituação legal, ou que inexiste fundada suspeita de que o conduzido seja o autor do crime ou da contravenção. A prática policial vem mantendo a tradição de fazer-se, nessas ocasiões, apenas o registro da ocorrência para apreciação e controle posteriores, ordenando, se couber, a abertura de inquérito ou, excepcionalmente, lavrando o auto e restituindo o paciente à liberdade” (grifo nosso). [21]
O autor acima deixa claro que segundo a doutrina e a praxe policial, a lavratura do auto e seu relaxamento pela própria autoridade policial é ato excepcional, o que demonstra que o entendimento isolado de Tornaghi, advogado mais modernamente por Jardim e pretensamente impositivo no entendimento de alguns r. Membros do Ministério Público, constitui um esforço equivocado para transformar a exceção em regra. Mais adiante se demonstrará que essa perversão entre regra e exceção é inviável não somente teórica, mas também praticamente. Demonstrar-se-á que essa perversão é deletéria e tornaria impraticável sequer um atendimento razoável à população e até mesmo aos Policiais condutores.
Quando Barbosa afirma que o Delegado de Polícia faz um verdadeiro julgamento sobre a presença do estado flagrancial, é preciso lembrar que há inclusive quem defenda a tese de que a Autoridade Policial neste caso, como outras autoridades, exerce um “ato jurisdicional, em sentido ontológico”. Trata-se de função atípica da autoridade administrativa, assim como o Juiz de Direito exerce também atipicamente funções administrativas. Este escólio é o de José Armando da Costa em obra especializada sobre a atividade de Polícia Judiciária:
“Seguindo a trilha desse raciocínio, não é difícil se concluir que o auto de prisão em flagrante, contendo um julgamento de conduta e uma decorrência coercitiva (a prisão), constitui, sob o ponto de vista material, verdadeiro ato jurisdicional, a despeito de haver sido formalizado por autoridade administrativa (Delegado de Polícia).
Corroborando o ponto de vista aqui defendido, assevera Tales Castelo Branco que se ‘exige certa função judicativa da autoridade que presidir o auto de prisão em flagrante, pois a noção do que seja fundada suspeita implica uma objetiva apreciação dos acontecimentos que lhe forem narrados.’” [22]
Ao contrário daquele posicionamento pela lavratura qual autômato do auto de prisão em flagrante, a análise do Delegado de Polícia em ato preliminar à autuação é orientação farta. Vejamos o que ensinam em obra conjunta, Reis e Gonçalves, ambos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo:
“Uma vez dada voz de prisão ao autor da infração penal, por policial ou por particular, deve a pessoa presa, bem como as testemunhas, ser levada à presença da autoridade policial. Ao chegar lá o condutor do flagrante apresenta o preso à autoridade e narra verbalmente a ela o ocorrido (o crime e as circunstâncias da prisão). Se a autoridade entender que o fato narrado não constitui ilícito penal ou que a situação não se encaixa nas hipóteses de flagrante, deve relaxar a prisão e liberar a pessoa que lhe foi apresentada. Na última hipótese deverá determinar a lavratura de boletim de ocorrência e instaurar inquérito mediante portaria, pois o fato narrado constitui crime, embora ausente a situação de flagrante delito. Por outro lado, se a autoridade considerar que a situação é de flagrância e que o fato que lhe foi apresentado configura infração penal, deverá determinar a lavratura do auto de prisão…”. [23]
Confirmando nossa tese de que a deliberação do Delegado de Polícia pela não lavratura do auto de prisão em flagrante é atitude natural, necessária e adequada em certos casos concretos e não constitui “relaxamento” de prisão alguma, pois que esta só se consubstancia com a decisão preliminar da Autoridade Policial em sentido estrito, assim se manifesta Capez:
“Antes da lavratura do auto, a autoridade policial deve entrevistar as partes (condutor, testemunhas e conduzido) e, em seguida, de acordo com sua discricionária convicção, ratificar ou não a voz de prisão do condutor.
Não se trata, no caso, de relaxamento da prisão em flagrante, uma vez que, sem a ratificação, o sujeito se encontra apenas detido, aguardando a formalização por meio de ordem de prisão em flagrante determinada pela autoridade policial” (grifo nosso). [24]
Na mesma senda, Mirabete e Fabbrini rechaçam a tese do Delegado de Polícia autômato. Senão vejamos “in verbis”:
“Apresentado o preso capturado em situação de flagrância à autoridade competente deve esta lavrar o auto respectivo. Não se trata, porém, de ato automático da autoridade policial pela simples notícia do ilícito penal pelo condutor. A autuação em flagrante delito pressupõe a certeza absoluta da materialidade do crime e indícios mínimos de autoria. Inexistentes tais elementos, a autuação em flagrante pode constituir-se em abuso de autoridade” (grifo nosso). [25]
Vale ainda transcrever o breve ensinamento de Silva e Freitas:
“Vimos que a autoridade policial, tendo uma prévia noção dos fatos, decidirá pela lavratura ou não do auto de prisão em flagrante”. [26]
Finalmente é preciso deixar claro que a conduta dos Delegados de Polícia, de todas as localidades de que se tem notícia, a despeito do r. entendimento diverso de alguns poucos Membros do Ministério Público, está em pleno acordo com a orientação constante do “Manual de Polícia Judiciária” editado pela Delegacia Geral de Polícia. Ali o tema enfocado é abordado diretamente e há o rechaço da tese isolada de Tornaghi nos seguintes termos:
“A apresentação do acusado à autoridade policial permite que esta, examinando primeiramente a legalidade do ato de captura, tome as providências indispensáveis à documentação do ato estatal que representa a própria prisão.
O entendimento de Tornaghi é de que , na lavratura do auto de flagrante, a autoridade policial, obtendo a narração de todo o acontecido, vai realizar um julgamento prévio e, aí, caso ‘se convença de que a prisão foi arbitrária’, conclui que ‘o auto será o instrumento hábil para documentar fatos que ocorreram (prisão de alguém, sua condução até a presença da autoridade, sua apresentação como autor do crime etc.) e que têm relevância jurídica. Servirá ele, então, para que se possa aquilatar a responsabilidade de quem efetuou a prisão (…) e o acerto ou desacerto da autoridade policial’
A segunda posição doutrinariamente apresentada, da qual Tales é um dos seus adeptos, parece ser a mais correta, embora, na prática, possa a autoridade policial realizar um exame prévio das condições da prisão e, só depois decidir efetivamente da instauração do feito policial ou realizar ‘apenas o registro da ocorrência para apreciação e controle posteriores, ordenando, se couber, a abertura de inquérito’ ou, ‘excepcionalmente, lavrando o auto e restituindo o paciente à liberdade” (grifo nosso). [27]
Entende-se que restou mais do que demonstrado que, sob o prisma jurídico, a pretensão ministerial de que se elabore auto de prisão em flagrante em todo e qualquer caso de condução de pessoa supostamente presa (na verdade capturada), não encontra sustentação suficiente em termos doutrinários, tratando-se de interpretação isolada e extravagante do artigo 304, § 1º., CPP.
Cabe, porém, ainda desenvolver a questão sob seu aspecto “pratico”. Neste ponto é preciso fazer uma digressão para explicar que quando se fala em “pratica” a referência neste parecer será dupla. Ou seja, o problema será estudado em relação à sua adequação em termos de estrutura do pensamento (prisma filosófico) e também no sentido vulgar do termo “prática”, ou melhor, analisando como as coisas e procedimentos se dão, se fazem no dia a dia, como podem ser feitos, como é possível ou não realizá-los a contento e de forma razoável.
Iniciando pelo primeiro prisma, importa lembrar que diante das mais diversas vertentes de pensamento sobre o agir humano, é possível empreender uma divisão básica entre três orientações:
a)Orientação Deontológica ou Principialista ao estilo de Kant, por exemplo. Nesse caso há o estabelecimento de certos imperativos que não permitem violação e é a adequação ou inadequação a esses imperativos rígidos que vai dizer se uma conduta é aceitável ou não.
b)Orientação Consequencialista, a qual pode ser subdividida no pensamento utilitarista e no pensamento pragmático, sendo autores conhecidos Bentham e Mill. Nesse caso a aceitabilidade ou não de uma conduta se dá pela análise das consequências ou resultados desta. A conduta em si não é tão importante quanto os resultados que dela decorrem.
c)Orientação Procedimentalista ao estilo de Habermas com sua “Ética do Discurso” e seu “Agir Comunicativo” e de Rawls, com sua “posição original imparcial”. Aqui importa não o conteúdo da conduta, nem as suas consequências. O principal está na legitimação das escolhas mediante um debate democrático e livre.
Cada uma dessas correntes comete o erro de pretender ser a detentora da “Verdade”. Na realidade, essas orientações são parcelas da verdade desveladas por seus autores, dotadas de virtudes e vícios. Uma posição deontológica (Ética de Princípios e Deveres) advogada por Kant pode ser em alguns casos – limite, por demais rígida, levando a soluções indesejáveis. [28] Mas, é claro que não se pode deixar de pretender encontrar alguns princípios basilares que devem nortear o agir humano. A orientação consequencialista pode descambar para um relativismo tosco e uma prevalência de avaliações meramente quantitativas em detrimento das qualitativas. Contudo, não se pode afirmar que uma conduta ou escolha possa ser feita tão somente com base em princípios abstratos e sem qualquer ponderação de suas consequências. Finalmente a orientação procedimentalista peca por dar muita ênfase à formalidade em detrimento do conteúdo. Além disso, as pressuposições dos autores que advogam essa linha de pensamento são claramente utópicas. Porém, quem iria afirmar nos dias atuais, com coerência, que qualquer decisão possa prescindir de um debate democrático e pluralista? [29]
Estamos neste ponto, analisando a adequação da questão objeto deste parecer à “prática” em seu sentido de estrutura de pensamento. Aristóteles fazia a distinção entre a “teorética”, a “prática” e a “poiética”. Na “teorética” temos o “saber puro”, desinteressado em uma aplicação imediata. A “prática”, no sentido aristotélico a que nos referimos no momento, está ligada à “ação” (“práxis”), a regras efetivas do agir humano diante de certas situações. Finalmente a “poiética”, se refere à “fabricação” (“poiesis”), ao agir em si, ao ato de fazer alguma coisa, de construir, de produzir, ao “como fazer”. [30]
Devidamente estabelecido o sentido inicial de “pratica”, é possível retornar aos sistemas de pensamento acima mencionados e perceber que a escolha de uma regra de conduta não se pode tão somente basear em bons princípios, mas deve levar sim em conta as consequências dessa escolha. Em suma, aquele que faz uma escolha de conduta, deve estar pronto para assumir todas as consequências dessa opção.
Pois bem, aqui é preciso ter clara a noção de que uma ponderação consequencialista é necessária para aquilatar a aceitabilidade ou não da tese defendida por alguns Membros do Ministério Público, inobstante baseada em doutrina francamente minoritária. Eventualmente, a minoria pode ter razão e como diria Nelson Rodrigues, “a unanimidade é burra”.
Mas, para isso é preciso verificar quais são as consequências dessa escolha. Neste momento então entramos num imbricamento entre questões jurídicas e práticas no sentido poiético (como fazer).
Ocorre que a consequência de se advogar a lavratura de flagrante e sua posterior (e somente posterior) declaração de insubsistência para todo e qualquer caso de apresentação de um suposto “preso em flagrante” por um policial ou particular perante o Delegado de Polícia é algo impraticável devido às suas consequências nefastas e efetivamente incoerentes numa visão sistemática do ordenamento jurídico processual penal brasileiro.
Em primeiro lugar essa tese de Tornaghi, se podia ao menos teoricamente, ser defendida em idos de 1980 ou 1990, não tem o menor cabimento na atualidade, seja pela impraticabilidade diante do grande movimento das unidades policiais, seja pela explicitação da natureza da atividade do Delegado de Polícia.
De acordo com a Constituição Federal, as Polícias Civis são dirigidas por Delegados de Polícia de Carreira e têm por incumbência a apuração das infrações penais (artigo 144, § 4º., CF). Para tanto os Delegados de Polícia são instrumentalizados pela Constituição do Estado de São Paulo com independência funcional e livre convicção nos atos de polícia judiciária (artigo 140, § 3º., CE). A Lei Federal 12.830/13 reforça o disposto na Constituição Bandeirante, estabelecendo a carreira jurídica como inerente ao cargo de Delegado de Polícia, bem como a fundamentação técnico – jurídica dos atos de indiciamento, o que certamente engloba a deliberação pela prisão ou não de alguém em flagrante (artigo 2º. e seu § 6º.). Não bastasse isso, desde 1998, a Portaria DGP 18, determina e permite ao Delegado de Polícia fundamentar a falta de justa causa para a deflagração de investigação criminal, indicando as razões jurídicas e fáticas de seu convencimento, englobando expressamente o auto de prisão em flagrante (vide artigo 2º., § 1º. e artigo 7º., § 2º.).
Nenhum desses dispositivos e muito menos seu conjunto permite que o Delegado de Polícia seja tratado como um autômato que está obrigado a lavrar um auto de prisão e submeter um cidadão ao constrangimento da formalização de uma prisão quando tem a clara e evidente convicção jurídica, podendo fundamentá-la razoavelmente, de que não há flagrância, fato típico ou mesmo suspeita contundente contra o conduzido.
Logo num primeiro plano e utilizando de uma técnica de argumentação “ad absurdum”, é preciso assumir que haverá muitos casos teratológicos ao adotar a interpretação de que toda apresentação de pessoa supostamente “presa” (capturada em verdade) por Policiais ou particulares deva levar à lavratura de um flagrante.
Poderia utilizar uma série infinita de exemplos hipotéticos, mas prefiro narrar um fato concreto da minha experiência prática. Há muitos anos, nem mesmo me recordo quando, estava de plantão e uma dupla de Policiais Militares adentrou o hall da Delegacia com um homem algemado. Eles o conduziam “preso” em flagrante. Ao serem indagados sobre a razão da prisão, informaram que o tal homem estava sobre uma ponte, pretendendo se jogar num rio (o Rio Paraíba mais especificamente) para se suicidar. Estava preso o cidadão por “tentativa de suicídio” (sic). Será mesmo que alguém em sã consciência poderia exigir da Autoridade Policial o total esquecimento de sua formação jurídica e a lavratura formal de um auto de prisão em flagrante por tentativa de suicídio para, só então, depois disso, vir a relaxá-lo e comunicar o Juiz e o Promotor? Será possível? Isso não estaria mais próximo do cômico, não fosse trágico? E o indivíduo coagido como ficaria? Submetido por algumas horas a uma situação de preso sem motivação alguma, sem justificativa minimamente plausível?
Outros casos menos absurdos, mas que levariam a uma indevida inflação na lavratura de flagrantes e, consequentemente, a uma péssima prestação de serviço à população em termos de demora de atendimento podem ser elencados. De acordo com a tese sem sustento defendida, não poderia a Autoridade Policial deixar de lavar o flagrante de imediato, mesmo constatando de plano não ser o caso. Pois bem, então em todos os casos abrangidos pela Lei 9.099/95, a Autoridade Policial, antes de deliberar pela lavratura do Termo Circunstanciado, deveria lavrar um auto de prisão em flagrante, desconstituí-lo por despacho fundamentado e convertê-lo em Termo Circunstanciado. O mesmo se pode dizer quanto ao conduzido que claramente se acha inserido no artigo 28 da Lei 11.343/06, posse de drogas para consumo próprio. Primeiro se lavraria um flagrante, depois se declararia sua insubsistência para, só então lavrar o devido Termo Circunstanciado. Além do fato de que tanto Policiais como cidadãos à espera do registro de ocorrências ficariam horas e horas desnecessárias num plantão, há que indagar se o sentido de Leis como a Lei 9099/95 e a redação do artigo 28 da Lei de Drogas têm em mira esse tipo de constrangimento absolutamente desnecessário aos indivíduos?
Parece claro e evidente que o só surgimento de tais diplomas legais vai na exata contra – mão do vetusto pensamento de Tornaghi. Antes das Leis 9099/95 e da Lei 11.343/06, mesmo em infrações em que o indiciado se livrava solto, realmente era lavrado auto de prisão em flagrante para depois liberá-lo. Esse era um procedimento considerado à unanimidade como burocrático (ou seria “burrocrático”?), desnecessário e inconveniente. Tudo isso cessou, o constrangimento desnecessário foi abolido. Mas, estamos discutindo neste parecer a possível retomada “contra legem” dessa absurdidade. Seja sob o ângulo do conduzido, seja sob a visão dos cidadãos que vão a uma Delegacia de Polícia para registrar uma ocorrência, a solução preconizada por Tornaghi e defendida pelo r. entendimento de alguns Membros do Ministério Público, constitui aquilo que Cambi aponta como um retrocesso proibido pelo chamado “Princípio de Proibição de Retrocesso Social”, extraível de Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos. [31]Ora, temos um ordenamento que não permite o constrangimento da lavratura de flagrante em casos que tais. Agora, iríamos, inclusive violando esse ordenamento jurídico frontalmente, passar a lavrar autos de prisão contra pessoas que claramente não devem ser presas em flagrante!? E ainda com isso, violaríamos o Princípio Administrativo da Eficiência dos Serviços Públicos, criando filas intermináveis de flagrantes desnecessários com pessoas aguardando o registro de ocorrências simples, tais como extravios de documento, furtos simples etc.
Machado trata em sua obra, em um dos subtítulos, de casos de “proibição da prisão em flagrante”. Menciona exemplos como os acima elencados e ainda acrescenta o caso do artigo 301, CTB, que proíbe a prisão em flagrante do condutor de veículo automotor que, em acidente , preste o devido socorro ao vitimado.[32] Se há proibição legal, então não se deve lavrar auto de prisão. Mas, segundo o entendimento inaceitável defendido por Tornaghi e por alguns Membros do Ministério Público, seria o caso de lavrar flagrantes, inclusive naquelas pessoas em casos de crimes de trânsito que prestam socorro, para só então, depois de todo o constrangimento “contra legem” realizado, tornar o auto insubsistente e libertar o “preso” (sic).
Ademais, não se pode esquecer que a Lei 11.113/05 modernizou a redação do artigo 304, CPP, pretendendo conferir à formalização da Prisão em Flagrante maior agilidade e praticidade. O intento é o de tornar a elaboração do auto de prisão em flagrante mais ágil em benefício dos Policiais em geral que poderão voltar aos seus respectivos afazeres, especialmente de policiamento preventivo; às vítimas e testemunhas, que ficarão menos tempo na Delegacia e até aos indiciados, que poderão ser liberados mais rapidamente quando couber fiança. As alterações promovidas no artigo 304, CPP decorreram de uma iniciativa experimental da Polícia Civil do Distrito Federal sob a denominação de “Flagrante Eficiente”, cujo principal objetivo era o de diminuir o afluxo de pessoas nos plantões policiais. [33]
Perceba-se que novamente, ao adotar o r. entendimento ministerial com base na ultrapassada e incoerente lição de Tornaghi, reavivada por Jardim, estaríamos, a despeito de toda a legislação, abrindo mão dos efeitos benéficos de um chamado “Flagrante Eficiente”, para criar uma nova modalidade que poderia ser bem denominada de “Não – Flagrante obtuso ou ineficiente”. Novamente é visível o retrocesso.
Cabe ainda lembrar os casos de imunidades à prisão em flagrante estabelecidos, por exemplo para de Juízes, Promotores, Advogados no exercício da função, Deputados, Senadores etc. Está mais do que assentado que não cabe ao Delegado de Polícia lavrar autos de prisão em flagrante nessas situações. Especialmente no que tange àquelas autoridades dotadas de foro por prerrogativa de função; a orientação é apenas a feitura dos registros básicos e encaminhamento do detido ao Tribunal ou órgão com competência originária.[34] Mas, como agir coerentemente a seguir a senda de Tornaghi, abraçada por Jardim e por alguns componentes do Ministério Público? Deveria então, o Delegado de Polícia, primeiro lavrar o auto de prisão para depois torná-lo insubsistente e encaminhar o “preso” (capturado) ao Tribunal com competência originária? É claro e evidente que não. Por isso a tese é totalmente descabida, por isso se tornou posição isolada ao longo do tempo, por isso jamais foi objeto de aplicação ou exigência prática.
A grande questão está em que não se pode, como bem ilustra a metáfora, olhar apenas para uma árvore, mas sim para a floresta como um conjunto. Na hermenêutica jurídica se trata tão somente da necessidade de saber utilizar a interpretação sistemática. Por isso não se pode interpretar, por exemplo, o artigo 304, CPP de forma isolada do ordenamento jurídico e do próprio CPP. Quando isso é perpetrado os resultados são catastróficos.
Segundo Serrano, a interpretação sistemática “representa a natureza do estudo sistemático das normas vinculadas dentro de um ordenamento jurídico, constituindo-se por isso em uma interpretação essencial”. [35]
E é essencial porque
“Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos”. [36]
Essa mesma interpretação sistemática e global do ordenamento jurídico pátrio conduz claramente ao afastamento de qualquer pecha de criminosa e muito menos improba sobre a conduta de Delegados de Polícia que, fundamentadamente, deixem de lavrar autos de prisão em flagrante. Salvo casos teratológicos e extremamente gritantes, estão apenas e tão somente cumprindo suas funções legais e constitucionais. Como visto há disposições constitucionais federais e estaduais, há leis ordinárias (inclusive o próprio artigo 304, CPP devidamente interpretado no sistema) e também há permissivos regulamentares administrativos a embasarem as decisões marcadas pela razoabilidade das Autoridades Policiais no estrito cumprimento de suas funções.
Figueiredo Dias leciona:
“As causas de justificação não têm de possuir caráter especificamente penal, antes podem provir da totalidade da ordem jurídica e constarem, por conseguinte, de um qualquer ramo do direito. Esta verificação (…) é compreensível e, ao menos numa larga medida, indiscutível: se uma ação é considerada lícita (conforme ao ‘direito’) pelo direito civil, administrativo ou por qualquer outro, essa licitude– ou ausência de ilicitude (…) tem de impor-se a nível do direito penal, pelo menos no sentido de que ela não pode constituir um ilícito penal”. [37]
E mais adiante o mesmo autor apresenta a formulação de Merkel:
“Sempre que uma conduta é, através de uma disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como antijurídica e punível”. [38]
Portanto, a devida interpretação sistemática entre as normas do Código de Processo Penal que guardam relação com o disposto no artigo 304, CPP e as normas que regulam a atuação do Delegado de Polícia em âmbito Constitucional, Processual Penal e Administrativo, estão a apontar que não há sustentação para a tese de que a Autoridade Policial em sentido estrito é vinculada, quanto à lavratura do auto de prisão em flagrante, à mera apresentação pós – captura de uma pessoa por policial ou particular. Não há obrigatoriedade de lavratura de auto de prisão em flagrante quando a Autoridade Policial, de pronto, tem elementos para fundamentar seu afastamento. Doutra banda, o § 1º., do artigo 304, CPP garante que o Delegado de Polícia, mesmo deliberando inicialmente pela prisão, poderá proceder à declaração fundamentada de sua insubsistência, acaso tenha motivos posteriores para tanto. Nenhuma das duas condutas, considerando o ordenamento jurídico brasileiro de forma conglobante, enseja infração penal ou improbidade administrativa. [39]
Pretender coagir o Delegado de Polícia à lavratura de um auto de prisão em flagrante mesmo diante de situação por ele considerada fundamentadamente como não característica de estado flagrancial, atípica ou mesmo na qual falte convencimento quanto à autoria do crime, é o mesmo que obrigar a Autoridade Policial a agir de forma violadora interna de um Princípio Lógico já conhecido e divulgado até na Antiga Grécia por Aristóteles. Trata-se do “Princípio da Não Contradição”, que diz que algo não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser. Ora, o que se pretende com a interpretação esdrúxula do artigo 304, CPP em discussão é a lavratura de um “auto de prisão em flagrante” no qual a Autoridade Policial reconhece um “não flagrante”. Isso é indubitável e flagrantemente ilógico.
E o dano, como visto, não é somente para os Delegados de Polícia. O dano, em termos práticos (poiéticos) é para a própria população, para os Policiais em geral, especialmente em termos de bom andamento, eficiência e celeridade dos serviços públicos de Polícia Judiciária e outros atendimentos realizados pela Polícia Civil.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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