INTRODUÇÃO*
Este trabalho nasce de algumas indagações pertinentes à relação entre Direito Tributário e direitos fundamentais, da qual emerge a idéia subjacente e pouco explorada de deveres fundamentais, que permeará senão toda, mas boa parte destas digressões acadêmicas.
Optou-se por dividir o estudo em quatro capítulos, de modo a se percorrer um caminho lógico que vai desde a estrutura estatal até os meios e agentes financiadores das atividades do estado.
Primeiro, aborda-se o estado democrático de direito, onde se percebe a presença de um estado liberal, porém com requintes de intervencionismo a fim de promover o bem-comum. Mas não basta um estado democrático e de direito. É necessário dar a este estado os meios de realizar os objetivos com os quais se comprometeu, de onde emerge, assim, o estado fiscal –em contraposição ao estado tributário.
A partir da fiscalidade estatal, é imprescindível debruçar-se sobre a figura do imposto – meio pelo qual se efetiva o financiamento do estado independentemente de uma contraprestação por parte deste – tributo não-vinculado. Ou seja, é por intermédio do imposto que o estado brasileiro, atendendo aos ditames da capacidade contributiva, retira a riqueza de quem a detém e a redistribui, proporcionalmente, por meio das prestações estatais negativas ou positivas, à população desfavorecida economicamente.
Num terceiro momento, justifica-se o porquê de tributar. Passa-se do poder de tributar a um dever de solidariedade social a fim de se fundamentar a ação estatal tributária. É o desvendar de um dever fundamental de pagar impostos – dever jurídico constitucional autônomo. Embora implícito, é este o dever que obriga todos os indivíduos, quando da manifestação de riqueza, a contribuírem com parcela de seus recursos para o desenvolvimento do estado e da sociedade como um todo.
Assim, num caminho inverso, constata-se que uma sociedade livre, justa e solidária, tal como almejada dentre os objetivos principais da República Federativa do Brasil, não será financiada senão por impostos, em especial, exteriorização de um dos deveres fundamentais inerentes à sociedade.
1. BRASIL – ESTADO DEMOCRÁTICO (E) DE DIREITO E FISCAL
A República Federativa do Brasil caracteriza-se por ser um estado democrático de direito. Democrático porque se compromete a realizar os valores da socialidade e da solidariedade e de direito porque protetivo dos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos.
O Estado Democrático de Direito (art. 1°) consiste, basicamente, a persecução de: i) justiça social (arts. 3°, I; 170, caput e 193 da CF/88) que busca redistribuição de renda e igualdade de chances a todos, ou seja, a capacidade existencial, econômica e cultural para viver e trabalhar, num nível razoável; e ii) segurança social, ou seja, a) bem-estar social (arts. 186, VI, e 193 da CF/88), consubstanciado especialmente na proteção existencial, garantida pela prestação de serviços públicos básicos (água, luz, transporte, educação, saúde, etc.) e nos seguros sociais (seguro-desemprego, seguro por invalidez etc.) e b) assistência social (auxílio mínimo existencial e auxílios em catástrofes naturais, a fim de garantir um mínimo de dignidade humana ao cidadão).[1]
O estado democrático de direito, tal qual trazido pela Constituição Federal em seu art. 1°, não é a mera síntese dos conceitos de estado democrático e de estado de direito, vai além. É um conceito novo, uma vez que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.[2]
O certo, contudo, é que a Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais, que ela inscreve, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana.[3]
Entretanto, de nada adiantaria o comprometimento da Constituição Federal para com a sociedade se ela não revelasse mecanismos hábeis de virem a concretizar seus imperativos. É neste contexto que emerge o estado fiscal – “estado cujas necessidades financeiras são essencialmente cobertas por impostos” [4] – como umas das principais características do estado moderno.
O estado fiscal surge em oposição ao estado patrimonial – estado absoluto do iluminismo – cujo financiamento se dava fundamentalmente pelas receitas advindas de seu patrimônio, bem como dos rendimentos da atividade industrial e comercial por ele assumida.
No Estado Fiscal, as necessidades públicas são eminentemente satisfeitas pelo estado e suas divisões, e não por serviços prestados diretamente pelos próprios cidadãos; os encargos em dinheiro exigidos dos cidadãos para custear as atividades da nota anterior deixam de ser esporádicos (como ocorria no Estado Patrimonial) e passam a ser regulares e estáveis; as novas funções assumidas pelos Estados contemporâneos provocam a necessidade crescente de novos recursos, tornando o imposto uma instituição política fundamental; sendo uma prestação compulsória, o imposto traz em si a marca da soberania do Estado (lembre-se que a legalidade tributária garante o livre consentimento em relação ao imposto pelo voto da maioria e não pela vontade de cada um dos contribuintes); as taxas e outros tributos “causais” ou “contraprestacionais” constituem uma parcela muito pequena das receitas públicas do Estado Fiscal, figurando o imposto como o tributo por excelência, cuja receita é aplicada livremente pelo Estado nos limites da lei orçamentária […][5]
Assim, a noção de fiscalidade não surge atrelada apenas ao modelo de estado liberal. Muito pelo contrário, o estado fiscal já se manifestou de duas maneiras: estado fiscal liberal e estado fiscal social. Aquele marcado pela neutralidade econômica e social – estado mínimo e tributação limitada, este pelo intervencionismo estatal – tributação alargada a fim de satisfazer a estrutura estatal correspondente.
A “estadualidade fiscal” significa assim uma separação fundamental entre estado e economia e a conseqüente sustentação financeira daquele através da sua participação nas receitas da economia produtiva pela via do imposto. Só essa separação permite que o estado e a economia actuem segundo critérios próprios ou autónomos.[6]
A fiscalidade é, assim, a arrecadação de receitas provenientes dos impostos a fim de que o estado possa efetivar os direitos e garantias individuais, coletivos e sociais.
Fala-se, assim, em fiscalidade, sempre que a organização jurídica do tributo denuncie que os objetivos que presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos da sua estrutura, estejam voltados ao fim exclusivo de abastecer os cofres públicos, sem que outros interesses – sociais, políticos ou econômicos – interfiram no direcionamento da atividade impositiva.[7]
Apesar de a maioria dos estados contemporâneos financiar suas atividades por meio dos impostos, essa não é a única espécie de arrecadação possível. Os mesmos objetivos estatais podem ser alcançados através de um estado tributário, o qual se assenta não em tributos unilaterais – impostos, mas em tributos bilaterais – taxas e contribuições, por exemplo. “Ou, numa formulação negativa, a idéia de estado fiscal exclui tanto o estado patrimonial como o rejeita a falsa alternativa de um puro estado tributário”.[8]
Por outras palavras, um estado para respeitar o dualismo essencial estado/economia ou o sistema de economia privada (assente portanto na liberdade individual), não carece de estabelecer o primado e muito menos o exclusivismo dos impostos como contributo do cidadão para as despesas necessárias à realização das tarefas estaduais, podendo estas serem maioritariamente suportadas através de tributos bilaterais (maxime taxas).[9]
A distinção, conforme se depreende do exposto, entre estado fiscal e estado tributário reside na dicotomia clássica entre tributo não contraprestacional e tributo contraprestacional, ambos são formas de arrecadação financeira pelo estado. Se o tributo for de natureza contraprestacional, ter-se-á taxa ou contribuição e, respectivamente, um estado tributário, se não tiver natureza contraprestacional, ter-se-á imposto e, conseqüentemente, um estado fiscal.
A opção por um modelo de estado – fiscal – e não por outro – tributário – por parte dos estados modernos se deve ao fato de que muitas vezes os custos dos serviços públicos não são passíveis de individualização. Outras vezes, no entanto, embora passíveis de serem individualizados porque atendem as necessidades individuais, não podem, por imperativos constitucionais, no todo ou em parte serem, os serviços públicos, financiados senão por impostos como ocorre, por exemplo, com a saúde (CF, art. 196), a educação (CF, art. 205) e a segurança pública (CF, art. 144).
Assim acontece na generalidade dos actuais estados, que se configuram como estados sociais, em que a realização de um determinado nível de direitos económicos sociais e culturais, quer se traduzam em prestações materiais, quer em prestações financeiras a favor dos cidadãos, tem por exclusivo suporte financeiro os impostos.[10]
Não se deve olvidar, todavia, em última análise, que o estado fiscal, na busca da realização do bem comum, não é ilimitado. O poder que tem o estado de impor e cobrar os impostos necessários está limitado ao cumprimento daquelas tarefas que, independentemente do tempo e do lugar, indiscutivelmente lhe correspondem.[11]
O funcionamento regular do Estado fiscal depende de que os tributos sejam exigidos em conformidade com princípios materiais tais como o da igualdade, o da capacidade econômica e o da vedação de efeito confiscatório (manutenção das fontes impositivas).[12]
Diante do exposto, fácil é conceber a República Federativa do Brasil como um estado fiscal. Apesar de a Constituição Federal não trazer o termo estado fiscal expressamente como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, ele pode ser deduzido dos princípios e valores constitucionais, bem como do sistema constitucional tributário, que privilegia os impostos em detrimento das taxas e contribuições, como suporte financeiro de concretização das prestações sociais às quais se obrigou o estado em face da sociedade.
“O que, atenta a razão de ser do estado, que é a realização da dignidade da pessoa humana, o estado fiscal não pode deixar de se configurar como um instrumento, porventura o instrumento que historicamente se revelou mais adequado à materialização desse desiderato”.[13]
Neste diapasão, já se percebe que a fiscalidade tem por fito a promoção de valores e direitos assegurados constitucionalmente, senão a toda população nacional, à sua grande parcela, a fim de proporcionar aos que não dispõem de recursos financeiros suficientes, direitos fundamentais básicos concretizadores da dignidade almejada. Assim, o estado fiscal é o primeiro passo para a perfectibilização da inclusão social. Caso contrário, um estado tributário poderia levar os menos favorecidos, por não disporem de recursos financeiros suficientes para obterem tais serviços – legítimo sistema “pay-per-use” – a ficarem à margem da sociedade, revelando-se como um meio de exclusão social.
2 OS IMPOSTOS
Em função da classificação dos tributos em vinculados e não-vinculados a uma atuação do Poder Público – para tal diferenciação, faz-se necessário analisar o aspecto material da hipótese de incidência[14], encontra-se, dentre as espécies tributárias, o imposto como espécie tributária autônoma.
A definição de imposto deve ser buscada no art. 16 Código Tributário Nacional, que o define como “tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente (sem grifo no original) de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”. A Constituição Federal, por sua vez, não define o que seja imposto, apenas o baliza conforme a capacidade contributiva do contribuinte no § 1° de seu art. 145.
Assim, “Em se tratando de imposto, a situação prevista em lei como necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária não se vincula a nenhuma atividade específica do Estado relativa ao contribuinte”.[15]
Com efeito, debalde procuraremos na hipótese de incidência dos impostos uma participação do Estado dirigida ao contribuinte. […] A formulação lingüística o denuncia e a base de cálculo o comprova. É da índole do imposto, no nosso direito positivo, a inexistência de participação do Estado, desenvolvendo atuosidade atinente ao administrado.[16]
Ainda, o imposto pode ter tanto finalidade fiscal como extrafiscal, conforme seu objetivo seja, respectivamente, a obtenção, primordialmente, de receitas para a satisfação das necessidades financeiras do estado como qualquer outro desde que diverso do sancionatório.
Neste estudo, relevante é a finalidade fiscal do imposto, “uma vez que ele não constitui um fim em si mesmo, antes é um meio, um instrumento de realização das tarefas (finais) do estado”.[17]
“[…] através dos impostos, poderem ser prosseguidos, directa e autonomamente, as tarefas constitucionalmente imputadas ao estado, sejam de ordenação econômica, sejam de conformação social”.[18]
Assim, revela-se o imposto como “instrumento jurídico de abastecimento dos cofres públicos”[19] e, conseqüentemente, como meio de efetivação dos direitos fundamentais – “constatação de que mesmo os direitos fundamentais a prestações são inequivocamente autênticos direitos fundamentais”[20], a fim de permitir que se atenda a parcela da sociedade desfavorecida economicamente.
3 DO PODER DE TRIBUTAR AO DEVER DE SOLIDARIEDADE
Durante largo espaço de tempo, compreendeu-se o poder de tributar como imposição de um dever pelo estado aos indivíduos. Sintetizava-se na idéia de “transferência de dinheiro das pessoas privadas, submetidas ao poder do estado, para os cofres públicos”.[21] Assim, sustentava-se que o estado possuía o poder de retirar da esfera privada qualquer manifestação de riqueza ou rendimento, sob qualquer ou nenhum argumento.[22] O poder do estado exteriorizava-se mediante a coação tributária sobre os indivíduos.
Desse modo, o poder de tributar foi explicado sob diferentes óticas. Num primeiro momento, baseou-se o poder de tributar na noção de soberania – e não de relação jurídica – do Estado frente aos indivíduos. Estes não dispunham de alternativa senão entregar aos cofres públicos parcela de sua riqueza. Era uma transferência compulsória, baseada numa relação de poder. Estado e indivíduo estavam nitidamente separados.
Em oposição ao pensamento conceitual, surgiu o pensamento normativista a fim de explicar o porquê da tributação. O poder tributário era visto como decorrência do sistema jurídico, consubstanciado no exercício da competência tributária. A relação tributária transformou-se em relação jurídica, nascida da ocorrência do fato previsto na hipótese de incidência e cuja conseqüência consubstanciava-se na obrigação de os indivíduos entregarem parcela dos seus recursos ao estado.
Diante da explicação insatisfatória dada ao poder de tributar pelas teorias conceitual e normativa, emergiu o pensamento sistemático.
Nessa concepção a relação tributária é vista como mais do que mera relação de poder ou “normativa pura”. É uma relação dirigida à regulação da cidadania, de seu conteúdo e alcance em uma sociedade. A relação tributária trata essencialmente do núcleo do pacto social, ou seja, da contribuição cidadã à manutenção de uma esfera pública e privada de liberdade e igualdade.[23].
As idéias trazidas acima contribuem a fim de se perquirir os fundamentos que legitimaram ou legitimam a tributação e que contribuem para uma aversão da sociedade ao pagamento dos impostos, pois foi sempre tido como algo coercitivo e indiscutível, e não como meio de realização de valores sociais. “É um fato cultural, histórico, desconfiar do Estado e ver a arrecadação dos impostos como “subtração”, ao invés de contribuição a um Erário comum.”[24]
Assim, hoje, estabelecem-se fundamentos diferentes do mero poder coercitivo do estado ou da possibilidade de intervenção na esfera econômica a fim de explicar o poder de tributar. Constata-se que o poder de tributar deve ser um modo de “realização positiva de políticas públicas em prol da afirmação da dignidade humana, da liberdade e da igualdade, idéia consubstanciada já no inciso I do art. 3° da Constituição da República Federativa do Brasil – construir uma sociedade livre, justa e solidária.
É esse dever de solidariedade – genérica – que permeia todo o ordenamento jurídico constitucional e irradia os seus efeitos para todo o sistema jurídico, em especial, ao direito tributário. “[…] a tributação deixa de ser mero instrumento de geração de recursos para o Estado, para se transformar em instrumento que – embora tenha este objetivo mediato – deve estar em sintonia com os demais objetivos constitucionais que, por serem fundamentais, definem o padrão a ser atendido”.[25]
A CF/88, ao instituir um efetivo estado Democrático de Direito – vale dizer, ao consagrar concomitantemente valores protetivos e modificadores do perfil da sociedade e prestigiar valores e finalidades sociais a alcançar –, faz com que a tributação passe a ser um poder juridicizado pela Constituição, que deve ser exercido em função e sintonia com os objetivos que a própria sociedade elevou à dignidade constitucional.[26]
É a união da noção de solidariedade social, idéia relativamente nova na ordem jurídica, surgida no fim do século XIX, com a histórica idéia de cidadania, que se legitima, hoje, o poder de tributar, não mais como mera imposição, mas como meio de realização das políticas públicas. Orienta-se, desse modo, o poder de tributar pelo postulado maior da dignidade da pessoa humana, como meio de concretização efetiva das políticas de inclusão social.
A idéia é singela: a partir do momento em que o estado tributa manifestações de riqueza dos mais abastados para depois redistribuí-la a quem não detém os recursos suficientes a fim de manter uma vida digna, não está apenas baseado no seu poder soberano, de império e coercitivo, mas está fundado em valores maiores que antes apenas lastreavam o campo da moral para fazerem emergir, atualmente, novos fundamentos ao direito, em especial, ao tributário.
Assim, pelo fato de o estado brasileiro ser um estado fiscal, e não um estado tributário, decorre, desde logo, uma “plataforma mínima de solidariedade social”.[27]
4 O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTOS
Analisado o estado brasileiro – democrático de direito e fiscal, bem como o meio de financiamento de suas políticas públicas e a idéia hoje reinante de solidariedade social a fim de legitimar seu poder de tributar, num segundo momento, faz-se necessário observar o outro lado da relação jurídica: o contribuinte. Deve-se perquirir porque ele arca com os ônus estatais, como efetiva o pagamento com o qual se obrigou quando passou a viver em sociedade organizada – o estado, bem como os fundamentos de tal imposição legal e porque dela não pode se eximir, motivo pelo qual se parte para o estudo do dever fundamental de pagar impostos.
Por muito tempo, pouco ou quase nada se abordou quanto ao tema dos deveres fundamentais. Em virtude do próprio significado originário de Estado de Direito e da tensão entre poder e direito[28], privilegiou-se, na quase totalidade dos estatutos constitucionais que emergiram durante o século XX, a afirmação e proteção dos direitos e liberdades fundamentais. Fato este explicável em virtude do passado recente “dominado por deveres, ou melhor, por deveres sem direitos”.[29]
Preocuparam-se de uma maneira dominante, ou mesmo praticamente exclusiva, com os direitos fundamentais ou com os limites ao(s) poder(es) em que estes se traduzem, deixando por conseguinte, ao menos aparentemente, na sombra os deveres fundamentais, esquecendo assim a responsabilidade comunitária que faz dos indivíduos seres simultaneamente livres e responsáveis, ou seja, pessoas.[30]
“Tratava-se tão-somente, nesses tempos de antanho, de priorizar a liberdade (individual) sobre a responsabilidade (comunitária)”.[31]
Assim, emergiu a necessidade de se reconhecer os deveres fundamentais como “categoria jurídica constitucional própria. Uma categoria que, apesar disso, integra o domínio ou a matéria dos direitos fundamentais, na medida em que este domínio ou esta matéria polariza todo o estatuto (activo e passivo, os direitos e os deveres do indivíduo)”.[32]
Os deveres fundamentais, apesar de serem confundidos, não se aproximam de certas figuras que lhes são próximas, tais como os deveres constitucionais orgânicos ou organizatórios; os limites (imanentes ou restrições) legislativas aos direitos fundamentais; os deveres correlativos aos direitos fundamentais, que são a face passiva dos direitos fundamentais; as garantias institucionais; e as tarefas constitucionais stricto sensu, que possuem como destinatário exclusivo o estado.[33]
[…] a instituição ou não de deveres fundamentais repousa, em larguíssima medida, na soberania do estado enquanto comunidade organizada, soberania que não pode, todavia, fazer tábua rasa da dignidade humana, ou seja, da idéia da pessoa humana como princípio e fim de sociedade e do estado […][34]
A Constituição Federal brasileira, por sua vez, foi expressa no tocante ao tema em questão. Estabeleceu em seu Título II – dos direitos e garantias fundamentais – um capítulo (I) destinado aos direitos e deveres individuais e coletivos. Em seguida, tratou de elencar os direitos sociais em seu capítulo II. Assim, a partir do momento em que há direitos sociais no bojo da Constituição Federal, há a necessidade de que ocorra a sua implementação, que não se dá de outro modo senão mediante o dever fundamental implícito de pagar impostos, que permeia toda a ordem jurídica constitucional.
Noutros termos, o imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado.[35]
Uma vez que todos os direitos têm custos públicos, “os custos dos direitos sociais concretizam-se em despesas públicas com imediata expressão na esfera de cada um dos seus titulares, uma esfera que assim se amplia na exacta medida dessas despesas”.
Os direitos sociais a prestações, ao contrário dos direitos de defesa, não se dirigem à proteção da liberdade e igualdade abstrata, mas, sim, como já assinalado alhures, encontram-se intimamente vinculados às tarefas de melhoria, distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como à criação de bens essenciais não disponíveis para todos os que dele necessitem.[36]
Desse modo, o dever fundamental de pagar impostos é o modo de se efetivar os direitos sociais prestacionais, uma vez que atribui a todos os cidadãos fiscalmente capazes o dever de contribuir para a realização dos deveres estatais.
Por isso, a tributação não constitui, em si mesma, um objectivo (isto é, um objectivo originário ou primário) do estado, mas sim o meio que possibilita a este cumprir os seus objectivos (originários ou primários), actualmente consubstanciados em tarefas do estado de direito e tarefas de estado social, ou seja, em tarefas do estado de direito social.[37]
Assim, apesar de não expressa na Constituição Federal de 1988 uma cláusula atributiva do dever de pagar impostos, é uma conclusão que se depreende da própria ordem constitucional e dos objetivos e fundamentos que a acompanham, pois que ninguém duvida que a todos está designado um dever de pagar impostos na medida da capacidade contributiva individual.
CONCLUSÃO
Realizada esta breve exposição, é possível visualizar-se, nitidamente, a via pela qual se percorre a fim de se legitimar a tributação. É do estado democrático e de direito, com seus fundamentos, objetivos e princípios, bem como dos deveres sociais com os quais se compromete, que emerge a noção de estado fiscal. Ou seja, não poderia o estado fundamentar-se em taxas e impostos, pelo sistema usa-paga, pois deixaria ao arrepio da Constituição uma imensa gama de excluídos que não dispõem de recursos suficientes a financiarem diretamente estas prestações.
Assim, o estado brasileiro optou por ser um estado fiscal. Ou seja, sua arrecadação baseia-se, primordialmente, nos impostos, que são espécie tributária não correlacionada a uma atuação estatal específica. Com isso, consegue o estado brasileiro retirar parcela de riqueza de quem a detém para financiar as atividades e prestações sociais dos menos favorecidos.
Seria um poder de tributar, inarredável e coercitivo? Percebe-se que, hoje, não. Ao longo da história da tributação assim era visto o tributo: como um ato de império do estado sobre os indivíduos. Era uma transferência compulsória de recursos privados ao estado. Idéia abandonada a partir da Constituição Federal de 1988, que, apesar de não trazer de modo explícito, o dever fundamental de pagar impostos, em diversos dispositivos traz como dever do estado e da sociedade o financiamento de certas atividades.
Isso se traduz numa nova idéia que permeia a ordem jurídica atual, qual seja, a solidariedade social. Percebeu-se, assim, que é dever de todos os indivíduos participar de uma sociedade livre, justa e solidária e reconheceu-se a categoria autônoma dos deveres fundamentais, na qual se inclui o dever fundamental de pagar impostos. Categoria bastante esquecida nas sociedades atuais, seja em virtude do momento histórico na qual surgiram, após períodos ditatoriais, marcados pela arbitrariedade, onde apenas se queriam ver reconhecidos direitos e assim o foram, seja pelo individualismo característico das sociedades modernas.
Há, assim, atualmente, uma nítida quebra de paradigmas, em que se conclui que não há como isolar o estado da sociedade, mas sim deve-se aliá-los na busca do bem-comum, de modo que cada um contribua na medida das suas possibilidades a fim de que se possa concretizar, por intermédio da solidariedade, a almejada justiça social.
Advogada, Aluna do curso de Pós Graduação em Direito Público da Pontifícia Universidade Católica Do Rio Grande do Sul.
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