Resumo: O presente artigo procura enfrentar tema da maior relevância para a Ciência Processual civil moderna que é a questão referente ao duplo grau de jurisdição e as implicações quanto a sua natureza e garantia, mais precisamente, no ordenamento jurídico brasileiro. A razão histórico-valorativa da própria falibilidade do ser humano já demonstra por si só o impulso a se buscar por tal direito como uma garantia na sociedade moderna. Fato é que, historicamente, há certo dissenso doutrinário e mesmo jurisprudencial quanto à natureza do duplo grau de jurisdição, quer por vezes concebido como um mero princípio recursal, outras tantas princípio constitucional e ainda garantia desta mesma índole constitucional. Dita temperança traz contornos complexos e que, certamente, irão repercutir na esfera de direitos e expectativas de direitos, tão comuns àqueles que esperam muito do que hoje tão comumente se denominou “loteria das decisões”.
Palavras-chave: Processo Civil – Duplo Grau de Jurisdição – Direito Constitucional
Resumen: Este artículo trata de abordar tema de la mayor importancia para la moderna ciencia procesual civil, que es la cuestión de la doble grado de la jurisdicción y las implicaciones para la naturaleza y la garantía, más precisamente, en el ordenamiento jurídico brasileño. La razón de los valores históricos para la propia falibilidad de los seres humanos ya se muestra el impulso de buscar tal derecho como la seguridad en la sociedad moderna. El hecho es que, históricamente, hay cierto desacuerdo y la doctrina jurisprudencial, incluso en cuanto a la naturaleza de la doble grado de la jurisdicción o, a veces concebido como un mero principio recursal, hasta principio constitucional y aún garantizar esta misma naturaleza constitucional. Dita templanza trae contornos complejos y que seguramente va a resonar en la esfera de los derechos y expectativas de derechos, tan comunes a los que esperan mucho de lo que hoy se llama comúnmente "decisiones de lotería."
Palabras clave: Proceso Civil – Doble Grado de la Jurisdicción – Derecho Constitucional
Sumário: 1. Introdução – 2. Direitos e Garantias Fundamentais: evolução histórica no contexto do duplo grau de jurisdição – 2.1 As Sociedades Primitivas – 2.2 Antiguidade – 2.3. A Idade Média e a Idade Moderna – 2.4. A Era Contemporânea – 3. O Duplo Grau de Jurisdição no Ordenamento Jurídico Pátrio – 3.1. O Princípio do Duplo Grau de Jurisdição: Uma questão acerca de sua natureza constitucional – 4. Considerações Finais – 5. Referências Bibliográficas
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo o estudo da importância do Duplo Grau de Jurisdição no ordenamento jurídico pátrio, a partir das referências de índole constitucional e processual.
Em um primeiro momento, discutiremos a evolução do duplo grau de jurisdição desde as sociedades primitivas até os dias atuais, levando-se em consideração as modificações sócio-político-jurídicas sofridas pelas diversas sociedades que levaram à garantia do dito princípio como direito e garantia fundamental.
Posteriormente, abordaremos a evolução do Duplo Grau de Jurisdição no ordenamento jurídico brasileiro, através de sua positivação em todas as constituições pátrias, levando-se em conta a organização estatal e a realidade social vivenciada em cada época.
Por fim, analisaremos a natureza jurídica do referido instituto, expondo a divergência doutrinária existente em relação à mesma, com o fito de demonstrar sua importância desta para com a garantia prática do multicitado duplo grau no âmbito do sistema jurídico nacional.
2. Direitos e Garantias Fundamentais: evolução histórica no contexto do duplo grau de jurisdição
Para se compreender a importância das Garantias e Direitos Fundamentais, deve-se realizar uma evolução histórica dos sistemas jurídicos anteriores, devido aos valores sociais, culturais, políticos e históricos de cada sociedade e época, vislumbrando-se, assim, o caráter constitucional de tais direitos, principalmente no tocante ao princípio do Duplo Grau de Jurisdição.
2.1 As Sociedades Primitivas
Nas sociedades primitivas, o homem estava diretamente ligado ao meio social no qual estava inserido, buscando o bem-estar deste em detrimento dos interesses individuais.
Nestas sociedades, não havia a distinção entre moral, religião e Direito, estando a noção de justiça interligada ao interesse coletivo, tendo em vista que a proteção dos direitos individuais face a este último privilegiava o indivíduo e não a sociedade. [1]
Tais sociedades não possuíam um Estado organizado, tanto do ponto de vista político quanto do jurídico, não existindo leis nem direitos. Os conflitos eram solucionados através da vingança ou das decisões tomadas pelos mais fortes.[2]
Desse modo, não há como se falar na existência de um ordenamento jurídico, processo judicial e proteção dos direitos do homem.
2.2 Antiguidade
Dentre as várias sociedades existentes na Antiguidade, devem ser destacadas a egípcia, a grega e a romana, devido às evoluções jurídicas e de sua importância para o desenvolvimento dos Estados até o nível em que se encontram nos dias atuais.
A sociedade egípcia passou por momentos de ascensão e declínio, decorrentes do poder que o faraó detinha, haja vista o caráter divino deste em detrimento da sociedade.
Vislumbra-se, no Egito, a existência de um Estado Teocrático, sem distinção de religião e Direito, porém a lei era a principal fonte deste último, sendo editada pelo próprio faraó.
Apesar do controle exercido pelos faraós, havia um Poder Judiciário[3] formado por magistrados, tribunais e processos judiciais, no entanto não se havia reexame da decisão a um órgão superior, mas tão somente pelo mesmo tribunal no caso de novas provas relacionadas à matéria discutida.
Mesmo sem a existência do Duplo Grau de Jurisdição, o Direito egípcio protegia em sua ordem jurídica os Direitos Individuais, como a igualdade jurídica entre os indivíduos e a prevalência da lei.
Outra sociedade de relevância para a ciência do Direito foi a grega, tendo em vista o enorme número de filósofos oriundos nesta época, como Sócrates, Platão, Aristóteles, dentre outros, que introduziram no âmbito social e jurídico as noções de ética, liberdade e justiça.
Tal qual a sociedade egípcia, nas primeiras sociedades gregas, predominava a existência do Estado Teocrático, no qual o rei era tido como o representante dos deuses, possuindo todos os poderes em suas mãos: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
Durante o período clássico, a sociedade grega passou por uma transformação para o Direito laico, sob o qual os próprios cidadãos poderiam criar as leis sem a necessidade de autorização por parte do governante, extinguindo a crença de que este era um representante dos deuses.
É importante ressaltar que, na Grécia, existiam diversas sociedades inseridas em determinadas cidades-estados, denominadas polis, cada qual com seu governante e sua ordem social e jurídica. O homem era visto perante a coletividade[4], não sendo observado seu caráter individual e, por conseguinte, não possuindo uma tutela aos Direitos Individuais.
Nessa época, cada polis possuía uma organização administrativa e judiciária própria. No âmbito administrativo, foi criado o Conselho dos Quinhentos[5] que tinha como principal função administrar a cidade-Estado, sendo formado por cidadãos escolhidos através de sorteio, além de administrar a atividade dos magistrados.
Com relação à organização judiciária,[6] foi instituído o Elieu, denominado tribunal dos heliastas, formado por cidadãos gregos. Este tribunal era competente para julgar matérias judiciais e administrativas, sendo suas decisões irrecorríveis, visto que, por ser composto por membros do povo, emanava a vontade e soberania da sociedade.
O processo judicial na Grécia tinha caráter probatório, ou seja, a parte ofendida deveria provar não só a violação do direito, mas também todos os fatos alegados no processo.[7] Apesar dessa obrigatoriedade, as decisões judiciais não necessitavam de fundamentação, cabendo ao magistrado a pronúncia favorável ou não para a matéria nela discutida.
Ao contrário do que se vislumbrava na sociedade egípcia, a Grécia tutelava o Duplo Grau de Jurisdição[8] quando a decisão do magistrado ia de encontro à lei, cabendo ao Elieu reexaminar a decisão, podendo ou não vetá-la.[9]
Outra sociedade relevante foi a romana que perdurou por diversos séculos, passando por diversas transformações, devido à evolução dos valores sociais, econômicos e culturais da sociedade, não podendo entender seu Direito como único em toda sua duração.
No início da sociedade romana, o Direito era considerado uma das facetas da religião, tendo em vista a enorme influência desta na criação das leis através de seus sacerdotes, cabendo ao rei somente a aplicação do Direito sem nenhuma intervenção em sua criação.
O Direito Romano era válido somente para aqueles considerados cidadãos – os patrícios – os quais gozavam de todos os direitos positivados, como o de votar e de ser votado, o direito de acesso à justiça.
Instituída a República na sociedade romana, os poderes deixaram de estar concentrados nas mãos de um único governante, garantindo-se, assim, a separação dos poderes. A magistratura era entendida como o principal órgão estatal, revestido de grandes poderes, cabendo-lhe cuidar dos assuntos de interesse da República.
A magistratura era dividida em duas esferas de competência: a) jurisdictio, entendida como a jurisdição civil, na qual era indicado um juiz para julgar a demanda, ouvindo as partes, não cabendo apelação para rediscussão da sentença, sendo esta irreformável; b) cognitio, sendo a jurisdição criminal, pela qual cabia apelação às assembleias populares quando o réu era condenado à morte. Diferentemente da sociedade grega, as decisões proferidas pelos magistrados romanos deveriam conter fundamentações legais, proporcionando uma maior segurança jurídica para a sociedade romana. Caso ocorresse intervenção do governante, a sentença era considerada irreformável, tendo em vista que o voto deste era considerado um voto absolutório e decisivo.
É importante ressaltar que a possibilidade de apelação no caso de condenação com pena de morte era direito somente aos cidadãos romanos, não sendo detentores desse direito as mulheres, os escravos e os estrangeiros.
Desse modo, observa-se uma ideia primitiva do princípio do Duplo Grau de Jurisdição, haja vista a possibilidade de reexame da decisão pela Assembleia do Povo quando a sentença criminal fosse desfavorável ao réu. [10]
Assim como ocorreu na sociedade grega, observa-se em Roma o processo de laicização do Estado, nele as leis passaram a ser editadas a favor do povo em detrimento da vontade divina.[11]
No segundo período romano, o do Principado, o governante voltava a concentrar todos os poderes em suas mãos, porém os institutos do Senado e da Magistratura continuaram a existir com poderes mais restritos.
No processo judicial, poderia o governante interferir na sentença, proferindo um voto absolutório, fazendo com que a sentença fosse irreformável, não existindo a possibilidade de rediscussão da matéria por outro tribunal ou magistrado. [12] Dessa forma, não há de se falar em princípio do Duplo Grau de Jurisdição nas sentenças criminais na época do Principado.
Sob o regime do Principado ocorreu uma grande reforma no Direito Romano quando foi instituído a cognitio extraordinaria[13], na qual, além de ocorrer uma modificação na estrutura do Estado, trouxe, em definitivo, o princípio do Duplo Grau de Jurisdição com a possibilidade de recurso das decisões proferidas pelo magistrado, quando nessas tivessem sido aplicado os direito de maneira equivocada, cabendo ao tribunal superior a reforma da mesma.
Cabe-se ressaltar que a possibilidade de recurso visava não à proteção dos direitos dos cidadãos, mas à possibilidade de controle das decisões pelas autoridades superiores em detrimento do conhecimento e convicção das autoridades inferiores.
Assim, observa-se que o Direito Romano não protegia os Direitos Individuais para toda a sociedade, mas somente para aqueles que eram considerados cidadãos romanos; no entanto a possibilidade de reexame das decisões proferidas pelos magistrados era um direito de toda a sociedade romana, sendo vislumbrada a existência de um sistema recursal e a garantia do Duplo Grau de Jurisdição como um direito a todos.
Na época do Império Romano, a religião cristã foi adotada como a principal religião da sociedade romana, percebendo-se a importância dos Direitos e Garantias Fundamentais, pois o homem foi concebido como imagem e semelhança de Deus dano início ao Direito Canônico.
2.3 A Idade Média e a Idade Moderna
A Idade Média iniciou com a queda do Império Romano Ocidental, devido a seu enfraquecimento com a ruptura do Império Romano no final do século IV, em Império Romano Ocidental, com sede em Roma, e Oriental, com sede em Constantinopla.
Com a queda do Império Romano Ocidental e as invasões dos povos bárbaros por toda a Europa, observa-se nesta época a existência de três sistemas jurídicos diferentes: o sistema jurídico romano, o sistema jurídico germânico e o Direito Canônico.
No sistema germânico, a resolução dos conflitos se dava através dos Juízos de Deus – os ordálios – nos quais o acusado enfrentava diversas provas físicas, antes de proferir a decisão judicial, a fim de se constatar a inocência ou a culpa do mesmo face ao delito cometido.
Esta modalidade de solução de conflitos foi amplamente combatida pela Igreja Católica, entretanto nesta época não existia a proteção dos Direitos e Garantias Fundamentais, principalmente o Duplo Grau de Jurisdição, frente ao Estado e à Igreja, criando uma insegurança jurídica para os cidadãos diante das decisões judiciais proferidas pelos magistrados.
Considera-se o Direito Canônico como o principal sistema jurídico vigente na Idade Média, devido ao fato de ser o único ordenamento escrito e ao poder dos valores emanados pelos ensinamentos religiosos nas sociedades existentes.
Por sua grande influência, o Direito Canônico, antes válido somente para os membros do clero, passou a ser aplicado a toda a sociedade em determinadas matérias penais e civis, tais como o adultério, o casamento, o divórcio, os testamentos, dentre outros.
O sistema processual canônico trouxe inovações jurídicas que estão inseridas nos diversos ordenamentos jurídicos nos dias atuais, tais como o processo escrito, o reconhecimento de um sistema recursal, a condução do processo por profissionais do direito.[14]
Pode-se afirmar que nesta fase da Idade Média, não existe a proteção ao Duplo Grau de Jurisdição, mesmo com o reconhecimento de um sistema recursal, pois o objetivo do reexame das decisões judiciais era fortalecer o Estado e a Igreja, centralizando os poderes em suas mãos em detrimento de uma tutela efetiva dos direitos dos cidadãos e da coletividade.
Durante o regime feudal foi redigida pela Inglaterra a Magna Carta Libertatum, visando a proteção à sociedade do poder absoluto dos reis e dos senhores feudais. Esta carta trouxe importantes transformações na proteção e positivação dos Direitos e Garantias Fundamentais, como a Common Law, instituto vigente até os dias atuais que se baseia nas decisões das jurisdições reais, porém, não foi positivada expressamente o Duplo Grau de Jurisdição, sendo a proteção a este dada pela instituição do Devido Processo Legal, pois aquele é considerado um pressuposto deste último.[15]
2.4 A Era Contemporânea
A Era Contemporânea trouxe os principais avanços na proteção dos Direitos e Garantias Fundamentais, tornando-os indispensáveis a qualquer sistema jurídico em vigência, coibindo a prática abusiva no tocante à violação dos mesmos, tanto pelos próprios cidadãos, quanto pelos Estados soberanos.
O ponto inicial na conquista da proteção dos Direitos fundamentais foi a Revolução Francesa, de 1789, na qual foram elaboradas a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Constituição Francesa, de 1791, sendo ambas formalizadas com o intuito de suprimir o Antigo Regime vigente, no qual o monarca era soberano e concentrava em suas mãos todos os poderes do Estado, estando acima da lei.
Importante ressaltar que, apesar da existência do Parlamento e dos Tribunais, competia ao monarca decidir em última instância os recursos, tendo poderes para cassar qualquer decisão dos juízes quando não entendesse que a mesma foi justa.
Ante o exposto, verificou-se a necessidade de uma revolta popular para instaurar um novo regime, a fim de declarar a extinção do Antigo Regime absolutista, através da positivação de um sistema igualitário e justo a toda a sociedade francesa, tendo como ponto inicial a elaboração da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, preservando os direitos da sociedade face ao Estado.
Apesar de proteger os Direitos Fundamentais, como o da Dignidade, Igualdade, Legalidade e até mesmo o da Presunção de Inocência, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão não protegia o princípio do Duplo Grau de Jurisdição[16], todavia tal Carta trouxe uma modificação estrutural nos ordenamentos jurídicos que se encontram vigentes até os tempos atuais: a criação de três graus de jurisdição. [17]
Correto afirmar que, com a criação de tais graus de jurisdição, os ordenamentos jurídicos passaram a zelar pela utilização dos recursos, cabendo aos próprios juízes decidir sobre as questões suscitadas, não sofrendo qualquer tipo de intervenção por parte do Estado.[18] Dessa forma, a nova organização do Poder Judiciário protegeu, tacitamente, o princípio do Duplo Grau de Jurisdição.
As transformações trazidas pela Revolução Francesa repercutiram em diversos países, como nos Estados Unidos da América, que protegeram, em sua Constituição, os Direitos e Garantias Fundamentais como meio de limitação do poder estatal. O Devido Processo Legal só foi positivado no ordenamento jurídico americano com a quinta emenda, protegendo, consequentemente, o princípio do Duplo Grau de Jurisdição. [19]
O segundo momento de relevância na Era Contemporânea foi a Revolução Industrial, que trouxe a necessidade de um maior zelo pelos direitos individuais e coletivos, dentre eles o direito ao reexame das decisões judiciais, ou seja, o princípio do Duplo Grau de Jurisdição.
É importante frisar que tal princípio passou a figurar de modo explícito e implícito nos diversos ordenamentos jurídicos[20], tendo em vista que, quando não havia menção expressa na legislação, observava-se uma proteção ao princípio do Devido Processo Legal, que abarcava, implicitamente, o reexame das decisões em segundo grau de jurisdição.[21]
Após as duas grandes guerras, nas quais ocorreram as mais graves violações aos direitos humanos, observou-se a necessidade de criação de um órgão destinado à proteção dos mesmos face aos Estados soberanos, dando início à Liga das Nações e, posteriormente, à ONU.
A Organização das Nações Unidas deu um grande passo para a garantia dos direitos fundamentais nos diversos ordenamentos jurídicos, principalmente com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, na qual não houve previsão expressa do Duplo Grau de Jurisdição. Em seu art. XI [22] previu que todas as garantias necessárias à defesa do cidadão deveriam ser protegidas, englobando o princípio da ampla defesa, do contraditório e do Duplo Grau de Jurisdição, haja vista a necessidade de reexame das decisões para beneficiá-lo.
Ante o exposto, a evolução dos Estados ao longo dos anos trouxe uma necessidade na positivação e proteção aos Direitos e Garantias Fundamentais, garantindo a todos os cidadãos o pleno exercício de seus direitos, incluindo, entre eles, o Devido Processo Legal e o Duplo Grau de Jurisdição.
3. O Duplo Grau de Jurisdição no Ordenamento Jurídico Pátrio
A primeira Constituição brasileira, de 1824, abarcou a garantia dos Direitos Fundamentais, trazendo em seu texto expresso a proteção do Duplo Grau de Jurisdição em seu artigo 158[23], apesar de a escravidão vigorar no berço da sociedade.
É importante ressaltar que a matéria processual civil não possuía legislação codificada própria, sendo utilizado o Código de Processo Penal Brasileiro de 1832 e as Ordenações Filipinas até o ano de 1876, quando foi aprovada a Consolidação das Leis do Processo Civil.
A Constituição de 1891, a primeira na Era da República, inovou, ao estabelecer a criação de sistema judiciário estadual, além de trazer a previsão de um sistema recursal [24], bem como a organização dos Tribunais [25], abarcando, dessa forma, o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição de maneira implícita.
A terceira Constituição pátria, de 1934, assim como a anterior e a Constituição de 1946, trouxeram em seu corpo normativo a garantia dos Direitos Fundamentais, também a organização do Poder Judiciário, abarcando o princípio do Duplo Grau de Jurisdição de maneira implícita, advindo das interpretações dos princípios constitucionais.
A Constituição de 1937, assim como a Constituição de 1967, foi outorgada diante do regime ditatorial, na qual se previa os Direitos e Garantias Fundamentais, tanto como o reexame das decisões na organização judiciária, porém não havia uma garantia eficaz dos direitos constitucionais diante da ditadura que imperava no governo e na sociedade brasileira.
A Constituição de 1988 trouxe as maiores inovações no sistema jurídico pátrio devido à época de sua promulgação, tendo em vista que, diante do novo regime democrático, além das atividades da Assembleia Nacional Constituinte, também houve a participação da sociedade em sua elaboração.
Assim, a atual Carta Magna enfatizou a proteção dos Direitos e Garantias Fundamentais em seu Título II, trazendo um extenso rol no qual se encontram os princípios do Devido Processo Legal e Ampla Defesa, dos quais orienta-se o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição.
Além de estar presente implicitamente nos Direitos e Garantias Fundamentais, o Duplo Grau de Jurisdição também decorre da organização do Poder Judiciário, como p. ex., o art. 93, III da CRFB/88[26] que trata do acesso aos Tribunais de segundo grau e o art.108, II[27] da CRFB/88 que versa sobre a competência dos Tribunais Regionais Federais.
O Duplo Grau de Jurisdição também se encontra de maneira explícita no ordenamento jurídico pátrio, pois existem situações que não necessitam de provocação pela parte vencida para o reexame da decisão judicial, devido à existência de interesse público, como nas hipóteses elencadas no art.475 do CPC:
“Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI). § 1o Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los.
§ 2o Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.
§ 3o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente.”
No sistema jurídico nacional, além da obrigatoriedade de reexame anteriormente citada, existe a possibilidade de aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição pelo mesmo órgão jurisdicional que proferiu a sentença, conforme previsão no caput do art. 41 da Lei n° 9099/95, bem como em seu §1º:
“Art. 41. Da sentença, excetuada a homologatória de conciliação ou laudo arbitral, caberá recurso para o próprio Juizado.
§ 1º O recurso será julgado por uma turma composta por três Juízes togados, em exercício no primeiro grau de jurisdição, reunidos na sede do Juizado.”
Apesar de estar previsto em leis infraconstitucionais, o digitado princípio não deve ser tratado como um princípio norteador do sistema processual pátrio, mas como um princípio constitucional advindo das Garantias e Direitos Fundamentais[28], como o Devido Processo Legal, a Ampla Defesa e o Contraditório, também pela estrutura organizacional dos tribunais brasileiros.
3.1. O Princípio do Duplo Grau de Jurisdição: Uma questão acerca de sua natureza constitucional
O princípio do duplo grau de jurisdição[29] é elemento essencial para a existência de um sistema recursal dentro do ordenamento jurídico de um Estado, sendo através daquele garantida a possibilidade de reexame da matéria por órgão jurisdicional superior àquele que pronunciou a decisão na instância inferior. [30]
Este reexame das decisões judiciais ocorrerá, regra geral, quando a parte vencida provocar tribunal superior competente, através de recurso próprio, tendo como objetivo a modificação da decisão proferida na instância originária, pautando-se na possibilidade de falibilidade humana do juiz que a proferiu. [31]
Apesar de ser um princípio inerente à existência de um sistema processual, dito duplo grau de jurisdição deve ser entendido como um princípio constitucional, advindo dos Direitos e Garantias Fundamentais, tais como o Devido Processo Legal, a Ampla Defesa e o Contraditório, pois que garante ao cidadão a possibilidade de modificação das decisões judiciais a fim de que sejam tutelados de maneira efetiva seus direitos, gerando uma segurança jurídica perante a sociedade.
No entanto, a natureza da inserção do presente instituto no ordenamento jurídico brasileiro ainda se faz divergente na doutrina, podendo ser vislumbradas de um modo geral, três correntes que abordam seu caráter constitucional, sendo: a) índole constitucional; b) princípio constitucional; c) princípio constitucional, mas não garantia constitucional.
Em breve síntese, vamos a elas:
a) O princípio do duplo grau de jurisdição como de índole constitucional
Esta primeira corrente, defendida entre outros por José Cretella Neto, aborda o Duplo Grau de Jurisdição como um princípio de índole constitucional, tendo em vista que, apesar de não se encontrar expresso no texto constitucional, [32] este instituto é de extrema importância para a garantia dos direitos fundamentais.
A previsão de somente três recursos dentro do texto constitucional (o extraordinário, o ordinário e o especial), é fator fundamental para esta corrente, pois a legitimidade para a interposição destes é restrita, o que revelaria a inexistência do Duplo Grau de Jurisdição, ou até mesmo a limitação deste face à sociedade.
Por fim, retorna-se à ideia de que o Duplo Grau de Jurisdição advém do Devido Processo Legal, modo pelo qual a inexistência expressa daquele se faz indiferente quando da presença deste último, haja vista que para a existência do devido processo legal, deve se reexaminar e rediscutir a matéria julgada em primeiro grau, quando necessário, para que se atinja a efetividade e justiça da decisão proferida monocraticamente.[33]
Assim, mesmo que não expresso na Constituição de 1988, o Duplo Grau de Jurisdição é concebido, por esta parte da doutrina, como um princípio de índole constitucional devido à sua importância na garantia dos direitos fundamentais em todo o ordenamento jurídico nacional.
b) O princípio do duplo grau de jurisdição como princípio constitucional.
Esta segunda corrente, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, trata o duplo grau de jurisdição como princípio constitucional, mesmo que elucidado de forma tácita no ordenamento jurídico pátrio. Isto ocorre, pois que com a EC n.45 de 2004, passou-se a integrar o corpo da Carta Maior, o §3º do art.5º, sustentando o que se segue:
“§3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
Nestes termos, tendo em vista que o duplo grau se encontra consagrado na Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de São José da Costa Rica”)[34], tratado internacional que versa sobre direitos humanos, tomou-se a mesma status de norma de caráter supralegal dotada de dignidade constitucional, [35] compreendida neste sentido, como um predicado de valor constitucional.
Dessa forma, mesmo que indiretamente, o princípio do Duplo Grau de Jurisdição, por estar contido em um tratado internacional sobre direitos humanos, passa a integrar o ordenamento jurídico como um princípio constitucional devido à sua importância dentro da sociedade e do Estado Democrático de Direito.
c) O princípio do Duplo Grau de Jurisdição como princípio constitucional, mas não garantia constitucional.
A terceira e última corrente, defendida por José Miguel Garcia Medina e Teresa Arruda Alvim Wambier, traz o Duplo Grau de Jurisdição como um princípio constitucional, tal qual o entendimento do STF, mas não como uma garantia constitucional.
Nesse sentido, o princípio do duplo grau é tratado como princípio constitucional, pois age como princípio fiscalizador em um duplo sentido: a) pela sociedade quando exerce seu direito de recurso sobre as decisões monocráticas; b) pelo próprio Poder Judiciário que, ao julgar o recurso, exerce controle sobre as questões e interpretações adotadas pelos juízes de direito.[36]
Não se pode falar em garantia constitucional, uma vez que a própria lei muitas vezes cria restrições para este instituto, tais como as decisões únicas das quais, em regra, não enfrentam meritoriamente, tipologias recursais, inclusas inclusive no próprio texto constitucional, como os dispostos nos arts. 102, III[37] e 105, III[38] da CRFB/88.
Daí, o princípio do duplo grau possui caráter constitucional, mesmo que de forma tácita, devido à sua importância no ordenamento jurídico, todavia não há que se falar em garantia constitucional, já que as próprias leis infraconstitucionais criam obstáculos ao seu pleno exercício, o que não seria admitido caso se tratasse de uma garantia prevista na Carta Magna pátria.[39]
Por tudo, é de se notar que dita divergência se põe como de importância corrente no plano do direito ao exercício pleno das garantias processuais, tendo em vista o reiterado olhar justificador para questões que envolvem a possibilidade ou não de abrandamento legal ao exercício do direito a provocar um novo grau de jurisdição diante da insatisfação quanto ao conteúdo meritório de determinada demanda, ex vi dos exigíveis depósitos recursais no âmbito recursal da Justiça do Trabalho, onde há uma garantia formal ao mesmo, mas notadamente, um empecilho material no que se refere aos altos custos de tal depósito ou, de outra forma e como já visto anteriormente, a exigência legal duplo grau de jurisdição ex ofício nas questões que envolvem a Fazenda Pública, já aí e ao contrário, de beneplácito garantidor ao “sagrado” exercício do duplo grau jurisdicional.
4. Considerações Finais
O presente artigo dedicou-se a mostrar a importância do duplo grau de jurisdição no ordenamento jurídico pátrio, através de sua evolução histórica no contexto mundial e nacional.
A evolução dos valores sociais, culturais, políticos e históricos das sociedades ao longo dos anos trouxe uma necessidade de se garantir os direitos através de uma prestação jurisdicional efetiva diante da grande desigualdade jurídica e social existente no correr dos tempos.
Nesse sentido, observa-se que as necessidades da sociedade levaram à criação de institutos a fim de se garantir a efetiva tutela de seus direitos, inclusive pelo controle das decisões proferidas pelos tribunais superiores em face do convencimento e convicção dos juízos jurisdicionalmente inferiores, ou seja, pelo reexame das decisões proferidas, de regra, em sede de primeiro grau.
No tocante ao ordenamento jurídico pátrio, é correto afirmar que a Constituição de 1988 inovou ao inserir em seu corpo normativo um título específico para os Direitos e Garantias Fundamentais, contemplando, dentre outros, o Devido Processo Legal, do qual decorre o Duplo Grau de Jurisdição.
Apesar de se encontrar implícito no texto constitucional, o princípio do Duplo Grau encontra-se expressamente previsto no Código de Processo Civil, em seu art. 475, que estabelece hipóteses nas quais é obrigatório o reexame das decisões pelos Tribunais.
No entanto, persiste em nossa doutrina, divergência quanto à natureza jurídica do sobredito princípio, entretanto, por se tratar de princípio advindo dos Direitos e Garantias Fundamentais, tais como o Devido Processo Legal, a Ampla Defesa e o Contraditório, o instituto do Duplo Grau de Jurisdição ingressou no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Pacto São José da Costa Rica, Tratado que versa sobre direitos humanos e que, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, possui status de norma supralegal com dignidade constitucional, entendido com “valor”, podendo ser classificado, forçosamente, como um princípio de índole constitucional.
Assim, entende-se que o Duplo Grau de Jurisdição é um princípio constitucional, devido à sua importância para a existência de um sistema processual, além de conceder ao cidadão a possibilidade de reexame das decisões judiciais proferidas pra que estas sejam modificadas a fim de garantir a tutela efetiva seus direitos, gerando uma maior segurança jurídica para toda a sociedade.
Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra – PT. Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho. Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho. Pós-Graduado em Direito Processual pela Universidade Gama Filho. Professor e Coordenador de Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Membro do IBDP. Membro Efetivo das Comissões Permanentes de Direito Processual Civil e Direito da Integração do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB. Advogado
Pós-Graduando em Direito do Consumidor (Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF). Graduado em Direito (Faculdade Estácio de Sá-JF). Advogado
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