Resumo: A presente monografia tem por objetivo refletir sobre algumas dificuldades apontadas por doutrinadores e magistrados para a efetivação dos direitos fundamentais sociais, inseridos na Constituição Brasileira de 1988. Os direitos fundamentais sociais presentes na Constituição de 1988 têm sua fundamentalidade garantida no texto constitucional positivo e na sua relação com valores e objetivos estampados na carta constitucional, especialmente com a dignidade da pessoa humana. Ao demandarem do Estado prestações materiais, têm um inegável conteúdo econômico, que acaba por influenciar sua efetividade. Assim é que nesse estudo é feita análise da eficácia dos direitos sociais, sendo apresentados posicionamentos diversos da doutrina, que diverge acerca do tema. Também são levantadas relevantes questões acerca do mínimo existencial, da reserva do possível e do ativismo judicial.[1]
Palavras-chave: direitos fundamentais, direitos sociais, efetividade.
Abstract: The present monograph has for objective to reflect about some pointed difficulties for thinkers of the justice for the materialization of the social fundamental rights, inserted in the Brazilian Constitution of 1988. The social rights present in the 1988 Constitution have their fundamentality guaranteed by the constitutional positive prescription and by their relation to constitutional values and goals; specially the human dignity. Due to their demand of material positive provisions, they have undeniable economic content, which influences their effectiveness. In this study an analysis of the effectiveness of social rights is done, presenting the points raised by nowadays doctrine, that diverges on the theme. Also relevant questions are raised towards the minimum necessary to existence, the reserve of possible and the judicial activism.
Keywords: fundamental rights, social rights, effectiveness.
Sumário: Introdução. 1. Efetividade dos direitos sociais. 1.1. Fundamentalidade dos Direitos sociais. 1.2. Eficácia, Efetividade e Aplicabilidade das Normas. 1.3 Classificações Doutrinárias dos Direitos Sociais. 1.3.1. A doutrina de José Afonso da Silva. 1.3.2. A doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet. 1.3.3. A doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello. 1.2.4 A doutrina de Elival da Silva Ramos. 2. Mínimo existencial. 2.1. Relação entre Mínimo Existencial e Efetividade dos Direitos Sociais. 2.2. Conceito e Conteúdo do Mínimo Existencial. 2.3 Mínimo Existencial e Dimensão Subjetiva dos Direitos Sociais. 2.4. Mínimo Existencial como Núcleo Essencial dos Direitos Sociais. 3. Reserva do possível. 3.1. Conceito e Natureza Jurídica. 3.2. Origem. 3.3. Relação entre Reserva do Possível e Mínimo Existencial. 4. Ativismo judicial. 4.1. Argumentos Contrários 4.2. Argumentos Favoráveis. 4.3. Análise dos Argumentos. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Os direitos sociais foram incluídos na Constituição de 1988 como direitos fundamentais. Esse fato representou um avanço na busca pela igualdade social, que constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Entretanto, para que esses direitos sejam efetivados é necessário um esforço simultâneo de variados atores sociais no que diz respeito à interpretação das normas sociais, à definição de seu conteúdo, ao delineamento das necessidades sociais básicas, ao estabelecimento de políticas públicas prioritárias, ao planejamento orçamentário, dentre inúmeros outros aspectos.
Essa atuação conjunta de entes políticos faz-se necessária em razão de os direitos sociais demandarem prestações do Estado, que deve fornecer bens e serviços para promoção da saúde, educação, assistência aos desamparados, moradia, dentre outros direitos.
Em razão desse caráter prestacional dos direitos sociais, diversos obstáculos são apontados à sua efetivação e geram grande polêmica na doutrina e jurisprudência. Dentre os obstáculos com freqüência alegados destacam-se a) o conteúdo indeterminado das normas veiculadoras desses direitos; b) a chamada “reserva do possível”, quanto à disponibilidade de recursos orçamentários do Estado; e c) a falta de legitimidade democrática do Judiciário para concretização de políticas públicas.
Quanto à definição do conteúdo dos direitos sociais, há quem sustente que são desprovidos de eficácia, de forma que constituiriam normas apenas programáticas, dirigidas ao legislador como um programa de atuação a ser concretizado segundo seu arbítrio e, portanto, não gerariam aos indivíduos direito subjetivo. Outros defendem sua eficácia plena, de que decorre o dever do Estado de implementá-los e, em contrapartida, faz surgir aos destinatários o direito subjetivo de exigir essa implementação.
No que toca à disponibilidade de recursos financeiros estatais, destaca-se a doutrina da “reserva do possível”, segundo a qual a efetivação dos direitos sociais estaria limitada às possibilidades orçamentárias do Estado. Muitos criticam a aplicação sem restrições dessa teoria, defendendo a possibilidade de intervenção nas escolhas orçamentárias e imposição ao Poder Público de determinadas prestações, em especial aquelas relacionadas ao “mínimo existencial”.
Outra divergência refere-se ao “ativismo judicial”, relacionado à legitimidade do Poder Judiciário para a efetivação dos direitos sociais. Para parcela dos doutrinadores, o Poder Judiciário não detém tal legitimidade, pois essa tarefa seria exclusiva do Executivo e Legislativo, a quem a sociedade, através do voto, conferiu poder para definir as políticas públicas e definir prioridades. Por outro lado, parte da doutrina sustenta ser o Poder Judiciário legítimo para a concretização desses direitos diante da atuação não satisfatória dos demais poderes.
Analisar as questões envolvidas na efetivação dos direitos sociais é tarefa de primordial importância aos estudiosos de diversos ramos do direito, em especial do Direito Constitucional. O objetivo deste trabalho é identificar as principais correntes de pensamento e seus respectivos argumentos quanto ao conteúdo dos direitos sociais, as limitações orçamentárias de sua implementação e a legitimidade do Judiciário, com o fim de estimular o debate deste tema tão relevante e complexo, bem como esclarecer determinados conceitos que suscitam dúvidas no meio jurídico.
No primeiro capítulo serão abordadas questões referentes à efetividade dos direitos sociais, sua natureza de direitos fundamentais, as diversas classificações propostas pela doutrina quanto à eficácia das normas constitucionais.
No segundo capítulo, será analisado o conceito de mínimo existencial e as principais controvérsias encontradas na doutrina relacionadas à efetivação dos direitos sociais.
O capítulo terceiro abordará as principais discussões sobre a reserva do possível, analisando seu conceito, natureza e origem e estabelecendo sua relação com o mínimo existencial.
O ativismo judicial e a legitimidade do Poder Judiciário na efetivação dos diretos sociais serão o assunto do último capítulo, em que serão apresentados os principais argumentos favoráveis e os contrários à atuação judicial nesse campo.
1 EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS
1.1 Fundamentalidade dos Direitos Sociais
A qualificação ou não dos direitos sociais como direitos fundamentais revela-se necessária para a análise de sua efetividade e gera importantes conseqüências jurídicas previstas na Constituição, como a aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF) e a proteção em face do poder constituinte derivado (art. 60, § 4º, IV, da CF).
A Constituição de 1988 consagrou os direitos sociais como direitos fundamentais, uma vez que os coloca em capítulo próprio inserido no título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Essa classificação trazida pela Constituição de 1988 representou um avanço em relação às Constituições anteriores, que abrigavam tais direitos no título da ordem econômica e social, conferindo-lhes reduzida eficácia e efetividade, conforme esclarece Ingo Wolfgang Sarlet[2]:
“A Constituição de 1988 – e isto pode ser tido como mais um de seus méritos – acolheu os direitos fundamentais sociais expressamente no título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), concedendo-lhes capítulo próprio e reconhecendo de forma inequívoca o seu “status” de autênticos direitos fundamentais, afastando-se, portanto, da tradição anterior do nosso constitucionalismo, que, desde a Constituição de 1934, costumava abrigar estes direitos (ao menos parte dos mesmos), no título da ordem econômica e social, imprimindo-lhes reduzida eficácia e efetividade, ainda mais porquanto eminentemente consagrados sob a forma de normas de cunho programático.”
Entretanto, a localização dos direitos sociais no texto constitucional não é suficiente para pacificar a controvérsia em torno do tema da fundamentabilidade.
Parte da doutrina reconhece os direitos sociais como fundamentais, o que decorre de duas perspectivas: formal e material.
A fundamentalidade formal deriva da constitucionalização dos direitos, como analisado por Ingo Wolfgang Sarlet, e apresenta as seguintes dimensões: a) superior hierarquia em relação às demais normas do ordenamento jurídico; b) submissão aos limites formais e materiais de revisão e emenda constitucional, previstos no artigo 60 da CF; c) em virtude do disposto no parágrafo primeiro do art. 5º, aplicabilidade imediata e vinculação a todos os poderes públicos[3].
A fundamentalidade material, por sua vez, está relacionada aos valores que informam a Constituição, especialmente os princípios previstos nos arts. 1º a 4º, dentre os quais está a dignidade da pessoa humana.
Os adeptos desse entendimento argumentam ainda que perante a Constituição de 1988 não basta a fundamentalidade formal. Afinal, o constituinte inseriu uma cláusula de abertura no parágrafo 2º do artigo 5º, da CF, admitindo como fundamentais os direitos decorrentes dos princípios e do regime constitucional, bem como aqueles previstos em tratados internacionais. Assim, direitos não expressamente previstos na Constituição somente poderiam ser considerados fundamentais se, materialmente, fossem dotados da mesma dignidade[4].
Entretanto, há entendimentos no sentido de negar fundamentalidade aos direitos sociais.
Roger Stiefelmann Leal adverte que a proliferação de novos direitos consagrados nas constituições como fundamentais pode gerar uma desvalorização da noção de direitos fundamentais e uma fragilização da credibilidade de sua tradição jurídico-teórica. Nas palavras do autor[5]:
“Este processo de proliferação de novos direitos conduz a questionamentos a respeito da adequação desses direitos ao qualificativo “fundamental”, ou seja, indaga-se se todos esses direitos são direitos fundamentais. Sob um outro enfoque, poder-se-ia falar de uma desvalorização da noção de direitos fundamentais, isto é, ao se afirmar que todos esses direitos são direitos fundamentais, elevando à mesma categoria a liberdade de expressão (art. 5º, IV e IX da CF), o direito de proteção em face da automação (art. 7º, XXVII da CF) e o direito ao lazer (art. 6º, caput da CF), haveria uma vulgarização da própria conotação de direitos fundamentais”.
Para o referido autor, os direitos sociais, na prática, não podem ser assegurados judicialmente, na forma do preceito do art. 75 do Código Civil de 1916 de que para todo direito há uma ação correspondente que o garante. Por esse motivo, não podem ser considerados direitos, mas apenas objetivos, metas, anseios populares, impropriamente qualificados como direitos fundamentais, conforme conclui[6]:
“A falta de rigor teórico que possibilitou a constitucionalização de tais reivindicações sociais sob a forma de direitos fundamentais acabou por admitir a invenção de novos direitos a partir de novos reclamos da sociedade sem haver um mínimo de preocupação a respeito da sua qualidade como direito e, sobretudo, como direito fundamental. Tem-se a impressão de que a proliferação de novos direitos é apenas uma seqüência de um processo de positivação de reivindicações sociais que se iniciou com os chamados direitos sociais. Desse modo, vêm surgindo novos direitos rotulados de fundamentais que, a exemplo dos direitos econômicos e sociais, constituem anseios populares sem a menor condição de serem normatizados como direitos.”
Não obstante as controvérsias em torno da fundamentalidade dos direitos sociais, faz-se necessário analisar o alcance e significado do art. 5º, § 1º, da Constituição que dispõe que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Referido artigo está inserido no capítulo “dos direitos e deveres individuais e coletivos”, motivo pelo qual uma primeira indagação que se coloca é se a norma se aplica apenas a estes direitos, ou se se estende aos demais direitos fundamentais arrolados ao longo dos arts. 5º ao 17, inclusive aos direitos sociais.
A doutrina responde a esse questionamento conferindo aplicação do dispositivo a todas as normas definidoras de direitos fundamentais previstas na Constituição, ao argumento de que o constituinte não fez distinção entre as espécies de direitos fundamentais, e ainda que essa ampliação de abrangência coaduna-se com a concepção materialmente aberta de direitos fundamentais prevista no art. 5º, §2º, da Constituição.
Nesse sentido explica Ingo Wolfgang Sarlet[7]:
“Em que pese a localização topográfica do dispositivo, que poderia sugerir uma exegese restritiva, o fato é que, mesmo sob o ponto de vista da mera literalidade (o preceito referido é claro ao mencionar “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais”), não há como sustentar uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias específicas de direitos fundamentais consagradas na nossa Constituição, nem mesmo aos assim equivocadamente denominados direitos individuais e coletivos do art. 5º. […] Aliás, a extensão do regime material da aplicabilidade imediata aos direitos fora do catálogo não encontra qualquer óbice no texto de nossa Lei Fundamental, harmonizando, para além disso, com a concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais consagrada, entre nós, no art. 5º, § 2º, da CF.”
Outra indagação diz respeito ao significado dessa norma para as diferentes espécies de direitos sociais.
Os direitos sociais são comumente associados a direitos que dependem de prestações dos poderes públicos para que possam ser usufruídos por seu titular. Nesse sentido a definição de José Afonso da Silva: “direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”[8].
Mas essa definição não abarca todas as modalidades de direitos sociais previstas na Constituição de 1988. O direito de greve, por exemplo, não depende de uma ação estatal, mas de uma omissão, para que possa ser exercido.
Em decorrência dessa constatação, a análise do significado do dispositivo constitucional em comento em relação aos direitos sociais é mais complexa e demanda a análise das diversas classificações propostas pela doutrina quanto à eficácia das normas de direitos sociais, o que se fará nos itens seguintes.
1.2 Eficácia, Efetividade e Aplicabilidade das Normas
A efetividade dos direitos sociais pode ser entendida como a concretização de efeitos jurídicos no mundo dos fatos, ou seja, constitui a materialização do Direito. Segundo Luiz Roberto Barroso, a efetividade “simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social[9]”
Essa definição confunde-se com a noção de eficácia social proposta por José Afonso da Silva, que distingue a eficácia em eficácia jurídica e eficácia social. Segundo o autor[10]:
“Eficácia é a capacidade de atingir objetivos previamente fixados como meta. Tratando-se de normas jurídicas, a eficácia consiste na capacidade de atingir os objetivos nela traduzidos, que vêm a ser, em última análise, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador. […] Uma norma pode ter eficácia jurídica sem ser socialmente eficaz, isto é, pode gerar efeitos jurídicos, como, por exemplo, o de revogar normas anteriores, e não ser efetivamente cumprida no plano social.”
Os conceitos de efetividade e eficácia relacionam-se ainda com o de aplicabilidade, conforme esclarece Ingo Sarlet[11]:
“Já no que diz com a relação entre a eficácia jurídica e a aplicabilidade, retomamos mais uma vez a lição de José Afonso da Silva para consignar que eficácia e aplicabilidade são fenômenos conexos, já que a eficácia é encarada como potencialidade (a possibilidade de gerar efeitos jurídicos) e a aplicabilidade, como realizabilidade, razão pela qual eficácia e aplicabilidade podem ser tidas como as duas faces da mesma moeda, na medida em que apenas a norma vigente será eficaz (no sentido jurídico) por ser aplicável e na medida de sua aplicabilidade.”
Em que pesem as questões terminológicas, será empregado neste trabalho o termo “efetividade”, mas os temas desenvolvidos englobam tanto efetividade, como eficácia e aplicabilidade das normas sociais, à vista da íntima relação dos institutos.
1.3 Classificações Doutrinárias dos Direitos Sociais
Diversos autores desenvolveram trabalhos sobre a eficácia das normas constitucionais e várias classificações foram propostas. Serão abordados alguns posicionamentos de doutrinadores que se propuseram a enfrentar o tema específico da efetividade dos direitos sociais e apresentaram diferentes conclusões.
1.3.1 A doutrina de José Afonso da Silva
Uma das mais difundidas classificações é a exposta por José Afonso da Silva, segundo a qual as normas constitucionais dividem-se em: 1) de eficácia plena e aplicabilidade imediata, 2) de eficácia contida e aplicabilidade imediata e 3) de eficácia limitada ou reduzida[12].
As normas constitucionais de eficácia plena seriam aquelas que produzem todos os seus efeitos essenciais ou têm a possibilidade de produzi-los desde a sua entrada em vigor, pois o constituinte criou uma normatividade suficiente para tanto, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto.
Já as normas de eficácia contidas seriam aquelas aptas a gerar efeitos até que sobrevenha legislação restritiva.
Por fim, as normas constitucionais de eficácia limitada seriam aquelas que não estão aptas a produzir, a partir da entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o constituinte não estabeleceu uma normatividade suficiente, conferindo o exercício dessa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão público. Subdividem-se ainda em dois grupos: declaratórias de princípios institutivos ou organizativos e declaratórias de princípio programático.
As normas constitucionais de princípio institutivo seriam aquelas por meio das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de organização e regulação de órgãos e entidades, suas relações e atribuições, para que o legislador ordinário os estruture de forma definitiva mediante lei.
Já as normas constitucionais de princípios programáticos seriam aquelas por meio das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a lhes traçar os princípios, os programas sociais a serem cumpridos pelos entes públicos, visando à realização dos fins sociais do Estado.
Para José Afonso da Silva[13], as normas programáticas são dotadas de eficácia apenas negativa, emanando os seguintes efeitos mínimos:
“I – estabelecem um dever para o legislador ordinário; II – condicionam a legislação futura, com a conseqüência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; III – informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum; IV – constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; V – condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário; VI – criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou de desvantagem.”
No que diz respeito aos direitos sociais, o doutrinador os considera direitos fundamentais do homem, consistentes em prestações estatais, previstas em normas constitucionais, destinadas a melhorar as condições de vida dos mais fracos e, desse modo, realizar a igualdade social. Nesse sentido explica[14]:
“Mas o que são os direitos sociais? Como dimensão dos direitos fundamentais do homem, já os entendemos como prestações positivos estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito de igualdade.”
Os direitos sociais, segundo esse entendimento, muitas vezes estão consagrados em normas que demandam uma atuação estatal, mas isso não significa que são ineficazes. A eficácia desses direitos advém dos instrumentos previstos na Constituição, denominados “garantias”, que podem ser de ordem política, jurídica ou econômica.
O autor refere-se a três garantias políticas de eficácia dos direitos sociais:
“Primeiro, a construção de um regime democrático que tenha como conteúdo a realização da justiça social. Segundo, o apoio a partidos e candidatos comprometidos com essa realização. Terceiro, a participação popular no processo político que leve os governantes a atender suas reivindicações, tal como a vontade política que conduziu os Constituintes a inscrever esses direitos de forma ampla e abrangente”[15].
As garantias jurídicas citadas são: o art. 5º, § 1º, da Constituição, o mandado de injunção, a constitucionalidade por omissão, a iniciativa popular e a sindicalização e direito de greve.
Quanto ao art. 5º, §1º, o autor entende que as normas que consubstanciam direitos sociais tendem a ser de aplicabilidade imediata, mas há algumas, especialmente as que dependem de lei integradora, que são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta. Em face dessas normas, o preceito constitucional em questão significaria que 1) “elas são aplicáveis até onde possam, até onde as instituições ofereçam condições para seu atendimento” e 2) “o poder judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as instituições existentes”[16].
Por fim, a respeito das garantias econômicas, José Afonso da Silva explica que, conforme se observa do texto constitucional, a ordem econômica é voltada para a realização dos direitos sociais do homem e somente será possível uma real e autêntica existência digna quando as condições econômicas assegurarem a efetivação desses direitos. Nas palavras do autor:
“A Constituição declara que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social e os princípios que indica, entre os quais a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a redução das desigualdades sociais, a busca do pleno emprego. Tudo, como se vê, voltado à realização dos direitos sociais do homem. Mas a verdade é que a existência digna aí prometida não será autêntica e real, enquanto não se construírem as condições econômicas que assegurem a efetividade desses direitos”[17].
1.3.2 A doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet
Já Ingo Wolfgang Sarlet, para analisar a eficácia das normas de direitos sociais, parte de uma classificação de direitos fundamentais segundo a funcionalidade, pela qual se dividiriam em a) direitos fundamentais de defesa e b) direitos fundamentais a prestações, que se subdividem em direitos a prestações em sentido amplo, abarcando os direitos à proteção e os direitos à participação na organização e no procedimento, e os direitos a prestações em sentido estrito. [18].
Quanto aos direitos de defesa, explica o doutrinador que objetivam a limitação do poder estatal, para garantir ao indivíduo uma esfera de liberdade e lhe conceder um direito subjetivo a evitar interferências indevidas no âmbito de proteção do direito fundamental ou mesmo a eliminar agressões a sua esfera de autonomia pessoal. Trata-se, pois, de direitos negativos, dirigidos a uma conduta omissiva do destinatário.
No que tange aos direitos a prestações em sentido amplo, incluem-se os direitos de proteção, entendidos como posições jurídicas que atribuem ao cidadão o direito de exigir perante o Estado a proteção de bens jurídicos em face de violações de terceiros, e os direitos à organização e ao procedimento, relacionados também à produção normativa, que apresentam caráter residual em relação aos direitos de defesa.
Por fim, os direitos a prestações em sentido estrito correspondem aos direitos a prestações sociais materiais, vinculados prioritariamente às funções do Estado Social.
Salienta, também, o doutrinador que, sob outro critério, os direitos a prestações podem ser classificados em direitos derivados e direitos originários a prestações, classificação esta que alcança tanto os direitos prestacionais em sentido amplo e restrito. Os direitos derivados a prestações são aqueles que não resultam imediatamente do preceito constitucional, sendo necessária uma preambular ação estatal, enquanto que os direitos originários a prestações podem ser deduzidos diretamente das normas constitucionais que os consagram.
Ressalta Sarlet que os direitos sociais não se restringem a direitos a prestações, mas podem, por sua estrutura e função, ser caracterizados como direitos de defesa, como ocorre com o direito de greve, a liberdade de associação sindical e as proibições contra discriminações nas relações trabalhistas consagradas no art. 7º, XXXI e XXXII, da Constituição. Por esse motivo, a análise da eficácia dos direitos sociais deve levar em conta as peculiaridades de cada categoria de direitos.
O art. 5º, § 1º, da Constituição, segundo o autor, apresenta duas características: 1) trata-se de norma de natureza principiológica, pelo que deve ser entendido como “mandado de otimização”, ou seja, estabelece para os órgãos estatais a tarefa de reconhecerem, à luz do caso concreto, a maior eficácia possível às normas de direitos fundamentais; e 2) tem como efeito a presunção de aplicabilidade imediata e plena eficácia e efetividade das normas de direitos fundamentais, de modo que eventual recusa de total eficácia deve ser necessariamente fundamentada.
No que tange aos direitos sociais de cunho defensivo, por, em regra, não dependerem de prestações fáticas ou normativas, mas apenas de uma conduta omissiva por parte do destinatário, não costumam gerar controvérsias quanto à eficácia plena e aplicabilidade imediata, de forma que o art. 5º, § 1º, da Constituição, tem por fim oportunizar essa aplicação imediata, assegurando integral exigibilidade em Juízo.
Quanto aos direitos sociais prestacionais, o autor narra que a maior parte da doutrina sustenta que não há norma constitucional, mesmo as consideradas programáticas, despida de eficácia e elenca “cargas eficaciais” destacadas pelos doutrinadores como comuns a essas normas, a seguir sintetizadas:
a) revogam os atos normativos anteriores contrários ao seu conteúdo e, por via de conseqüência, sua desaplicação, independentemente da declaração de inconstitucionalidade;
b) vinculam permanentemente o legislador, que, não apenas está obrigado a concretizar os programas, tarefas, fins e ordens previstas na norma, mas também não poderá se afastar dos parâmetros prescritos nas normas de direitos fundamentais a prestações;
c) implicam a declaração de inconstitucionalidade (por ação) de todos os atos normativos posteriores à Constituição, colidentes com o conteúdo das normas de direitos fundamentais;
d) constituem parâmetro para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas, por conterem diretrizes, princípios e fins que condicionam a atividade dos órgãos estatais e portanto influenciam toda a ordem jurídica;
e) geram algum tipo de posição jurídico-subjetiva em sentido amplo, ou seja, um direito subjetivo de cunho negativo de exigir que o Estado se abstenha de atuar em sentido contrário ao disposto na norma de direito fundamental prestacional;
f) para parte da doutrina, geram, caso já tenham sido concretizadas pelo legislador, a chamada “proibição do retrocesso”, ou seja, impedem o legislador de, retrocedendo em suas próprias ações, extinguir posições jurídicas por ele próprio criadas.
Sarlet ressalta que a maior controvérsia reside na possibilidade de reconhecer um direito subjetivo à fruição da prestação, inclusive por meio judicial, em especial no que toca aos direitos originários a prestações.
Para o autor, como o assunto esbarra nas questões da disponibilidade de recursos, no princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária e no princípio da separação de poderes, a resposta à questão deve ter por fundamento a ponderação dos princípios incidentes, à vista das circunstâncias do caso concreto.
Utilizando-se das lições do jusfilósofo germânico Robert Alexy, Sarlet reconhece a existência de um direito subjetivo quando a) for imprescindível ao princípio da liberdade fática e 2) atingir de forma diminuta o princípio da separação de poderes e outros princípios materiais.
Segundo Sarlet, os parâmetros propostos por Alexy se coadunam com a natureza principiológica do art. 5º, § 1º, da Constituição, pois, se a norma impõe a otimização da eficácia de todos direitos fundamentais, não seria possível nem a realização absoluta, nem a negação completa de todos os direitos sociais a prestações como subjetivos, sob pena de sacrifício destes ou de outros direitos fundamentais colidentes. Como parâmetro para aferir o padrão mínimo de direitos sociais a ser reconhecido, o autor destaca o princípio da dignidade da pessoa humana. Elucidativa a explicação do autor:
“Assim, em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do legislador (assim como a separação de poderes e as demais objeções habituais aos direitos sociais a prestações como direitos subjetivos) implicar grave agressão (ou mesmo o sacrifício) do valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes, resultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e de Gomes Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal mínimo for ultrapassado, tão-somente um direito subjetivo “prima facie”, já que – nesta seara – não há como resolver a problemática em termos de uma lógica do tudo ou nada. Esta solução impõe-se até mesmo em homenagem à natureza eminentemente principiológica da norma contida no art. 5º,§ 1º, da CF, e das próprias normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais”[19].
1.3.3 A doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello
Celso Antônio Bandeira de Mello propõe uma classificação das normas constitucionais segundo o critério da “consistência e amplitude dos direitos imediatamente resultantes para os indivíduos”. Para ele, a identificação das normas em eficácia plena, contida ou limitada, em auto-aplicáveis ou dependentes de regulamentação e em restringíveis ou intangíveis, são importantes, mas não são aptas a responder à questão: “quais a tipologia e a consistência dos direitos dedutíveis das normas constitucionais, em prol dos administrados?”[20].
Segundo a divisão proposta pelo autor, são identificáveis as seguintes espécies de normas constitucionais:
a) Normas que conferem “poderes-direitos” ao administrados: trata-se das normas que outorgam “uma situação subjetiva ativa cujo desfrute independe de uma prestação alheia – vale dizer, cuja satisfação não se resolve no cumprimento de uma obrigação a ser solvida por outrem”. Como exemplo, cita o direito de ir e vir, o direito de inviolabilidade do domicílio, o direito de propriedade, o direito de livre comércio, o direito à vida, etc. Essas normas criam “posição jurídica imediata, de plena consistência ao administrado, prescindindo de qualquer regramento subseqüente”.
b) Normas que geram “direito em sentido estrito (stricto sensu)”, cuja fruição depende de uma prestação alheia. Realizam-se, portanto, “na intimidade de uma relação jurídica e como expressão dela”, motivo pelo qual sua fruição depende de que a norma “haja desenhado uma conduta de outrem (geralmente do Estado) em termos que permitam reconhecer qual o comportamento específico deste terceiro capaz de dar concreta satisfação à utilidade deferida ao administrado”. Como exemplo, o autor menciona o art. 210, § 1º, da Constituição (“o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”). Assim como as normas que outorgam “poder-direito”, estas atribuem de imediato o “desfrute positivo de uma concreta utilidade” e o “poder jurídico de exigir este desfrute, se turbado por terceiro ou negado por quem tinha que satisfazê-lo”.
c) Normas que apenas expressam uma finalidade a ser cumprida obrigatoriamente pelo Poder Público, mas sem apontar os meios a serem adotados para atingi-la, como é o caso do art. 226 (“a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”). Essas normas conferem posição jurídica menos consistente aos administrados, pois “não lhes confere fruição alguma, nem lhes permite exigir que se lhes dê o desfrute de algo”, mas conferem, de imediato, o direito a “opor-se judicialmente ao cumprimento de regras ou à prática de comportamentos que o atinjam, se forem contrários ao sentido do preceito constitucional”, bem como “obter, nas prestações jurisdicionais, interpretação e decisão orientadas no mesmo sentido e direção preconizados por estas normas sempre que estejam em pauta os interesses constitucionais protegidos por tais regras”.
O autor aponta, ainda, divisões internas que comportam as normas outorgadoras de poderes-direitos e direitos em sentido estrito.
A primeira divisão consiste em: a) poderes-direitos / direitos em sentido estrito insuscetíveis de restrição; ou b) poderes-direitos / direitos em sentido estrito restringíveis por lei ordinária. Essa distinção, segundo o doutrinador, decorre da situação em que a própria norma constitucional prevê que a lei definirá a extensão do direito, como ocorre no art. 37, VII, segundo o qual o direito de greve dos servidores públicos será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica. Em oposição, há o art. 7º, VII, que assegura “garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável”, norma que não permite restrição por lei posterior.
A segunda divisão consiste em: a) normas que delimitam com exatidão o conteúdo do direito, porque o texto constitucional utiliza expressões inelásticas, de significado preciso, como é o caso do art. 7º, XV, que confere direito a repouso semanal remunerado ao trabalhador; b) normas que delimitam aproximativamente o conteúdo do direito, porque o texto constitucional possui expressões elásticas, de significado algo fluido, como o art. 7º, XXXIII, que proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos.
Alerta o doutrinador, que não é imprescindível a edição de lei para especificar o conteúdo dos termos “perigoso” e insalubre” para que os direitos possam ser imediatamente exigíveis pelo interessado, pois áreas de inquestionável certeza dentro dos quais é indiscutível a periculosidade e a insalubridade, de forma não há razão para diferir a aplicação do preceito até edição de lei.
Quanto à possibilidade de o Judiciário reconhecer as fronteiras desses conceitos fluidos, ressalta o autor que em todos os ramos do Direito as normas fazem uso desses termos, sem que nunca fosse negada legitimidade aos juízes para delimitar seu conteúdo, de forma que não há motivo para o fazer em matéria constitucional. Segundo entende, a explicação para negar a atuação judicial representa “uma posição ideológica, autoritária, às vezes inconsciente de que nada mais representa senão reminiscência de um autocratismo privilegiador do Estado, mera reverberação enaltecedora de prerrogativas regalengas”[21].
Com fulcro na classificação proposta, Bandeira de Mello analisa a aplicabilidade das regras constitucionais relativas à Justiça Social, em especial os arts. 6º, 7º, 170 e 193.
A respeito do art. 170, esclarece que o dispositivo obriga, exige que a ordem econômica e social seja estruturada e realizada de modo a cumprir os objetivos ali estatuídos, bem como que a busca destes fins ocorra por meio dos caminhos obrigatórios referidos nos respectivos incisos, sob a forma de princípios.
Por esse motivo, todas as leis e atos administrativos devem buscar o desenvolvimento nacional e a Justiça Social e pautar-se nos princípios do art. 170 da Constituição, sob pena de inconstitucionalidade. Para o autor, qualquer ato do chefe do Executivo que transgrida as finalidades da ordem econômica e financeira ou viole os princípios previstos no art. 170 ou os direitos sociais dos trabalhadores caracteriza crime de responsabilidade, tal como estatuído no art. 85 da Constituição. Além disso, a Constituição prevê a ação direita de constitucionalidade e a ação de inconstitucionalidade por omissão, o que indica que estabelece o dever de serem expurgados os atos praticados em desacordo com suas disposições.
O doutrinador defende ainda que em determinados casos o ato inconstitucional pode causar lesão ao patrimônio público, o que possibilita o manejo de ação popular (art. 5º, LXXIII, da Constituição). Para tanto, o conceito de patrimônio público deve ser entendido de forma ampla, para abarcar o patrimônio cultural, no qual se inserem não apenas os monumentos históricos, as edificações e documentos tradicionais, mas também os valores cívicos e sociais, dentre os quais o respeito à dignidade humana.
O “caput” do art. 170, ao prever que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho, segundo esse entendimento é fonte de direito subjetivo para o trabalhador, que, por esse motivo, pode pleitear em juízo a anulação de ato que desrespeite o comando sem necessidade de fundamentação em outro dispositivo específico. O mesmo raciocínio é aplicado para os arts. 170, III (“função social da propriedade”) e 173, § 4º (“a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”).
Segundo leciona o autor, é necessária uma atualização da noção de direito subjetivo, que foi desenvolvida com foco nas relações privadas e, portanto, não se amolda ao direito público. Entende que haverá direito subjetivo quando: a) a ruptura da legalidade cause ao administrado um agravo pessoal do qual estaria livre se fosse mantida íntegra a ordem jurídica ou b) lhe seja subtraída uma vantagem a que acederia ou a que pretenderia aceder nos termos da lei e que pessoalmente desfrutaria ou faria jus a disputá-la se não houvesse a ruptura da legalidade.
Conclui Celso Antônio Bandeira de Mello que não há como recursar ao administrado o direito de postular em juízo os direitos decorrentes das normas constitucionais atinentes à Justiça Social, o que se dá em diferentes medidas, conforme esclarece:
“Por tudo isto, é irrecusável o direito dos cidadãos de postular jurisdicionalmente os direitos que decorrem das normas constitucionais reguladoras da Justiça Social, captando de suas disposições, conforme o caso,
a) ou a garantia do exercício de poderes – como, por exemplo, os relativos ao ‘direito’ de greve; ou
b) a satisfação de uma utilidade concreta a ser satisfeita pela prestação de outrem – como o salário mínimo ou o salário-família, exempli gratia; ou
c) a vedação de comportamentos discrepantes dos vetores constitucionais – como a anulação de atos agressivos à função social da propriedade ou à expansão das oportunidades de emprego”[22].
1.3.4 A doutrina de Elival da Silva Ramos
Elival da Silva Ramos considera as normas constitucionais, quanto à eficácia, subdivididas em: a) normas de eficácia plena, sendo que algumas pertencem ao subgrupo das normas de eficácia plena restringível; e b) normas de eficácia limitada. Ressalta que todas as normas de eficácia plena são preceptivas, ou seja, demandam apenas complementação legislativa, mas quanto às de eficácia limitada algumas preceptivas, mas outras são programáticas, o que significa a implementação destas depende, além de concretização legislativa, do exercício da função de governo (escolha de políticas públicas), da função administrativa e da existência de condições sócio-econômicas favoráveis.[23]
Segundo o autor, há direitos sociais dotados de plena proteção jurisdicional, por constarem em normas de eficácia plena e de natureza preceptiva, como é o caso da liberdade sindical.
Há outros direitos econômicos e sociais que, uma vez sediados em normas preceptivas de eficácia limitada, ficam condicionados apenas à complementação dos elementos integrantes da norma constitucional para fruição pelo beneficiário; com o advento da lei, o direito pode ser plenamente gozado, independentemente de atuação estatal para efetiva aquisição do direito.
Por fim, há direitos econômicos e sociais que estão veiculados a normas programáticas, que demandam não apenas interposição normativa, como também estruturação material da atividade estatal e, por esse motivo, carecem de proteção jurisdicional direta, como ocorre com a maioria dos direitos sociais a prestações estatais. Trata-se de direitos potenciais ou in fieri, os quais, embora não dotados de proteção jurisdicional direta, possuem eficácia indireta, pois impedem o Poder Público de atuar de modo contrário aos parâmetros por eles definidos nas normas constitucionais.
Quanto à proteção dos direitos prestacionais pela Constituição de 1988, defende o autor que seu art. 5º, § 1º, não significa a eliminação de normas de direitos fundamentais de eficácia limitada, mas o que o dispositivo assegura é a presunção de eficácia plena pelo aplicador e a possibilidade de impetração de mandado de injunção. Entretanto, sustenta não ser viável obter por meio do mandado de injunção a imediata fruição do direito, pois a completa operatividade da norma constitucional depende não apenas de regulamentação por meio de lei ou regulamento, mas sobretudo de implementação de políticas públicas custeadas por verbas orçamentárias.
2 MÍNIMO EXISTENCIAL
2.1 Relação entre Mínimo Existencial e Efetividade dos Direitos Sociais
A noção de mínimo existencial é tema relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição como um dos fundamentos da ordem constitucional (art. 1º, III) e como uma das finalidades da ordem econômica (art. 170, caput), na medida em que representa, em linhas gerais, o mínimo necessário para a vida humana digna.
Percebe-se que os direitos sociais estão intimamente ligados à dignidade da pessoa humana, pois é patente que direitos como o direito à saúde, à assistência social, à moradia, à educação, à previdência social tem por objetivo conferir aos cidadãos uma existência digna.
As noções de mínimo existencial e dignidade da pessoa humana relacionam-se ao tema da efetividade dos direitos sociais, na medida em que são utilizados pela doutrina como parâmetro para verificar o padrão mínimo desses direitos a ser reconhecido pelo Estado.[24]
Nesse sentido, as principais controvérsias verificadas sobre tema giram em torno da delimitação do conceito e conteúdo do mínimo existencial, da sua relação com a subjetividade dos direitos sociais e da amplitude de sua proteção em caso de colisão, principalmente com a reserva do possível, controvérsias estas que serão analisadas nos itens seguintes.
2.2 Conceito e Conteúdo do Mínimo Existencial
A delimitação do conceito e conteúdo desses institutos é complexa e gera diversos posicionamentos doutrinários.
Ana Paula de Barcellos afirma que o mínimo existencial corresponderia a “um elemento constitucional essencial, pelo qual se deve garantir um conjunto de necessidades básicas do indivíduo”.[25]
A autora compreende o mínimo existencial como um núcleo irredutível do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual incluiria um mínimo de quatro elementos de natureza prestacional: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça.[26]
Segundo Vicenzo Demetrio Florenzano, a definição de quais seriam as necessidades básicas de todo ser humano correspondentes ao mínimo existencial está na sua relação com o disposto no artigo 7°, IV, da Constituição Federal, que prevê um salário mínimo “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.[27]
Para Andreas J. Krell “o referido ‘padrão mínimo social’ para sobrevivência incluirá sempre um atendimento básico e eficiente de saúde, o acesso a uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau e à garantia de uma moradia […]”.[28]
Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo observam que o conteúdo do mínimo existencial não se confunde com o “mínimo vital” ou “mínimo de sobrevivência”, na medida em que a garantia de sobrevivência física do homem não significa necessariamente a manutenção da vida em condições dignas, com qualidade. Ressaltam que é impossível estabelecer um elenco taxativo dos elementos nucleares do mínimo existencial, o que demanda uma análise à luz das necessidades de cada pessoa e seu núcleo familiar. Contudo, esclarecem que é possível inventariar um conjunto de conquistas já sedimentadas, que serviriam com um roteiro ao intérprete e aos órgãos vinculados à concretização do mínimo existencial.[29]
Já Ricardo Lobo Torres, embora não defina um conteúdo específico, afirma que “o problema do mínimo existencial confunde-se com a própria questão da pobreza”. Segundo ele, “há que se distinguir entre pobreza absoluta, que deve ser obrigatoriamente combatida pelo Estado, e a pobreza relativa, ligada a causas de produção econômica ou de redistribuição de bens, que será minorada de acordo com as possibilidades sociais e orçamentárias”[30].
2.3 Mínimo Existencial e Dimensão Subjetiva dos Direitos Sociais
A dimensão subjetiva dos direitos sociais está relacionada à possibilidade de o titular do direito exigir judicialmente o cumprimento da obrigação pelo poder público. Discute-se na doutrina o reconhecimento dos direitos sociais como direitos subjetivos, em decorrência dos variados entendimentos sobre o nível de efetividade das normas consagradoras de direitos sociais.
Alguns autores relacionam a dimensão subjetiva dos direitos sociais ao mínimo existencial, afirmando que a exigibilidade dos direitos sociais estaria restrita ao mínimo social, como o faz Ricardo Lobo Torres:
“A jusfundamentalidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático.”[31]
Emerson Garcia afirma que não seria viável que todos os direitos previstos na Constituição pudessem ser exigidos do Estado, em face da limitação dos recursos, mas, ao analisar o direito à educação, reconhece seu caráter de direito subjetivo, em função de pertencer ao mínimo existencial:
“Assim, quer seja considerado na individualidade de um dos componentes do grupamento, quer seja visto como direito de todos, o direito à educação, a depender da ótica em que seja analisado, será passível de enquadramento na categoria dos direitos subjetivos, pois integrante do denominado mínimo existencial. […] Não se sustenta que todo e qualquer direito previsto na Constituição possa resultar na coerção estatal para o seu fornecimento, isto porque os recursos estatais são reconhecidamente limitados, enquanto as necessidades são indiscutivelmente amplas. […] Essa tese, infelizmente, destoa de um padrão de razoabilidade, motivo pelo qual seu prestígio está em franco declínio. Como contraponto, tem-se o mínimo existencial, que, face o seu conteúdo mínimo, apresenta níveis aceitáveis de exeqüibilidade, atende à razão e satisfaz à dignidade da pessoa humana.”[32]
Alguns doutrinadores, entretanto, observam que esse posicionamento possui um aspecto negativo, pois pode dar margem a interpretações demasiadamente restritivas do conteúdo do mínimo social, o que reduziria a carga eficacial dos direitos sociais, como explica George Marmelstein Lima:
“Há, contudo, por trás da teoria, um aspecto negativo: um intérprete mais mesquinho (dito de outro modo: um intérprete ideologicamente contra os direitos sociais) poderá utilizar a tese para esvaziar ao máximo a força jurídica dos direitos sociais, diminuindo até onde pode o conteúdo “essencial” do direito, até porque o balizamento sobre o que será esse “conteúdo mínimo” ficará a cargo da doutrina e da prática judicial. O que seria, por exemplo, o mínimo existencial em matéria de educação? Seria apenas saber escrever o próprio nome? Ou então o mínimo existencial em matéria de moradia? Não dá para responder com segurança”[33].
Já Gustavo Amaral ressalta a dificuldade em fixar o traço distintivo entre o mínimo existencial exigível dos direitos sociais fundamentais e o campo normativo externo a esse mínimo, que não seria imediatamente exigível. Segundo o autor, “a determinação concreta do mínimo existencial seria fugidia e variável histórica e geograficamente”. Uma vez que se sustenta que este mínimo somente pode ser obtido mediante a ponderação, entende o autor que se estaria atribuindo uma estrutura binária “exigível x não exigível” a observações graduais, o que seria impossível. Na visão de Gustavo Amaral, “o resultado desse confronto […] parece ser a abertura de um enorme campo para o subjetivismo, ou mesmo para o ‘achismo”[34].
Outra observação que se coloca, é que a própria Constituição não fez distinção entre direitos sociais relacionados ao mínimo social e os demais para conferir mais eficácia aos primeiros. Como bem observou Clèmerson Merlin Clève:
“Os direitos sociais não têm a finalidade de dar ao brasileiro, apenas, o mínimo. Ao contrário, eles reclamam um horizonte eficacial progressivamente mais vasto, dependendo isso apenas do comprometimento da sociedade e do governo e da riqueza produzida pelo país. Aponta, a Constituição, portanto, para a idéia de máximo, mas de máximo possível (o problema da possibilidade)”.[35]
2.4 Mínimo Existencial como Núcleo Essencial dos Direitos Sociais
O mínimo existencial é muitas vezes referido pela doutrina como “núcleo essencial” dos direitos fundamentais sociais, o que repercute no tema da exigibilidade das prestações materiais neles previstas perante o Judiciário.
Faz-se necessário, assim, um breve esclarecimento quanto à noção de núcleo essencial dos direitos fundamentais, assunto sobre o qual a doutrina se divide entre as teorias absoluta e relativa.
A teoria absoluta admite um núcleo essencial absolutamente intangível, concebido em abstrato e, por isso mesmo, independente das especificidades do caso concreto; esse núcleo essencial consistiria em limite absoluto à atividade restritiva do legislador[36].
Já conforme a teoria relativa, o conteúdo essencial de um direito fundamental é definido para cada caso, e consiste no mínimo insuscetível de restrição ou redução obtido pela aplicação de uma técnica de ponderação, de acordo com os postulados da proporcionalidade[37].
Contudo, deve-se ressaltar que nem sempre um direito fundamental social terá no seu núcleo um conteúdo equivalente ao mínimo existencial, tendo em vista as diversas modalidades de direitos sociais positivadas na Constituição. No caso do direito à saúde, por exemplo, a correspondência entre núcleo essencial e mínimo existencial parece bastante clara, mas tal não ocorre quanto ao direito fundamental à participação nos lucros do empregador[38].
As principais implicações desse tema ocorrem quando está em confronto mínimo existencial e a reserva do possível. Para alguns autores, a mínimo existencial seria um núcleo intangível do direito social e, por tal motivo, não pode sucumbir à alegação da reserva do possível. Para outros, há casos em que, mesmo estando em jogo direitos relacionados ao mínimo existencial, a reserva do possível pode prevalecer.
Para tornar mais clara a abordagem do assunto, no capítulo seguinte serão analisados os principais aspectos referentes à cláusula da reserva do possível, para em seguida se estudar sua relação com o mínimo existencial.
3 RESERVA DO POSSÍVEL
3.1 Conceito e Natureza Jurídica
Não há consenso na doutrina sobre o conceito e a natureza jurídica da reserva do possível, do forma que há quem a entenda como elemento interno de restrição à efetividade do direito e outros que a consideram elemento externo de restrição.[39]
Flávio Galdino considera a reserva do possível como integrante dos direitos fundamentais, na medida em que considera a escassez de recursos financeiros não como um elemento de restrição à efetividade do direito fundamental, mas sim como uma condicionante da própria existência do direito. Explica o autor:
“Na medida em que o Estado é indispensável ao reconhecimento e efetivação dos direitos, e considerando que o Estado somente funciona em razão das contingências de recursos econômico-financeiros captados junto aos indivíduos singularmente considerados, chega-se à conclusão de que os direitos só existem onde há fluo orçamentário que o permita.”[40]
Na mesma linha entendem Gustavo Amaral e Danielle Melo, para quem “a escassez faz parte da definição, da delimitação em concreto do próprio direito”, de forma que, prosseguem, “a chamada ‘reserva do possível’ é elemento integrante”.[41]
Já Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo discordam do posicionamento que enquadra a reserva do possível como elemento integrante dos direitos fundamentais, e entendem que se trata de espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas que, em alguns casos, pode ainda representar uma garantia dos direitos fundamentais. Oportuna a transcrição dos esclarecimentos dos autores:
“Por outro lado, não nos parece correta a afirmação de que a reserva do possível seja elemento integrante dos direitos fundamentais, como se fosse parte de seu núcleo essencial ou mesmo como se estivesse enquadrada no âmbito do que se convencionou denominar de limites imanentes dos direitos fundamentais. A reserva do possível constituiu, em verdade (considerada toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflito de direitos, quando se cuidar da invocação – desde que observados os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos fundamentais – da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental.”[42]
3.2 Origem
A reserva do possível teve origem no julgamento do caso “numerus clausus” pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, julgado em 1972. Discutia-se o acesso ao curso de medicina e a compatibilidade de certas regras legais estaduais que restringiam esse acesso ao ensino superior (numerus clausus), com a Lei Fundamental, que garantia a liberdade de escolha da profissão. O Tribunal decidiu que a prestação exigida do Estado deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, e entendeu que não seria razoável impor ao Estado a obrigação de acesso a todos os que pretendessem cursar medicina. A reserva do possível nesse caso, portanto, relacionou-se à exigência de prestações dentro do limite da razoabilidade, não da escassez de recursos, como ocorre no Brasil.[43]
Andreas J. Krell critica a importação da reserva do possível pelo sistema brasileiro, ressaltando a grande diferença sócio-econômica entre os dois países:
“Devemos nos lembrar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha – como nos países centrais – não há um grande contingente de pessoas que não acham vagas nos hospitais mal equipados da rede pública; não á necessidade de organizar a produção e distribuição da alimentação básica a milhões de indivíduos para evitar sua subnutrição ou morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário de assistência social que recebem, etc”.[44]
3.3 Relação entre Reserva do Possível e Mínimo Existencial
A aplicação da reserva do possível, para alguns autores, encontra limite quando se está diante de direitos relacionados ao mínimo existencial.
Ricardo Lobo Torres afirma que a proteção mínimo existencial não se sujeita à reserva do possível, pois tais direitos se encontram nas garantias institucionais de liberdade, na estrutura dos serviços públicos essenciais e na organização de estabelecimentos públicos. Conforme o autor:
“A proteção positiva do mínimo existencial não se encontra sob a reserva do possível, pois sua fruição não depende do orçamento nem de políticas públicas, ao contrário do que acontece com os direitos sociais. Em outras palavras, o Judiciário pode determinar a entrega das prestações positivas, eis que tais direitos fundamentais não se encontram sob a discricionariedade da Administração ou do Legislativo, mas se compreendem nas garantias institucionais da liberdade, na estrutura dos serviços públicos essenciais e na organização de estabelecimentos públicos (hospitais, clínicas, escolas primárias, etc.).”[45]
Ana Paula de Barcellos adota uma posição rígida de mínimo existencial. Para a autora, o mínimo existencial constitui o conteúdo mais essencial do princípio da dignidade da pessoa humana, que, por esse motivo, deve ser aplicado como uma regra, sem margem à ponderação, conforme explica:
“… uma fração do princípio da dignidade da pessoa humana, seu conteúdo mais essencial, está contida naquela esfera do consenso mínimo assegurada pela Constituição e transformada em matéria jurídica. É precisamente aqui que reside a eficácia jurídica positiva ou simétrica e o caráter de regra do princípio constitucional. Ou seja: a não realização dos efeitos compreendidos nesse mínimo constitui uma violação ao princípio constitucional, no tradicional esquema do “tudo ou nada”, podendo-se exigir judicialmente a prestação equivalente. Não é possível ponderar um princípio, especialmente o da dignidade da pessoa humana, de forma irrestrita, ao ponto de não sobrar coisa alguma que lhe confira substância; também a ponderação tem limites”[46].
Segundo entende Barcellos, a reserva do possível pode conviver com o mínimo existencial, mas em primeiro lugar devem ser atendidas as demandas relacionadas a esse mínimo, para que só então possa haver discussão sobre a aplicação dos recursos públicos remanescentes:
“A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial) estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.”[47]
Emerson Garcia sustenta que a reserva do possível somente poderia prevalecer em relação ao mínimo existencial se comprovada total impossibilidade fática, ou seja ausência de recursos, mas sucumbiria diante da mera falta de previsão orçamentária. Nesses termos observou:
“Tratando-se de impossibilidade jurídica, o que decorreria não da ausência de receita, mas da ausência de previsão orçamentária para a realização da despesa, deverá prevalecer o entendimento que prestigie a observância do mínimo existencial. Restando incontroverso o descompasso entre a lei orçamentária e os valores que integram a dignidade da pessoa humana, entendemos deva esta prevalecer, com o conseqüente afastamento do princípio da legalidade da despesa pública.”[48]
Nessas hipóteses, afirma o autor que o Judiciário estaria autorizado a determinar a realização de gastos, com base na razoabilidade e ponderação, sendo que caberia ao Executivo realocar despesas para cumprir a efetivação dos direitos:
“Como desdobramento do que vem de ser dito, poderá o Poder Judiciário, a partir de critérios de razoabilidade e com a realização de uma ponderação responsável dos interesses envolvidos, determinar a realização dos gastos na forma preconizada, ainda que ausente a previsão orçamentária específica. Caberá ao Poder Executivo, nos limites de sua discrição política, o contingenciamento ou o remanejamento de verbas visando a tornar efetivos os direitos que ainda não o são”.[49]
O entendimento de Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo é no sentido de que, quando se trata de direitos relacionados ao mínimo existencial, a reserva do possível não deve por si só ser fundamento para impedir a satisfação do direito. Explicam:
“…em matéria de tutela do mínimo existencial (….) há que reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações e uma cogente tutela defensiva, de tal sorte que, em regra, razões vinculadas à reserva do possível não devem prevalecer como argumento a, por si só, afastar a satisfação do direitos e exigência do cumprimento dos deveres, tanto conexos quanto autônomos, já que nem o princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária nem o da separação dos poderes assumem feições absolutas.”[50]
Contudo, os próprios autores ressaltam que não são irrelevantes as questões relacionadas à reserva do possível, de forma que sempre aferida no caso concreto, mediante produção de prova submetida ao contraditório, a real necessidade da prestação pleiteada e a efetiva relação com o mínimo existencial.[51]
4 ATIVISMO JUDICIAL
A noção de ativismo judicial relaciona-se a uma participação maior do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, cuja conseqüência é a interferência na esfera de competências dos outros Poderes. Como ressalta Luís Roberto Barroso, a postura ativista pode se manifestar por diferentes condutas, dentre as quais: a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; b) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.[52]
Em matéria de efetivação dos direitos sociais a discussão do tema é relevante, pois é freqüente uma postura ativista dos juízes com o fim de implementar direitos que não o foram pelo Executivo e Judiciário. A questão está relacionada, principalmente, ao controle judicial de políticas públicas e à intervenção do Judiciário no orçamento público.
Entretanto, a atuação do Judiciário nesses campos não é imune a críticas e importantes argumentos são levantados, tanto favoráveis, quanto contrários ao ativismo judicial.
4.1 Argumentos Contrários
Os argumentos contrários à atuação do Judiciário no controle de políticas públicas e orçamento público são inúmeros e de diversas naturezas.
Ana Paula de Barcellos sistematiza as críticas ao controle de políticas públicas pelo Judiciário em três grupos: a) críticas relacionadas à teoria da Constituição; b) críticas de natureza filosófica e c) críticas operacionais.[53]
A crítica relacionada à teoria da Constituição, conforme a autora, questiona a possibilidade de intervenção do Judiciário em matéria tipicamente reservada à deliberação política majoritária. Argumenta-se que mesmo a dogmática dos princípios constitucionais reconhece que os princípios são compostos de uma área nuclear, que impõe determinados efeitos, e uma área não nuclear, que permite a escolha legítima pelas maiorias políticas. Além disso, as políticas públicas já estão sujeitas ao controle político-social dos grupos de oposição e da população, que se manifesta ao menos nas eleições. A intervenção do Direito no espaço do pluralismo político produziria grave desequilíbrio em em prejuízo da democracia.
Já as críticas filosóficas consistem no fato de que seria estabelecida uma espécie de pressuposição de que os juristas e juízes tomariam melhores decisões que os agentes públicos em matéria de políticas públicas e essa premissa, além de soar paternalista e presunçosa, poderia violar o fundamento básico dos Estados republicanos, por força do qual a opinião de todos tem o mesmo valor no cenário político.
Por fim, a crítica operacional reside na circunstância de que nem juristas, nem juízes dispõem de elementos suficientes para avaliar a realidade estatal como um todo. Como o juiz preocupa-se com casos concretos, ignora outras necessidades relevantes e que demandam o gerenciamento de recursos limitados, o que pode causar distorções no sistema visto de forma global.
Luís Roberto Barroso cita três principais críticas ao ativismo judicial: riscos para a legitimidade democrática, politização indevida da justiça e limites da capacidade institucional do Judiciário.[54]
Quanto aos riscos para a legitimidade democrática, explica o doutrinador que os membros do Poder Judiciário não são agentes públicos eleitos, mas desempenham um poder político, inclusive o de invalidar atos dos outros Poderes. A possibilidade de um órgão não eletivo como o Supremo Tribunal Federal, composto por apenas 11 membros, sobrepor-se a uma decisão de 513 membros do Congresso escolhidos pela vontade popular é identificada na teoria constitucional como dificuldade contramajoritária, e encontraria legitimidade em um argumento normativo e em outro filosófico.
O fundamento normativo consiste no fato de que foi a Constituição que conferiu tal atribuição ao Judiciário, e nesse particular ao Supremo Tribunal Federal, que agiria de forma técnica e imparcial, desprovido de vontade política, apenas concretizando a vontade do povo por meio da aplicação das leis e da Constituição.
Barroso adverte que “essa afirmação, que reverencia a lógica da separação de Poderes, deve ser aceita com temperamentos, tendo em vista que juízes e tribunais não desempenham uma atividade puramente mecânica”. Explica que, ao dar interpretação a conceitos fluidos dos textos legais e constitucional, como dignidade da pessoa humana ou boa-fé objetiva, os juízes agem como “co-participantes do processo de criação do Direito”.[55]
O fundamento filosófico reside no fato de que a Constituição não tem por função defender apenas o princípio majoritário, mas também proteger direitos fundamentais, outro aspecto da democracia, mesmo que contra a vontade circunstancial do detentor da maioria de votos, e o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal.
Mas o autor alerta que a atuação do Judiciário somente se justifica se for essencial à preservação da democracia e dos direitos fundamentais e somente será legítima se apresentar fundamento racional na Constituição. Esclarece com clareza:
“A importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua. Observados os valores e fins constitucionais, cabe à lei, votada pelo parlamento e sancionada pelo Presidente, fazer as escolhas entre as diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas. Por essa razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição.”[56]
A questão da politização da Justiça parte do pressuposto que, em uma cultura pós-positivista, o Direito não se confunde com a Política, mas se aproxima da Ética, como instrumento de realização da justiça. Entretanto, a linha divisora entre Direito e Política nem sempre é nítida. Segundo Barroso, Direito é política no sentido de que:
“(i) sua criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas leis;
(ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos;
(iii) juízes não são seres sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia e, conseqüentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que formula”[57].
Entretanto, conforme complementa o autor, Direito não é Política no sentido de produzir decisões tendenciosas, partidarizadas. Não existe discricionariedade plena nas decisões judiciais, pois, ainda que sejam possíveis diferentes soluções para um caso concreto, a escolha deve se pautar pelo mais correto, justo, fundamentando-se no ordenamento jurídico. Ainda adverte Barroso a respeito da atuação judicial:
“Aqui, porém, há uma sutileza: juízes não podem ser populistas e, em certos casos, terão de atuar de modo contramajoritário. A conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia”.[58]
Já os limites à capacidade institucional do Judiciário relacionam-se à questão da divisão de poderes. Cada Poder dispõe de funções típicas, mas exerce controle sobre as atividades dos demais. Todos os Poderes interpretam e aplicam a Constituição, mas em caso de divergência na interpretação da norma, cabe ao Judiciário a decisão final, o que não significa que toda e qualquer matéria deva ser decidida em juízo. Nesse contexto, surgem as noções de capacidade institucional e efeitos sistêmicos.[59]
A capacidade institucional relaciona-se à determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Desse modo, temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico. [60]
A questão dos riscos sistêmicos decorrem do fato de que o juiz nem sempre dispõe de informações ou tempo para avaliar o impacto das decisões proferidas no âmbito individual sobre a realidade de um setor econômico ou sobre a prestação de um serviço público. Conforme Barroso, “o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados pode recomendar, em certos casos, uma posição de cautela e deferência por parte do Judiciário”. Conclui o doutrinador que:“o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação espontânea, antes eleva do que diminui”.[61]
Nesse sentido, Fernando Facury Scaff ressalta os efeitos negativos de decisões judiciais que determinam o imediato desembolso financeiro pelo Estado, as chamadas “sentenças aditivas”, em especial as que determinam o bloqueio judicial de verbas públicas, no planejamento público financeiro e na capacidade organizacional do governo. Segundo o autor:
“Esta, a meu ver, é a pior fórmula que existe, pois destrói a possibilidade de planejamento financeiro público, e solapa a capacidade organizacional de qualquer governo. A alocação das verbas passa a ser determinada de forma pontual pelo Poder Judiciário, através de decisões individualizadas ou grupais, e não de forma global, como só pode ser feito através de normas – leis, decretos, portarias e outros atos similares que compõem aquilo que se convencionou chamar de ‘política pública’, que não se esgota em um único ato normativo, mas se configura na disposição organizada e coordenada de em um conjunto deles”.[62]
Há ainda outro argumento contrário ao ativismo judicial que se relaciona à igualdade. Na medida em que os recursos são insuficientes para atender a todos os que precisam de determinada prestação estatal, o Judiciário, ao conceder essa prestação a um particular, estaria violando o direito de todos os outros, ao distribuir um recurso escasso apenas aos que tiveram acesso à justiça, sem nenhuma preocupação com os demais indivíduos ou com uma distribuição universal. A esse respeito esclarece José Reinaldo de Lima Lopes:
“Engana-se quem acha que o Judiciário deve dar a um cidadão aquilo que este não conseguiu da Administração porque ela não teria como dar a mesma coisa a todos. Se o Judiciário concedesse a um em particular, estaria certamente violando o direito de todos os outros pois atenderia com recursos públicos apenas os que conseguissem chegar a ele”.[63]
4.2 Argumentos Favoráveis
A doutrina que defende o ativismo judicial fundamenta-se, principalmente, na necessidade de efetivação dos direitos sociais, uma vez que estes direitos buscam a redução da desigualdade, a garantia de dignidade da pessoa humana e o real exercício da liberdade.
A questão foi bem abordada por Ana Paula de Barcellos que, ao analisar as críticas à atuação judicial no controle de políticas públicas, acabou por sintetizar os principais argumentos favoráveis ao ativismo judicial, os quais são a seguir expostos.[64]
Em oposição ao questionamento acerca da invasão do Judiciário em assunto reservado à deliberação política majoritária, em descompasso com a democracia, a autora levanta três questões. Em primeiro lugar, o exercício de um conjunto básico de direitos fundamentais é indispensável ao funcionamento regular da democracia e ao controle social de políticas públicas, pois, caso contrário, os indivíduos não têm condições de exercer sua liberdade e de participar do processo político, o que dá margem à corrupção, ineficiência e e clientelismo na gestão das políticas públicas. Em segundo lugar, a própria Constituição pode ter decidido conferir espaço mais amplo ao direito e maiores condicionamentos jurídicos aos poderes públicos, motivo pelo qual as decisões fundamentadas nas Constituições não podem ser ignoradas. Em terceiro lugar, não existem apenas duas opções radicais – nenhum controle ou controle absoluto das políticas públicas –, mas podem ser adotadas possibilidades intermediárias.[65]
Quanto ao argumento filosófico de que não haveria razão para considerar os juízes melhores ou mais sábios que os agentes públicos, Barcellos destaca os seguintes questionamentos. É inegável a existência de padrões ou consensos morais de certo/errado ou bem/mal segundo os quais a sociedade se orienta. Nessa seara, uma posição individual sobre determinada matéria pode ser confrontada com esse padrão e ser considerada certa ou errada; portanto não se trata de conferir maior valor à opinião do juiz por questões subjetivas, mas permitir a análise das decisões políticas segundo os consensos sociais. O mesmo raciocínio se aplica quando estão envolvidos conhecimentos técnicos e científicos consolidados. O controle judicial das políticas públicas pode ter fundamento jurídico, moral ou técnico-científico. Quando se trata de conduta política determinada pela Constituição ou pela lei, o controle judicial pode ocorrer como atribuição natural do magistrado. Ainda quando não esteja a conduta pública totalmente estabelecida pela lei, de forma que há margem de escolha do agente público, o controle judicial pode ocorrer com fundamento nos padrões morais – relacionados à centralidade dos direitos do homem e à lisura da política pública – ou em conhecimentos técnico-científicos consolidados. Conclui a doutrinadora que, somente quando não existirem fundamentos jurídicos, morais ou técnico-científicos será a questão puramente política e contingente, caso em que o Judiciário não poderá agir, por não haver fundamento que justifique a prevalência da sua opinião.[66]
Com relação à crítica operacional de que os juízes, por julgarem casos individuais (“micro-justiça) não teriam condições de avaliar a ação estatal como um todo (“macro-justiça), a autora explica que, embora seja fato que o juiz nem sempre dispõe de informações e tempo suficientes para tanto, essa circunstância não inviabiliza o controle judicial, e tem conseqüências diversas conforme o objeto a ser controlado e o ambiente processual em que se insere a questão.
Assim, no que tange à fixação de metas e prioridades a cargo do Executivo e Legislativo, observa a autora que essas metas somente são cumpridas mediante o oferecimento de determinados bens ou serviços à população, o que impõe um dever jurídico ao Poder Público, cuja inobservância poderá ser objeto de controle judicial. Nota também que a “macro-justiça” é formada necessariamente pelas múltiplas “micro-justiças”, de forma que se os bens indispensáveis para a dignidade humana não são prestados à sociedade, haverá uma injuridicidade em sua concepção.
Quanto à quantidade de recursos a ser investida, afirma que a própria Constituição oferece parâmetros normativos objetivos, de forma que o controle judicial faz-se plenamente possível. Ademais, a alocação de recursos possui caráter geral e abstrato, portanto anterior à definição de macro e micro-justiças.
No que diz respeito à verificação do cumprimento das metas fixadas pelo próprio Poder Público, a atuação judicial pode ocorrer caso este não cumpra a obrigação constitucional de prestar contas à sociedade de sua administração e não enfrenta maiores dificuldades operacionais, pois serve mais a fornecer subsídios ao controle social, do que propriamente controlar as políticas públicas.
Por fim, no que toca à eficiência mínima na aplicação de recursos, observa-se que, por certo, para aferir se o Poder Público otimizou a utilização dos recursos, a análise demanda informações externas relacionadas ao mercado, mas esses dados podem ser obtidos pelo juiz por meio do auxílio de perito, como ocorre com diversas outras questões decididas pelo Judiciário. Além disso, ainda que haja uma área duvidosa na avaliação da eficiência mínima, há zonas de certeza positiva ou negativa dentro das quais não haverá dúvida se a conduta foi eficiente ou ineficiente, de forma que o controle judicial, nesse aspecto, não pode ser obstado a pretexto de suposta falta de informações técnicas.[67]
4.3 Análise dos Argumentos
A simples leitura dos argumentos contrários e favoráveis ao ativismo judicial em matéria de efetivação dos direitos sociais leva à conclusão de que não é possível adotar uma ou outra posição radical, ou seja, não há como defender a total ausência de atuação do Poder Judiciário, mas também não é razoável uma interferência judicial demasiada, sob pena de se obter mais prejuízo que vantagens dessa conduta.
O estabelecimento de um “nível ideal” de atuação do Judiciário no âmbito das políticas públicas, ou seja, um limite dentro do qual a atuação geraria resultados somente positivos à sociedade como um todo e efetiva solução dos problemas relacionados à efetividade dos direito sociais, é, senão impossível, ao menos demasiadamente complexa, que envolveria um estudo interdisciplinar profundo.
Em que pese essa dificuldade, a doutrina tem apontado propostas intermediárias à questão que merecem ser mencionadas.
Uma dessas propostas é a intervenção judicial nas políticas públicas através do orçamento. Dessa forma, o Judiciário teria condições de analisar de forma mais precisa a disponibilidade de recursos, o que afastaria os argumentos da reserva do possível, da questão da “micro-justiça” e da ofensa à igualdade.
A intervenção orçamentária permite ainda superar a alegada falta de legitimidade do Judiciário para escolha de públicas públicas, pois pode se limitar a indicar as prioridades a serem atendidas, deixando a cargo do Poder Público a escolha dos meios de concretização. Nesse sentido, a doutrina de Alceu Marinho Júnior:
“Por outro lado, a intervenção via orçamento tem o mérito de minimizar os aspectos normalmente apontados como negativos em relação ao controle judicial. Em relação ao princípio da separação de poderes, compatibiliza-se a competência judicial com a dos outros órgãos da soberania, atuando o Judiciário apenas residualmente. Também se apresenta razoável solução para o problema da inadequação do Judiciário e dos procedimentos judiciais nas questões sobre a alocação dos recursos. Isto porque, intervindo através do orçamento, os juizes não conduzirão as políticas públicas, mas apenas determinarão que se atenda a uma necessidade específica, deixando a cargo do legislador e do administrador a escolha dos meios necessários. E, principalmente, mantendo elevada parcela de discricionariedade com o Legislativo e o Executivo, a intervenção judicial através do orçamento prestigia o princípio democrático”.[68]
Outra solução relacionada à intervenção orçamentária foi formulada por José Reinaldo de Lima Lopes. Para o autor seria razoável uma “decisão progressiva” do Judiciário, ou seja, uma vez reconhecido que o orçamento não possibilita o exercício de um direito social devido, o juiz fixaria ao Estado metas e prazos para realização de novos programas e investimentos, sob as penas previstas em lei. Explica o autor:
“Políticas são conjuntos integrados de iniciativas e ações unificadas por um propósito final (meta) e propósito de caráter coletivo que se avalia pela redução do risco. Isto é, uma solução que me parece adequada e que contornaria com bastante racionalidade a decisão tudo-ou-nada é a decisão progressiva, pela qual o juiz, à semelhança do que faz nos processos de falência, de recuperação judicial de empresas ou mesmo de alimentos, permite às partes chegarem a um acordo em que aos poucos se ajusta a conduta do Estado ao pedido”.[69]
A doutrina considera também que a atuação judicial no âmbito das políticas públicas será mais adequada se ocorrer no âmbito das ações coletivas, pois permite atingir todas as pessoas que se encontrem na mesma situação fática e impede o tratamento desigual que ocorre na tutela individual. Nesse sentido o entendimento de Luciano Benetti Timm, ao comentar sobre a ação coletiva:
“Isso porque esta é a ação apropriada para a defesa de direitos coletivos e transindividuais, como devem prioritariamente ser entendidos os direitos sociais, onde justamente os direitos não devem ser apropriados por um indivíduo em prejuízo de toda a sociedade. Como já salientado aqui, devem ser, estes direitos sociais, concedidos a todas as pessoas que se encontrem na mesma situação fática. […] E a ação coletiva é este mecanismo que permite atingir todas as pessoas que se encontrem na mesma situação fática sem a necessidade de recorrer a um sem número de processos iguais que abarrotam as cortes com discussões idênticas.”[70]
Outra proposta que busca dar legitimidade às decisões judiciais é a oportunidade de participação popular no processo decisório e na implementação da decisão, o que pode ocorrer por meio da intervenção de setores da sociedade como amicus curiae nas ações de controle concentrado, bem pela propositura de ações coletivas, como as ações civis públicas promovidas por associações ou as ações populares. A esse respeito esclarece George M. Lima:
“Conclui-se, portanto, que a participação da sociedade civil é extremamente importante nesse processo de efetivação dos direitos socioeconômicos. A sociedade organizada deve ajudar o Judiciário tanto no processo de tomada da decisão, fornecendo informações capazes de enriquecer a argumentação, quanto na fase de cumprimento das ordens judiciais, fiscalizando, monitorando, reivindicando ou até mesmo coordenando o processo de implementação das ações públicas determinadas pelos juízes.”[71]
Essa participação popular nas escolhas públicas por meio do Judiciário confere legitimidade democrática às decisões judiciais, pois representa uma forma de exercício da cidadania e da democracia, como esclarece Suzana Henriques da Costa:
“As ações coletivas, algumas vezes propostas por cidadãos (ação popular) e associações (ação civil pública), são um bom exemplo de demandas judiciais que permitem a participação popular. Nessas demandas, a sociedade civil pode introduzir à apreciação do Poder Judiciário questões referentes, dentre outras, à ética do agentes estatais e à moralidade do ato administrativo, à concretização de princípios constitucionais e, portanto, à escolha sobre políticas públicas.”[72]
Portanto, à vista dos posicionamentos doutrinários apontados, pode-se concluir o ordenamento jurídico dispõe de instrumentos capazes de propiciar o exercício do ativismo judicial de forma moderada, superando os efeitos negativos alegados decorrentes de uma intervenção judicial excessiva em busca da efetivação dos direitos sociais.
CONCLUSÃO
A efetivação dos direitos sociais na sociedade brasileira ainda tem muitos obstáculos a superar. Este trabalho não teve ousada pretensão de apresentar soluções para esse problema, mas sim identificar as principais correntes de pensamento e seus respectivos argumentos quanto ao conteúdo dos direitos sociais, as limitações orçamentárias de sua implementação e a legitimidade do Judiciário, com o fim de estimular o debate deste tema tão relevante e complexo, bem como esclarecer determinados conceitos que suscitam dúvidas no meio jurídico.
Nesse sentido, foram analisadas as principais classificações doutrinárias das normas constitucionais consagradoras de direitos sociais quanto à eficácia e efetividade, donde se observa que, embora haja correntes restritivas quanto à efetividade das normas sociais, há parcela considerável da doutrina que apresenta propostas de superação desse entendimento. Nesse contexto, surge a noção de “mínimo existencial”, a partir de posicionamentos que buscam conferir total eficácia às normas relacionadas ao mínimo necessário à vida humana.
Com relação ao mínimo existencial, observa-se que a doutrina aponta dificuldades na definição de seu conteúdo, mas é possível afirmar que há intrínseca relação com o princípio da dignidade da pessoa humana. Sob esse fundamento, para alguns autores o mínimo existencial corresponderia a um núcleo essencial da dignidade da pessoa humana que não poderia ser em nenhuma hipótese restringido. Outros, entretanto, admitem eventual restrição quando se estivesse diante da chamada “reserva do possível”.
A reserva do possível teve origem no direito alemão, motivo pelo qual alguns autores criticam sua utilização no direito brasileiro, tendo em vista a notória diferença econômico-social entre os dois países.
Por fim, a respeito do “ativismo judicial”, observa-se que há inúmeros argumentos tanto contrários, quanto favoráveis à atuação judicial no âmbito das políticas públicas.
A simples leitura dos argumentos contrários e favoráveis ao ativismo judicial em matéria de efetivação dos direitos sociais leva à conclusão de que não é possível adotar uma ou outra posição radical, ou seja, não há como defender a total ausência de atuação do Poder Judiciário, mas também não é razoável uma interferência judicial demasiada, sob pena de se obter mais prejuízo que vantagens dessa conduta.
Entretanto, a doutrina observa que o próprio ordenamento jurídico dispõe de instrumentos capazes de propiciar o exercício do ativismo judicial de forma moderada, superando os efeitos negativos alegados decorrentes de uma intervenção judicial excessiva em busca da efetivação dos direitos sociais.
Especialista em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina
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