Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar os reflexos do pluralismo metodológico no Direito. Para tanto, buscará fazer uma interligação entre a pós-modernidade jurídica e a pluralidade metodológica, demonstrando que a ausência de verdades absolutas corrobora para a existência da pluralidade de métodos. Analisar-se-ão, ainda, os reflexos da pluralidade metodológica na hermenêutica constitucional e na concepção da pluralidade de ordenamentos jurídicos.
Palavras-chaves: Metodologia da pesquisa no Direito – pluralismo metodológico – pós-modernidade jurídica – hermenêutica constitucional – pluralidade de ordenamentos.
Abstract: This article aims to analyze the impacts of methodological pluralism in law. Therefore, it will make a connection between the postmodern legal and methodological plurality to be proof that no absolute truths confirms the existence of plurality methods. Finally, it will analyze the methodological pluralism consequences to a constitutional hermeneutics and plurality of jurisdictions.
Keywords: Methodology in law – methodological pluralism – postmodern legal – constitutional hermeneutics – a plurality of jurisdictions.
Sumário: 1.0. Introdução. 2.0 A pós-modernidade jurídica e a pluralidade metodológica. 3.0. Do monismo ao pluralismo metodológico. 4.0. Os reflexos do pluralismo metodológico no Direito. 4.1. O pluralismo metodológico na hermenêutica jurídica constitucional – A influência de Peter Häberle. 4.2. Famílias jurídicas: Comum Law e Civil Law – concepções cada vez mais plurais. 4.3 O pluralismo metodológico e a pluralidade de ordenamentos. 5.0 Conclusões. 6.0. Referências.
1.0 Introdução.
O estudo da metodologia da pesquisa jurídica é fundamental no desenvolvimento dos trabalhos científicos em Direito. Não por outra razão, qualquer ante-projeto deverá estabelecer, claramente, a metodologia a ser seguida para a comprovação da(s) tese(s) ou hipótese(s).
O objetivo do presente artigo é analisar os reflexos do pluralismo metodológico no Direito, adotando como fundamento o paradigma da pós-modernidade. Para tanto, foi subdividido em três partes. Na primeira, estabelecem-se as características desse paradigma, comparando-o com o paradigma da modernidade, delimitando-se a influência dessas características na concepção do método científico e na consequente busca de resultados.
Na segunda, faz-se uma análise da passagem do monismo ao pluralismo metodológico, tecendo-se considerações sobre as consequências da superação da ditadura do método único e suas repercussões na metodologia da ciência.
Na terceira parte, aborda-se alguns dos reflexos desse pluralismo metodológico no Direito, especialmente na hermenêutica jurídica constitucional, sob a influência de Peter Häberle, na releitura da dicotomia entre Civil Law e Common Law, e, também, no reconhecimento de uma pluralidade de ordenamentos.
2.0 A pós-modernidade jurídica e a pluralidade metodológica.
Entender o seu tempo é sempre um questionamento reincidente para cada cientista. Este é o desafio que se coloca, também, para os juristas, na tentativa de compreender e sinalizar quais são as possibilidades e os caminhos a seguir na metodologia da ciência.
Diz-se que características marcantes desse tempo são a ausência de verdades absolutas e de certezas inabaláveis, o que influencia diretamente na concepção do método científico e na consequente busca de resultados.
Por essas nuances, o sujeito cognoscente tem dificuldades em gizar as características, limites e peculiaridades dos tempos atuais. Buscando traçar o espírito de nossa época, pontuou Boaventura de Souza Santos:
“Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar na orla do tempo, entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda não nasceu. O desassossego resulta de uma experiência paradoxal: a vivência simultânea de excessos de determinismo e de excessos de indeterminismo. Os primeiros residem na aceleração da rotina. As continuidades acumulam-se, a repetição acelera-se. A vivência da vertigem coexiste com a de bloqueamento. A vertigem da aceleração é também uma estagnação vertiginosa. Os excessos do indeterminismo residem na desestabilização das expectativas”[1].
Entender esse denominado tempo pós-moderno demanda, entretanto, uma reflexão sobre as características do tempo moderno. Nesse sentido, retornando ao início do séc. XIX, é cediço que a razão burguesa, individualista, dominou o espírito moderno. É certo que, a confiança na razão como o “deus” da época moderna legou notáveis contribuições, mas, também, grandes decepções ao ser humano.
A razão não conseguiu responder satisfatoriamente às necessidades do homem. Pelo contrário, legou duas guerras mundiais, falhou na promessa de paz e igualdade, assim como, aumentou, substancialmente, a desigualdade social. Bem como, gerou a preocupação com o aquecimento global e as questões ambientais, fruto da exploração econômica, tornando-se uma das questões mais relevantes dos dias atuais.
No âmbito jurídico, o paradigma positivista fulcrado no absoluto da razão moderna também entrou em cheque. O estudo da lei esvaziada de valoração havia se tornado o marco emblemático do ideal positivista. Hans Kelsen, como o seu principal defensor propugnava que:
“Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental”[2].
No mesmo sentido, sintetizava Norberto Bobbio que o positivismo jurídico consubstancia, assim, “o estudo do Direito como fato, não como valor: na definição do Direito deve ser excluída toda a qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio Direito em bom e mal, justo e injusto”[3].
Assim, a teoria pura do Direito e seu ideal positivista legalista, em que pese os notáveis avanços que trouxe ao estudo sistemático da ciência jurídica (a exemplo do estudo da teoria da norma, da teoria do ordenamento jurídico, além de atribuir segurança e coerência ao sistema jurídico), sofreu duras críticas, dentre elas a sua ausência de conteúdo ético, que levou, por exemplo, tal teoria a ser fundamento do nazismo.
Nada obstante, o modelo positivista entrou em colapso, inicialmente pela revolta dos “fatos contra os códigos”. A realidade social mutava constantemente, enquanto as pseudo-verdades tentavam manter-se intactas. Explica Boaventura de S. Santos que:
“Quando isto acontece, a sociedade entra numa crise que podemos designar como crise da consciência especular: de um lado, o olhar da sociedade à beira do terror de não ver refletida nenhuma imagem que reconheça como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornado estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado”[4].
Com a crise da modernidade, muitos estudiosos referiram ao surgimento de um novo paradigma de compreensão do mundo – a pós-modernidade. Essa perspectiva “passou a indicar a falência das promessas modernas de liberdade, de igualdade, de progresso e de felicidade acessíveis a todos. A desconfiança de todo discurso unificante torna-se também o marco característico do pensamento pós-moderno”[5].
Deste modo, o “espírito” pós-moderno parece ser “angustiado”, seja porque vive amedrontado pela auto-destruição, seja pela desesperança, em virtude da ausência de um modelo “absoluto” que satisfaça integralmente às suas necessidades, levando-o ao desespero e inquietação.
A ausência de paradigma filosófico absoluto e as consequentes inquietações refletem em todas as ciências, inclusive na jurídica. Assim, a concepção do Direito pós-moderno sente os influxos de uma nova era. Sinaliza Ricardo Maurício Freire que “o advento da pós-modernidade também se refletiu no Direito do ocidente, descortinando profundas transformações nos modos de conhecer, organizar e implementar as instituições jurídicas”[6].
E arremata que, partindo da presente descrição, torna-se possível “divisar os elementos fundamentais da cultura jurídica pós-moderna, podendo mencionar o delineamento de um Direito plural, reflexivo, prospectivo, discursivo e relativo”[7].
Como se observa, a pós-modernidade surge da crise da modernidade, da crise do positivismo, mas com desafios que parecem ser insuperáveis, ante a perplexidade e total ausência de postulados fixos. Nasce, assim, o desafio dos juristas pós-positivas, que é encontrar e identificar os marcos jurídicos fundamentais da sociedade pós-moderna.
Nesse sentido, sobre o paradigma pós-moderno, a metodologia da pesquisa em Direito concebe a pluralidade metodológica como forma de alcançar a máxima verdade possível, sem fixar-se, invariavelmente, no postulado da razão e na certeza de verdades ou métodos únicos. Mas, abraçando a pluralidade na percepção e nos diversos métodos como forma de alcançar resultados científicos.
3.0 Do monismo ao pluralismo metodológico.
A credibilidade de pesquisas científicas esteve, na modernidade, adrede ligada ao método utilizado para o alcance de seus resultados. Assim, um conjunto de regras paulatinamente se estabeleceram como norteadoras dos trabalhos com cunho científico. Cite-se, por exemplo, as regras propostas por Descartes que, se rigorosamente observadas, conduziriam ao alcance da verdade nas mais diversas áreas do conhecimento[8].
Seguindo essas regras, o pesquisador pretensamente chegaria ao conhecimento de verdades irrefutáveis. Seguir o método absolutizava a certeza dos resultados encontrados. O método permitia, assim, a criação de leis universais que pressupunham a existência de ordem no mundo. O conhecimento, pois, em si, permitia que o cientista tivesse controle sobre os acontecimentos, trabalhando com a previsibilidade.
A ciência moderna estava, assim, consubstanciada, com crescente definição, na teoria heliocêntrica do movimento dos planetas de Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas dos planetas, nas leis de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande síntese da ordem cósmica de Newton e, finalmente, na consciência filosófica que lhe conferem Bacon e Descartes[9].
Nesse quadro, a adoção de um método único que proporcionasse uma verdade única foi prática recorrente nas pesquisas e descobertas da ciência. Essa forma de pensar não ficou restrita às investigações e estudos da natureza, transbordando-se também para o estudo da sociedade e, consequentemente, do Direito. Daí as noções de regularidade, estabilidade e previsibilidade tão caras ao positivismo, tanto o científico quanto o jurídico.
Explica-se assim porque o prestígio de Newton e das leis simples a que reduzia toda a complexidade da ordem cósmica tenham convertido a ciência moderna no modelo de racionalidade hegemônica que pouco a pouco transbordou do estudo da natureza para o estudo da sociedade. Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade[10]. Eis as lições de Boaventura de Sousa Santos:
“O positivismo é (..) uma filosofia da ordem sobre o caos tanto na natureza como na sociedade. A ordem é a regularidade, lógica e empiricamente estabelecida através de um conhecimento sistemático. O conhecimento sistemático e a regulação sistemática são as duas faces da ordem. O conhecimento sistemático é o conhecimento das regularidades observadas. A regulação sistemática é o controlo efectivo sobre a produção e reprodução das regularidades observadas. Formam, em conjunto, a ordem positivista eficaz, uma ordem baseada na certeza, na previsibilidade e no controlo”[11].
Canotilho comenta essa concepção da modernidade, asseverando que os impulsos iluminista e planificante para a lei acabaram por gerar uma espécie de juridicização do mundo, a parlamentarização legiferante da vida, a regulamentação perfeccionista (= detalhada, pormenorizada) dos problemas sociais, com a consequente perda ou declínio do seu valor normativo[12].
Resumindo a influência desse modelo de ciência na forma de se conceber o Direito, pontua Boaventura de Sousa Santos:
“Nesse contexto, ao Direito moderno foi atribuída a tarefa de assegurar a ordem exigida pelo capitalismo, cujo desenvolvimento ocorrera num clima de caos social que era, em parte, obra sua. O Direito moderno passou, assim, a constituir um racionalizador de segunda ordem da vida social, um substituto da cientifização da sociedade, o ersatz que mais se aproximava — pelo menos no momento — da plena cientifização da sociedade que só poderia ser fruto da própria ciência moderna. Para desempenhar essa função, o Direito moderno teve de se submeter à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna e tornar-se ele próprio científico”[13].
Ademais, “a dominação jurídica racional é legitimada pelo sistema racional de leis, universais e abstractas, emanadas do Estado, que presidem a uma administração burocratizada e profissional, e que são aplicadas a toda a sociedade por um tipo de justiça baseado numa racionalidade lógico-formal”[14].
Regulado pelo Estado, toda a criação e interpretação do Direito deveria, necessariamente, passar pelo crivo do controle estatal[15].
Nesse contexto, os juristas racionalistas pretenderam construir grandes sistemas jurídicos, análogos aos que constituíam os sistemas axiomáticos da geometria, cuja base estivera integrada por certos princípios evidentes por si mesmos para a razão humana. Daqueles princípios se deduziram normas para todos os casos juridicamente relevantes, constituindo-se assim sistemas precisos, completos e coerentes[16].
Gradativamente, contudo, percebia-se que, embora úteis, essas regras são limitadas. Embora adequadas em determinadas circunstâncias, revelavam-se absolutamente inadequadas em outras.
Por conta da percepção desses limites, críticas contundentes foram feitas à adoção de um método único, com regras estabelecidas a priori. Notava-se cada vez mais os equívocos de um conhecimento baseado na formulação de leis, exatamente por ter “como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro”[17].
Dentre esses críticos, destaca-se Feyerabend, para quem as regras que os metodologistas adotam como guia não são capazes de explicar as multiformes interações entre os fatos históricos.
Segundo Feyerabend, o mundo que desejamos explorar é uma entidade em grande parte desconhecida. Por isso, recomendava que as nossas opções fossem deixadas sempre em aberto, ao invés de ficarem restringidas de antemão por um corpo de regras[18].
Sustentava, destarte, que um meio complexo, contendo desenvolvimentos surpreendentes e imprevistos, demanda procedimentos complexos e desafia uma análise baseada em regras que tenham sido estabelecidas de antemão e sem levar em consideração as condições sempre cambiantes da história.[19].
Outrossim, a idéia de um método com princípios firmes, imutáveis e absolutamente obrigatórios para conduzir a ciência deparava-se com considerável dificuldade quando confrontada com os resultados de pesquisa histórica na qual não haveria uma única regra, ainda que plausível e solidamente fundada na epistemologia, que não tenha sido violada em algum momento[20].
Ademais, manter-se preso a regras estritas seria uma afronta à liberdade do pesquisador no desvendamento dos segredos da natureza. A liberdade só seria plena, então, com a “rejeição de todos os padrões universais e de todas as tradições rígidas”[21]. A regra era a de que nesse denominado “anarquismo epistemológico” tudo vale.
Nessa linha, um cientista que desejasse maximizar o conteúdo das concepções que sustentasse ou compreendê-las de forma mais acurada deveria, portanto, adotar uma metodologia pluralista. No mesmo sentido, são as lições de Boaventura de Sousa Santos:
“Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão metodológica. Sendo certo que cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat natural”[22].
Concebido dessa maneira, o conhecimento não seria uma série de teorias coerentes e convergentes para uma doutrina ideal, numa gradual aproximação da verdade. Mas, ao revés, um “oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e, talvez, até mesmo incomensuráveis), no qual cada teoria, cada conto de fadas e cada mito que faz parte da coleção força os outros a uma articulação maior, todos contribuindo, mediante esse processo de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência”[23].
A conclusão semelhante chegou Boaventura de Sousa Santos quando disse que os pressupostos metafísicos, as crenças, os juízos de valor são parte integrante da explicação da realidade. Para ele, “a ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para considerá-la melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia”[24].
“A ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas. A mais importante de todas é o conhecimento do senso comum, o conhecimento vulgar e prático com que no quotidiano orientamos as nossas ações e damos sentido à nossa vida. A ciência moderna construiu-se contra o senso comum que considerou superficial, ilusório e falso. A ciência pós-moderna procura reabilitar o senso comum por reconhecer nesta forma de conhecimento algumas virtualidades para enriquecer a nossa relação com o mundo”[25].
Entendida dessa forma, a ciência não ficaria restrita e controlada por um grupo seleto de intelectuais, mas, ao contrário, “especialistas e leigos, profissionais e diletantes, fanáticos pela verdade e mentirosos — todos estão convidados a participar do debate e a dar sua contribuição para o enriquecimento de nossa cultura”[26].
Em suma, questionava-se a ditadura do método único, propugnava-se por uma pluralidade metodológica, desconstruía-se o conceito de verdade absoluta, ao tempo em que se convidava um número maior de participantes na construção da ciência, como uma forma de democratizá-la e enriquecê-la.
4.0 Os reflexos do pluralismo metodológico no Direito.
4.1 O pluralismo metodológico na hermenêutica jurídica constitucional – A influência de Peter Häberle.
Na hermenêutica jurídica constitucional, o convite para o debate de um número maior de participantes para enriquecimento dessa ciência foi traduzido por Peter Häberle[27] na democratização do processo de interpretação constitucional. Nesse processo, cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, sistema público e opinião pública atuam, pelo menos, como pré-intérpretes constitucionais.
Isso porque, no entendimento de Häberle, todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma é, direta ou indiretamente, intérprete dessa norma. Todo aquele, portanto, que vive a Constituição é o seu legítimo intérprete. Sendo assim, não é razoável estabelecer-se como intérpretes constitucionais legítimos somente um elenco restrito de intérpretes formais jurídicos vinculados ao Estado.
A teoria da interpretação constitucional esteve adrede vinculada a um modelo de interpretação de uma sociedade fechada, concentrando-se, portanto, precipuamente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formais com métodos previamente estabelecidos. Entretanto, como não são apenas os intérpretes jurídicos que vivenciam a norma, não podem ser os únicos legitimados intérpretes constitucionais.
Propõe, destarte, a passagem de “uma sociedade fechada dos intérpretes da Constituição para uma interpretação constitucional pela e para uma sociedade aberta”[28]. Ressalvando, contudo, que subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, a quem pertence, em última análise, a última palavra sobre a interpretação.
Entendida dessa forma, a interpretação constitucional dos Direitos fundamentais, por exemplo, se processará também por aqueles que são destinatários desses Direitos ou, quando for feita pela Corte Constitucional, esta levará em consideração o modo como os destinatários da norma preenchem o âmbito de proteção daqueles Direitos.
Assim, a interpretação do Direito à liberdade religiosa não poderá prescindir da concepção da igreja, das organizações religiosas. Da mesma forma, a delimitação do Direito à liberdade artística não poderia ser feita sem a concepção que o próprio artista tem desse Direito. Ou, ainda, o Direito à liberdade científica, liberdade de imprensa. Em suma, “deve-se indagar como os Direitos fundamentais hão de ser interpretados em sentido específico”[29].
Destaca, ainda, Häberle o papel co-interpretativo do técnico ou expert no âmbito do processo legislativo ou judicial. Assim, experts e pessoas interessadas da sociedade pluralista se convertem em legítimas intérpretes do Direito estatal, o que contribui para uma hermenêutica constitucional que propicia um diálogo entre Estado e sociedade.
No Brasil, essa teoria tem aplicação, por exemplo, na intervenção do amicus curiae no processo. Esse amigo da cúria compõe o quadro dos sujeitos processuais cumprindo a função de auxiliar do juízo em questões técnico-jurídicas, contribuindo, substancialmente, para uma melhor aplicação do Direito por parte do magistrado[30]. Aqui, então, a “sociedade fechada” de intérpretes jurídicos vinculados à máquina estatal se abre para dialogar e permitir-se ser influenciada por outros hermeneutas.
4.2 Familías jurídicas: Comum Law e Civil Law – concepções cada vez mais plurais.
O Direito comparado costuma agrupar os sistemas jurídicos em famílias ou grupos, em que os principais são: o sistema-jurídico romano-germânico, denominado de Civil Law e o sistema do Common Law. Essa classificação está umbilicalmente ligada à metodologia de estudo, aplicação e interpretação do Direito em cada país.
No sistema Common Law prepondera a idéia de que “o direito existe não para ser um edifício lógico e sistemático, mas para resolver questões concretas (…). Isto posto, ressalta-se, de imediato, o papel secundário da doutrina em favor das soluções pragmáticas”[31].
Por outro lado, no sistema Civil Law “a atuação do operador do direito deve ser eminentemente técnica, conhecendo as normas integrantes do sistema e a doutrina que as interpreta (…). Seu traço essencial revela-se na análise do sistema a partir da Constituição, como norma fundamental, seguida da edição de todas as normas infraconstitucionais”[32].
Afirma-se, de modo geral, que o Direito brasileiro integra o denominado sistema Civil Law. Ocorre, todavia, que a constituição desse sistema tem traços plurais, mesclando características de ambos os sistemas: Civil Law e Common Law. Nesse sentido, pontuou Fredie Didier Júnior:
“O sistema brasileiro tem uma característica muito peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos um direito constitucional de inspiração estadunidense (daí a consagração de uma série de garantias processuais, inclusive, expressamente, do devido processo legal) e um direito infraconstitucional (principalmente o direito privado) inspirado na família romano-germânica (França, Alemanha e Itália, basicamente). Há controle de constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado (modelo austríaco). Há inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo tempo constrói-se um sistema de valorização dos precedentes judiciais extremamente complexo (súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo para causas repetitivas etc. (…)), de óbvia inspiração do common Law”[33].
Destarte, observa-se no sistema brasileiro uma pluralidade metodológica no que concerne à elaboração e aplicação do Direito, abraçando características essenciais desses dois sistemas.
Outrossim, em um panorama internacional, observa-se essa aproximação entre o Civil Law e o Common Law. É o que comenta Mauro Cappelletti, notadamente no que tange ao papel desempenhado pelo judiciário na criação do direito:
“Para além das muitas diferenças ainda hoje existentes, potentes e múltiplas tendências convergentes estão ganhando ímpeto, à origem das quais encontra-se a necessidade comum de confiar ao “terceiro poder”, de modo muito mais acentuado do que em outras épocas, a responsabilidade pela formação e evolução do direito. Verdade é que essa necessidade, como vimos, constitui por si mesma a consequência da profunda e dramática metamorfose das sociedades modernas, (…), no nosso mundo perigosamente dividido, já está conduzindo à aproximação dos sistemas jurídicos, aproximação que, à distância, pode talvez abrir um capítulo mais luminoso na história fascinante da aproximação jurídica “[34].
Assim, conquanto existam distinções fundamentais, desenha-se concepções cada vez mais plurais dos sistemas Civil Law e Common Law, ao invés da separação estanque e incomunicável entre esses sistemas jurídicos, seja no Brasil, seja no contexto mundial.
4.3 O pluralismo metodológico e a pluralidade de ordenamentos.
Como reflexo dessa pluralidade metodológica, destaca-se, ainda, que na modernidade, assistiu-se ao processo de monopolização da produção jurídica pelo Estado. Passou-se, destarte, do pluralismo jurídico característico da época medieval para um monismo jurídico, em que coube ao Estado o controle e o gradativo monopólio na arte de construção do Direito.
Dessa forma, o Direito projetado pela sociedade burguês-capitalista, corporificado pelo modelo de centralização estatal hegemônico, impôs “um rígido sistema de fontes formais caracterizado pela supremacia do Direito legiferado e escrito sobre o Direito consuetudinário e o Direito dos juristas, e pelo sufocamento e exclusão de práticas informais vinculadas ao Direito comunitário insurgente”[35].
No paradigma pós-moderno, contudo, a produção do Direito não se dá apenas de forma estatal, mas através da pluralidade de grupos e atores sociais, concebendo-se como Direito “o conjunto de processos regularizados e de princípios normativos, considerados justiciáveis num dado grupo, que contribuem para a criação e prevenção de litígios e para a resolução destes através de um discurso argumentativo, de amplitude variável, apoiado ou não pela força organizada”[36]. Salienta Wolkman:
“Parece claro, por conseguinte, que o problema das fontes do Direito numa sociedade determinada e historicamente concreta não está mais na priorização de regras técnico-formais e na completude de ordenações teórico-abstratas, porém na dialética de uma práxis do cotidiano e na materialização normativa comprometida com a dignidade de um novo sujeito social”[37].
Fala-se, pois, não em um sistema jurídico único construído a partir de um método único, mas de uma pluralidade de sistemas jurídicos, cuja interação e interseção é tão intensa que, “ao nível da fenomenologia da vida sócio-jurídica, não se pode falar de Direito e de legalidade, mas antes de interDireito e interlegalidade”[38].
“A análise do pluralismo jurídico revela-nos que, enquanto sujeitos de Direito vivemos em diferentes comunidades jurídicas organizadas em redes de legalidade, ora paralelas, ora sobrepostas, ora complementares, ora antagônicas. A nossa prática social é, assim, uma configuração de Direitos. Cada um deles tem uma espacialidade e uma temporalidade próprios (…) A vida sócio-jurídica do fim do século é, assim, constituída, pela interseção de diferentes fronteiras jurídicas, fronteiras porosas e, como tal, simultaneamente abertas e fechadas. A esta intersecção chamo de interlegalidade, a dimensão fenomenológica do pluralismo jurídico”[39].
Nessa medida, “o Estado não possui, com a ordem jurídica oficial, um verdadeiro monopólio sobre o Direito: pelo contrário, como nota Galanter ‘as sociedades contêm uma multiplicidade de esferas e sectores parcialmente auto-regulados, organizados segundo critérios espaciais, transaccionais ou étnico-familiares (…)’”[40].
Assim, os mecanismos geradores de Direito decorrem de várias práticas sociais tanto na esfera supra-estatal, através das organizações internacionais, como também no nível estatal e, igualmente, infra-estatal, através de organizações comunitárias e movimentos sociais, por exemplo.
5.0 Conclusões:
1. Com a crise da modernidade, muitos estudiosos referiram ao surgimento de um novo paradigma de compreensão do mundo – a pós-modernidade. Diz-se que características marcantes desse tempo são a ausência de verdades absolutas e de certezas inabaláveis, o que influencia diretamente na concepção do método científico e na consequente busca de resultados. A ausência de paradigma filosófico absoluto reflete em todas as ciências, inclusive na jurídica.
2. A credibilidade de pesquisas científicas esteve, na modernidade, adrede ligada ao método utilizado para o alcance de seus resultados. Assim, um conjunto de regras paulatinamente se estabeleceram como norteadoras dos trabalhos com cunho científico. Seguindo essas regras, o pesquisador pretensamente chegaria ao conhecimento de verdades irrefutáveis. Nesse quadro, a adoção de um método único que proporcionasse uma verdade única foi prática recorrente nas pesquisas e descobertas da ciência.
3. Essa forma de pensar não ficou restrita às investigações e estudos da natureza, transbordando-se também para o estudo da sociedade e, consequentemente, do Direito. Daí as noções de regularidade, estabilidade e previsibilidade tão caras ao positivismo, tanto o científico quanto o jurídico.
4. Gradativamente, contudo, percebia-se que, embora úteis, essas regras são limitadas. Embora adequadas em determinadas circunstâncias, revelavam-se absolutamente inadequadas em outras. Por conta da percepção desses limites, críticas contundentes foram feitas à adoção de um método único, com regras estabelecidas a priori.
5. Questionava-se, assim, a ditadura do método único, propugnava-se por uma pluralidade metodológica, desconstruía-se o conceito de verdade absoluta, ao tempo em que se convidava um número maior de participantes na construção da ciência, como uma forma de democratizá-la e enriquecê-la.
6. Na hermenêutica jurídica constitucional, o convite para o debate de um número maior de participantes para enriquecimento dessa ciência foi traduzido por Peter Häberle na democratização do processo de interpretação constitucional. Nesse processo, cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, sistema público e opinião pública atuam, pelo menos, como pré-intérpretes constitucionais. No Brasil, essa teoria tem aplicação, por exemplo, na intervenção do amicus curiae no processo.
7. O Direito comparado costuma agrupar os sistemas jurídicos em famílias ou grupos, em que os principais são: o sistema-jurídico romano-germânico, denominado de Civil Law e o sistema do Common Law. Conquanto existam distinções fundamentais, desenha-se concepções cada vez mais plurais desses sistemas jurídicos, ao invés da separação estanque e incomunicável, seja no Brasil, seja no contexto mundial.
8. Como reflexo dessa pluralidade metodológica, destaca-se, ainda, que no paradigma pós-moderno, a produção do Direito não se dá apenas de forma estatal, mas através da pluralidade de grupos e atores sociais, tanto na esfera supra-estatal, através das organizações internacionais, como também no nível estatal e, igualmente, na infra-estatal, através de organizações comunitárias e movimentos sociais, por exemplo.
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