Direito Constitucional

Essencialidade do Ministério Público Frente ao Sistema Romanístico de Direito

José Antônio Neves Neto[1]

 

Resumo

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O presnte trabalho tem por escopo analisar a importância da instituição do Ministério Público em países que adotaram o sistema romanístico de direito, notadamente no Brasil, estabelecendo comparações com o sistema costumeiro de outras nações. Neste diapasão, analisa-se a participação do Ministério Público no devido processo legal, envolvendo tanto atribuições expressas na Constituição Federal de 1988 quanto ideias centrais difundidas pela doutrina, jurisprudência e pela própria comunidade jurídica. Indaga-se se o Parquet estaria, ao realizar determinadas condutas, exorbitando suas funções e, através de conciso estudo, demonstra seu cabimento por meio de interpretação sistemática da Constituição, atendendo ao princípio da máxima efetividade constitucional, bem como da autoaplicabilidade dos direitos fundamentais. Centra-se o presente artigo em fundamentos, inclusive de ordem axiológica, relativos à indispensabilidade da instituição alhures referida, que possuem o fito de respeitar o Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Ministério Público. Direito Romanístico. Devido Processo Legal. Estado Democrático de Direito.

 

Abstract

The present work scope is to analyze the importance of the District Attorney institution in countries that adopted the romanistic legal system, specially in Brazil, making comparisons with the common law system of other nations. In consequence, analyzes the participation of the Public Ministry in the due process of law, having as material from express brazilian 1988 Federal Constitutional assignments to central ideas widespreaded in the doutrine, jurisprudence and also by the juridical community itself. It’s enquired if the Parquet, while executing specific conducts, is coming out of his attributions, and demonstrates, in short study, why it’s possible doing so throughout sistematical constitutional interpretation, attending to the principle of maximum constitutional effectiveness, such as the autoaplicabillity of the fundamental rights. The present article concentrates in fundaments, including axiological, regarding the indispensability of the above mencioned institution, which aim is to respect the Democratic State of Law.

Keywords: Public Ministry. Romanistic Legal System. Due Process of Law. Democratic State of Law.

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO, 1 DIFERENTES SISTEMAS JURÍDICOS, 2 A PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO DEVIDO PROCESSO LEGAL, 3 O MINISTÉRIO PÚBLICO NO SISTEMA ROMANÍSTICO, 4 O ATIVISMO NECESSÁRIO, 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS, REFERÊNCIAS.

 

 INTRODUÇÃO

O ser humano é incapaz de viver isolado, incapaz de subsistir sem estabelecer relações com semelhantes. Premissa consagrada desde a Antiguidade Clássica, onde Aristóteles (384 a.C–322 a.C) preconizou “o homem é um animal social, um animal político”. Remeter-se-á à célebre máxima latina “ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus”.

Uma vez que o homem não possui meios para sobreviver sozinho, ele recorre ao convívio em sociedade. Estabelecida a convivência grupal, não tarda para que os conflitos surjam. Daí a fonte natural do Direito, qual seja, a necessidade de regular o convívio em sociedade, estabelecer deveres, direitos e limites a estes direitos.

Difícil, para não dizer improbabilíssimo, conceber uma civilização que dispense o Direito nos dias atuais. No entanto, é preciso ter em mente que o Direito pode variar a depender do contexto histórico-cultural, e até geográfico. Exatamente por isso que o Direito que vige no Brasil não pode ser o mesmo da Alemanha, muito embora nosso Direito sofra pujante influência germânica, a exemplo de nosso Código Penal. Ademais, há sistemas diversos de regulação, tendo-se por base as fontes e os processos pelos quais se formalizam.

O esforço deste trabalho é dirigido a revelar a imprescindibilidade do Ministério Público, especificamente no sistema jurídico adotado pelo Brasil, o Direito romanístico. Esclarecer-se-á, de forma concisa, motivos pelos quais não se pode dispensar a presença do Ministério Público nas situações que lhe compete (arts. 127 a 130 CF). Argumentar-se-á que a instituição é palco de segurança jurídica e que, juntamente à Defensoria Pública e advocacia liberal, fomenta o núcleo, o âmago do Estado Democrático de Direito.

Afinal, indaguemos: como absorver o ideal de um Estado de Direito, fundamentado na democracia, regido pela lei, sem a atuação de órgão que tutele o cumprimento da lei e, portanto, a garantia prático-social de sua eficácia?

 

1 DIFERENTES SISTEMAS JURÍDICOS

Segundo o dicionário Aurélio, sistema significa “reunião de princípios coordenados de modo a formar uma doutrina”. O Direito, sendo uma ciência social, contempla diversos sistemas. Todavia, pode-se dividir o Direito em dois grandes sistemas: o civil law e o common law. Referidos sistemas se caracterizam por constituir a maior parte dos sistemas usados na atualidade, sendo os mais conceituados, detentores de longos estudos acadêmicos.

Embora guardem identidade de razão[2], civil law e common law são extremamente distintos. Para que se possa compreender as diferenças é necessário um prévio conhecimento acerca das fontes do Direito.

Conforme as lições de Miguel Reale (1998): “Por ‘fonte do direito’ designamos os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa.”

Fonte, do latim fontis, quer dizer nascente d’água, nascedouro. Fontes do Direito são, portanto, os processos que dão vida ao Direito. Existe certo consenso quanto a três fontes jurídicas: a lei, o costume e a jurisprudência. Poucos doutrinadores ousam afirmar que estes processos não são fontes jurídicas, e os que assim fazem, falham em sua missão.

A lei, por óbvio, é incontestável fonte do Direito, não há que se contestar isso. Quanto aos costumes, relevante a premissa de Ulpiano “os costumes são o tácito consenso do povo, inveterado por longo uso”. O costume de um povo faz parte de sua cultura e por vezes tem força de lei, daí se poder dizer que é uma fonte. Aliás, importante é o magistério de Paulo Nader (2002): “no passado, a influência do Direito costumeiro era mais visível, já que o costume era praticamente a única forma de expressão do Direito”.

Quanto à jurisprudência, basta observar a tendência dos tribunais em seus julgados que logo se percebe o quão predominante é a jurisprudência. Apesar de doutrinariamente controverso, indico a fonte negocial e a própria doutrina como fontes complementares. A meu ver, é perfeitamente possível enquadrá-las como fontes do Direito, pelo simples fato de darem vida à ciência jurídica.

Uma vez discorrido sobre as principais fontes, torna-se possível seguir com a discussão sobre as diferenças entre os dois fortes sistemas jurídicos. O Brasil adotou o civil law, também conhecido como direito romanístico. Segundo Reale (1998), o sistema romanístico caracteriza-se “pelo primado do processo legislativo, com atribuição de valor secundário às demais fontes do direito”. Implica dizer que neste sistema, adotado pela pátria amada, a lei é tida como a principal fonte do Direito. As demais fontes vêm com caráter subsidiário, complementar, por sinal com expressa menção da Lei de Introdução às normas de Direito brasileiro (LINDB)[3] que, em seu artigo quarto, diz: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

Portanto, nos países em que esse sistema é adotado, não se pode ir contra a lei. Existem países, contudo, que adotaram o common law, também chamado de Direito costumeiro, consuetudinário ou jurisprudencial. Nos países que optaram pelo sistema costumeiro a frase “não se pode ir contra a lei” não contém tanta força quanto nos países que escolheram o sistema romanístico. Acontece que, diferentemente do civil law, o common law não tem a lei como fonte primária. A lei é fonte do Direito, mas não precípua. Assim diz Nader (2002):

O Direito costumeiro pode ser definido como um conjunto de normas de conduta social, criadas espontaneamente pelo povo, através do uso reiterado, uniforme e que gera a certeza de obrigatoriedade, reconhecidas e impostas pelo Estado.

São exemplos de países que não optaram pelo direito romanístico a Inglaterra e os Estados Unidos. Tais países fazem uso do sistema costumeiro, onde a força do Direito mais surge dos costumes jurídicos e precedentes abertos pelos tribunais do que propriamente por atuação parlamentar. Aqui já se percebe uma diferença gigantesca a ser apontada, entre Brasil e Estados Unidos, capaz de anular as famigeradas discussões comparadas.

Reale (1998) aponta o Direito costumeiro em face do romanístico:

Ao lado dessa tradição, que exagera e exacerba o elemento legislativo, temos a tradição dos povos anglo-saxões, nos quais o Direito se revela muito mais pelos usos e costumes e pela jurisprudência do que pelo trabalho abstrato e genérico dos parlamentos. Trata-se, mais propriamente, de um Direito misto, costumeiro e jurisprudencial. Se, na Inglaterra, há necessidade de saber-se o que é lícito em matéria civil ou comercial, não há um Código de Comércio ou Civil que o diga, através de um ato de manifestação legislativa. O Direito é, ao contrário, coordenado e consolidado em precedentes judiciais, isto é, segundo uma série de decisões baseadas em usos e costumes prévios. Já o Direito em vigor nas Nações latinas e latino-americanas, assim como também na restante Europa continental, funda-se, primordialmente, em enunciados normativos elaborados através de órgãos legislativos próprios.

E arremata:

Temos, pois, dois grandes sistemas de Direito no mundo ocidental, correspondentes a duas experiências culturais distintas, resultante de múltiplos fatores, sobretudo de ordem histórica.

Após brilhante exposição do culto Miguel Reale, sobre sistemas jurídicos e suas peculiaridades, e compreendidos os mesmos, segue-se o trabalho.

 

2 A PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO DEVIDO PROCESSO LEGAL

A Constituição Federal de 1988 é tida, dentre todas as constituições já promulgadas no Brasil, como a mais garantista. Elencou, em seu art. 5º, um opulento rol de direitos e garantias fundamentais, estabelecendo, ainda, em seu parágrafo segundo, o seguinte: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

            Desse modo, cuidou o constituinte de assentar que o rol dos direitos fundamentais não é exaustivo, não se trata de lista taxativa. Ao contrário, os direitos fundamentais também podem ser implícitos e, sendo assim, o número só aumenta, tendo em vista que o constituinte também os edificou a status de cláusula pétrea[4].

Dentre os princípios constitucionais fundamentais está o devido processo legal. Depreende-se da ideia de ser julgado conforme a lei, de maneira não arbitrária, daí o direito ao juiz natural (imparcial, neutro) e a vedação do tribunal de exceção. Do princípio do devido processo legal extraem-se outros dois de suma relevância no nosso ordenamento jurídico: o contraditório e a ampla defesa. Preciso é o magistério de Gilmar Mendes:

O principio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais.[5]

O Tribunal de exceção é aquele constituído para um caso específico, a exemplo do Tribunal de Nuremberg[6]. Sem adentrar ao mérito do exemplo supracitado, a existência de tribunal constituído para fato singular é incompatível com o regime democrático. O Brasil, Estado soberano, fez por bem garantir que ninguém poderá ser processado ou julgado senão por autoridade competente.[7] Autoridade competente é o mesmo que juiz de direito togado, cuja competência é definida por lei.

O contraditório, nos termos de Marcelo Novelino (2010), seria a “ciência bilateral dos atos do processo com a possibilidade de contrariá-los”.

Todo o réu tem direito a mostrar sua visão, seu lado da lide, de modo a tornar o julgamento justo e não parcial. A ampla defesa permite que o indivíduo tenha como garantia todos os meios lícitos inerentes a sua condição de defesa, tornando possível que se proteja com dignidade da forma mais abrangente possível. Inclusive, a ausência ou redução da ampla defesa acarreta a nulidade do processo.

Não se questiona, hodiernamente, mencionadas garantias. Não há como conceber, em pleno século XXI, um julgamento autoritário, sem a possibilidade de defesa do acusado. Todavia, não podemos olvidar que, não obstante as garantias fundamentais individuais de defesa, também se deve incluir como garantia uma preparada acusação, sob pena de impunidade em não o fazendo.

A devida acusação deve ser entendida como uma garantia da sociedade. Portanto, ao passo em que chamamos acusação (do acusado), poder-se-ia denominar como defesa, bastaria dizer defesa da sociedade. A dualidade acusação/defesa altera-se conforme o parâmetro. A acusação apresenta-se, assim, como uma função essencial do Estado Democrático de Direito, fazendo com que as pessoas confiem na segurança jurídica, sabendo que, ao tempo em que o acusado tem todas as suas garantias individuais, também a sociedade está amparada. É aqui que entra o Ministério Público.

O Ministério Público é imprescindível na efetivação das funções institucionais determinadas pela Constituição da República, sem sua presença, restaria a impunidade. Exerce o papel de “defensor” da sociedade, objetivando o cumprimento da lei.

O advogado está dedicado ao direito de seu cliente (e aqui não se faz qualquer crítica à advocacia, posto que também imprescindível no Estado de Direito), porém, se está o causídico empenhado na defesa e instrução de seu contratante, deve, invariavelmente, sob pena de injustiça, existir (nos casos em que a sociedade é a vítima) um Promotor de Justiça apto a representar todos os interessados, quais sejam, toda a sociedade. Faz-se imprescindível para que se equilibre o julgamento, para que seja justo e que não se incline para lado algum, senão para a consecução da finalidade última do Direito, qual seja, alcançar a justiça.

 

3 O MINISTÉRIO PÚBLICO NO SISTEMA ROMANÍSTICO

Como explanado alhures, o sistema do civil law ou direito romanístico define-se como o império da lei, comando abstrato e genérico, sem o qual não há que se falar em direito. Em nosso sistema, a partir da proposta de tripartição dos poderes de Montesquieu, acolhida pelo constituinte, ficou o Poder Legislativo, precipuamente, encarregado da missão da elaboração das leis.

O Legislativo tratará de criar novas leis na medida em que sinta tal necessidade. Como consequência, temos a necessidade de um Poder para julgar as lides, daí o Poder Judiciário. Por fim, temos o Executivo como gestor e administrador.

A tripartição parece completa. Parece, mas não está. Quiçá estaria num sistema jurisprudencial ou consuetudinário, mas não no nosso. Ocorre que, sendo a lei a fonte primordial de nosso Direito, indispensável é que seja cumprida e fiscalizada, sob pena de fragilidade de todo o sistema.

O Ministério Público poderia ser considerado, a nível doutrinário, uma espécie de quarto poder. Não obstante o posicionamento de alguns tribunais no sentido de que o Ministério Público não se configura como quarto poder, é preciso ressaltar que não se está elevando o status da instituição a um novo poder, mas sim atribuindo a relevância que lhe é devida, de caráter indispensável, uma “espécie” de poder, equiparado a um poder. Michel Temer[8] direcionou posicionamento em sentido convergente: “eu vejo como é importante dizer que o Ministério Público é o Quarto Poder, assim construímos nosso Estado democrático de Direito.”

Temos por consagrado, em nosso ordenamento jurídico vigente, o princípio da legalidade. Princípio este perpetuado por nossa Constituição Federal no rol expresso dos direitos fundamentais, art. 5º, II, que diz, in verbis: II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

O Parquet é o fiscal da lei, aquele que está como garantidor da sociedade. O Código de Processo Civil, em seu art. 83, apresenta “intervindo como fiscal da lei, o Ministério Público […]” Também a Lei nº 7.210/84 (Execução Penal), em seu art. 67 “O Ministério Público fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança […]”

Inclusive, a Teoria dos Poderes Implícitos, cujo nascedouro se deu na Suprema Corte dos Estados Unidos, vem sendo aplicada pelo Supremo Tribunal Federal. Em relação ao Ministério Público frente à mencionada teoria, depreende-se que, ao determinar que a instituição cuide da ação penal, sendo titular da mesma, por motivos de ordem lógica também estaria concedendo-lhe poderes para que, de forma preliminar, realizem-se investigações. Aliás, cumpre ressaltar o inciso IX do art. 129 da Constituição Brasileira:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

Impende o HC 87610 SC do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do excelso ministro Celso de Mello:

“HABEAS CORPUS” – CRIMES DE TRÁFICO DE DROGAS E DE CONCUSSÃO ATRIBUÍDOS A POLICIAIS CIVIS – POSSIBILIDADE DE O MINISTÉRIO PÚBLICO, FUNDADO EM INVESTIGAÇÃO POR ELE PRÓPRIO PROMOVIDA, FORMULAR DENÚNCIA CONTRA REFERIDOS AGENTES POLICIAIS – VALIDADE JURÍDICA DESSA ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA – CONDENAÇÃO PENAL IMPOSTA AOS POLICIAIS – LEGITIMIDADE JURÍDICA DO PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO – MONOPÓLIO CONSTITUCIONAL DA TITULARIDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA PELO “PARQUET” – TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS – CASO “McCULLOCH v. MARYLAND” (1819) – MAGISTÉRIO DA DOUTRINA (RUI BARBOSA, JOHN MARSHALL, JOÃO BARBALHO, MARCELLO CAETANO, CASTRO NUNES, OSWALDO TRIGUEIRO, v.g.) – OUTORGA, AO MINISTÉRIO PÚBLICO, PELA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, DO PODER DE CONTROLE EXTERNO SOBRE A ATIVIDADE POLICIAL – LIMITAÇÕES DE ORDEM JURÍDICA AO PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO – “HABEAS CORPUS” INDEFERIDO. NAS HIPÓTESES DE AÇÃO PENAL PÚBLICA, O INQUÉRITO POLICIAL, QUE CONSTITUI UM DOS DIVERSOS INSTRUMENTOS ESTATAIS DE INVESTIGAÇÃO PENAL, TEM POR DESTINATÁRIO PRECÍPUO O MINISTÉRIO PÚBLICO . – O inquérito policial qualifica-se como procedimento administrativo, de caráter pré-processual, ordinariamente vocacionado a subsidiar, nos casos de infrações perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública, a atuação persecutória do Ministério Público, que é o verdadeiro destinatário dos elementos que compõem a “informatio delicti”. Precedentes . – A investigação penal, quando realizada por organismos policiais, será sempre dirigida por autoridade policial, a quem igualmente competirá exercer, com exclusividade, a presidência do respectivo inquérito . – A outorga constitucional de funções de polícia judiciária à instituição policial não impede nem exclui a possibilidade de o Ministério Público, que é o “dominus litis”, determinar a abertura de inquéritos policiais, requisitar esclarecimentos e diligências investigatórias, estar presente e acompanhar, junto a órgãos e agentes policiais, quaisquer atos de investigação penal, mesmo aqueles sob regime de sigilo, sem prejuízo de outras medidas que lhe pareçam indispensáveis à formação da sua “opinio delicti”, sendo-lhe vedado, no entanto, assumir a presidência do inquérito policial, que traduz atribuição privativa da autoridade policial. Precedentes. A ACUSAÇÃO PENAL, PARA SER FORMULADA, NÃO DEPENDE, NECESSARIAMENTE, DE PRÉVIA INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL . – Ainda que inexista qualquer investigação penal promovida pela Polícia Judiciária, o Ministério Público, mesmo assim, pode fazer instaurar, validamente, a pertinente “persecutio criminis in judicio”, desde que disponha, para tanto, de elementos mínimos de informação, fundados em base empírica idônea, que o habilitem a deduzir, perante juízes e Tribunais, a acusação penal. Doutrina. Precedentes. A QUESTÃO DA CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DE EXCLUSIVIDADE E A ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA . – A cláusula de exclusividade inscrita no art. 144, § 1º, inciso IV, da Constituição da República – que não inibe a atividade de investigação criminal do Ministério Público – tem por única finalidade conferir à Polícia Federal, dentre os diversos organismos policiais que compõem o aparato repressivo da União Federal (polícia federal, polícia rodoviária federal e polícia ferroviária federal), primazia investigatória na apuração dos crimes previstos no próprio texto da Lei Fundamental ou, ainda, em tratados ou convenções internacionais . – Incumbe, à Polícia Civil dos Estados-membros e do Distrito Federal, ressalvada a competência da União Federal e excetuada a apuração dos crimes militares, a função de proceder à investigação dos ilícitos penais (crimes e contravenções), sem prejuízo do poder investigatório de que dispõe, como atividade subsidiária, o Ministério Público . – Função de polícia judiciária e função de investigação penal: uma distinção conceitual relevante, que também justifica o reconhecimento, ao Ministério Público, do poder investigatório em matéria penal. Doutrina. É PLENA A LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO PODER DE INVESTIGAR DO MINISTÉRIO PÚBLICO, POIS OS ORGANISMOS POLICIAIS (EMBORA DETENTORES DA FUNÇÃO DE POLÍCIA JUDICIÁRIA) NÃO TÊM, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, O MONOPÓLIO DA COMPETÊNCIA PENAL INVESTIGATÓRIA.[9]

Destarte, compete ao Ministério Público a consecução da justiça, sendo o responsável pela fiscalização da lei, não cabendo dizer que não possa a instituição realizar investigações. Nosso Direito não permite uma aplicação “a letra fria da lei”, posto que é regido também por princípios que servem como diretrizes de interpretação e por vezes até como norma, sendo assim, querer operar o Direito de modo excessivamente e exclusivamente positivista, seguindo a tradicional linha da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, não encontra espaço na modernidade.

Ademais, o brocardo de origem latina reflete bem o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “quem pode o mais, pode o menos”. Se é o Ministério Público o titular da ação penal, como conceber uma vedação ao poder investigatório da instituição?

Portanto, num sistema complexo onde a lei é fonte primária do Direito, porém jamais única, é inviável imaginar a ausência da insigne Instituição Ministério Público, tal ausência configuraria uma ignomínia para o ordenamento jurídico brasileiro. Outrossim, o Ministério Público é, definitivamente, uma espécie de quarto poder, não formal, mas material.

Portugal, em feliz legislação, dispõe que compete ao Ministério Público, além de fiscalizar a lei, dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades. A intenção brasileira foi a mesma, porém se tivesse recorrido à clareza exposta pelos lusitanos, confusões interpretativas teriam sido evitadas.

Cumpre dizer: o Ministério Público não é vetusto nem inadequado em sistemas costumeiros, denominado common law. Sabe-se que sua ausência resultaria em estigmas incuráveis em qualquer lugar do mundo contemporâneo. Os Estados Unidos, por exemplo, cujo sistema é eminentemente jurisprudencial e costumeiro, reconhece a importância do Prosecutor e do D.A (District Attorney), no entanto, é incabível supor que sua relevância seja a mesma em países latino-americanos e relacionados, dados os argumentos discorridos ao longo deste texto.

 

4 O ATIVISMO NECESSÁRIO

O Promotor de Justiça, como o próprio nome sugere, deve buscar almejar a justiça. Não deve o Parquet se envolver em causas distintas, nem fazer partido com motivos casuísticos.

A Constituição de 1988 definiu os aspectos formais de atribuições e competência da Instituição. O integrante do Ministério Público não deve se ater, exclusivamente, a aspectos formais. Necessita o Promotor estar sempre com senso de justiça, lutando por aquilo que o Direito demande, mesmo que a ciência jurídica pareça, em determinados momentos, ficar aquém da luta social. Sapiente e feliz é o ensinamento do célebre jurista uruguaio, Eduardo Juan Couture: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça.”

Tal ensinamento gera repúdio ao jurista irascível, limitado e adstrito a aspectos formais. Este jurista, incapaz de interpretar, entende a assertiva como um atentado ao Direito, visto que julga falta de disciplina na afirmação. Trata-se, na realidade, de visão preconceituosa e antiquada, para não dizer mal pensada. Se não, vejamos: é sabido e uníssono que a finalidade última do Direito é a realização da justiça, como se poderia, então, definir aquele que luta pela justiça como contrário ao Direito? Não é possível. Data venia, é apenas uma questão de interpretação (e o Direito é, acima de tudo, interpretação). Quando o uruguaio faz referência a uma aparente antinomia entre Direito e justiça, é porque tal contradição findou por ocorrer em decorrência de falha e equívoco dos operadores[10], posto que o Direito não deve ir contra a justiça[11] e, assim sendo, estar-se-ia colaborando com o Direito quando o adaptamos à sua finalidade última.

Como exemplo da necessidade do ativismo do Ministério Público pode-se citar o Projeto de Emenda à Constituição 37. Referida PEC tinha como objetivo, através de subterfúgio ardil, impedir a atuação do Ministério Público em sede de investigação. A PEC era, evidentemente, de caráter corporativista. Apesar de tanto, bem redigida e com apoio de significativa parte dos parlamentares e quase toda a classe que a PEC beneficiava, trouxe iminente perigo a ordem jurídica, porque totalmente apta a ser aprovada. Não fosse o ativismo do Ministério Público, provavelmente hoje a instituição teria perdido força. O ativismo deu-se na forte campanha realizada por seus integrantes, revelando o que realmente estava por trás das belas “letras constitucionais”, e com isso conseguiu o apoio da população. A afirmativa “todo o poder emana do povo” [12]nunca foi tão verossímil, uma proposta que, de início, tinha tudo para ser aprovada, foi posta abaixo em virtude dos anseios do povo brasileiro. Sabia-se que a PEC interessava a boa parte dos parlamentares, mas estes não poderiam ir contra a “voz do povo”, uma vez que os representam.

Ativismo significa atividade de luta, revolucionária, contínua e permanente, com o fito de conquista. Muito se debate acerca do ativismo judicial, exercido pelo Judiciário, mas poucos ousam adentrar na seara de tal exercício pelo Ministério Público, muito embora devessem. Frise-se que judicial por ocorrer em vias judiciais, porém denominar-se-ia social sem qualquer problema, visto que tem por objetivo alcançar conquistas sociais.

O Parquet tem tarefa incessante quando do ativismo, sendo-lhe inerente o dever de, além de exigir o cumprimento da lei, questionar seu teor de honestidade. O legislador, como todo ser humano, é passível de erro e, por vezes, finda por criar lei [13]que traz efeitos práticos (ou efeitos colaterais) não queridos pelo operador legiferante. O Código Penal brasileiro, por exemplo, dispõe de normas que, a priori, não ensejam nenhuma frivolidade. Basta uma segunda análise para o diagnóstico: resultam em efeitos colaterais não intencionados pelo legislador.

Tome-se como pressuposto os tipos de penas no Código Penal vigente: penas privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa. Há que se aceitar que estão dispostas em ordem decrescente, significa dizer, a pena privativa de liberdade constitui-se como a mais severa e a multa como a mais branda, estando a restritiva de direitos em patamar intermediário. Esta ilação é possível, inclusive, pela simples interpretação do Código, quando este dispõe que a privativa de liberdade pode ser substituída por restritiva de direitos (em situações onde a conduta do réu se mostra menos pusilânime) está definindo uma ordem de “severidade das penas”. Se assim o é, não seria necessária grande erudição para compreender que o agente de crime com maior grau de periculosidade terá pena mais árdua que aquele de menor potencial ofensivo.

No entanto, o estatuto repressivo traz efeitos colaterais que contrariam este axioma. Analise-se o art. 44, I e II, acrescentado do § 3º:

Art. 44: As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:

I- aplicada a pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;

II- o réu não for reincidente em crime doloso;

E segue o § 3º:

  • 3º Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.

Implica dizer: na pena restritiva de direitos admite-se a reincidência, mesmo que em sede de crime doloso, inclusive com pena superior a quatro anos, desde que não seja em virtude do mesmo crime.

Todavia, conforme o art. 33, § 2º, alíneas b e c do referido diploma legal, não pode o reincidente ingressar em regime semi-aberto ou aberto. Assim, enseja-se uma crítica: o reincidente não pode ingressar no regime semi-aberto, mas pode ter uma pena mais branda (restritiva de direitos). Em suma, ele pode o mais e não pode o menos, evidente confusão legislativa.

O membro do Ministério Público, atento a esses inevitáveis equívocos, deve perquirir, conjuntamente com o magistrado, a viabilidade destes dispositivos. O que se espera do Parquet é que, com senso de justiça, não contrarie os princípios gerais de direito nem os bons costumes em detrimento de equívoco legislativo, tem-se por expectativa que o promotor provoque a autoridade judiciária à aplicar a sanção mais adequada, atendendo aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sem prejuízo do réu.

Desse modo, incumbe ao Parquet, como representante da sociedade, estar sempre em luta pelo direito, não se acovardando em face dos eventuais impasses. Não se quer dizer com isso que o Ministério Público necessite atuar de acordo com a opinião popular e midiática, ao contrário, está incumbido de fazer o que é certo, sem se deixar levar por pressões externas. Entretanto, manter-se firme perante pressões externas não significa que esteja impedido de lutar por conquistas sociais, sendo que tal poder-dever é ínsito ao Ministério Público, sendo mais um motivo pelo qual a Instituição é conditio sine qua non num sistema jurídico de origem romana.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, percebe-se a atuação tanto jurídica como social do Parquet, com o fito de exercer sua função constitucional, cujo teor é essencial à justiça. Outrossim, teve como parâmetro os anseios de uma interpretação do Direito como um todo, nunca considerando-o sob perspectiva excessivamente formalista ou tomando-se por base fatos isolados, mas sob uma ótica teleológica e axiológica, tendo por corolário a investigação da ciência jurídica como um sistema uno, indivisível.

Igualmente, sem o intuito de exaurir o tema, até porque tarefa quase que impossível, estabeleceram-se análises referentes à participação do Ministério Público no devido processo legal, que permitem perceber o quão imprescindível sua atuação para alcançar o tão almejado fair trail. O due process of law precisa ser compreendido em sua total plenitude, qual seja, a correspondência legal, seguindo os ditames da lei, sem fazer distinções de qualquer ordem.

Ademais, tornou-se possível visualizar o cabimento do ativismo ministerial, dado que a instituição tem finalidades e como tal precisa sempre buscar atendê-las. Resta afastada a ideia de que o Parquet não possui liberdade de atuação, como o querem os reducionistas. Não obstante, cuidou-se de ressaltar as peculiaridades do sistema romanístico de direito, dentre as quais o império da lei, donde se extrai o princípio constitucional da legalidade: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Se não há lei que restrinja a atividade lícita, e esse princípio opera-se erga omnes, de onde se poderia deduzir que é possível dirimir a atuação do Ministério Público cujo amparo é constitucional? Permissa vênia, da lei é que não se pode fazer essa inferência.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado,1998.

______ . STF – AI nº. 529.733, voto do Min. Gilmar Mendes (DJ 01.12.2006).

COMPETÊNCIA. Procuradoria-Geral da República. Disponível em: <www.pgr.pt/grupo_pgr/MP_competencia.html>. Acesso em: 12 set. 2013.

COUTURE, Eduardo Juan. Os Dez Mandamentos do Advogado. Disponível em:

< http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/833131>. Acesso em: 12 set. 2013.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Ed. Método, 2010.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Ed. Saraiva: 1998.

SISTEMA. In: DICIONÁRIO do Aurélio Online, 2008. Disponível em: <http://www.dicionariodoaurelio.com/Sistema.html>. Acesso em: 17 set. 2013.

STF – HC: 87610 SC, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-228 DIVULG 03-12-2009 PUBLIC 04-12-2009 EMENT VOL – 02385-02 PP-00387

TEMER diz que MP é o Quarto Poder da República. JusBrasil, Minas Gerais, 2010. Disponível em: < http://amp-mg.jusbrasil.com.br/noticias/2112127/temer-diz-que-mp-e-o-quarto-poder-da-republica >. Acesso em: 19 set. 2013

 

[1] Advogado, pós-graduando em Direito Penal, Processual Penal e Segurança Pública pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ.

[2] Guardar identidade de razão é o mesmo que ser semelhante.

[3] Anteriormente denominada Lei de Introdução ao Código Civil (L.I.C.C)

[4] Interessante relembrar que, diversamente do entendimento vulgar, as cláusulas pétreas, encontradas no art. 60, § 4º da Constituição Federal, podem ser objeto de Emenda à Constituição. O diferencial está na reserva de que não podem ser abolidas. Neste sentido, uma PEC que vise ampliar a proteção de um direito fundamental, por exemplo, é perfeitamente válida e não fere os princípios constitucionais.

[5] STF – AI nº. 529.733, voto do Min. Gilmar Mendes (DJ 01.12.2006).

[6] De caráter extremamente excepcional, fruto de acordo entre países pós-segunda guerra.

[7] Art. 5º, LIII, CF.

[8]   Afirmação feita por Temer, enquanto presidente da Câmara dos Deputados, durante audiência com o presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), José Carlos Cosenzo.

[9] (STF – HC: 87610 SC, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe 228 DIVULG 03-12-2009 PUBLIC 04-12-2009 EMENT VOL-02385-02 PP-00387).

[10]   Nesse contexto, operadores seriam todos aqueles que, de alguma forma, contribuem para o acontecimento forense. Por conseguinte, não estaria se limitando a juristas, mas também a legisladores, administradores, enfim, todos os que cooperem na seara do Direito.

[11]  Como bem ensinam os cultos professores da propedêutica jurídica, especialmente Miguel Reale, o  Direito é mundo do deve ser, e não o do ser.

[12]   CF, art. 1º parágrafo único.

[13] Aqui, a palavra lei foi utilizada em sentido amplo (lei ordinária, complementar, enfim, ato normativo).

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