Resumo: O presente artigo pretende discutir a questão da democracia participativa e o empoderamento, contextualizando a entidade estatal, buscando a razão concernente de sua instituição. O Estado resulta da associação do povo, que sistematiza e centraliza o poder, e em contrapartida se destina a favorecer os interesses da coletividade através de suas funções, mormente a executiva, que se caracteriza pelo governo e a administração pública. O Estado brasileiro se consubstancia em um regime democrático, evidenciado pela Constituição Federal e apresenta a participação popular em muitas circunstâncias administrativas e políticas de decisões. A democracia é um anseio da população, propagada entre as gerações, com o intuito da liberdade, igualdade e a justiça social na vida em sociedade. Pela participação é transferido poder ao cidadão para que tome parte das decisões públicas que interessam à coletividade, isto contribui para o empoderamento do sujeito.
Palavras-chave: Interesse público, democracia participativa, empoderamento.
Abstract: The present article intends to discuss the issue of the participative democracy and the empowering, contextualizing the state, tracking the reason pertained of its institution. The State results from the people association, which systematizes and centralizes the power and in correspondence it is destined to favor the collectivity interests through its functions, overall the executive, which characterizes by the government and Public Administration. The Brazilian state consubstantiates in a democratic regime, demonstrated by the Federal Constitution and presents the popular participation in many administrative circumstances and political decisions. The democracy is a population desire, spread between the generations, with the freedom purpose, equality and social justice in the social life. By the participation, the power is transferred to the citizen in order to take part of the public decisions which interest the collectivity, this contributes for the empowerment of the citizen.
Keywords: Public interest, participative democracy, empowering
Sumário: Introdução, 1 Estado: contextualização, 1.1 – Surgimento e razões concernentes, 1.2 – Funções do Estado, 1.3 – Estado, Governo e Administração Pública, 2 – Finalidade do Estado: bem comum x interesse público, 2.1 – Considerações gerais sobre o bem comum, 2.2 – O interesse público, 3 – Democracia participativa, 4 – Empoderamento, Considerações finais, Referências.
Introdução
Este estudo inicia-se com algumas questões: Que relação de poder o Estado quis estabelecer com a inclusão da participação popular na gestão da coisa pública? O que quis o legislador quando possibilitou juridicamente a participação popular nas decisões dos governantes? Como se colocam os indivíduos quando suscitados por procedimentos ao regime democrático participativo?
Para elucidar estes questionamentos, propõe-se partir da contextualização da entidade estatal, buscando de forma sucinta na origem do Estado, motivos de sua existência, para através da identificação de suas funções, esclarecer a diferença entre elementos da função executiva, quer sejam o governo e a administração propriamente dita e, por fim neste contexto ressaltar a finalidade do Estado, que é o bem da coletividade, ou seja, que as ações e decisões tomadas pelo Estado ou quem o represente tem que estar de acordo com o interesse público.
Importante entender a dimensão jurídica da democracia participativa no Brasil, apontando os preceitos constitucionais que fundamentam e apresentam a questão da participação como condição de cidadania e direito, assegurada positivamente nas esferas política e administrativa à população.
Por fim, traz-se o assunto empoderamento, embora não se pretenda esmiuçá-lo, como conseqüência qualificada e válida oriundo da democracia e da participação popular, para a percepção das mudanças na sociedade, face a inovadora postura que vem adotando o cidadão, sob este enfoque.
1. Estado: contextualização
É da natureza do homem a sociabilidade. Viver em comunidade é condição para sua sobrevivência e desenvolvimento. Em contato com outros seres humanos se aperfeiçoam os aspectos da cultura, política, trabalho, lazer e individuais (virtudes), bem como fazem surgir novas necessidades da vida comum (sociedade).
O Estado surge a partir do homem e por via de conseqüência, com a sua evolução ao longo dos séculos e a necessidade de manter-se agregado, aperfeiçoou valores, repassou-os aos entes associativos que faziam parte, com o escopo de encontrar a convivência harmoniosa, paz e a felicidade, ideais e anseios estes que foram transportados, e ainda hoje há esta exigência de conformação do Estado ao homem e deste àquele, à unidade maior de organização.
O termo Estado, que deriva do latim, status (estado, posição, ordem, condição), significa situação permanente de convivência ligada à sociedade. Para De Plácido e Silva (1991, p. 205) “[…] é o agrupamento de indivíduos, estabelecidos ou fixados em um território determinado e submetidos à autoridade de um poder público soberano, que lhe dá autoridade orgânica”. Afirma ainda que Estado “[…] é a expressão jurídica mais perfeita da sociedade, mostrando-se também a organização política de uma nação, ou de um povo”.
Longe de precisar a definição do que seja o Estado face a sua complexidade, ater-se-á simplesmente a tecer algumas considerações acerca de sua origem, pois é o que interessa para o desenvolvimento deste artigo.
Observa-se que o Estado vem evoluindo no decorrer dos tempos, desde a Polis grega e a Civitas romana. Denominado como tal, era simplesmente desconhecido até o início da Idade Média, sendo que eram usadas as seguintes expressões para conceituá-lo: rich, imperium, land, terrae entre outros. A Itália consta como o primeiro país a utilizar o termo Stato; em seguida a Inglaterra, a França e a Alemanha, utilizaram o termo Estado para definir a ordem pública constituída . Contudo, foi com Maquiavel, o criador do direito público moderno, quem definitivamente introduziu a expressão Estado na literatura científica. (MALUF, 1995, p. 19).
Surge assim a imperiosa necessidade de que o agrupamento social institua mecanismos que controlem este Estado primitivo de autotutela e livre arbítrio.
Neste contexto aparece à figura do Estado, definida por Bobbio (1987, p. 73):
“O Estado, entendido como ordenamento político de uma comunidade, nasce da dissolução da comunidade primitiva fundada sobre os laços de parentesco e da formação de comunidades mais amplas derivadas da união de vários grupos familiares por razões de sobrevivência interna (o sustento) e externas (a defesa). […] O nascimento do Estado representa o ponto de passagem da idade primitiva, gradativamente diferenciada em selvagem e bárbara, à idade civil, onde ‘civil’ está ao mesmo tempo para ‘cidadão’ e ‘civilizado’” (Adam Ferguson).
A transformação das sociedades pré-estatais para uma sociedade civil significa a organização dos indivíduos além dos grupos meramente familiares ou de produção, para uma congregação governada por regras escritas. Inserindo-se nesta nova modalidade de organização, o homem abre mão da sua liberdade em favor de uma organização governada pela vontade coletiva, denominada Estado.
Verifica-se que o surgimento do Estado liga-se também ao estabelecimento de uma ordem social para os grupos humanos que se formam à partir da expansão do associativismo, opondo-se ao individualismo. Esta ordem social não se restringe às pessoas que compõem o conjunto social; abrange, no entender de Pallieri (1969, p. 77), o aspecto geo-político. Afirma o autor que “O Estado não aparece para regular as relações sociais de alguns em vez das de certos outros, mas, fundamentalmente, para regular as relações sociais que se desenvolvem num dado território.” (PALLIERI, 1969, p. 77).
Um resumo dos motivos que levaram o homem a abandonar o estado de natureza para organizar-se em sociedade, e, nesta, estruturar o Estado enquanto construção racional necessária a disciplinar e organizar esta convivência coletiva, é por Morais (1999, p. 61):
“O Estado torna-se fruto da razão. O homem convence-se de que nele conseguirá obter tudo aquilo que em natureza custa-lhe tão caro e, em muitos casos, é inatingível; aquilo que vem de suas paixões e desejos que no Leviatã permanecem, embora transformados. O cidadão não é um outro homem, o seu cálculo racional apenas tornou-se mais complexo, entendendo que na sociedade estatal terá multiplicado, ou adquirido, a possibilidade de uma vida exitosa”.
A idéia de que o homem renunciou a parte da sua liberdade individual em prol do coletivo, em busca do seu próprio bem-estar, está presente no pensamento de Ehrlich (1986, p. 186), para quem “O individualismo deve conceder à comunidade, sobretudo ao Estado, tanto quanto precisa para ser justo com o indivíduo.”
O homem abandona o estado de individualismo para reunir-se em sociedade construída na convivência coletiva, visando uma organização capaz de reger a todos a partir da soma das parcelas de liberdade individual que, pela renúncia de cada membro, lhe foram outorgadas. Foi delegado a este organismo, denominado Estado, o papel de garantir à sociedade e aos seus membros tudo aquilo que individualmente a estes fosse difícil ou impossível de obter. Refere-se tanto às questões ligadas ao bem-estar (segurança, saúde, alimentação, educação) quanto às de regulação e disciplina das relações mantidas internamente entre cada um dos membros da coletividade (poder de tutela), fazendo com que cada membro respeite as regras necessárias à manutenção da vida em sociedade.
De acordo com Maluf (1995, p. 22), “[…] o Estado é criação da vontade humana”, “[…] não tem autoridade nem finalidade próprias”, assim mostra claramente que condiz com “[…] uma síntese dos ideais da comunhão que ele representa”. Representando os homens unidos em sociedade, sua autoridade é por eles determinada e sua finalidade deve evidenciar os anseios e aspirações do povo. Acentua que “[…] os fins do Estado são os da comunidade nacional.” (MALUF, 1995, p. 309).
Em resumo, interpreta-se a instituição Estado, levando em consideração tanto o aspecto sociológico quanto o jurídico, como o resultado da associação de um povo, que sistematiza e centraliza o poder, e em contrapartida se destina a favorecer os interesses individuais e da coletividade, seguindo uma evolução progressiva e comum.
Traz-se a seguir, sucintamente, até para situar o contexto deste ensaio, de acordo com as teorias existentes, os pontos em que doutrinadores localizam o momento do aparecimento do Estado e suas causas mais satisfatórias, bem como as funções que lhe são atribuídas.
1.1. Surgimento e razões concernentes
Para Dallari (1991, p. 44-45), as teorias que explicam o aparecimento do Estado seriam de três ordens, as quais conjeturam:
a) O Estado sempre existiu, haja vista que, desde o início da humanidade, o homem encontra-se integrado numa organização social que tem poderes e autoridade para determinar o comportamento do grupo;
b) Por um certo tempo a sociedade de homens existiu sem o Estado, até que houve a necessidade de sua formação, com o objetivo de atender os interesses do grupo;
c) É admitido como Estado unicamente as sociedades políticas dotadas de características bem definidas.
Situa-se o estudo proposto na segunda teoria, segundo a qual o Estado foi criado pelos homens para suprir suas necessidades de convivência no coletivo.
Quanto às causas de aparecimento do Estado, leciona Dallari (1991, p. 45-49) a subdivisão em dois grupos, ou seja, a formação originária e a formação derivada dos Estados. A formação originária apresenta duas teorias principais:
a) O Estado formou-se natural ou espontaneamente, independente da vontade ou de um contrato. Como exemplos, apresenta-se a teoria da origem familiar, a teoria da origem em atos de força, a teoria da origem em causas econômicas ou patrimoniais e a teoria da origem no crescimento interno da sociedade;
b) Formou-se o Estado a partir da vontade de alguns homens (seria a formação contratual do Estado);
Já a formação derivada apresenta dois processos, quais sejam:
a) Fracionamento, o qual se dá quando parte do território de um Estado se desmembra e passa a constituir um novo Estado;
b) A união de Estados, que ocorre quando dois ou mais Estados resolvem unir-se, formando um novo Estado, adotando uma Constituição comum, desaparecendo os Estados preexistentes;
O presente estudo baseia-se na formação natural do Estado, de acordo com a Teoria da origem familiar, segundo a qual o Estado apareceu após fases sucessivas de transformação: família – tribo – sociedades – Estado. Foi com o progresso, quando as necessidades coletivas surgem e as sociedades adquirem forma complexa, então torna-se imprescindível a constituição do ente Estado.
A este respeito afirma Cavalcanti (1977, p. 118) que o “O Estado é o resultado da evolução política da sociedade civil que se foi aperfeiçoando até chegar a um grau mais adiantado de organização.” O Estado é fruto do desenvolvimento progressivo segundo a evolução histórica e social do homem em sociedade.
1.2 Funções do Estado
A existência do Estado é motivada pela realização de forma permanente de atividades consideradas vitais à coletividade. A estas atividades contínuas e sucessivas dá-se a denominação de funções, que Caetano (1996, p. 148) define: “actividade específica, complementar de outras actividades também específicas cujo exercício coordenado é indispensável à produção de certo resultado.”
Inúmeras são as teorias ditadas pelos doutrinadores que vêm caracterizar quais sejam as funções do Estado, entre eles, pode-se citar Aristóteles, Montesquieu, Jellinek, Duguit e Kelsen.[*]
Acredita-se que foi Jellinek quem mais se aproximou de uma efetiva classificação das funções do Estado, mesmo insuficiente. Contudo todos os estudos trouxeram grandes contribuições para a doutrina, embora ainda hoje elas (funções) venham sofrendo mudanças face às novas posições que o Estado assume.
Caetano (1996, p. 148), referindo-se à teoria de Jellinek, assevera que as funções do Estado são na ordem de três: a) função Legislativa, compreendendo a definição e imposição de regras abstratas para a realização dos fins do Estado. Condizem materialmente com as leis; b) função jurisdicional, que procura definir os direitos incertos ou contestados nos casos concretos, mediante processo rígido para alcançar o fim jurídico do Estado. Sua forma material são as decisões judiciárias e, c) função administrativa, que apresenta como premissa a realização de objetivos concretos pelas mais variadas formas, para preencher o fim cultural. Materialmente são os chamados atos administrativos. E ainda tem-se a categoria das atividades extraordinárias do Estado.
Afirma Streck e Morais (2000, p. 153), tradicionalmente, as funções apresentam-se da seguinte maneira:
“legislativa que se manifesta através da edição de normas gerais e obrigatórias para todos, a executiva que atua através da implementação de soluções concretas, sendo a função como responsabilidade de governo, com atribuições políticas, co-legislativas e de decisão, além da administração pública em geral e a jurisdicional cujo campo é o da solução em específico dos conflitos surgidos e regulados pelas regras gerais, interpretando e aplicando a lei”. (grifos do autor)
“As funções do Estado vêm sofrendo transformações na exata medida em que o Estado assume novos contornos.” (STRECK; MORAIS, 2000, p. 151). Já dizia Cotrin Neto (s.d., p. 12) “É óbvio que a cada período histórico corresponde uma estrutura particular da estatalidade, […]”. “Contudo, sempre o Estado é essencialmente o mesmo, ainda que se lhe ampliem ou reduzam as atribuições: mas ele padece incoercivelmente a ação do tempo, […].”
Importante ressaltar que, independentemente da tripartição de funções ser aceita ou não pelos doutrinadores, espelhar ou não a realidade das atividades desempenhadas pelo Estado, não há de se olvidar que este é um todo unitário, apresentando como fim primordial o bem da coletividade e que as diversas funções conjugam-se e estão em constante “processo de interpenetração” (STRECK; MORAIS, 2000, p. 152). Quer dizer, o Estado somente atingirá sua finalidade exercendo e relacionando todas as funções, que possuem caráter eminentemente complementar.
Compreender ou pelo menos conhecer as funções que a entidade estatal tem como atribuições é importante para situar o presente estudo dentro do sistema de organização, especialmente a função executiva do Estado, que diz respeito às decisões governamentais e a materialidade destas por vias administrativas para a efetivação das políticas de interesses da sociedade.
1.3 Estado, Governo e Administração Pública
É comum confundir-se as expressões Estado, Governo e Administração Pública. Embora se refiram, às vezes, aos mesmos aspectos ou tratem dos mesmos elementos jurídicos, cada qual tem a sua importância e aspectos diferenciadores, como será visto a seguir.
O Estado é criação da vontade do homem, não apresenta autoridade e muito menos finalidades próprias, evidencia os ideais da comunhão que representa. “Não há e não pode haver uma definição de Estado que seja realmente aceita. As definições são pontos de vista de cada doutrina, de cada autor.” (MALUF, 1995, p. 19)
Ainda, de acordo com Maluf (1995, p.22) pode ser conceituado nestes termos: “O Estado é o órgão executor da soberania nacional.” (grifos do autor).
Para Meirelles (1999, p. 54-55), o conceito de Estado se altera de acordo com o ângulo observado. Traz o autor a visão sociológica de Estado, que se traduz na “corporação territorial dotada de um poder de mando originário” (Jellinek) ; Já do ponto de vista político, constitui-se na “comunidade de homens, fixada sobre um território, com potestade de ação, de mando e de coerção (Malberg); E, sob o aspecto constitucional, é a “pessoa territorial soberana” (Biscaretti di Ruffia). (grifos do autor).
Da escola clássica francesa Queiroz Lima (apud MALUF, 1995, p. 18) define: “O Estado é a Nação politicamente organizada”. (grifos do autor).
Quanto aos termos Governo e Administração, eles caminham num mesmo sentido e na maioria das vezes são confundidos, embora espelham diversidades nos seus inúmeros aspectos.
A expressão Governo pode ser enfocada em três sentidos: formal, material e operacional. No sentido formal, “é o conjunto de Poderes e órgãos constitucionais”; no sentido material, constitui-se no “complexo de funções estatais básicas” e, em seu aspecto operacional, “é a condução política dos negócios públicos.”(MEIRELLES, 1999, p. 58-59).
Salienta que, o Governo traduz a “expressão política de comando, de iniciativa, de fixação de objetivos do Estado e de manutenção da ordem vigente.” (MEIRELLES, 1999, p. 58-59). (grifos do autor).
O Governo exerce sua atividade através de um conjunto de órgãos, cujas funções são criadas para sustentar e realizar os serviços objetivados pelo governo, e que necessariamente, devem ter “desempenho perene e sistemático, legal e técnico”. Vê-se, então, que os órgãos instituídos são, na verdade, os executores, de atos do governo, sendo que este lhe dá “maior ou menor autonomia funcional”. (FERREIRA, 1995, p. 10).
Para Afonso da Silva (1992, p. 98-99) o “governo é o conjunto de órgãos mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressada e realizada, ou o conjunto de órgãos supremos a quem incumbe o exercício das funções do poder político.” (grifos do autor).
O Governo se manifesta através das funções do Estado, que se perfazem: legislativa, executiva e judiciária. Neste sentido, Afonso da Silva (1992, p. 98-99) acrescenta:
“A função legislativa consiste na edição de regras gerais, abstratas, impessoais e inovadores da ordem jurídica, denominadas leis. A função executiva resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis; […] se distingue em função de governo, com atribuições políticas, co-legislativas e de decisão, e função administrativa, com suas três missões básicas: intervenção, fomento e serviço público. A função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesse.” (grifos do autor).
A Administração, pode, também, ser focalizada sob os aspectos formal, material e operacional. Sob o prisma formal, representa “o conjunto de órgãos instituídos para consecução dos objetivos do Governo”; sob a acepção material, constitui-se no “conjunto das funções necessárias aos serviços públicos em geral” e, sob o aspecto operacional, “é o desempenho perene e sistemático, legal e técnico, dos serviços próprios do Estado, ou por eles assumidos em benefício da coletividade.”(MEIRELLES, 1999, p. 59).
De acordo com Afonso da Silva (1992, p. 559), a “Administração Pública é o conjunto dos meios institucionais, materiais, financeiros e humanos preordenados à execução das decisões políticas. […] algo de que se serve para atingir fins definidos e […] um conjunto de órgãos a serviço do poder político e as operações, as atividades administrativas.” (grifos do autor).
Menegale (1950, p. 41) apresenta duas acepções para o termo administração. “Em sentido lato, administração é tôda atividade humana desenvolvida para alcançar determinados fins humanos. […]. Em sentido limitado, administração é a atividade do Estado para realizar seus fins.” No primeiro sentido de administração – aspecto geral de administração – predomina o “interêsse econômico”. Nesta acepção especial de administração – Administração Pública – “a inserção do elemento de Estado cria, a mais do interêsse econômico, o interêsse jurídico.” [sic] (grifos do autor).
Comparando Governo com Administração, Ferreira (1995, p. 10-11) diz que aquela é uma “atividade política, discricionária” e esta é uma “atividade neutra, normalmente vinculada à lei ou à norma técnica”. Por ser política, a conduta do governo é independente, mas com responsabilidade constitucional, ao passo que a administração, além de política, é hierarquizada, profissional, técnica e legal, não se lhe permitindo tomar decisões que fujam da sua área atributiva e dos limites jurídico-legais.
Meirelles (1999, p. 60) também traça um comparativo que auxilia na distinção entre as acepções Governo e Administração Pública. Diz o autor que: “governo é atividade política e discricionária; Administração é atividade neutra, normalmente vinculada à lei ou à norma técnica. Governo é conduta independente; Administração é conduta hierarquizada. O Governo comanda com responsabilidade constitucional e política, mas sem responsabilidade profissional pela execução; a Administração executa sem responsabilidade constitucional ou política, mas com responsabilidade técnica e legal pela execução.” Enfim, arremata dizendo que: “A Administração é o instrumental de que dispõe o Estado para pôr em prática as opções políticas do Governo.” (grifos do autor).
Em suma, para Menegale (1950, p. 68) a Administração consiste em: “Tôda a atividade tendente a satisfazer fins do Estado.” [sic]. E, as decisões e ações tomadas pela unidade estatal, seja elas no plano de governo ou da administração, tem que perfazer o interesse da coletividade.
2. Finalidade do Estado: bem comum x interesse público
Para compreender e diferenciar o princípio do bem comum originado pelo Estado e a finalidade essencial desta instituição, quer seja, o interesse público, é necessário que se faça alguns esclarecimentos sobre estes dois temas, embora apresentem significações afins, tendo em vista o uso terminológico pelos doutrinadores que ora se referem a um, ora a outro.
2.1 Considerações gerais sobre o bem comum
O princípio do bem comum é peça fundamental para entender as relações sociais, seja dos indivíduos entre si, como destes com a sociedade, sendo que sua perfeita captação proporciona, quando respeitado, o bom e harmônico convívio social.[†] (MARTINS FILHO, 2000, p. 10).
O ser humano procura aperfeiçoar sua natureza humana junto a outros semelhantes, bem como busca satisfazer suas necessidades e melhorar sua condição sustentado por sentimentos de confiabilidade nos demais homens. Por este motivo vivem agrupados, formam instituições e se encontram em “sociedades complexas organizadas politicamente”, vinculados por regras que dispõem sobre seus direitos e deveres, sobre normas de convivência, pelas quais sujeitam-se. (PERES, 1987, p. 110).
A existência do homem em sociedade condiz com um ser que procura com empenho nas instituições a que pertence (família, comunidade, sociedade, Estado), as quais cria e nas quais atua, atender, bem como corresponder, às expectativas de suas necessidades físicas, intelectuais e sociais.
Peres (1987, p.100), em estudo acerca do bem comum aduz às palavras do Papa João XXIII, na Encíclica Pacem in Terris:
“A razão de ser de quantos governam tem raízes, por completo, no bem comum. […]. Na época atual se considera que o bem comum consiste principalmente na defesa dos direitos e dos deveres da pessoa humana. Daí que a missão principal dos homens deva tender para duas coisas: de um lado reconhecer, respeitar, harmonizar, tutelar e promover tais direitos; de outro, facilitar a cada cidadão o cumprimento de seus respectivos deveres.”
Por bem comum, entende-se algo cujo conteúdo e meios visam o interesse não particular de pessoa física ou jurídica ou até de determinado grupo social, mas atinja os anseios do maior número possível de indivíduos que compõem o Estado. Muitas vezes o alcance não será geral, nem sequer o conteúdo atingirá bens considerados lícitos pela população ou por parte da mesma, pois nem todos concordam com as proposições ou atividades executadas.
Segundo Dallari (1991, p. 91), a delimitação conceitual de bem comum varia de acordo com a realização pessoal dos indivíduos que compõem o espaço físico da unidade estatal. Afirma que o Estado “[…] busca o bem comum de um certo povo, situado em determinado território. Assim, pois, o aperfeiçoamento integral da personalidade dos integrantes desse povo é que deve ser o seu objetivo, o que determina uma concepção particular de bem comum para cada Estado, em função das peculiaridades de cada povo.”
Azambuja (1997, p. 124) ao discorrer sobre o tema, traz a preciosa lição de Jean Dabin (La Philosophie de l’Ordre Juridique Positive. Ed. Sirey, Paris, 1939, pág. 160.) acerca da concepção de bem comum:
“[…] conjunto dos meios de aperfeiçoamento que a sociedade politicamente organizada tem por fim oferecer aos homens e que constituem patrimônio comum e ‘reservatório da comunidade: atmosfera de paz, de moralidade e de segurança, indispensável ao surto das atividades particulares e públicas; consolidação e proteção dos quadros naturais que mantém e disciplinam o esforço do indivíduo, como a família, a corporação profissional; elaboração, em proveito de todos e de cada um, de certos instrumentos de progresso, que só a força coletiva é capaz de criar (vias de comunicação, estabelecimentos de ensino e de previdência); enfim, coordenação das atividades particulares e públicas tendo em vista a satisfação harmoniosa de todas as necessidades legítimas dos membros da comunidade.”
Martins Filho (2000, p. 4), em estudo sobre o bem comum, diz que o mesmo: “[…] nada mais é do que o próprio bem particular de cada indivíduo, enquanto este é parte de um todo ou de uma comunidade.” Quer dizer que o bem da sociedade é o bem da(s) pessoa(s) que a compõem.
O bem comum exprime a existência de um valor imprescindível para a manutenção e sobrevivência de qualquer sociedade, ou seja, para que a comunidade permaneça, os homens que a constituem deverão auxiliar-se mutuamente, ser solidários[‡] uns com os outros.
A solidariedade constitui-se na “alma do bem comum”[§], pois cada indivíduo que compõe a sociedade busca a sua própria felicidade e este é o bem maior almejado e por todos os demais membros da comunidade. Portanto, constitui-se num bem universal, o qual pela sua natureza, há que ser proporcionado pelo ente maior, que é o Estado.
Dallari (1991, p. 90-91) alega neste sentido que, “[…] peculiar e próprio do Estado são as manifestações sistemáticas da vida solidária dos homens. Conservar, ordenar e ajudar são as três grandes categorias a que se pode reduzir a vida do Estado.” (grifos do autor). Assim, é da competência do Estado a promoção do bem comum e o bem-estar dos indivíduos.
Na realização do bem comum o Estado busca assegurar os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça, garantir a dignidade da pessoa humana, fundados numa sociedade fraterna e harmônica, livre de preconceitos, valores estes preconizados pela Constituição Federal, em seu preâmbulo[**]. As formas que o Estado usar para garantir estes bens devem ser legítimas, legais, morais, justas e vir especialmente saciar interesses superiores da coletividade.
É imprescindível, contudo, que cada indivíduo veja no princípio do bem comum a sua própria concretização e auxilie com o todo (sociedade). Todos os indivíduos devem colaborar para o bem comum da sociedade, o que pode ser realizado através dos seguintes comportamentos, de acordo com Martins Filho (2000, p. 9):
a) Obter e exercitar as virtudes morais (convívio social sadio e harmônico);
b) Realizar com competência a atividade profissional ou trabalho ao próximo;
c) Participar direta ou indiretamente nas atividades do Estado (exercer os deveres de cidadão);
d) Incitar a paz e harmonia na sociedade (respeitar a liberdade).
Não depende exclusivamente do Estado a efetivação do bem comum, a ação é conjunta, ou seja, há que haver a participação dos indivíduos que o compõem, no cumprimento de seus deveres e no exercício de seus direitos junto à sociedade, concomitantemente com os direitos e deveres da unidade estatal, os quais, todos, estão agasalhados e recolhidos na Constituição.
Ressalta-se que além do bem comum potencializar o bem particular, ao ser procurado com empenho, também busca o próprio bem visado pelo indivíduo. “O bem comum está, portanto, para permitir aos indivíduos a consecução de seus bens particulares, mas é superior a estes: o bem particular de um indivíduo não pode ser buscado em detrimento do bem comum da sociedade.” (MARTINS FILHO, 2000, p. 7). O bem comum da sociedade está acima do bem particular querido pelo indivíduo, isto porque aquele tem por escopo todo o grande número de indivíduos que compõem o Estado e este é individualíssimo, privado, particular de cada um.
A perseguição efetiva do bem comum pelo administrador público, nas hipóteses em que se verifica divergência com o bem buscado pelo particular, na verdade não configura esse confronto, haja vista os efeitos da prevalência do bem comum sobre o interesse particular, que são:
“1. mediatos – a defesa do bem comum se espraiará necessariamente ao bem particular do administrador que a promove, uma vez que melhora as condições gerais da sociedade ou da comunidade na qual se insere;
2.imediatos – o contraste entre o reconhecimento teórico, pelo administrador, da necessidade da promoção do bem comum e do interesse público, e a prática de atender primariamente ao seu interesse privado (desvirtuado do seu verdadeiro bem particular), gera um conflito interior no administrador, capaz de desnortear a sua capacidade de promover efetivamente o bem comum (hipocrisia ou duplicidade entre o discurso e a prática), que só se resolve com a efetiva opção pelo interesse público, capaz de gerar no administrador a consciência do dever cumprido, essencial para o bom desempenho da missão que lhe é afeta (coerência entre o discurso e a prática).” (MARTINS FILHO, 2000, p. 10).
O conflito entre o bem comum e o interesse particular existe quando o que o indivíduo ou o administrador público procura não condiz com aquele próprio para o bem almejado, julgado necessário e imprescindível para a vida, em conformidade com sua natureza (bem particular).
De qualquer forma compete ao Estado fazer cessar os conflitos de interesses na sociedade e determinar a quem faz juz o bem em discussão, conforme o ordenamento jurídico.
2.2 O interesse público
Interesse constitui-se no vínculo de interação que existe entre o homem e um bem, sendo que a condição deste é saciar algo à vida daquele, quer dizer a pessoa encontra nesse bem uma vantagem, uma utilização.
A origem da palavra interesse provém do latim e traz por si só a compreensão do seu significado: “inter” (entre) + “esse” (ser) = “interesse” (ser entre). Quer dizer, o interesse é o elo de ligação entre o sujeito e o bem, que se interrelacionam, haja vista que o sujeito vai atrás daquilo que julga ser um bem que irá saciá-lo.
Quando quem procura um bem é uma sociedade, está-se na presença do que se determina de interesse público[††], que transparece como a vinculação de dependência entre a sociedade e o bem comum que ela deseja, buscado por todos os que estão investidos de um poder público na sociedade.
Seguindo nesta esteira, compete ao administrador público, numa sociedade politicamente organizada, a promoção do bem comum, colocando em prática por meio de suas ações e comandos o interesse público da coletividade.
A definição de interesse público não é pacífica no ordenamento jurídico, uma vez que a doutrina simplesmente fixa linhas generalizadas, ficando ao encargo do administrador a tarefa de averiguar a preservação do mesmo, porque as necessidades de cada época se alteram e, conseqüentemente o direito permanece em constante transformação. Novos tempos trazem novas necessidades para o ser humano e, o Estado há de se remodelar com o novo indivíduo.
De acordo com Borges (1996, p.112), “entre os conceitos jurídicos indeterminados invocáveis no direito público, é o interesse público o de mais difícil determinação.”
Contudo, traz-se a definição de interesse público de alguns doutrinadores, para a compreensão, especialmente na contextualização do presente estudo.
De Plácido e Silva (1991, p.498), conceitua interesse público nestes termos: “Ao contrário do particular, é o que assenta em fato ou direito de proveito coletivo ou geral. Está, pois, adstrito a todos os fatos ou todas as coisas que se entendam de benefício comum ou para proveito geral, ou que se imponham por uma necessidade de ordem coletiva.”
Martins Filho (2000, p.11), em seu estudo, assim define o interesse público: “[…] é a relação entre a sociedade e o bem comum por ela perseguido, através daqueles que, na comunidade, têm autoridade (governantes, administradores públicos, magistrados, etc).”
Mello (1999, p.59), conceituou o interesse público como “[…] o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem.”
Já Borges (1996, p. 114), diz que “[…] o interesse público é um somatório de interesses individuais coincidentes em torno de um bem da vida que lhes significa um valor, proveito ou utilidade de ordem moral ou material, que cada pessoa deseja adquirir, conservar ou manter em sua própria esfera de valores.”
O interesse público não está dissociado dos interesses dos indivíduos que compõem a sociedade, constitui-se num julgamento face aos variados interesses pessoais, ou seja, é vínculo com o conjunto de necessidades dos indivíduos, cuja satisfação submete a determinadas condições, sendo estas os interesses individuais.
Esclarece Borges (1996, p. 114), a respeito da responsabilidade dos indivíduos perante o interesse público tutelado pelo Estado, que:
“Esse interesse passa a ser público, quando dele participam e compartilham um tal número de pessoas, componentes de uma comunidade determinada, que o mesmo passa a ser também identificado como interesse de todo o grupo, ou, pelo menos, como um querer valorativo predominante da comunidade. Sem dúvida, pode bem acontecer que uma parcela da comunidade não reconheça ou identifique aquele interesse como seu, ou cujo próprio interesse se ache, até, em colisão com esse querer valorativo predominante. O interesse público, em uma ordem democrática, não se impõe coativamente. Somente prevalece, em relação aos interesses individuais divergentes, com prioridade e predominância, por ser um interesse majoritário. O interesse público e o interesse individual colidente ou não coincidente, são qualitativamente iguais; somente se distinguem quantitativamente, por ser o interesse público nada mais que um interesse individual que coincide com o interesse individual da maioria dos membros da sociedade”.
Deve-se conceber o interesse público como resultado de uma associação entre o interesse pessoal dos indivíduos e as prerrogativas do Estado na administração da coisa pública, o qual tem por norte o bem comum da coletividade. Quando o Estado não atua em estrita obediência à finalidade pública não está atendendo ao interesse público e, via de conseqüência, o todo resta prejudicado, aqui considerados os interesses do coletivo.
Em síntese, o interesse público convive com o direito pessoal do indivíduo, não estando de forma alguma dissociado dos seus interesses, ou seja, de uma forma ou de outra o interesse público atende aos interesses dos membros que compõem a sociedade. O certo é que no âmbito do direito do Estado, o interesse público estará presente com maior ou menor intensidade, sendo que consiste no princípio basilar para o adequado desempenho e funcionamento eficiente da Administração Pública enquanto função do Estado, a qual possui por escopo atender aos interesses e necessidades da coletividade.
3. Democracia participativa
A democracia evidencia um anseio do povo, propagado entre as gerações, buscando a liberdade, igualdade e a justiça social na vida em sociedade. “O homem, livre e entusiasta, constrói a felicidade e a vida, no esplendor da convivência democrática, com um sentimento de liberdade e de alegre confiança no futuro.” (FERREIRA apud SANT’ANA, 2003).
Corroborando, Afonso da Silva (1992, p. 115) diz que “[…] a democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido direta ou indiretamente, pelo provo e em proveito do povo.” (grifos do autor)
A Carta Política de 1988, funda-se no princípio democrático, enunciado especialmente pelo preâmbulo e artigos 1º e 3º, incisos II e IV.[‡‡] A Constituição institui o Estado Democrático de Direito fundado nos princípios da soberania popular, em que o povo acaba por ser a única fonte do poder, e pela participação, direta ou indireta, do povo no poder, consubstanciado este na vontade popular.
O princípio da democracia participativa, inserido no artigo 1°, parágrafo único da Constituição Federal do Brasil, agasalha os postulados da democracia representativa e participativa. Ainda que o sistema representativo seja o elemento nuclear da definição de democracia, a Constituição estabelece que a democracia representativa e a participativa são compatíveis, elas não se excluem ou concorrem entre si, mas se complementam na estruturação do Estado Democrático.
Frisa-se o disposto no enunciado citado que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, este dispositivo assinala a presença no regime brasileiro de um modelo de democracia participativa, semidireta ou plena, em que o cidadão exerce a soberania popular para além do voto, preserva em potencial os cidadãos. (PILATTI apud SANT’ANA, 2003).
O princípio democrático que fundamenta o Estado Democrático traduz a complexidade em que se estrutura a própria unidade estatal, neste sentido Canotilho (apud MARTINÉZ, 2004), esclarece:
“Em primeiro lugar, o princípio democrático acolhe os mais importantes postulados da teoria democrática representativa […] Em segundo lugar, o princípio democrático implica democracia participativa, isto é, a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs político-democráticos. É para este sentido participativo que aponta o exercício democrático do poder […], a participação democrática dos cidadãos […], o reconhecimento constitucional da participação direta e ativa dos cidadãos como instrumento fundamental da consolidação do sistema democrático […] e aprofundamento da democracia participativa”. (grifos nossos).
Os valores de democracia enunciados pela Constituição brasileira irradiam sobre todos os elementos que estruturam o Estado, bem como atinge a ordem jurídica, a qual deverá, por força destes valores democráticos, absorver a vontade popular e ajustar-se ao interesse da coletividade. (AFONSO DA SILVA, 1992, p. 108). Esta vontade popular que o Estado precisa sentir para conformar-se com a democracia dá-se com a participação efetiva do povo na formação dos atos de governo e nos processos decisórios. Isto possibilita a sociedade livre, justa e solidária, como propõe o art. 3º, II da CF, com a efetivação do processo de convivência social (Estado + povo).
O regime democrático brasileiro apresenta a “idéia de participação”, em que “O princípio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo. (AFONSO DA SILVA, 1992, p. 128). (grifos do autor).
O princípio democrático deve “institucionalizar a prática democrática da política”, como forma de regular e de por limites nas ações e decisões tomadas ou ainda controlar o poder dos que detém o domínio, neste sentido Canotilho (apud MARTINÉZ, 2004) afirma:
“O princípio democrático não elimina a existência das estruturas de domínio mas implica uma forma de organização desse domínio. Daí o caracterizar-se o princípio democrático como princípio de organização da titularidade e exercício do poder. Como não existe uma identidade entre governantes e governados e como não é possível legitimar um domínio com base em simples doutrinas fundamentantes é o princípio democrático que permite organizar o domínio político segundo o programa de autodeterminação e autogoverno: o poder político é constituído, legitimado e controlado por cidadãos (povo), igualmente legitimados para participarem no processo de organizar da forma de Estado e de governo”.
A democracia que está aparecendo é participativa ou republicana, eis que tradicionalmente esta tem por base a efetiva participação dos cidadãos nas decisões do governo, ou seja, no processo político e isto é primordial para garantir o Estado de Direito.
Salienta-se ainda citando Canotilho (apud MARTINÉZ, 2004) que o princípio democrático deve nortear-se pelos direitos fundamentais, já consagradas constitucionalmente:
“Tal como são um elemento constitutivo do Estado de Direito, os direitos fundamentais são o elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: 1) significa a contribuição de todos os cidadãos […] para o seu exercício (princípio-direito da igualdade e da participação política); 2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por exemplo, direitos constitutivos do próprio princípio democrático); 3) co-envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica, social e cultural”. (grifos do autor).
A presença de cidadãos participativos nas ações governamentais, faz com que os governos não atendam a lei simplesmente por obrigação ou constrangimento, mas porque percebem que é de interesse da coletividade, estando de acordo com os direitos fundamentais preconizados pela Constituição Federal. Isto porque a participação é uma determinação política e constitucional, que possui proteção jurídica.
E, a Constituição Federal de 1998 apresenta inúmeros dispositivos que referenciam as formas democrática de participação plena dos cidadãos em processos decisórios.[§§]
De acordo com Santos e Avritzer (apud PEREIRA, 2005), a democracia participativa consiste em um dos principais meios por meio da qual a emancipação da população está se reinventando neste século, possibilitando restaurar e concretizar a autonomia e igualdade de condições.
Ostrom (apud PEREIRA, 2005) assevera que “é o espaço público aberto e a forma como ele se conecta a formas de Estado mais estruturadas que tornam o processo de governar acessível aos cidadãos”. É neste espaço que as pessoas da sociedade aprendem o significa real do que é conviver em uma democracia, em que existe a liberdade e a igualdade da participação em debates públicos, em que a opinião da população torna-se a cada dia mais relevante e, se progride para uma cultura da investigação pública e se fortalece este ideal na sociedade.
A democracia participativa apresenta como premissa o interesse do povo na autodeterminação ou autonomia política, num processo de estrutura que requer a plena participação dos cidadãos. O princípio da participação, incluindo aqui o âmbito legislativo e judicial e não somente no plano das ações governamentais e de execução, está diretamente ligado à legitimidade das instituições democráticas, fazendo com que a participação nos processos decisórios aproxime o cidadão das discussões e decisões públicas em que os interesses da coletividade estejam envolvidos de forma direta. (CANOTILHO apud OLIVEIRA FILHO, s.d. ).
“A democracia participativa é o caminho do futuro. Há que formar no povo a consciência constitucional de suas liberdades, de seus direitos fundamentais, de sua livre organização de poderes.” (BONAVIDES, 2005).
4. Empoderamento
De acordo com Cavalcante Pereira (2006) empoderamento (Empowerment) significa, de forma generalizada:
“[…] a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma situação particular (realidade) em que se encontra, até atingir a compreensão de teias complexas de relações sociais que informam contextos econômicos e políticos mais abrangentes.”
A emancipação propiciada ao cidadão, por esta tomada de parte legítima das discussões públicas e dos processos decisórios, favorece o despontar do empoderamento na coletividade.
Esta consciência de “poder” participar efetivamente das ações e condutas públicas é necessária para que a pessoa supere processos de dominação política e promova mudanças sociais, além do que contribui para o fortalecimento individual e coletivo da cidadania, da dignidade humana, da liberdade e da igualdade, preceitos estes que se constituem diretrizes da democracia participativa.
Gohn (2004), destaca que a categoria empoderamento não apresenta um caráter universal, haja visto que:
“Tanto poderá estar referindo-se ao processo de mobilizações e práticas destinadas a promover e impulsionar grupos e comunidades – no sentido de seu crescimento, autonomia, melhora gradual e progressiva de suas vidas (material e como seres humanos dotados de uma visão crítica da realidade social); como poderá referir-se a ações destinadas a promover simplesmente a pura integração dos excluídos, carentes e demandatários de bens elementares à sobrevivência, serviços públicos, atenção pessoal etc., em sistemas precários, que não contribuem para organizá-los – porque os atendem individualmente, numa ciranda interminável de projetos de ações sociais assistenciais.”
“O ‘empoderamento’ da comunidade, para que ela seja protagonista de sua própria história […]. Trata-se de processos que tenham a capacidade de gerar processos de desenvolvimento auto-sustentável […].” (GOHN, 2004).
Esta idéia do empoderamento deve instigar nos indivíduos a possibilidade de realização plena dos seus direitos e representar para a sociedade “[…] espaço institucional de articulação e emergência de novos agentes/atores políticos envolvidos na transformação democrática da relação Estado-sociedade.” (CAVALCANTI PEREIRA, 2006).
De acordo com Putman (apud GOHN, 2004), comunidades cívicas e capital social são definições básicas para a compreensão do empoderamento. Caracteriza-se comunidades cívicas como “cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração”. A prática democrática tem como derivações “relações horizontais, espírito de reciprocidade e cooperação.”
Já quanto ao capital social, para Putman (apud GOHN, 2004):
“[…]o cerne da idéia da teoria do capital social é que as redes têm valor [..]. Enquanto capital físico refere-se a objetos físicos e capital humano refere-se a propriedades dos indivíduos, capital social refere-se à conexão entre indivíduos, redes sociais e às normas de reciprocidade e lealdade que nascem deles. Neste sentido, capital social é a “virtude cívica” e esta […] é mais poderosa quando imersa numa densa rede de relações sociais recíprocas. Uma sociedade de muitos indivíduos virtuosos, mas isolados, não é necessariamente rica em capital social “.
Cavalcante Pereira (2006) assevera que “O empoderamento devolve poder e dignidade a quem desejar o estatuto de cidadania, e principalmente a liberdade de decidir e controlar seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro.”
De acordo com Baquero (apud BAQUERO, BAQUERO, KEIL, s.d.), o empoderamento interpretado como
“[…] processo e resultado, pode ser concebido como emergindo de um processo de ação social, no qual os indivíduos tomam posse de suas próprias vidas pela interação com outros indivíduos, gerando pensamento crítico em relação à realidade, favorecendo a construção da capacidade pessoal e social e possibilitando a transformação de relações sociais de poder.”
No Brasil, presencia-se uma resignificação do contexto da participação efetiva e plena do cidadão na coisa pública, contribuindo para o empoderamento dos mais variados setores populares, ainda que seja de forma a clarear as formas jurídicas desta participação, enunciada pela Carta Política, e redefiní-las sob os direitos fundamentais da democracia. Contudo, apesar destas ações serem lentas oportuniza e capacita a sociedade a se organizar e defender seus interesses em defesa da cidadania e dos seus direitos.
Neste contexto, assevera Gohn (2004) que a participação da sociedade civil é importante “ […] não apenas para ocupar espaços antes dominados por representantes de interesses econômicos, encravados no Estado e seus aparelhos. A importância se faz para democratizar a gestão da coisa pública, para inverter as prioridades das administrações […].”
Alcançar a democracia de forma justa e igualitária, traz como implicação motivar e propiciar que os indivíduos participem ativamente da gestão pública. Para isto o Estado deve incentivar e valorizar a participação popular.
Para que a participação seja ativa e alcance os preceitos da democracia participativa, Gohn (2004) apresenta alguns pressupostos, os quais devem estar presentes nesta efetivação:
“a. Uma sociedade democrática só é possível via o caminho da participação dos indivíduos e grupos sociais organizados. b. Não se muda a sociedade apenas com a participação no plano local, micro, mas é a partir do plano micro que se dá o processo de mudança e transformação na sociedade. c. É no plano local, especialmente num dado território, que se concentram as energias e forças sociais da comunidade, constituindo o poder local daquela região; no local onde ocorrem as experiências, ele é a fonte do verdadeiro capital social, aquele que nasce e se alimenta da solidariedade como valor humano. O local gera capital social quando gera autoconfiança nos indivíduos de uma localidade, para que superem suas dificuldades. Gera, junto com a solidariedade, coesão social, forças emancipatórias, fontes para mudanças e transformação social. d. É no território local que se localizam instituições importantes no cotidiano de vida da população, como as escolas, os postos de saúde etc. Mas o poder local de uma comunidade não existe a priori, tem que ser organizado, adensado em função de objetivos que respeitem as culturas e diversidades locais, que criem laços de pertencimento e identidade sócio-cultural e política”. (grifos do autor)
Neste contexto da participação, o empoderamento, perpassa idéia de democracia participativa e garantia de direitos, envolvendo sobremaneira o agir do indivíduo, em “processos de reflexão sobre a ação” com vistas a conscientização sobre diferentes fatores que envolvem sua vida (econômica, política e cultural), os quais coadunam com a realidade, incidindo diretamente sobre o sujeito. (BAQUERO, BAQUERO, KEIL, s.d.).
O empoderamento do indivíduo perpassa pela consciência de sua condição de cidadão na sociedade, sujeito dotado de poder, legitimamente garantido pelo princípio democrático, que lhe confere o direito de participar dos processos governamentais de cunho decisórios, com intuito de agir diretamente sobre os fatores que influenciam sobre a qualidade de sua vida.
Considerações finais
O Estado sendo instituição originária da organização dos homens em sociedade, apresenta como fim precípuo o interesse público, este constitui-se norte das ações e decisões buscadas no desenvolvimento das funções estatais.
No caso brasileiro, o Estado está estruturado de forma que vige os princípios democrático e participativo, consolidados pela Constituição Federal, desde o seu preâmbulo e ainda em inúmeros dispositivos, os quais vem concretizar os anseios da população, quer seja a liberdade, a igualdade, a dignidade e a justiça social.
Para alcançar estes valores, o indivíduo tem que deixar de lado a acomodação, emancipar-se como cidadão e de forma ativa e plena dispor dos poderes que estão assegurados constitucionalmente para participar das decisões políticas e administrativas.
Na condição de cidadão, o indivíduo tem que se empoderar e imbuir-se de vontade para tomar parte e participar dos debates públicos e das decisões sobre os interesses que melhor atenderão as necessidades sejam elas coletivas ou individuais, as quais irão compor as políticas públicas.
Referências bibliográficas:
Advogada, mestre em Direito Público pela UFPR, professora universitária da UNOCHAPECÓ.
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