1. A vida humana embrionária e o Supremo Tribunal Federal
Vivemos um momento histórico, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a se pronunciar sobre o conteúdo do direito à vida, expresso no caput do artigo 5º. da Constituição Federal, em razão da tramitação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n°. 54) e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n°. 3510).
A ADPF n°. 54 foi movida pela Confederação dos Trabalhadores na Saúde – CNTS e objetiva que o STF declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, os artigos 124, 126 e 128, I e II do Código Penal como impeditivos da interrupção da gestação em caso de gravidez de feto anencefálico, reconhecendo o direito subjetivo da gestante em se submeter a tal procedimento.
Já a ADI n°. 3510[1] objetivou impugnar a constitucionalidade do artigo 5o. e parágrafos da Lei n° 11.105/2005, por violação do art. 1o., III da Constituição Federal, que permite a utilização de células-tronco embrionárias originárias de embriões excedentes das técnicas de reprodução assistida, desde que sejam embriões inviáveis[2] ou congelados há mais de 3 anos. No desenvolvimento da argumentação, sustentou-se que: a) a vida embrionária se inicia com a fecundação e que, a partir desse momento, se estaria diante de um ser humano; b) que a utilização de células-tronco adultas vem apresentando progressos significativos, ou até melhores do que com as células-tronco embrionárias; c) aponta que, em outros países, há específica proteção aos embriões, proibindo-se a utilização de células-tronco embrionárias. No julgamento da ADI 3510, os Ministros, por maioria, decidiram pela constitucionalidade do artigo 5º. da Lei de Biossegurança.
Por uma questão de delimitação temática, trataremos, neste trabalho, do objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou seja, da proteção da vida embrionária ex utero. Vale ressaltar que já expusemos nosso posicionamento acerca da equiparação entre o embrião in utero e ex utero em outro trabalho[3].
O STF convocou audiência pública para a oitiva de 22 especialistas sobre o início da vida humana, com o objetivo de obter dados para, segundo o ministro Carlos Ayres Brito, “formular de forma mais clara o que é vida, já que do ponto de vista técnico, não existe na Constituição um conceito claro de quando começa a vida”[4].
Os argumentos dos especialistas a favor do uso das células-tronco foram os seguintes: 1) “as células-tronco adultas não servem para o tratamento de doenças genéticas porque todas as células do corpo de um paciente doente apresentam o mesmo erro genético”[5]; 2) academias de ciência de 66 países já se declararam a favor de tais pesquisas[6]; 3) “pesquisar células-tronco embrionárias obtidas de embriões congelados não é resultado de um ato de aborto, porque o embrião congelado por si só não é vida, se não for transferido para o útero”[7]; 4) “o pré embrião, até o décimo quarto dia, não apresenta as células do sistema nervoso central, o que poderia ser comparado com o parâmetro utilizado para determinar a morte encefálica.”[8]; 5) “DIU e pílula do dia seguinte são permitidos no Brasil, distribuídos pelo SUS e são procedimentos que impedem o desenvolvimento da gravidez dentro do corpo da mãe, mesmo assim não são condenados nem considerados uma forma de aborto”[9]; 6) “Se não tivermos nossas células embrionárias, os brasileiros terão que procurar esse tipo fora do país”[10]; 7) a vantagem da utilização de células-tronco embrionárias é a sua plasticidade (capacidade de se transformar em mais de 220 tipos de células diferentes)[11]; 8) Não são embriões criados especificamente para a pesquisa e sim, embriões que serão descartados[12]; 9) “como a morte do ser humano é coincidente com a morte encefálica, então, se a morte coincide com o término da atividade do sistema nervoso é lícito supor o início da vida humana com o estabelecimento dos três folhetos embrionários, que segundo a Resolução 33/2006 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ocorre 14 dias após a fecundação”[13].
Já os especialistas contrários à utilização das células-tronco embrionárias sustentaram que: 1) “O embrião é um indivíduo, inclusive na sua primeira fase de desenvolvimento”[14]; 2) “Somos humanos a partir do momento da fecundação e a dignidade humana está lá, intrínseca”[15]; 3) “A mudança que passamos ao longo da vida é apenas funcional, e não genética”[16]; 4) “O começo da vida está no início do início do processo e não no início do final, ou seja, temos que respeitar o ser humano a partir da fecundação. A sustentação desta afirmativa é biológica e o argumento é racional”[17]; 5) “Duas a três horas depois da fecundação, o embrião já se comunica com a mãe. Isto não é vida?”[18]; 6) “tanto no homem como na mulher, temos experiências com células germinativas (já diferenciadas) que podem ser revertidas para células com características de células embrionárias, pluripotentes, que podem ser utilizadas na medicina regenerativa”[19]; 7) “O êxito da aplicabilidade das células-tronco adultas nas várias especialidades médicas deve ser valorizado através da cooperação entre o pesquisador e o médico”[20]; 8) “Após o quinto dia, se este embrião não for transferido para o útero da mãe, ele morre, mas o seu desenvolvimento até este dia é autônomo”[21]; 9) “é importante que a comunidade científica una esforços para obter algo que traga desenvolvimento, mas que não agrida a vida humana”[22]; 10) “Não é compreensível do ponto de vista ético, mesmo em nome do progresso da ciência, envolver o ser humano em uma pesquisa que precisará destruí-lo”[23]; 11) “não seria respeitoso com a dignidade humana utilizar classificações didáticas para remanejar o marco inicial da vida de um ser humano e, a partir daí, passar a executar lesões físicas à sua estrutura, com a justificativa de que abaixo do período arbitrado já não haveria vida quando todas as evidências mostram o contrário”[24]; 12) “É no mínimo contraditória a situação em que uns embriões são usados para pesquisas enquanto que outros são ofertados às condições para prosseguir no seu desenvolvimento”[25]; 13) “Parece preferível deixar aos embriões pelo menos a possibilidade de completar o seu desenvolvimento através de seus genitores ou eventualmente por adoção”[26]; 14) “Lembremos a metafísica dos costumes, de Emmanuel Kant, ‘a dignidade é o princípio moral que enuncia que a pessoa humana não deve nunca ser tratada apenas como um meio, mas como um fim em si mesma”[27]; 15) “O embrião humano não é um simples aglomerado de células porque o comportamento dele é completamente diferente do de outras células”[28]; 16) “O cérebro se desenvolve porque o embrião se desenvolve. Não é a mãe que desenvolve o cérebro do feto”[29]. .
2 Pluralismo e o Estado laico
Os adeptos das pesquisas com células-tronco embrionárias costumam reduzir os argumentos contrários a este tipo de pesquisa, afirmando que sua fundamentação é baseada na doutrina da Igreja Católica. Visão que, além de reducionista, pois se fecha ao diálogo e ao pluralismo, parece sustentar que o Estado está proibido de sustentar tudo aquilo que a Igreja Católica defende
A Igreja Católica prega o respeito ao semelhante e, portanto, entende como pecado tirar a vida de outrem. Interessante como este comportamento, também, é tipificado pelo Código Penal como homicídio. Trata-se de uma adoção da ideologia da Igreja Católica pelo legislador?
Deve-se ter o cuidado com a INTOLERÂNCIA. Vivemos em um estado laico e não podemos impor, em razão de crenças religiosas, determinados posicionamentos. Mas, devemos ser prudentes na análise das argumentações, pois podemos chegar à mesma conclusão que a sustentada pela Igreja Católica com base em argumentos não religiosos. A intolerância daqueles que sustentam a pesquisa com células-tronco embrionárias é tão grande em relação a qualquer argumentação contrária, que eles acabam por adotar a postura de negação ao DIÁLOGO e de se permitir ver além do que a simples fachada ideológica poderia estar tentando mostrar.
Além disso, vários pesquisadores sustentam a viabilidade de maiores investimentos na linha de pesquisa de células-tronco adultas. Apesar da menor plasticidade, inúmeros pesquisadores vêm apresentando excelentes resultados com esse tipo de pesquisa[30] e alegam um boicote a investimentos nesta outra frente de pesquisa. Onde está o pluralismo diante das várias frentes de pesquisa?
O que é mais perigoso neste jogo de verdades, vaidades e promessas de cura é a manipulação da informação, ou pior, a informação parcial. Fomos levados a acreditar pela mídia e pelos pesquisadores que a clonagem terapêutica não envolve, de forma alguma, a destruição de uma vida humana e, também, que a pesquisa com células-tronco embrionárias só pode ser realizada com embriões que seriam descartados.
Primeiro, a clonagem terapêutica envolve a criação de um embrião humano. Aqueles que . não consideram um embrião de 5 dias uma vida humana estão apresentando um dos posicionamentos e não uma verdade absoluta. Segundo, não há autorização no ordenamento jurídico brasileiro, nem na Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, para o descarte. Portanto, não se trata de um “material” que seria descartado, mas de embriões que foram gerados para fins de implementação de um projeto parental. Assim, só se justificaria a possibilidade de embriões excedentes, e mesmo assim é discutível, caso tais embriões fossem destinados a um projeto parental e não como estoque para pesquisas e terapias experimentais com células-tronco embrionárias.
Precisamos ser honestos com a sociedade, precisamos INFORMAR para que a escolha seja feita de maneira livre e esclarecida,pois, caso contrário, haverá uma IMPOSIÇÃO. Afinal, segundo Luís Roberto Barroso,
“… cabe à Constituição garantir o espaço próprio do pluralismo político, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos. A participação popular, os meios de comunicação social, a opinião pública, as demandas dos grupos de pressão e dos movimentos sociais imprimem à política e à legislação uma dinâmica própria e exigem representatividade e legitimidade do poder”[31]
Ora, seriam frutíferos esses mecanismos se eles não fossem levados apenas para uma das margens do rio. A mídia divulgou os sucessos das pesquisas e terapias com células-tronco, omitindo tratar-se de células-tronco adultas , confundindo a opinião pública ao não informar que não há qualquer tratamento com células-tronco embrionárias..
Os mecanismos democráticos só cumprem a sua tarefa quando todas as “verdades” são conhecidas e quando o verdadeiro pluralismo é realizado. Quantos brasileiros assistiram à audiência pública convocada pelo STF? E mais, em que medida o STF foi instrumentalizado para decidir essa questão se ele apenas ouviu especialistas totalmente envolvidos com as duas frentes de pesquisa: pesquisas com células-tronco embrionárias e pesquisas com células-tronco adultas? O STF ouviu a opinião de embriologistas desvinculados de interesses pessoais e institucionais? Como acreditar que esse espaço de debate público ocorreu diante desse quadro? Como sustentar a legitimidade da razão pública, se apenas o parcial lhes foi apresentado?
Segundo Luís Roberto Barroso
“As leis editadas pelo Congresso Nacional, por sua vez, expressam a vontade majoritária da sociedade em relação à disciplina da matéria que contém. Cabe ao Supremo Tribunal Federal o papel relevante e delicado de encontrar o ponto de equilíbrio entre (i) a determinação do sentido dos valores inscritos na Constituição e o (ii) respeito ao processo político majoritário”[32]
Ressaltamos, mais uma vez, que as leis editadas pelo Congresso só expressam a vontade majoritária na medida em que há informação, e que o papel do STF é o de investigar e respeitar o marco presente no ordenamento jurídico brasileiro.
3 A reprodução humana e o estatuto biológico do embrião humano
Para o enfrentamento da temática, é importante considerarmos as alterações provocadas pelo conhecimento humano no estatuto biológico do embrião humano. Hoje, sabe-se que a reprodução humana faz-se pelo processo de fecundação interna, mediante a união do óvulo e do espermatozóide, a qual resultará na formação do embrião. Esse processo de reprodução natural foi profundamente alterado pelas técnicas de reprodução assistida, que possibilitaram a concepção extracorpórea. Tais técnicas trouxeram diversos benefícios, mas, por outro lado, levantaram sérios questionamentos, tal como o destino a ser dado aos embriões excedentários, entre outros.
A análise dos marcos iniciais da vida humana permitirá desmitificar alguns posicionamentos que aparentam “verdades” e encobrem atitudes utilitaristas.
3.1. A concepção natural
Ao penetrar no ovócito, o espermatozóide desencadeia a formação de um pronúcleo masculino, no interior do pronúcleo feminino, fazendo com que a sua cauda se degenere. Os pronúcleos, ao se contatarem, perdem a capa nuclear, o que leva à duplicação de seus DNAs. Nessa fase, ocorrem diversas transformações, passando o embrião a ter estrutura cromossômica própria, inclusive com a determinação do sexo e o desenvolvimento dos blastômeros.
Ao progredir pela trompa uterina, o embrião sofre inúmeras transformações mitóticas, dividindo-se, cerca de trinta horas após a fertilização, em duas células, chamadas blastômeros, depois em 4, depois em 8, constituindo blastômeros cada vez de menor tamanho, para formar um agregado celular chamado mórula[33], composto por 16 blastômeros que penetram no útero, aproximadamente em três dias. Ao chegar à cavidade uterina, o endométrio estará aumentado em espessura, permitindo a ocorrência do fenômeno da nidação, que ocorre entre o quarto e o quinto dia após a fecundação[34], dando início à gestação.
O processo relatado até então se refere à reprodução natural. Contudo, com a técnica de fertilização in vitro, as fases iniciais já podem ser realizadas fora do útero materno. É o que se passa a examinar.
3.2. A concepção medicamente assistida
As variantes das técnicas de reprodução assistida são as seguintes: fertilização in vitro com transferência intratubária de embriões (Fivete), transferência intratubária de gametas (GIFT), transferência intratubária de ovócitos em estágio pronuclear (PROST) ou de zigotos (ZIFT), dentre outras.
As técnicas de fertilização assistida podem ser divididas em dois grupos: a) técnicas invasivas, ocorrendo a fertilização no interior do organismo materno; e b) técnicas não-invasivas, ocorrendo a fertilização fora do organismo materno.
A inseminação pode ser homóloga ou heteróloga. A primeira é a técnica mais antiga e consiste na inseminação da mulher com sêmen do marido ou companheiro, por meio da injeção do líquido seminal na cavidade uterina ou no canal cervical durante a fase fértil. Já na inseminação heteróloga, os gametas que se injetarão na mulher não pertencem ao marido ou companheiro, e sim a um doador anônimo.
O primeiro registro histórico de fecundação extracorpórea é de 1944, quando os biólogos Rocky e Menken conseguiram extrair quatro embriões humanos de cem ovócitos fertilizados. Foi uma das primeiras técnicas de reprodução assistida, obtendo êxito, em 1978, com o nascimento de Louise Brown.
O procedimento da fertilização in vitro apresenta diversas etapas, quais sejam: hiperestimulação ovariana e monitoração do crescimento folicular, coleta dos ovócitos, preparo do esperma, inseminação dos ovócitos, cultivo in vitro e transferência dos embriões.
Cada ovócito será inseminado com cerca de 50 espermatozóides móveis por mililitro de meio contendo ovócito. Após a fertilização, a suspensão de ovócitos e espermatozóides será levada para uma estufa, onde permanecerá por um período mínimo de 12 horas e máximo de 18 horas. Em seguida, procede-se à avaliação, por meio de microscópio, dos indicadores da fertilização e da concepção, tais como a expulsão do segundo corpúsculo polar, o aparecimento dos pronúcleos masculino e feminino e a clivagem. Fertilizados ou não, os ovócitos serão transferidos para outra placa com maior concentração de soro, para complementação do meio, permanecendo na estufa para serem novamente examinados após 24 horas. Em seguida, far-se-á a transferência dos embriões em estágio de duas a oito células.
Na ausência de uma lei regulamentadora, a transferência de embriões para a cavidade uterina é limitada ao número de quatro, por determinação da Resolução n°. 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, objetivando a não-ocorrência de gestações múltiplas ou até de risco para a gravidez. O processo de transferência dos embriões dá-se mediante a colocação dos mesmos em uma cânula, que será introduzida da cérvice até o fundo uterino, onde serão depositados. Após a cânula ser retirada, há exame por microscópio para a verificação da existência de algum embrião no aparelho. A referida Resolução não permite o descarte de embriões.
“VI- Diagnóstico e Tratamento de Pré-Embriões:
2.O número total de pré- embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído”. ( grifo nosso)
O desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida levou à descoberta de técnicas mais aprimoradas, denominadas “técnicas de micromanipulação”. A micromanipulação consiste na facilitação do ingresso do espermatozóide no óvulo, pois apenas um irá ultrapassar a zona pelúcida. Essa técnica apresenta duas variantes: a) a inseminação subzonal, que consiste em inocular, por intermédio de uma micropipeta, determinada quantidade de espermatozóides, previamente selecionados, bem embaixo da zona pelúcida do chamado espaço perivitelino; b) a inseminação intracitoplasmática, que consiste na injeção de apenas um espermatozóide diretamente no citoplasma do óvulo. Outra técnica, chamada despelucidação, facilita o acesso do espermatozóide ao núcleo do ovócito por meio da perfuração da zona pelúcida.
Atualmente, não há limite para o número de embriões a serem gerados pelas técnicas de fertilização in vitro, e, em geral, esse número é superior ao de embriões transferidos para o útero. Os embriões excedentes são criopreservados e o tempo máximo de manutenção sob criopreservação é questão controvertida. Alguns sustentam que, após o decurso de determinado prazo, a utilização dos embriões pode gerar gravidez de alto risco, em razão das dificuldades que irão ocorrer durante o seu desenvolvimento. Outros entendem que o congelamento não afeta, necessariamente, o desenvolvimento do embrião, pois os embriões podem apresentar deficiência para o desenvolvimento ou podem permanecer perfeitamente viáveis. Nesse sentido, foi noticiado o nascimento de um bebê sadio fruto de um embrião congelado há 13 anos[35].
3.3 A concepção: marco biológico da individualização biogenética e da vida humana
O desenvolvimento da Engenharia Genética proporcionou a técnica da fertilização fora do útero e, ao admitir-se que a vida se inicia com a concepção, afirma-se que, ainda que a concepção seja extracorpórea, há vida humana. Observa-se certo consenso quanto à idéia de que a vida humana se inicia a partir da concepção[36]. Contudo, há quem sustente que somente após a nidação, ou seja, após a implantação do embrião no útero, é que existiria vida.
A questão, que parece simples à primeira vista, torna-se mais complexa quando alguns países[37] adotam, como referencial normativo, determinados marcos científicos, levando à qualificação do embrião humano em razão do estágio de seu desenvolvimento e atribuindo-lhe níveis diferenciados de proteção jurídica, sustentando, inclusive, o apoio de academias de ciências de outros países.
Segundo Luís Roberto Barroso, a pesquisa e terapia com células-tronco são apoiadas por academias de ciências de 63 países.[38] Mas, quem são os cientistas que fazem parte dessas academias? São cientistas que têm interesse pessoal na pesquisa com células-tronco embrionárias ou cientistas neutros neste processo, que partem de uma análise imparcial do próprio desenvolvimento embrionário?
Não vemos como esse argumento pode legitimar a opção do legislador brasileiro. Pelo contrário, trata-se de mais um argumento para desconfiarmos da opção do legislador, que deve ter sofrido pressões : “Não podemos ficar de fora”.
Tradicionalmente, o termo “embrião” designa tanto o ser após a concepção como o de oito meses de gestação. Já o termo “feto” é empregado para designar o “embrião” que apresenta os órgãos plenamente desenvolvidos. O termo “pré-embrião” designa o ovo com menos de duas semanas, percebendo-se, nessa designação, o caráter puramente utilitarista do termo, já que, por não se tratar de um embrião, mas de um estágio que antecederia essa condição (se possível), o embrião humano poderia ser alvo de manipulações e até de aniquilação[39].
Utilizar-se-á, neste trabalho, o termo “embrião” em virtude de sua maior abrangência e também por entendermos que não se deve qualificá-lo pela fase de seu desenvolvimento, visto que para a sua proteção pouco importa ter ele um ou vinte dias de existência. Desde o momento de sua concepção, intra ou extracorpórea, deve ser protegido pelo Direito.
Ao admitirmos a concepção como marco da individualização humana, algumas considerações devem ser feitas.
Após a fertilização do óvulo, decorrerá um período de cerca de 12 horas até a concepção. O fenômeno do encontro dos gametas masculino e feminino é denominado singamia (fertilização), e a fusão dos pronúcleos masculino e feminino é denominada cariogamia (concepção). Esses fenômenos são usualmente tratados como sinônimos, o que representa uma verdadeira incorreção[40] .
Após a fecundação, há a formação da primeira célula de um novo ser, que contém o seu genoma, e as trilhões de células que compõem uma pessoa são formadas a partir de sucessivas divisões. A cada divisão, o genoma é copiado para as células filhas. Assim, cada célula contém uma cópia completa do nosso genoma, com exceção das chamadas células germinativas (óvulos e espermatozóides), que possuem uma unidade de cada cromossomo e são chamadas de células haplóides. Quando essas células haplóides se fundem na fecundação, forma-se a célula diplóide, que contém um novo genoma, composto de duas unidades de cada cromossomo.
A diversidade na raça humana advém do próprio processo de fecundação, pois há a mistura dos códigos genéticos materno e paterno, gerando seres com genomas diferentes e com algumas características mais parecidas com as do pai, ou com as da mãe, e outras não reconhecíveis, mas que estavam “invisíveis” no genoma dos ascendentes.
Apesar da teoria da singamia ser considerada uma teoria concepcionista, a “verdadeira” concepção ocorre com a cariogamia, ou seja, com a individualização genética, pois, na fase da singamia, o zigoto é formado pelos códigos genéticos materno e paterno isoladamente. Para alguns, a individualidade humana ocorre a partir da singamia, ou seja, antes da concepção.
Silva esclarece o conceito de concepção, indicando o equívoco ao se afirmar que no momento da singamia é que ocorreria a individualização do ser humano:
“Muito embora a teoria da singamia também participe das chamadas doutrinas “concepcionistas”, na teoria da cariogamia o conceito de “concepção” é bem mais específico, já que apenas reconhece o início da individualidade humana após a fusão dos pronúcleos masculino e feminino no interior do ovo […] a teoria da cariogamia defende que desde a concepção, entendida como a fusão dos pronúcleos dos gametas masculino e feminino, o que já existe é um indivíduo humano em ato, isto é, um indivíduo humano dotado de potencialidade”[41].
No estágio de pronúcleos, a célula ainda não possui uma identidade completa, ou seja, ainda não é um novo ser humano em ato, pois nessa fase é possível a troca dos pronúcleos por outros, gerando um ser diferente geneticamente. A partir do fenômeno da cariogamia, o embrião humano deve ser considerado uma “unidade individual”, pois o seu genoma, além de individual, é também unitário, ou seja, é idêntico em todas as fases do desenvolvimento humano, não apresentando qualquer tipo de transformação, responsável por autocomandar todo o processo de desenvolvimento, ou seja, a capacidade do embrião de produzir-se a si mesmo.
Analisando as teorias sobre o início da vida humana, Mantovani aponta duas teses contrapostas: a tese do momento da fecundação e a tese das fases sucessivas[42].
Para a primeira tese, de natureza personalista, o início da vida humana ocorre com a concepção. Segundo Mantovani, esta tese se funda na
“racionalidade biológica”, porque a fusão dos gametas representa o verdadeiro e único “salto de qualidade”, que não se repete. Essa fusão gera uma nova e autônoma individualidade humana, que se desenvolve sem solução de continuidade e sem necessidade de sucessivos estímulos externos até o nascimento. Com uma imagem arquitetônica, o zigoto é, ao mesmo tempo, projetista, encarregado e construtor do novo ser humano. A mãe provê o ambiente de trabalho e o material necessário para a construção.
É nessa tese que há mais garantia e mais fidelidade ao perfil de tutela global da vida humana desde suas primeiras manifestações; é fiel ao perfil do princípio da legalidade-taxatividade, assegurando a certeza sobre o início do ser humano, o que se desvanece nas teses que o pospõem.
Conclui-se que zigoto, blastocisto, pré-embrião e embrião indicam, convencional e descritivamente, somente fases diferentes do novo ser humano antes do nascimento; tal como recém-nascido, criança, menino, adolescente, adulto e velho indicam somente as diferentes fases da vida do homem depois do nascimento, sem nada acrescentar e nada deixar faltando à sua ‘humanidade”[43].
Para a segunda tese, o início da vida humana se dá em decorrência das fases sucessivas do seu desenvolvimento, tais como a nidação, a aparição da linha primitiva, suspensão da totipotencialidade, formação do sistema nervoso central ou a organogênese. Mantovani afirma que essa tese é criticada, pois é baseada em uma ideologia utilitarista e convencional:
“São elaboradas com a finalidade de criar uma fase em que o concebido é considerado uma “coisa” e, por isso, pode ser livremente instrumentalizado […] Como “coisa”, o pré-embrião – termo inventado pelos “protetores” para indicar que o óvulo fecundado não é ser humano antes de completar duas semanas, reservando-se o termo “embrião” às fases sucessivas – é propriedade dos progenitores (tal como o sêmen masculino pertence ao homem e o óvulo feminino à mulher) ou propriedade de quem fecundou o pré-embrião in vitro.
Há outra objeção às teses que protelam o início do ser humano: elas implicam a inevitável sucessão de datações posteriores, porque todo limite precedente está destinado a tornar-se sempre mais estreito diante das ilimitadas razões da pesquisa científica e da indústria. Assim, o longo período de quatorze dias já é objeto de prorrogação, por exemplo, no Canadá, Austrália, Reino Unido. Na lógica utilitarista, toda nova demanda de adiamento dificilmente poderá ser rechaçada”[44].
Segundo Mantovani, o critério da fecundação é o único com base ontológica, pois os demais se baseiam no modelo, já superado, de estágios separados da vida embrionária[45].
Enquadram-se, nessa tese, os defensores da “teoria do 14o. dia” que sustentam que, antes da formação do embrião, existiria o estágio do chamado “pré-embrião”. Identificada em diversos textos doutrinários e legais, como, por exemplo, o Informe Warnock sobre fertilização e embriologia, publicado no Reino Unido, em 1984, essa teoria se presta quase que exclusivamente às técnicas de reprodução assistida e manipulação de embriões humanos. Para seus adeptos, A somente é possível afirmar a individualidade após o 14o. dia, pois, a partir desse marco, é impossível a formação de gêmeos monozigóticos, perdendo o embrião, neste estágio, a qualidade de totipotência e aparecendo a linha primitiva, como marco de um novo ser humano. Com o objetivo de se contrapor a essa teoria, Bourguet sustenta que:
O uso dos termos “zigoto” (usualmente aplicado da fecundação às primeiras mitoses), o de blástula, gástrula, feto (aplicado quando os principais órgãos já estão constituídos [….]) tem apenas um valor de baliza para o observador e tampouco tem um alcance “ontológico”: não se trata de modo algum de, por meio desses termos, designar a emergência de um novo ser, mas de um simples balizamento “fenomenológico” em um mesmo indivíduo.[46]
Segundo a Ministra Ellen Gracie, em seu voto:
“Buscaram-se neste Tribunal, a meu ver, respostas que nem mesmo os constituintes originário e reformador propuseram a dar. Não há, por certo, uma definição constitucional do momento inicial da vida humana e não é papel desta Suprema Corte estabelecer conceitos que já não estejam explícita ou implicitamente plasmados na Constituição Federal. Não somos uma Academia de Ciências. A introdução no ordenamento jurídico pátrio de qualquer dos vários marcos propostos pela Ciência deverá ser um exclusivo exercício de opção legislativa, passível, obviamente, de controle quanto a sua conformidade com a Carta de 1988 “.
Há de se discordar da Ministra ao entender que caberia ao legislador, no âmbito da Lei de Biossegurança, dar destino aos embriões armazenados em centros de reprodução assistida, que foram concebidos para atender a um projeto parental. Não é da alçada desta lei tratar desse assunto, em razão da ausência de lei sobre reprodução assistida.. Não se trata, portanto, de lacuna[47], mas de ausência de regulamentação específica, eis que os princípios constitucionais e a lei de planejamento familiar já dispõem de um encaminhamento normativo compatível com o exercício desse direito pelos usuários das técnicas de reprodução assistida. Ressalte-se, ainda, que apesar de não ter o condão de regulamentar as técnicas de reprodução assistida, o Código Civil dispõe no art. 1597 sobre hipóteses de presunção de paternidade ligadas às referidas técnicas.
A Ministra utiliza-se da teoria do pré-embrião, adotada no Reino Unido[48], para sustentar a ausência de vida antes do 14o. dia, adotando uma postura contrária ao que havia afirmado no início do seu voto de que não caberia ao STF determinar o marco inicial da vida humana, pois não tem a competência de uma academia de ciências. E, equivocadamente, por não ser membro de uma academia de ciências, utiliza-se de uma teoria, que não encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro e muito menos no meio científico.
Verificamos que a Comissão Warnock utilizou um critério morfológico, privilegiando o esboço dos principais órgãos, quando o critério genético deveria ser considerado. O que parece pretender a comissão é adotar um critério de semelhança com o ser já nascido, para sustentar a noção de espécie humana. Contudo, essa noção “não é mais fundada pela ciência contemporânea na idéia de similitude morfológica (como na classificação lineana), mas na noção de interfecundidade, uma mesma espécie podendo ‘apresentar tipos morfológicos bem distintos’. Assim, um indivíduo pode pertencer à espécie humana sem possuir nenhuma propriedade morfológica adulta”[49].
Estes critérios abrem margem para uma série de discussões, visto que para os adeptos destes, seria plenamente viável a destruição dos embriões, já que, antes de serem implantados no útero de uma mulher, não representariam vida, mas um emaranhado de células, sem forma humana, e, ainda, abre precedentes para a utilização de embriões em pesquisas e experimentos científicos. A Baronesa de Warnock, entretanto, declarou na abertura do VI Congresso Nacional de Bioética, realizado em Brasília nos dias 30 de outubro a 03 de novembro de 2002, que o termo pré- embrião foi introduzido por ela por influência e pressão da comunidade científica, sendo este um conceito errado e que o mesmo devia ser abandonado, pois havia sido proposto por ela, para aprovar o aborto até os 14 dias de vida do embrião humano.
Mais tarde, vários membros do comitê Warnock chegaram a esta mesma conclusão, ao anuírem, que o termo surgiu de um ponto de vista extracientífico.
“En primer lugar, varios miembros del propio Comité Warnock, reconocieron más tarde este hecho. Así, la embrióloga A. MacLaren[50], admitió honestamente que fue ella precisamente quien introdujo el término “pre-embrión”, y que lo hizo por influjo de “cierta presión ajena a la comunidad científica”; y sabiendo, como reconoció D. Davies, miembro también del mismo Comité, que estaba “manipulando las palabras para polarizar una discusión ética. Huelga todo comentario. Pero el resultado final de ese subterfugio, fue el reconocimiento legal en no pocos países de la experimentación sobre embriones. Así se escribe la historia.., y es lo mismo que ahora desean hacer algunos a propósito de la clonación con fines terapéuticos: quieren que la historia se repita.
Pero sigamos con otros testimonios. Una voz importante en esta materia es el francés J. Testart, nada sospechoso de mogigatería a la hora de experimentos biomédicos, pues trabajó en el equipo que en 1982 hizo posible el nacimiento de Amandine, primer “bebé-probeta” de Francia. Testart, que tiempo después dejaría esos caminos, afirma en su libro “Los caprichosos catorce días del pre-embrión”, que los embriólogos británicos responsables del informe Warnock “se vieron obligados a hacerlo para justificar un punto de vista extra-científico que les convenía: el Comité ético del Departamento de Sanidad y Educación norteamericano, sin referencia alguna a consideraciones biológicas, había decretado que se necesitaba un intervalo de catorce días tras la fecundación sin que el producto de la concepción adquiera status moral alguno”. Por desgracia, la suerte para el embrión estaba echada…
En línea parecida a la de Testart, se expresan muchos otros científicos. El que fue mi profesor en la Facultad de Medicina de Madrid, Botella Llusiá, refiriéndose al embrión recién fecundado, escribe: “hay una cosa que como biólogo u objetivamente, por mi propio conocimiento, sí que puedo afirmar: …desde el momento mismo de la fusión de los gametos es ya una vida humana. No sólo podemos ver bajo el microscopio (…) unirse el espermio con el ovocito, sino que hoy día conocemos el genoma de cada uno de ellos y sabemos que, fundiendo sus moléculas de DNA, dan lugar a un nuevo ser, el embrión, cuyo genoma a su vez es propio, y diferente del padre y de la madre. Allí ha nacido, hoy ya la hemos visto nacer bajo nuestra vista, una nueva vida. (…) Y esta certeza biológica –que no antropológica, ni teológica- me permite a mí, y a los que me quieran seguir, condenar el aborto en cualquier momento que tenga lugar y sin limitación de tiempo. Y además es un argumento que sirve lo mismo a creyentes que a agnósticos”. La razón científica desmiente, pues, el subterfugio del “pre-embrión[51]“.
As teorias denominadas como teses das fases sucessivas estão presentes, apenas, em tratados sobre clonagem, pesquisas com células-tronco embrionárias e reprodução assistida. Já o marco da concepção é uma unanimidade nos tratados sobre embriologia.[52] Sustenta-se, também, em favor da teoria do 14o. dia que se a morte é definida pela legislação brasileira quando o sistema nervoso pára de funcionar, que a vida começaria com o início do funcionamento do sistema nervoso. Não, necessariamente, o marco do início da vida será o mesmo para o fim da vida, até porque a morte encefálica foi considerada um prognóstico de morte para fins de transplante de órgãos[53], já que com o auxílio de instrumentos mantêm-se o coração e os demais órgãos em funcionamento.
Estas considerações não se aplicam ao embrião humano em seus primeiros estágios de formação, sobretudo quando ainda não possui o sistema nervoso central formado, pois, neste caso, trata-se justamente do contrário. Trata-se de uma ascendência de vida e o marco do início da vida não será necessariamente o mesmo para o fim da vida.
Segundo Luís Roberto Barroso, “É preciso admitir, no entanto, que inexiste consenso científico ou filosófico acerca do momento em que tem início a vida” [54] Há que se discordar dessa afirmação, uma vez que há um marco adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro para proteção da vida humana e a discussão sobre novos marcos não está presente nos tratados de embriologia. O que a Lei 11.105/2005 levanta é a questão da instrumentalização dos marcos biológicos de acordo com interesses de pesquisadores, marco esse, segundo nosso entendimento, delimitado claramente pelo legislador brasileiro, como se verá mais adiante.
4 A concepção no direito brasileiro
Como apontado em outro item, a concepção pode ser realizada dentro ou fora do útero. Sem adentrarmos na questão da natureza jurídica do concepto, se há ou não atribuição de personalidade jurídica, e, portanto, se ele seria merecedor da atribuição da categoria de pessoa, o que ultrapassaria o objetivo deste trabalho, pois nos atemos a investigação, apenas, do marco biológico adotado pelo legislador brasileiro, verificaremos, pela análise da legislação brasileira, que houve a adoção do marco da concepção como momento inicial para a proteção do concebido. Vejamos.
O artigo 4o. do Código Civil de 1916 dispunha que: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
O Código Penal tipifica o crime de aborto nos seus artigos 124, 125, 126, 127 , punindo a interrupção da gestação e a conseqüente morte do concepto, exceto nos casos previstos no artigo 128. O bem jurídico protegido é a vida humana embrionária, desde o momento da concepção.
A Lei n°. 8974/95, revogada pela Lei n°. 11.105/2005, dispunha no artigo 8o. incisos III e IV:
“Art. 8°. É vedado, nas atividades relacionadas a OGM: […]
III – a intervenção em material genético humano ‘in vivo’, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio de beneficência, e com a aprovação prévia da CTNBio;
IV – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível:”.
Tais condutas eram tipificadas, no artigo 13, incisos II e III, como crime, com a previsão de penas entre 2 e 20 anos. Vale ressaltar que a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível eram apenadas com reclusão de 6 a 20 anos, ou seja, a mesma pena prevista para o crime de homicídio.
Já a nova Lei de Biossegurança, Lei n°. 11.105/2005, proíbe a utilização de embriões humanos em desacordo com o que dispõe o seu artigo 5o,, prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos e multa, ou seja, a mesma pena prevista para o crime de aborto provocado ou consentido (artigo 124 do Código Penal). Já ao proibir a prática da engenharia genética em células germinais humanas, zigotos humanos ou embriões humanos, a referida lei estabelece a pena de reclusão de 1 a 4, anos, e multa, ou seja, a mesma pena estabelecida para o agente que provoca aborto consentido.
Sustenta Luís Roberto Barroso que“ As normas e categorias tradicionais do direito civil não se aplicam à fecundação extracorporal”[55]. Ora, se entendermos que apenas o legislador protege a vida humana embrionária em razão do marco concepção, e não do locus, in utero ou ex utero, é perfeitamente admissível sustentar que tais categorias se aplicam à fecundação extracorporal. Tanto é que o legislador trata no art. 1597 do CC de 2002 da categoria embriões excedentários, no sistema de presunção de paternidade. Não era uma realidade estranha ao legislador e se ele não distinguiu, o caminho é a equiparação.
Para Barroso, a lei de biossegurança teria sido a responsável pela instituição de normas protetivas do embrião. Pensamos que o que a Lei de Biossegurança fez foi criar uma situação paradoxal do ponto de vista ontológico, pois, ao mesmo tempo em que autoriza a utilização de embriões inviáveis ou armazenados há 3 anos, proíbe a utilização de embriões que não estejam enquadrados nestes requisitos. Podemos extrair duas conclusões: a) o legislador protege a vida humana embrionária, desde a concepção, pouco importando se ex utero ou in utero, como se depreende da leitura dos artigos 24 e 25 da Lei n°. 11.105/2005; b) contraditoriamente, defende que o embrião armazenado há mais de 3 anos e o considerado inviável não seriam merecedores dessa tutela, o que nos leva a questionar se a proteção é conferida em razão da concepção ou da sua viabilidade.
O inciso II do artigo 5o. da Lei n°. 11.105/2005 nos leva a crer que, após 3 anos de criopreservação, o embrião humano é inviável, ou seja, há a presunção de sua inviabilidade. Não há, na literatura médica, qualquer indicação de que, a partir de certo prazo, o embrião criopreservado necessariamente passe a ser inviável[56]. Ou seja, o legislador, para aumentar a oferta de embriões para pesquisa e terapia ou para dar um fim aos embriões criopreservados, elegeu um prazo sem qualquer embasamento científico, contrariando o próprio posicionamento da Lei n°. 11.105/2005, que não permite a utilização de todo e qualquer embrião, inclusive com efeitos na esfera penal, protegendo, em regra, o embrião humano ex utero desde a concepção da mesma forma que protege o embrião in utero.
Verificamos que a partir da concepção, e não do 5o. dia ou da nidação, há proteção do concepto. Tal posicionamento foi mantido pelo Código Civil de 2002, ou seja, mais uma vez, o legislador adota o marco concepção. Nesse sentido, o Ministro Lewandowski, em seu voto, entendeu que: “No plano puramente jurídico-positivo, há fortes razões para adotar-se a tese de que a vida tem início a partir da concepção”. Indo além, o Ministro Eros Grau, em seu voto, afirma não ter dúvida que o nascituro é pessoa.:
“O embrião — insisto neste ponto — faz parte do gênero humano, já é uma parcela da humanidade. Daí que a proteção da sua dignidade é garantida pela Constituição, que lhe assegura ainda o direito à vida. A autonomia do embrião manifesta-se de maneira especial, na medida em que sua única opção é nascer. Mas é autonomia. Há, no aborto, destruição da vida.”
Contudo, afirma que a tutela conferida ao embrião em situação intra-corpórea é diferente da tutela conferida ao embrião em situação extra-corpórea.
“No contexto do artigo 5º da Lei n. 11.105/05, embrião é óvulo fecundado fora de um útero. A partir desses óvulos fecundados — fertilizados — in vitro é que são obtidas as células-tronco embrionárias referidas no preceito leal. Para logo se vê, destarte, que aí, no texto legal, embrião não corresponde a um ser em processo de desenvolvimento vital , em um útero. Embrião é aí , no texto legal, óvulo fecundado congelado, isto é, paralisado à margem de qualquer movimento que possa caracterizar um processo. Lembre-se de que vida é movimento. Nesses óvulos fecundados não há ainda vida humana. Nos embriões [tomo o vocábulo em sentido corrente] sim, neles há processo vital em curso. O embrião é o que é porque abrigado em um útero. […]
.Não há vida humana no óvulo fecundado fora de um útero que o artigo 5º da Lei n. 11.105/05 chama de embrião. A vida estancou nesses óvulos. Houve a fecundação, mas o processo de desenvolvimento vital não é desencadeado. Por isso não tem sentido cogitarmos, em relação a esses “embriões” do texto do artigo 5º da Lei n. 11.105/05, nem de vida humana a ser protegida, nem de dignidade atribuível a alguma pessoa humana.”
Avaliando os argumentos jurídicos utilizados pelo ministro, ao afirmar que o embrião só corresponde a um ser em processo vital se estiver dentro do útero e, a partir disso é um ser humano, com expectativa de nascer, estando, nesse caso, protegido pelo Código Civil Brasileiro e justificando que o embrião in vitro não inseminado está paralisado à margem de qualquer movimento que possa caracterizar um processo e por isso não merece tutela, são, no mínimo, questionáveis. O embrião in vitro só está fora do útero feminino, por intervenção humana, já que as técnicas de Reprodução Assistida utilizadas para viabilizar o projeto parental assim permitiram.
Nunca é demais lembrar que sem a intervenção humana o embrião jamais se formaria fora do útero feminino, e o ministro nega-lhe a vida por este motivo, por este embrião não estar no lugar que deveria, porque nós o colocamos neste lugar: nos tubos cilíndricos, nas palhetas que são capazes de armazenar até 04 embriões.
Seria esta uma decisão justa? Devemos nos eximir de responsabilidades pela situação em que colocamos o outro? Condenarmos à morte alguém que ainda não enxergamos a nossa imagem e semelhança?
5 A reificação do embrião humano em situação extracorpórea
Apesar do esforço doutrinário realizado por alguns estudiosos da matéria[57], revelador da complexidade da temática e das possíveis soluções para o estatuto jurídico do embrião humano, o que se verifica, do ponto de vista normativo, é a regulamentação da aplicação do conhecimento científico sobre o embrião humano, antes mesmo de buscarmos definir qual tipo de proteção jurídica é merecedor.
A postura “aparentemente” neutra do legislador revela , segundo Otero, que na omissão de qualquer disciplina normativa pelo Direito, há sempre um comprometimento político e axiológico[58]. Assim, o vazio jurídico deliberadamente projetado leva à “coisificação” do embrião humano.
Esse comprometimento com a “coisificação” é observado no tratamento dado ao embrião humano na Lei de Biossegurança (Lei n°. 11.105/2005) pelos incisos I e II do art. 5o., os quais permitem a utilização de células-tronco de embriões inviáveis (inciso I) e de embriões congelados há 3 (três) anos ou mais (inciso II).
Em seu voto, o Ministro Carlos Aires Britto faz referência ao embrião extra-corpóreo de forma reducionista, ao afirmar que a forma de concepção artificial (sic) é apenas uma produção laboratorial:
“Mas embriões a que se chega por efeito de manipulação humana, porquanto produzidos laboratorialmente ou in vitro, e não espontaneamente ou in vida. Noutro falar, embriões que resultam do processo tecnológico de retirada de óvulos do corpo feminino (assim multiplamente produzidos por efeito de injeção de hormônios) para, já em ambiente extra-corpóreo, submetê-los a penetração por espermatozóides masculinos”.
Há de se discordar do posicionamento do Ministro Britto ao comparar o processo de fecundação medicamente assistido com uma produção laboratorial. O encontro dos gametas, a fusão dos pronúcleos, a definição do genoma humano (unitário e inividual), as sucessivas divisões fazem parte de um processo natural, que é apenas medicamente assistido. Não se cria vida humana nos centros de reprodução assistida, apenas se facilita o processo natural, o que não o desqualifica como tal, pois se este é o raciocínio, uma pessoa que sofre de parada cardíaca e é reanimada, perde a natureza de pessoa, para ser o produto de uma técnica, e, portanto, deverá ser considerada uma coisa. Verificamos que a identificação do locus e da forma medicamente assistida de concepção não são relevantes para a análise da natureza jurídica do embrião, eis que tais argumentos tendem a destorcer a situação, colocando o embrião como um “verdadeiro produto” de uma “técnica”. Nós ainda não dominamos os mistérios da produção da vida humana ao ponto de nós auto-denominarmos como seus verdadeiros criadores.
E mais a frente, reafirmando sua posição, compara, de forma equivocada, a reprodução medicamente assistida à pesquisa científica.
“Mais ainda, pesquisa científica e terapia humana em paralelo àquelas que se vêm fazendo com células-tronco adultas, na perspectiva da descoberta de mais eficazes meios de cura de graves doenças e traumas do ser humano.”
Não se trata de pesquisa e sim de um método conceptivo medicamente assistido, pois, caso contrário, todo procedimento de reprodução assistida necessitaria passar pelos trâmites de pesquisas com seres humanos.
A Ministra Cármen Lúcia equipara o embrião humano às substâncias humanas, previstas no parágrafo 4º. do art. 199 da Constituição Federal, ao se pronunciar no seu voto:
“A Constituição garante não apenas o direito à vida, mas assegura a liberdade para que o ser humano dela disponha liberdade para se dar ao viver digno. Não se há falar apenas em dignidade da vida para a célula-tronco embrionária, substância humana que, no caso em foco, não será transformada em vida, sem igual resguardo e respeito àquele princípio aos que buscam, precisam e contam com novos saberes, legítimos saberes para a possibilidade de melhor viver ou até mesmo de apenas viver. Possibilitar que alguém tenha esperança e possa lutar para viver compõe a dignidade da vida daquele que se compromete com o princípio em sua largueza maior, com a existência digna para a espécie humana.”
“A substância humana aqui considerada consiste no que se denominou embrião, ou célula-tronco embrionária, que se origina após a fecundação de um óvulo por um espermatozóide com a formação da célula ovo, que contém em seu núcleo 46 cromossomos, sendo 23 originários do espermatozóide e os outros 23 do óvulo. Essa célula, substância genética, é resultado da junção de outras duas células humanas e tem a finalidade de gerar todos os tecidos de um indivíduo adulto devido a sua pluripotencialidade. Nessa condição, resultado do que acima asseverado, pode-se dizer que essa matriz humana há ser tida como uma das substâncias humanas que a Constituição permite possam ser manipuladas com vistas ao progresso científico da humanidade e à melhoria da qualidade de vida dos povos, respeitados, como é óbvio, os demais princípios constitucionais afirmados e que se compatibilizam com o quanto posto naquela norma constitucional.”
“A utilização das células-tronco embrionárias, não aproveitadas no procedimento de implantação, travada assim para a sua potencial transformação em vida futura de alguém, poderá ter o destino da indignidade, que é a sua remessa ao lixo. E o mais nobre e o mais grave: lixo de substância humana. O seu aproveitamento, guardado o respeito às condições afirmadas na legislação enfocada, permite a dignificação da célula-tronco embrionária, que não será então descartada, antes, será transformada em matéria dada à vida, se bem que não ao viver.”
Há de se discordar do posicionamento acima, pois, em momento algum, pode-se afirmar, dos pontos de vista biológico e legal, que o embrião humano é substância humana. Tal posicionamento, salvo melhor juízo, carece de fundamento legal. Ao nosso sentir, a Ministra confunde os conceitos de “substância humana” e “espécie humana”. O embrião humana é uma espécie humana, já o sêmen, o sangue, o óvulo são substâncias humanas.
A ministra não levou em consideração os já nascidos fruto de congelamento de até 13 anos, como já citado neste trabalho, tampouco, a condição humana do embrião humano, do ser humano que se encontra nos primeiros estágios de desenvolvimento, ao defini-lo como substância humana.
A análise deste voto deixa evidente que para a ministra o embrião humano não merece qualquer amparo jurídico e que o seu aproveitamento em tratamento voltado à recuperação da saúde não agride a dignidade humana, pois a valoriza, já que o destino de tais embriões não seria outro, senão o lixo.
O lixo de “substância humana” não é fim dos embriões, não foi para isto que eles foram criados, e, portanto, devem seguir o fim para o qual foram idealizados, para possibilitar a concretização do projeto parental para casais inférteis. O lixo é o destino que escolheram para estes embriões, para fundamentar a sua utilização sem o estabelecimento de qualquer limitação para tanto.
Para a Ministra Ellen Gracie, em seu voto, destacando a plena aplicabilidade do princípio utilitarista, houve:
“um significativo grau de razoabilidade e cautela no tratamento normativo dado à matéria aqui exaustivamente debatida, não vejo qualquer ofensa à dignidade humana na utilização de pré-embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos nas pesquisas de células-tronco, que não teriam outro destino que não o descarte.”
Ora, antes mesmo de se determinar o tipo de proteção jurídica a ser conferido ao embrião humano, estamos, em atropelos, regulando a aplicação do conhecimento científico, revelando uma postura utilitarista. Segundo Otero, a gravidade da situação envolve uma “encruzilhada existencial”, pois a opção por um caminho pode levar o homem a assumir sua dignidade ou a se transformar em “coisa”[59].
A relação ética com o outro não pode ser uma relação técnica, pois, neste caso, “aquela relação desaparece como tal”.[60] A questão a ser tratada “não é tanto saber se, com o embrião humano, estamos lidando ou não com a espécie humana – pois isso é evidente –, mas nos perguntarmos se estamos lidando com um humano mais que com algo de humano”[61].
O Ministro Lewandowski, de forma acertada, em seu voto, alerta para o perigo do fenômeno da coisificação:
“O fenômeno da “coisificação” das pessoas mencionado por Habermas, já havia sido descrito antes por Georg Lukács, pensador e militante político húngaro, que aprofundou o conceito de “reificação”, segundo o qual as relações sociais e a própria subjetividade humana vão se identificando, paulatinamente, com o caráter inanimado das mercadorias, num processo denominado de “alienação”, em que a pessoa se afasta de sua real natureza, tornando-se estranha a si mesma. É por isso que incumbe aos homens, enquanto seres racionais e morais, sobretudo nesse estágio de evolução da humanidade, em que a própria vida no planeta se encontra ameaçada, estabelecer os limites éticos e jurídicos à atuação da ciência e da tecnologia, explicitando e valorando os interesses que existem por detrás delas, para, assim, escapar à “coisificação” ou “reificação” de que falam Habermas e Lukács, na qual as pessoas, de sujeitos dessas atividades, passam a constituir meros objetos das mesmas.”
Silva defende que “apenas a certeza de que existem seres humanos com diferentes graus de dignidade autorizaria, do ponto de vista jurídico, a manipulação do zigoto e das células decorrentes de sua clivagem. Caso contrário, a proteção que se lhes é deferida não pode distinguir-se daquela que é conferida a qualquer outro ser humano”[62]. Diante da divergência em torno do tipo de proteção a ser conferido ao embrião humano, devemos advogar em favor da vida.
Para Barretto e Junges, “o debate sobre o embrião não deve ficar circunscrito à comunidade dos cientistas, juristas e aos representantes de organismos da sociedade, mas necessita incluir pensadores das áreas de ciências humanas, principalmente a filosofia e teologia, para que a perspectiva ética seja assegurada”[63].
Acompanhando a posição dos referidos autores, e apesar de sustentarmos que a vida humana se inicia com a concepção, podemos apontar para outra linha de argumentação, de natureza filosófica, que, partindo da idéia de pluralidade, não permitiria a instrumentalização da vida humana embrionária.
O Ministro Cezar Peluso, em seu voto, afirma:
“Estou, por fim, em que engenhosas referências à noção de paternidade responsável servem apenas à justificação dos procedimentos de fertilização in vitro (IVF) e de um de seus efeitos colaterais, que é a produção de excedentes embrionários. Cuida-se de questão prévia, mas autônoma, que não guarda vínculo direto com a solução do problema jurídico-constitucional agora submetido à Corte.
Kant sustenta que é justo e necessário “ver o ato de procriação como um ato pelo qual pusemos no mundo uma pessoa sem seu consentimento, empurrando-a nele de maneira arbitrária”[64], o que nos leva a sermos responsáveis por ela. A análise das técnicas de reprodução assistida, sob a perspectiva da procriação, conduz à conclusão de que os usuários das técnicas de reprodução assistida são responsáveis pela vida humana gerada e que, portanto, os embriões humanos não são o resultado da aplicação de uma técnica, mas o fruto de um ato de procriação medicamente assistido.
Para explorarmos o conceito de responsabilidade sob a perspectiva ética, recorreremos a contribuição de Hans Jonas. O pensamento de Jonas é um dos referenciais mais influentes no âmbito da ética aplicada na atualidade. A ética de Jonas parte do princípio de que o homem é o único ser que tem responsabilidade, pois apenas os seres humanos podem realizar escolhas conscientes, cabendo, portanto, às gerações atuais a obrigação moral de tornar possível a continuidade da vida e a sobrevivência das gerações futuras.
Jonas entende que a ética atual, em qualquer de suas perspectivas, seja teleológica ou deontológica, não é capaz de encontrar uma resposta viável para a gravidade da situação contemporânea. O autor sustenta que as proposições éticas tradicionais valiam-se das seguintes premissas: a imutabilidade da condição humana, resultante da natureza do homem e das coisas, e a delimitação do alcance da ação humana e sua responsabilidade. Contemporaneamente, tais premissas foram alteradas para a mutabilidade da condição humana e a impossibilidade de delimitação do alcance da ação humana e de sua responsabilidade.
Jonas propõe uma noção de responsabilidade direcionada a um futuro que não admite o limite da temporalidade do agente reparador do dano, pois o dano se caracteriza pela imprevisibilidade, diferentemente do que ocorria até então, quando “o bem e o mal com que a ação tinha de se preocupar permaneciam próximos do ato, tanto na própria práxis como no seu imediato raio de alcance, e não constituíam matéria de planejamento remoto”[65].
A moralidade anteriormente articulada considerava sempre como elementos a contemporaneidade, a proximidade e a previsibilidade. Mas, a introdução, em especial pela engenharia genética, de novos conhecimentos e de novas possibilidades tecnológicas que permitem alterações de tão diferentes escalas e com conseqüências imprevisíveis, mostrou a insuficiência da ética tradicional. Assim, Jonas redesenha o imperativo kantiano da seguinte forma: “age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica”[66].
Hoje, o homem deixa o lugar de mero espectador e passa a ser o principal agente transformador, revelando a superação da concepção de natureza caracterizada pela intangibilidade da ordem natural. Para Jonas:
Se a nova natureza do nosso agir requer uma nova ética da responsabilidade a longo prazo, coextensiva ao raio de alcance do nosso poder, requer também, e em nome dessa mesma responsabilidade, uma nova espécie de humildade – uma humildade que não é igual à que antes existia, ou seja, que já não o é em face da pequenez, mas antes em face da excessiva magnitude do nosso poder, que se traduz pelo excesso do nosso poder de agir face ao nosso poder de prever e ao nosso poder de avaliar e ajuizar. Em face das potencialidades para-escatológicas dos nossos processos tecnológicos, a ignorância das implicações últimas torna-se ela própria numa razão para que se faça uso de comedimento responsável – à falta da própria sabedoria[67].
O poder sobre a vida, a morte e a continuidade da humanidade sobre a Terra exigem um novo papel do saber na moral. Segundo Jonas:
Sob tais circunstâncias, o saber torna-se um dever prioritário, mais além de tudo o que anteriormente lhe era exigido, e o saber deve ter a mesma magnitude da dimensão causal do nosso agir. Mas o fato de que ele realmente não possa ter a mesma magnitude, isto é, de que o saber previdente permaneça atrás do saber técnico que confere poder ao nosso agir, ganha, ele próprio, significado ético. O hiato entre a força da previsão e o poder do agir produz um novo problema ético. Reconhecer a ignorância torna-se, então, o outro lado da obrigação do saber, e com isso torna-se uma parte da ética que deve instruir o autocontrole, cada vez mais necessário, sobre o nosso excessivo poder.[68].
A partir do momento em que o ser humano passou a ser objeto da técnica, possibilitando ao homo faber “refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto”, esse poder “desafia o último esforço do pensamento ético, que antes nunca precisou visualizar alternativas de escolha para o que se considerava serem as características definitivas da constituição humana”, incluídas o início e o fim da vida humana[69].
O poder sobre o início da vida humana nos confrontou com perspectivas que exigem a mais alta sabedoria “uma situação definitivamente impossível para o homem em geral, pois ele não possui essa sabedoria, e para o homem contemporâneo em particular, que até mesmo nega a existência de seu objeto, ou seja, a existência de valor absoluto e de verdade objetiva. Quanto mais necessitamos de sabedoria é quando menos acreditamos nela.”[70].
Quando estamos diante daquilo que caracteriza a essência do ser humano, mesmo que diante da controvérsia, ou melhor, em razão da controvérsia, “não deveríamos arriscar nada.”[71], pois “para tomarmos uma decisão, deveríamos tratar como certo aquilo que é duvidoso, embora possível, desde que estejamos tratando de um determinado tipo de conseqüência. […] Esse princípio para o tratamento da incerteza não tem propriamente nada de incerto em si e nos obriga incondicionalmente, isto é, não apenas como um mero conselho de prudência moral, mas como mandamento irrecusável, na medida em que assumimos a responsabilidade pelo que virá. Sob a óptica de tal responsabilidade, a prudência, virtude opcional em outras circunstâncias, torna-se o cerne do nosso agir moral”[72].
Para Jonas, o ato da procriação é a “origem genuína da responsabilidade”; “sua esfera de ação, com sua exigência contínua, é o lugar mais original de seu exercício.”[73]. Assim, ao considerarmos que os embriões em situação extracorpórea são fruto de um ato de procriação medicamente assistido, e não da simples aplicação de uma técnica, verificamos a incidência do princípio ético da responsabilidade, caracterizado por Jonas, no ato de procriação, como a “origem genuína da responsabilidade”. Se não respeitamos o princípio ético da responsabilidade em sua origem genuína, tudo o que se falou até então sobre a proteção do ser humano, em razão do simples fato de pertencer à espécie humana, torna-se fórmula vazia.
6 Autonomia sobre a vida de outrem e a óptica do semelhante
Para Luís Roberto Barroso
Não se trata de pregar, naturalmente, um relativismo moral, mas de reconhecer a inadequação do dogmatismo onde a vida democrática exige pluralismo e diversidade. Em situações como essa, o papel do Estado deve ser o de assegurar o exercício da autonomia privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de consulta imperativa.”[74]
Nesse sentido, sustenta o referido autor que a lei de biossegurança respeita a autonomia privada e não obriga os genitores, apenas faculta a opção de “doar” (sic) os embriões para pesquisa . Ora, os genitores têm o poder de decidir sobre o destino do outro?. Isso faria parte do exercício do poder familiar? Ou eles estariam dispondo de uma coisa e, portanto, de um bem disponível, que faria parte de seu patrimônio? Afinal, a partir de qual premissa podemos sustentar essa autonomia?
Verificamos que a própria lei, apesar de sua postura paradoxal, não permite a utilização de embriões humanos fora dos limites do art. 5o. . Portanto, podemos concluir que não considera todo e qualquer embrião humano como “bem disponível”. Assim, como justificar a opção dos genitores?
No filme “A ilha”, a empresa Emerick. comercializava órgãos e tecidos de clones. O interessante no filme é a forma como essa “comercialização” é apresentada. Em uma determinada cena, diante da fuga de dois clones, denominados, pelos empresários, como produtos, há a apresentação dos serviços da referida empresa. A mensagem que eles pretendem passar é a de saúde e dizem que o clone, chamado de agnata, que será produzido a partir de uma das células do corpo do contratante, permanecerá em estado vegetativo como um aglomerado de células. Mais a frente, o empresário relata confidencialmente a um agente contratado para capturar os clones foragidos que era impossível,do ponto de vista científico, manter a vitalidade dos órgãos sem o densenvolvimento dos embriões-clones gerados.
Ou seja, no filme, passa-se a falsa impressão de que se está contratando uma coisa e não uma vida humana. Os contratantes não enxergam a sua humanidade em “um aglomerado de células”, o que facilita a contratação do serviço.
Neste sentido, podemos analisar, também, a presente questão sob a ótica apontada por Apel e Lorenz. Apel[75] sustenta que, em razão da amplitude espacial e temporal das ações humanas, torna-se difícil para o homem sentir-se emocionalmente atingido pelas conseqüências de suas ações. Nesse ponto, recorre-se à ilustração realizada por Lorenz[76], sobre a comparação do homem paleolítico com um machado em punho e o piloto que transportou a bomba de Hiroshima. O manipulador do machado de mão ainda apresentava fortes instintos repressivos, pois ele tinha que se defrontar com seu adversário olho no olho, ou seja, ele via a sua condição de ser humano espelhada no seu adversário. Já a situação do piloto que transportou a bomba de Hiroshima é diferente, pois ele é preservado do encontro humano com o “inimigo”, afinal apenas apertou um botão, não vivenciando as conseqüências da liberação da bomba de forma sensitivo-emocional.
Transportando para a questão presente, a dificuldade que possuímos em enxergar a humanidade do embrião extracorpóreo se deve ao fato de que, por estar nos estágios iniciais do seu desenvolvimento, o embrião não apresenta, do ponto de vista morfológico, semelhança com o ser humano já formado. Não negamos a natureza humana do embrião de 6 meses, mas temos dificuldade em ver a mesma humanidade em um embrião de 5 dias, pois, por uma representação morfológica, temos dificuldade em considerá-lo um semelhante.
Não se nega a proteção da vida humana do embrião já implantado no útero materno e, portanto, não se pode admitir a existência de um salto qualitativo entre o embrião[77] pré-implantatório e o embrião implantado, tendo em vista que as etapas de desenvolvimento sofridas inicialmente pelo embrião fora do útero materno são as mesmas que as do embrião dentro do útero. Assim, se há proteção do embrião implantado, por que tratar, de forma diferenciada, o mesmo embrião, apenas por estar em situação extracorpórea?
Considerando os efeitos de uma tutela diferenciada, Minahim sustenta que:
Com a permissão para a manipulação de embriões, passa a existir, no direito brasileiro, uma grave antinomia legislativa porque a destruição destes não é compatível com a incriminação do aborto. É bem verdade que se afirma (com argumentos estritamente formais) que, no primeiro caso, não há aborto porque não há gravidez, uma vez que os embriões estão fora do útero. Deve-se observar, porém, que ao proibir o aborto, protege-se a vida, e não o local onde ela se realiza. Assim, não é o ventre ou tubo de ensaio que devem ser determinantes da licitude da conduta, mas o bem jurídico por ela afetado. Se se descobrir, por exemplo, meios para gestação completa de uma criança fora do ventre materno, sua eliminação será lícita? […] no caso dos pré-embriões, essa apropriação pode ser levada a cabo com mais tranqüilidade, porque os benefícios resultantes de sua destruição são objetivamente comprováveis; além do que a vítima até pode perder esta qualidade, por quem, não sendo considerada pessoa, embora esteja no mundo natural, não está no mundo jurídico. [78]
À descontinuidade na categorização científica das fases do desenvolvimento embrionário corresponderá uma descontinuidade nas categorias éticas e jurídicas[79]. O resultado da fixação de marcos de proteção diferenciada do ser humano (nascimento com vida, nidação, situação extracropórea) leva a uma graduação da própria humanidade.
Ingo Sarlet sustenta que a dignidade é uma “ qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser descartado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade[80]”
Para Sarlet, a dignidade não pode ser resumida a uma visão especista:
“De qualquer modo, o que se percebe [….] é que o reconhecimento da dignidade como valor próprio de cada pessoa não resulta, pelo menos não necessariamente (ou mesmo exclusivamente), em uma biologização da dignidade, no sentido de que esta seria como uma qualidade biológica e inata da natureza humana, geneticamente pré-programada […].[81]
Sustenta, ainda, o referido autor que
“a dignidade da pessoa humana encontra-se de algum modo, ligada (também) à condição humana de cada indivíduo,mas não há como desconsiderar a necessária dimensão comunitária (ou social) desta mesma dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos reconhecidos como iguais em dignidade e direitos”[82]
Há de se discordar da posição de Ingo Sarlet, pois devemos considerar que a pertença à espécie humana e, na esteira de Francis Fukuyama, o compartilhar de uma humanidade comum, seria o elemento gerador de uma primeira dimensão da dignidade, que não se resumiria, na sua toalidade, à pertença à espécie, mas que ali já estaria presente em ato e não em potência. Não consideramos que a concepção especista seja reducionsita ou vulnerável, pelo contrário, sustentar que a pertença à espécie humana não seja um bem a ser tutelado pelo Direito nos torna vulneráveis. Não advogamos a tese do reducionsimo da dignidade à humanidade compartilhada, mas, sim, a tese de que esse seja o seu marco inicial e que outras dimensões serão agregadas oportunamente.
Não podemos confundir fins com meios. O objetivo de descobrir a cura de doenças é altamente defensável, mas não pode ser feito a qualquer custo. Caso contrário, legitimaríamos as experiências realizadas pelos médicos nos campos de concentração e os resultados que hoje partilhamos de suas experiências.
Vejamos a posição de Luís Roberto Barroso a propósito da Lei de Biossegurança:
“Não se deve desprezar, todavia, o fato de se tratar de um ser humano em potencial. E muito embora possa permanecer indefinidamente como uma mera potencialidade, não deve ser instrumentalizado. O tratamento dado à matéria pela Lei 11.105/2005 supera, sem margem de controvérsia, esta objeção, haja vista que somente permite a utilização de embriões fecundados in vitro para fins reprodutivos e que não têm a possibilidade de se tornarem seres humanos, porque inviáveis ou não utilizados no processo de fertilziação[83]”
Trata-se de um jogo de palavras. Na verdade, estamos falando de instrumentalização da mesma forma. Por que a lei não admite a pesquisa com todo e qualquer embrião? Se não há dignidade a ser respeitada e,segundo o autor, vida humana a ser protegida, por que vedar a instrumentalização? Se o embrião humano ex utero não tem dignidade e, portanto, é coisa, deveria ser admitida a sua instrumentalização sem restrições. A conclusão que se chega é que a lei é paradoxal, pois objetivou atender a gregos e troianos e criou uma medusa legislativa.
E, ainda, partindo da linha de respeito à dignidade, teríamos embriões detentores dessa dignidade e outros não. A questão é ontológica. É isso que temos que enfrentar: afinal, o que é o embrião humano para o direito brasileiro. E não admitirmos a não atribuição dessa dignidade para tratá-lo como meio, quando nos interessar. A quem interessa a instrumentalização dos embriões? Aos pacientes tão somente?.
O que deve ser dito é que a Lei de Biossegurança ora se vale do princípio da dignidade da humana para sustentar uma postura antiutilistarista, ora a utiliza para afirmar que os embriões objeto das pesquisas não a possuem. Nesse sentido, vejamos a posição de Luís Roberto Barroso:
“A lei brasileira não permite que sejam utilizadas células-tronco extraídas de embriões produzidos exclusivamente para pesquisas. Esse requisito tem uma conseqüência ético-jurídica importante: afastar a objeção antiutilistarista, apoiada no núcleo essencial do princípio da dignidade humana, segundo a qual a utilização de embriões em pesquisas significaria tratá-los como meios para a realização das finalidades de outrem”[84]
E continua:
“Originalmente, a finalidade perseguida era a reprodução. Contudo, como a implantação não ocorreu, na há razões para que suas células não sejam utilizadas para promover a vida e a saúde de pessoas que sofrem de graves patologias”[85]
Portanto, podemos concluir pela análise do posicionamento do referido autor que se a finalidade reprodução não foi alcançada, o que teria o condão de conferir ao embrião a total proteção e vedação contra o descarte, haveria permissão para sua instrumentalização.. Devemos analisar a natureza jurídica do embrião não de acordo com a sua finalidade, mas sim pela sua ótica ontológica, ou seja, o que ele é efetivamente.
Trata-se, também, de discutir a própria legitimidade da geração de embriões em número superior ao necessário na reprodução medicamente assistida e a sua criopreservação, o que, por uma questão de delimitação temática, não será tratada. Contudo, podemos afirmar que a questão já vem sendo ventilada no projeto de lei sobre reprodução assistida (PL 1184/2003) que veda a produção de mais de 2 embriões e a criopreservação.
7 A questão da inviabilidade
O Ministro Carlos Aires Britto, para explicar o conceito de inviabilidade, recorre a uma antropóloga, quando o correto seria utilizar, como referência doutrinária, autor da área médica:
“como explica a antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, “O diagnóstico de inviabilidade do embrião constitui procedimento médico seguro e atesta a impossibilidade de o embrião se desenvolver. Mesmo que um embrião inviável venha a ser transferido para um útero, não se desenvolverá em uma futura criança. O único destino possível para eles é o congelamento permanente, o descarte ou a pesquisa científica”
Mas quais seriam os critérios científicos para se atestar a inviabilidade? Tais critérios são seguros? O Ministro, ao citar uma antropóloga, com todo o respeito pela produção da autora citada, age como se perguntasse a um contador o que é morte encefálica, se seus critérios são seguros, se ele dispõe de conhecimento para determiná-la.
Não há que se confundir diagnóstico pré-implantacional com inviabilidade, o primeiro identifica condições genéticas patológicas, o que não indica incompatibilidade com a vida; portanto, a utilização destes embriões não está incluída na definição de inviáveis e, tampouco, podem ser utilizados em pesquisas sob o mando de serem inservíveis.
Justifica, ainda, que o critério de 03 anos adotado no inciso II do art. 5o, da Lei 11.105/2005 é baseado no marco temporal em que se daria por finda a disposição do casal para o aproveitamento reprodutivo, bem como a obrigação de armazenamento
Ora, como o legislador pode se arvorar no direito de estabelecer um prazo, sem qualquer embasamento científico, para dispor da vida humana embrionária? Se a vida humana é um bem indisponível, e como ressalta o Ministro, em todos os estágios, há dignidade, não há que se falar na possibilidade de delimitação temporal para disposição ou não em projeto parental. A criação de uma vida humana fora do ventre materno só pode ter como fim a sua utilização em um projeto parental, que não pode ser determinado temporalmente. A vida humana não admite limitações temporais. Em países que permitem o descarte de embriões, ou seja, que adotam a linha utilitarista, o prazo de criopreservação é superior a 5 anos. Partindo da consideração de que todos os estágios seriam dotados de dignidade, como delimitar um marco temporal?
Não podemos esquecer que esses embriões, hoje armazenados em placas de Petri e cilindros metálicos foram concebidos com o fim de tornarem-se “filhos” e não devem deixar de sê-los. É reconhecido que o Estado não pode obrigar alguém a gerá-los, mas pode estabelecer o dever de tutela que estes pais têm sobre os embriões, frutos de um projeto parental, que impõe dentre outros o princípio da paternidade responsável e a dignidade da pessoa humana.
Atesta que o controle das pesquisas pelos competentes comitês de ética e pesquisa é “medida que se revela como um nítido compromisso da lei com exigências de caráter bioético.”. Em qual princípio, tal “zelo” se enquadraria?O zelo do legislador operaria em benefício de quem? Mais a frente, o referido Ministro ressalta que tal atitude seria inibidora “do aleatório descarte do material biológico não utilizado nem reclamado pelos respectivos doadores”, mostrando que o interesse protegido é apenas dos usuários das técnicas de reprodução assistida”.
Conclui que tal regração legal e, alerta “ é a minha leitura”, impede a realização de qualquer abritrariedade. Entendemos que a maior arbitrariedade já fora cometida: a de dispor de vidas humanas, de membros da espécie humana para fins de pesquisa. O cuidado com outras arbitrariedades não apaga a pior das que foi cometida. A afirmação de que trata-se de “de um conjunto normativo que parte do pressuposto da intrínseca dignidade de toda forma de vida humana, ou que tenha potencialidade para tanto, ainda que assumida ou configurada do lado de fora do corpo feminino (caso do embrião in vitro).” A arbitrariedade está no ato de disposição de uma vida humana. E conclui: “Noutro dizer, o que se tem no art. 5º da Lei de Biossegurança é todo um bem concatenado bloco normativo que, debaixo de explícitas, cumulativas e razoáveis condições de incidência, favorece a propulsão de linhas de pesquisa científica das supostas propriedades terapêuticas de células extraídas dessa heterodoxa realidade que é o embrião humano in vitro”.
8 Pessoa no sentido biográfico
O Ministro, apesar de ter sustentado pela dignidade em todo estágio da vida humana, envereda seu raciocínio pela análise daquele que deveria ser objeto de tutela jurídica, ao tratar do atributo da personalidade.
A tutela da vida humana desde a concepção não se confunde com o atributo da personalidade. São questões distintas. Quando se fala em atribuição de personalidade, estamos buscando definir um personagem do mundo jurídico, que além de gozar do direito à vida, será capaz de ser titular de direitos patrimoniais, de contratar, de testar, de casar, etc.
São núcleos temáticos distintos. Entender que há proteção da vida humana desde a concepção não pressupõe, necessariamente como requisito, o atributo da personalidade. De forma alguma! O artigo 2o. do Código Civil estabelece que tal atributo só será conferido “após ao nascimento com vida”, ou seja, teríamos a hipótese inconcebível de condicionar direitos que não permitem condição, como o direito à vida. Não se pode condicionar a tutela da vida humana ao atributo da personalidade, pois, caso contrário, não haveria a tipificação do crime de aborto, em que o bem jurídico tutelado é a vida humana após a concepção.
E na esteira do pensamento da tutela jurídica da vida somente daquele detentor do atributo da personalidade jurídica, concluiu que o texto constitucional ao se referir à dignidade humana “, é da pessoa humana naquele sentido ao mesmo tempo notarial, biográfico, moral e espiritual ( o Estado é confessionalmente leigo, sem dúvida, mas há referência textual à figura de Deus no preâmbulo dela mesma, Constituição). E quando se reporta a “direitos da pessoa humana” (alínea b do inciso VII do art. 34), “livre exercício dos direitos (…) individuais” (inciso III do art. 85) e até dos “direitos e garantias individuais” como cláusula pétrea (inciso IV do § 4º do art. 60), está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Gente.Alguém. De nacionalidade brasileira ou então estrangeira, mas sempre um ser humano já nascido e que se faz destinatário dos direitos fundamentais “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (art. 5º). Tanto é assim que ela mesma, Constituição, faz expresso uso do adjetivo “residentes” no País (não em útero materno e menos ainda em tubo de ensaio ou em “placa de Petri”)”
Podemos extrair algumas considerações de tal posicionamento: a) a tutela da vida humana embrionária pelo Código Penal é inconstitucional, pois o legislador constituinte só autorizou, de acordo com a interpretação do Ministro, o gozo desse direito aos que nasceram com vida; b) trata-se de uma hipótese jurídica nova : só há vida se você nascer com vida.
Partindo desta premissa de que todos os estágios da vida humana são detentores de dignidade, e considerando o princípio da dignidade da pessoa humana como eixo axiológico do ordenamento jurídico, temos que o legislador constituinte ao se referir ao direito á vida no caput no art. 5o. incluiu o ser humano desde a sua concepção como merecedor de sua tutela, pois, caso contrário, como já levantado, questionaríamos a tipificação do crime de aborto. Deve ser ressaltado, também, que em nome dessa mesma dignidade, que é compartilhada por toda a humanidade, o legislador constituinte tutela as presentes e as futuras gerações (art. 225), em alusão aos que sequer foram concebidos. Com a devida vênia, trata-se de uma interpretação reducionista do texto constitucional.
Equivoca-se, a nosso ver, ao equiparar a vida presente na célula germinal com a vida presente no embrião humano. Na primeira, há a parcialidade da carga genética humana, no segundo, há um ser humano individualizado, único, irrepetível. Confunde-se, também, ao descaracterizar a vida humana no seu estágio inicial ao comparar os termos reprodução e produção. A forma de criação de uma vida humana é a reprodução, pois nós temos a capacidade de nos “replicar”, no sentido de gerar outros seres. O prefixo “re” é utilizado no sentido da possibilidade de gerar um semelhante, de fazer renascer um ser humano pelo processo reprodutivo. Trata-se de um novo começo. Temos esse atributo e por ele devemos ser responsáveis: geramos seres humanos, nossos semelhantes, membros da espécie humana como nós e não de outra espécie, damos continuidade às gerações.
9 Esperança e Poder
Por fim, verificamos a manifestação, neste julgamento, da preocupação de alguns ministros com as expectativas de cura e com as promessas realizadas pela comunidade científica. Em seu voto, a Ministra Cármen Lúcia, se posiciona de maneira acertada e ponderada, ao afirmar:
“Também manifesto nestas ponderações iniciais, Senhor Presidente, a minha preocupação com as expectativas que parece tersido suscitadas na sociedade quanto aos efeitos práticos e imediatos deste julgamento. A esperança é um direito natural que as pessoas têm e que não podem perder, para continuar a ter força para lutar pelo que cada um e todos mais precisam. Mas não se há confundir a esperança de cura com a ilusão de uma imediata cura. Nem está no Direito, nem neste Tribunal, nem no resultado desta ação o bálsamo curador de quem mais precisa dos efeitos de novas terapias, que têm grande chance de poderem surgir em algum tempo (ainda não precisado pela ciência) se as pesquisas, liberadas, chegarem aos resultados hoje esperados pela comunidade científica dedicada ao tema. Mas que nem se use desta ação para impedir as pesquisas, nem para falsear ilusões que não podem ser garantidas agora a quem quer que seja, conforme a unânime opinião das pessoas sérias e responsáveis que trabalham com a matéria versada neste processo. Faço questão de realçar este ponto, Senhor Presidente, porque temo que a palavra pela qual se afirma e faz realizar o Direito seja utilizada como fraude a legítimas esperanças dos que dependem de soluções sérias e que se quer benéficas aos que mais diretamente dependem do êxito das pesquisas para sofrimentos que a só natureza (sem a mão do homem)não pode curar.
É que assisti a divulgações das mais diversas fontes e dos mais diferentes matizes que poderiam ser lidos, ouvidos e até vistos como se a solução desta causa fosse o passaporte faltante para a salvação imediata daqueles que padecem de males que poderão vir a ser sanados ou diminuídos em seus efeitos pelo êxito de pesquisas científicas da medicina regenerativa. Entretanto, isso é uma promessa, mas é certo que não ocorrerá amanhã, qualquer que seja o resultado deste julgamento. Poderá, é certo, haver um amanhã para aqueles que padecem de males dependentes do êxito que se espera a partir das pesquisas com células tronco embrionárias. Ilusão não é esperança. E como enfatiza Sophia de Mello Breyner, “com fúria e raiva acuso o demagogo, que se promove à sombra da palavra, e da palavra faz poder e jogo…”. São demagogos, Senhor Presidente, todos os que se valem da palavra para enganar os que querem, mais ainda os que precisam acreditar para persistir em suas lutas para viver ou para não morrer, e por isso tanto mais inaceitável a oferta fácil de falsas ilusões, que não podem ser honradas e que não ajuda a que se mantenham as esperanças, necessárias, reitero, para que as pessoas não desanimem e persistam a acreditar que haverá de haver soluções para os seus dilemas.”
No mesmo sentido, o Ministro Eros Grau faz suas ponderações, como se verifica no trecho de seu voto:
“Forças sociais manifestaram-se intensamente — de modo mesmo impertinente, algumas delas — em relação à matéria objeto da presente ação direta de inconstitucionalidade. Estou convencido de que, ao contrário do que se afirmou mais de uma vez, o debate instalado ao redor do que dispõe a Lei n. 11.105 não opõe ciência e religião, porém religião e religião. Alguns dos que assumem o lugar de quem fala e diz pela Ciência são portadores de mais certezas do que os líderes religiosos mais conspícuos. Portam-se, alguns deles, com arrogância que nega a própria Ciência, como que supondo que todos, inclusive os que cá estão, fossemos parvos. Como todas as academias de ciência são favoráveis às
pesquisas de que ora se cuida, já está decidido. Nada mais teríamos nós a deliberar. Mesmo porque, a imaginar que as impedíssemos, estaríamos a opor obstáculo à cura imediata de doenças. A promessa é de que, declarada a constitucionalidade dos preceitos ora sindicados, algumas semanas ou meses após todas as curas serão logradas. Típica indução a erro mediante artifício retórico. É necessário sopitarmos as expansões de infalibilidade de quem substitui a razão científica por inesgotável fé na Ciência, transformando-a em expressão de fanatismo religioso. Nem seria preciso, no exercício da prudência que nos cabe, levantarmos o véu que algo oculta sob o discurso que se diz ser científico. Quais interesses aí se manifestam, na escala que vai das patentes até o biopoder? […]
Não nos iludamos: levantado o véu, o que há sob ele — não obstante, é verdade, as melhores intenções de grande número dos que acompanham este julgamento — é o mercado.”
A propósito da ausência de neutralidade da ciência e da tecnologia, o Ministro Lewandowski, em seu voto, afirma:
“Elas tampouco detêm o monopólio da verdade, da razão ou da objetividade, valores, de resto, também cultivados por outras áreas do conhecimento humano. Diga-se, aliás, que a fé no progresso ilimitado da ciência e da técnica, bem como a crença em sua benignidade intrínseca, representam uma herança do Iluminismo, no fundo um racionalismo naturalista” […]
“Para Habermas, essa ideologia, “um tanto vítrea, hoje dominante, que faz da ciência um feitiço, é mais irresistível e de maior alcance do que as ideologias de tipo antigo”. E, embora não leve a uma completa “anulação de conexão ética”, ela promove “a repressão da ‘eticidade’ como categoria das relações vitais em geral”.
10 Considerações finais
Verificamos que a afirmação de que a vida começa na concepção é posição que os tratados de embriologia e genética dão como questão indiscutível. Não há como negar a vinculação, neste marco, com a natureza humana, já que o embrião representa a fase inicial do desenvolvimento de um ser humano. Não podemos esquecer que todas as pessoas já nascidas foram embriões e que, por isso, nos assemelhamos a eles, que não devem ser considerados mais ou menos “vida” em razão das fases de desenvolvimento, já que o fim certo e esperado é o mesmo: a formação de um ser humano.
Dessa forma, deve-se fazer uma reflexão quanto à “coisificação” dos embriões, pois não merecem tal tratamento em razão de aparentemente serem estranhos ao modelo clássico vigente em nosso ordenamento jurídico, reconhecendo como nascituros apenas os concebidos no ventre materno e em vias de se tornarem pessoas ao nascerem com vida. O foco deve ser o marco concepção e não o lócus onde esta ocorreu.
O entendimento de que o embrião em situação extracorpórea não pode ser sujeito de proteção jurídica significa restringir a dignidade da pessoa humana a determinado período da vida, de forma que toda a sua extensão torna-se prejudicada.
Observa-se a permanência da concepção Kantiana, no sentido de considerar a pessoa como fim e não como meio, repudia toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano. Coisificar o ser humano, sobretudo em situação extremamente vulnerável, na qual se insere o embrião “ in vitro”, é permitir que se proceda a uma indevida inversão da utilidade da ciência, que deixaria de servir ao homem para dele se servir.
Deve-se ressaltar que as técnicas reprodutivas não devem perder o seu objetivo principal, que é contribuir para a coletividade, propiciando a efetivação do projeto parental, sem prejudicar a essência humana, nos tornando cada vez menos humanos. Lamentavelmente, o julgamento da ADI 3510 desconsiderou a necessária vinculação dos embriões, objeto dos incisos I e II do artigo 5º. da Lei 11.105/2005, do seu propósito único e exclusivo, qual seja, o de atender a um projeto parental. Esperamos, somente, que o tempo levante o véu que encobre a verdade, já ventilada em trechos dos votos de alguns ministros.
Pós-Doutoranda no Instituto de Medicina Social da UERJ. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da disciplina “Bioética e Biodireito” no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá. Coordenadora-adjunta do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá.
Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá
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