A segunda turma do STF no Julgamento do RHC 113769, tendo como relatora a Ministra Carmem Lúcia, negou a remição pelo estudo a condenado que freqüentava curso de capoeira no estabelecimento penitenciário. A Defensoria Pública havia conseguido o benefício no Juízo de Execução de Primeiro Grau, mas houve recurso do Ministério Público, sendo a decisão reformada pelo TJRJ e mantida a reforma pelo STJ. Finalmente, chegando o Recurso Ordinário em Habeas Corpus ao STF, foi mantida a decisão de que o curso de capoeira não é apto a ensejar a remição pelo estudo.
A posição adotada pelo Pretório Excelso, bem como pelos demais tribunais instados a se manifestarem, reformando a sentença de primeiro grau onde se concedeu a remição é extremamente adequada.
Efetivamente a finalidade da norma da Lei de Execução Penal ao permitir a remição da pena do condenado pelo estudo é a contribuição que essa atividade tem para sua formação técnica, cultural e humana. Tem-se em mira a capacidade de ressocialização ou de socialização do estudo em prol do condenado, possibilitando-lhe uma melhor e mais fácil reintegração quando egresso do sistema penitenciário.
A frequência ao curso de capoeira, embora não possa ser considerada como algo desprezível sob o ponto de vista de ressocialização, vez que se trata de um esporte e de uma manifestação cultural, não tem o condão de satisfazer aquilo que a Lei de Execuções Penais pretende em sua estrita finalidade.
Mas, não é de assustar o fato de que a Defensoria Pública tenha advogado a tese da remição nessas circunstâncias e que o Juízo de Primeiro Grau tenha chegado a acatar essa alegação. Isso porque o Direito, como qualquer ramo da atividade humana, não se encontra isolado. Existe sempre e invariavelmente a questão da interdisciplinariedade ou mesmo da transdisciplinariedade. Nesse caso, as modernas teorias pedagógicas certamente influenciaram decisivamente a equivocada decisão judicial de primeiro grau e a fundamentação do pedido da Defensoria Pública. Diz-se equivocada a decisão e os fundamentos porque há hoje um equívoco tornado praticamente um dogma na pedagogia a promover uma indevida confusão entre o lúdico e o pedagógico, entre o estudo sério e a diversão. Hoje o professor que não é um histrião é considerado incompetente, antipedagógico, chato.
Ninguém põe em dúvida que não somente o estudo, mas a vida em geral não pode ser hermética à alegria ou a certa dose de descontração. Mas, tudo tem um limite e os conceitos não podem e não devem se confundir. Lazer e estudo são coisas diversas. O segundo exige sim dedicação, esforço e certa dose de sofrimento. Exige abnegação e renúncia como qualquer virtude. Entretanto, parece que o mundo contemporâneo, com seus relativismos e utilitarismos, perdeu o conceito de virtude.
É preciso lembrar que “virtude é um conceito que descreve o esforço de uma pessoa em controlar sua vontade e seus desejos em nome de alguma conduta específica. (…). Para haver virtude é necessário haver combate, sofrimento, dor. (…). Um dos traços bregas da nossa época é supor que se pode ter vida moral sendo feliz”. A verdade é que “somos escravos da felicidade, mas é a infelicidade que nos torna humanos”. [1]
No entanto, vivemos numa época imbecilizante em que se acredita que um homem pode ser indefinidamente uma criança grande e feliz. Acredita-se que um homem pode gozar a vida, brincar sempre, ter à sua disposição a segurança absoluta sob os pontos de vista moral e físico, obter todos os seus desejos e quando não satisfeitos, simplesmente tem o direito de fazer birra ou apelar para a violência com seu egocentrismo pueril. Viceja a crença em um “Direito à Felicidade”, que alguns absurdamente chegam a pretender constitucionalizar!
Trata-se de levar o “homo ludens” ao seu extremo, conformando um ser humano movido por desejos egoístas, individualismo total e absolutamente incapaz de um esforço sequer, de um ato de desprendimento, de coragem, de doação. A única “virtude” suposta é aceitar os próprios erros, os próprios defeitos e regozijar-se com eles, sem jamais pretender qualquer espécie de evolução moral. É um verdadeiro mantra da contemporaneidade, veiculado com poderio pelas chamadas “celebridades”, que o “importante é amar a si mesmo”.
Bruckner chama a atenção para a denominada “tentação da inocência” do homem contemporâneo, a qual o infantiliza e vitimiza, pois que deseja gozar dos benefícios da sua liberdade sem “sofrer nenhum de seus inconvenientes”. Deseja tudo e não quer renunciar a nada, idealizando-se como uma espécie de “deus doméstico” que tem como modelo a criança caprichosa. [2] Nesse contexto a vida se torna uma festa, na qual “o embrutecimento delicioso dos lazeres tem primazia sobre os múltiplos modos de engajamento e de desenvolvimento pessoal”. [3]
É assim que no campo da educação tem-se advogado que o aluno precisa ser cativado mediante recursos lúdicos e não conscientizado da necessidade do aprendizado e de sua natureza árdua. Mas, como outras teorias imbecilizantes essa é mais uma que vem prosperando na modernidade.
Carvalho, com argúcia, nos fala do “Imbecil Coletivo”, sentenciando:
“O Imbecil Coletivo não é, de fato, a mera soma de um certo número de imbecis individuais. É, ao contrário, uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras”. [4]
É no bojo dessa imbecilização produzida no imaginário da “ciência” pedagógica que se tem efetivado e firmado a terrível confusão entre o lazer e o estudo.
Bem enxergaram os tribunais e o STF que capoeira não é estudo e sim lazer, atividade recreativa. É esporte e cultura sim, é dança, é arte, mas não é estudo no sentido pretendido pela Lei de Execução Penal. Inclusive é uma arte marcial que pode ser instrumento de agressão se mal utilizada pelo egresso em seu retorno social.
Se o STF abrisse as portas para a concepção da capoeira como estudo na concessão da remição penal, certamente chegaria o tempo em que o jogo de futebol no banho de sol também seria computado como horário de trabalho ou estudo. Talvez também a leitura de jornais ou revistas para matar o tempo na prisão ou quem sabe até o jogo de baralho, as horas em frente à televisão ou o jogo de palitinho nas celas!
Parece que ao menos nossos tribunais escaparam à perigosa tendência de confusão entre o pedagógico e o lúdico que avassalam a sociedade contemporânea. Temos ao menos essa boa notícia em meio a tantos disparates pseudointelectuais.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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