As últimas conquistas da luta pela liberdade e
igualdade sexuais no Brasil podem estar correndo sério risco com a entrada em
vigor do novo Código Civil, a partir de janeiro de 2003. O artigo 1.708 do novo
código estabelece, em seu parágrafo único, que o direito à pensão alimentícia
cesse caso o credor apresente “procedimento indigno” em relação ao
devedor.
Silmara Juny Chinelato, professora da Faculdade de Direito da USP,
explica que esse dispositivo poderá motivar uma ação de um ex-cônjugue
que se sinta atingido pela vida amorosa da ex-mulher. “Esse artigo é
perigoso porque pode significar um retrocesso nas conquistas do Direito de
Família”. A professora lembra um antigo entendimento jurisprudencial,
anterior à lei do divórcio, de 1977, que previa a suspensão do pagamento da
pensão alimentícia pelo homem no momento em que a ex-mulher começasse a
namorar, e afirma que “esse dispositivo poderá motivar ações
semelhantes”.
Silmara ressalta que a obrigação de fidelidade só
existe durante o casamento, pois “quando este cessa, não há mais razão
para a existência de tal dever”, e prevê que muitos cônjuges tentarão se
exonerar do pagamento da pensão, motivados pelas diversas interpretações que a
expressão “procedimento indigno” pode vir a ter.
Para Luiz Felipe Brasil dos Santos, desembargador
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) e presidente do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), é muito remota a possibilidade de
que uma ação motivada por essa interpretação seja vitoriosa nos tribunais. Isso
se deve à consolidação, na jurisprudência brasileira, de um posicionamento mais
moderno nos processos que envolvem a liberdade sexual e amorosa dos indivíduos.
O desembargador também lembra que a alteração
proposta pelo IBDFAM para esse artigo foi acatada pelo deputado Ricardo Fiúza
(PPB-PE), relator da matéria na Câmara dos Deputados, e contribuiu para uma
interpretação mais restritiva do dispositivo. A alteração sugerida pelo
instituto foi o acréscimo do período “em relação ao devedor” ao final
do parágrafo único. “Isso restringiu a interpretação à indignidade que
autorize a indignação”, afirma Santos. “Uma interpretação mais ampla
poderia dar razão para que o devedor fiscalizasse a vida do credor”,
acrescenta.
O artigo 1183 do atual Código Civil, que estipula
as hipóteses da revogação de uma doação por ingratidão, deverá servir de base
para uma interpretação restritiva, segundo a professora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo Maria Alice Lotufo.
O artigo prevê que a ingratidão pode ser declarada em caso de atentado à vida,
ofensa física, injúria ou calúnia ao doador. Para Maria Alice, a interpretação
da expressão “procedimento indigno” se restringirá a tais hipóteses.
Silmara concorda que a alteração proposta pelo
IBDFAM deve contribuir para a restringir a
interpretação dessa polêmica expressão, mas reafirma que o dispositivo poderá
dar margem a interpretações equivocadas do artigo.
A
obrigação do pagamento de pensão alimentícia visa a assegurar a subsistência
daqueles que apresentam um elo familiar, sem ter condições de garanti-la. Ela
envolve não apenas a garantia dos alimentos, mas de todas as necessidades
básicas do indivíduo, como vestuário, educação e saúde, e pode ser pleiteada
por qualquer membro da família.
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