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Exame de ordem: estelionato ou extorsão?

O
Senador Gilvam Borges apresentou, recentemente,  projeto de lei (n.186/06) destinado a abolir a exigência do Exame
de Ordem, a fim de que os bacharéis em Direito possam obter  inscrição na OAB, indispensável ao exercício
da advocacia. O principal objetivo do projeto é o de  por fim a  um “instrumento
de controle injusto, despropositado e inconstitucional”. A reação do atual
Presidente Nacional da OAB ao referido projeto não se fez esperar,
qualificando-o  como “inconseqüente” e
de um “incentivo ao estelionato” em relação à sociedade.

Pois
bem, no conjunto de artigos já escritos sobre o Exame de Ordem, um em
particular despertou minha atenção pela forma da abordagem adotada: refiro-me
ao artigo do professor Fernando Machado da Silva Lima, publicado no “Jus navegandi”.
Nele, o autor, tratando da ética do Exame de Ordem, mostra-se totalmente
contrário ao mesmo, fundamentando seu discurso com base nos seguintes
argumentos: de que é formal e materialmente “inconstitucional”; de que “não
avalia, corretamente, a capacidade profissional do bacharel em Direito”; de que
“não é capaz, muito menos, de avaliar a honestidade ou a ética de quem quer que
seja”;  de que os “critérios utilizados
na elaboração e na correção das provas o transformaram em um verdadeiro
instrumento de exclusão social”; entre outros.

Concordando com as ponderações
articuladas pelo mencionado autor sem nenhuma ressalva de conteúdo, entendo,
sob outra perspectiva, que a reforma proposta pelo mencionado projeto de
lei  volta a por sobre a mesa a questão
essencial acerca da finalidade de tal Exame. Regra geral, se define esta com
frases do tipo:  o exame de ordem é
necessário para avaliar a capacidade profissional e a honestidade  do bacharel em Direito e proteger o
interesse público, tendo em vista a proliferação de cursos jurídicos de baixa
qualidade. A situação dos milhares de bacharéis que reprovam no mencionado
Exame não é muito melhor: se lhes taxam (implícita e indiretamente) de
desonestos, incultos e incapazes, vítimas inocentes do chamado, e até agora incurável,
fenômeno da “má qualidade do ensino jurídico”.
Tão pouco melhoram as coisas o suficiente após o passo pelos
epidêmicos  cursinhos preparatórios.
Baste com recordar a quantidade imensa de bacharéis reprovados no último Exame
de Ordem no Estado de São Paulo ( aproximadamente, 20.000 bacharéis).

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A que se deve que esse fracasso seja
tão alto? Cada brasileiro interessado por estas coisas tem seu próprio
diagnóstico mas é provável que a dispersão coincida em alguns aspectos de
notória evidência. O primeiro, é a falta de um verdadeiro
empenho por parte das próprias instituições envolvidas na formação dos
profissionais do direito (aqui incluída a própria OAB), no sentido de que devem
( o que pressupõe que podem) tornar efetivo o “pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para o
trabalho” (art. 205, da Constituição da República). Segundo, uma única prova
escrita não parece ser , definitivamente, um instrumento legítimo e fiável para
medir a honestidade ou a capacidade profissional de um bacharel em Direito, de
um cidadão (e os demais profissionais – por exemplo, médicos e engenheiros –
que não fazem esse tipo de Exame, são todos desonestos e incapazes? São
produtos de outro tipo estelionato em relação à sociedade?). Da mesma forma, não parece razoável supor que o
interesse público resultará protegido por meio de um surrealista aumento do
“número das questões éticas para os bacharéis submetidos a essa prova”.

Por outro lado, nenhum sistema aprovado de interação e estrutura social
regulado pelo direito ( uma relação jurídica) pode
funcionar legitimamente de forma unilateral, onde somente uma das partes tem o
direito de” ( no caso, da OAB de
exigir um Exame de Ordem sem nenhuma contraprestação específica)  e a outra somente o “dever de”(no caso, dos bacharéis de se submeterem ao referido
Exame) . Disso resulta, de pronto, que qualquer proposta honrada de preparação
ética e profissional dos bacharéis em direito – e que pretenda propugnar de
verdade sua causa (quer dizer, honrada também na ação) -, somente pode ser
legitimamente empreendida enquanto prática bilateral, recíproca e solidária que
implique um comprometimento e uma colaboração de todas as partes envolvidas no
processo de habilitação ao exercício profissional da advocacia, isto é, dentro
de um contexto integral de responsabilidades compartidas.

Neste particular, entendo que uma verdadeira preparação ética e profissional do
futuro advogado deveria implicar, para ser realmente recíproca e legítima , em
um esforço acrescido e comprometido por parte da OAB, isto é, numa preparação,
estendida ao longo de um determinado período de tempo, que haveria de ser
acreditada no âmbito de suas respectivas escolas superiores. Com caráter
eliminatório, esse processo de formação  ético e profissional seguramente
viria a permitir a cada Seccional , no exercício de um legítimo controle prévio
, dispor de uma idéia mais cabal e definida acerca das faculdades morais e
jurídicas do futuro advogado – uma forma de materializar a  famosa
“eterna vigilância cidadã”  republicana que, neste caso,
trataria  de  evitar que um eventual  despreparo ético-jurídico
por parte dos futuros advogados venha a  incentivar “um estelionato em
relação à sociedade”. Do contrário, a permanecer a
prática do atual processo de habilitação “profissional” e  “ética” do bacharel em Direito, mais do que
um declarado “estelionato social” o que se verifica é uma dissimulada “extorsão
institucional”.

Prejuízos ideológicos,
interesses corporativos e/ou políticos e simples ignorância levam a uma soma na
qual a cada  ano aparece um contingente
imenso de bacharéis  impedidos de
trabalhar, circunstância que nos leva a uma questão de fundo: sabemos educar? A
resposta mais sincera disponível , diante do alarmante índice de
reprovação,   diz que não. Mas: sabemos
ao menos em que consiste educar? Repetir a negativa seria tremendo. E sem
embargo parece ser essa a impressão que damos à sociedade. Talvez fosse bom
recordar a respeito algumas trivialidades. A primeira, que se educa sobretudo
por meio de uma participação e um compromisso integral das partes envolvidas no
processo ensino-aprendizagem. A segunda, que somente a língua, entre todas as
«faculdades mentais» aludidas por Chomsky, se aprende sem esforço. A terceira,
que a ausência de reciprocidade  por
detrás de qualquer interesse coorporativo, educativo ou não,  condena qualquer tipo de formação ética e
profissional à ruína . Enquanto olvidemos essas verdades, o fracasso  da educação
e do Exame de Ordem estará garantido.

De fato, para uma
instituição que sempre lutou pelos mais nobres valores
republicano-democráricos, esse tipo de preocupação deveria estar  incluído no próprio modelo político de
atuação institucional, com a independência, a coragem e a responsabilidade que
os compromissos vitais sempre implicam. Em resumo, como diria Rawls, do que
“deve ser” próprio da atividade de uma instituição justa. Depois, o ato de
capacitar ( educar e preparar) , ética e profissionalmente, não é apenas uma
questão instrumental, mas uma das virtudes mais importantes das instituições
sociais, do fundamento da inviolabilidade da pessoa e da condição de
possibilidade para a formação das bases sociais aptas a viabilizar a existência
autônoma, livre e igualitária da cidadania.

Por conseguinte, o
meritório sentido e valor do projeto de lei em abolir a exigência do Exame de
Ordem é reflexo do imperativo moral ( e constitucional) de que capacitar o ser
humano para o exercício virtuoso de uma atividade profissional, como valor primeiro,
somente se afirma a partir do respeito incondicional por sua dignidade: não
somente do bacharel como expressão da capacidade para aprender por qualquer
meio que seja, mas de um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir,
amar, eleger, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de
autodeterminar-se livremente no
âmbito de sua formação pessoal e profissional.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Atahualpa Fernandez

 

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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