Parecer: Proposta de Projeto de Lei que trata da criação de empregos públicos de Agente Comunitário de Saúde do Estado, a serem ocupados pelos atuais Agentes Comunitários de Saúde dos municípios goianos, (Emenda Constitucional nº. 51/2006).

Resumo: Proposta de Projeto de Lei que trata da criação de empregos públicos de Agente Comunitário de Saúde do Estado, a serem ocupados pelos atuais Agentes Comunitários de Saúde dos municípios goianos, (Emenda Constitucional nº. 51/2006). Inviabilidade. Avocação pelo Estado de Goiás do custeio do Programa Saúde da Família (PSF) em contrariedade ao princípio da descentralização/municipalização do sistema único de saúde. Afronta ao art. 37, II da CF/88 e ao princípio da Isonomia que orienta o acesso aos cargos e empregos públicos. Parecer (PROT)/2008


Palavras-chave: Projeto de lei. Criação de empregos públicos a serem providos de forma derivada. Inconstitucionalidade.


Resume: Project of Law that treats the creation of public jobs of Communitarian Agent of Health of the State, to be occupied by the current Communitarian Agents of Health of the municipies from State of Goiás, (Constitutional Amendment  nº. 51/2006). Impracticality. Avocation for the State of Goiás of the funding of the Program Health of the Family (PSF) in adversity to the beginning of the descentralization/municipalization of the only system of health. It insults to art. 37, II of CF/88 and to the principle of the equality that orientates the access to the posts and public jobs.


Key-word: Project of law. Creation of public jobs of Communitarian Agent of Health of the State to be occupied by not originally form. Inconstitucionality.


RELATÓRIO


Versam os presentes autos sobre solicitação formulada pelo Sr. Secretário de Saúde ao Sr. Governador do Estado, de criação de Comissão Especial de Estudos com o propósito de analisar viabilidade de proposta de Projeto de Lei que trata da criação de empregos públicos de Agente Comunitário de Saúde do Estado, a serem ocupados pelos atuais Agentes Comunitários de Saúde dos Municípios goianos, nos termos da Emenda Constitucional nº. 51/2006.


FUNDAMENTAÇÃO


Segundo o Projeto de Lei de fls.73/74, a contratação dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) com a Administração Pública Estadual se fará por meio de opção do interessado, a ser formalizada até 31.12.06, com efeitos a partir de 1.03.07, submetendo-se ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho e jornada de 40 horas semanais.


Prevê ainda referido diploma legal que os ACS poderão ser colocados à disposição dos Municípios do Estado de Goiás, no âmbito do SUS e mediante convênio, e que as despesas decorrentes da contratação de tais empregados correrão por conta das dotações orçamentárias da Secretaria de Estado de Saúde do Estado de Goiás, podendo ser suplementadas, se insuficientes, à conta das dotações orçamentárias de recursos oriundos do Ministério da Saúde, pactuados especificamente para esta finalidade.


Objetiva o referido projeto de lei, portanto, a transferência do vínculo contratual dos Agentes Comunitários de Saúde admitidos pelos municípios goianos, antes da EC n. 51/06, para o Estado de Goiás, passando a ocupar, neste ente estatal, empregos públicos.


Inicialmente, por ser pertinente, cabe fazer uma breve digressão do que vem a ser o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).


De acordo com o manual elaborado pelo Ministério da Saúde, o PACS consiste na ampliação da capacidade da população de cuidar de sua saúde, com vistas à redução dos índices de mortalidade materno-infantil, possibilitando ao Poder Público Municipal o atendimento às necessidades de cada comunidade.


Em breve síntese, pode-se afirmar que o Programa integra um conjunto de medidas de política de saúde pública adotadas pelo Governo Federal, vinculando-se ao universo de atuação da estrutura governamental denominada Comunidade Solidária, à qual incumbe a coordenação das medidas voltadas ao atendimento das demandas de caráter social, em âmbito nacional.


Trata-se, pois, de sistema de repasse aos Municípios de recursos federais originários do Sistema Único de Saúde – SUS, efetuado mediante coordenação das secretarias de saúde estaduais, as quais estabelecem as normas e diretrizes do programa em nível local, bem como os eixos prioritários de atuação em cada Estado da Federação, quais sejam:


a) o recurso de origem federal é repassado aos Municípios pelo Estado, através da estrutura operacional criada pelo Sistema Único de Saúde;


b) os Municípios se submetem à orientação direta da Coordenação Regional da Secretaria da Saúde, que promove o processo de recrutamento e seleção dos Agentes a serem admitidos e exerce o controle sobre a execução continuada do projeto;


c) os Agentes Comunitários de Saúde escolhidos no processo seletivo pela Coordenação Regional são contratados pelos Municípios. Assim, incumbe ao Governo Federal, além da concepção geral do projeto, o aporte majoritário de recursos financeiros nele envolvidos – ainda que Estado e Municípios também respondam por uma parcela reduzida e variável desses valores –, sendo a execução mediata do Programa encargo da Administração Estadual.


O Agente Comunitário de Saúde integra as equipes do PACS e PSF (Programa Saúde da Família), realizando atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, por meio de ações educativas de saúde nos domicílios e coletividade.


O PACS busca, em síntese, promover a reorientação do modelo assistencial no âmbito do município, a quem compete à prestação da atenção básica à saúde.


a) Da descentralização/municipalização do Sistema Único de Saúde


A saúde assume singular importância na Constituição da República, que a erige em direito fundamental de todos e dever do Estado (art. 196 da CF/88). Para o desempenho deste mister, o constituinte elaborou um sistema de distribuição de atribuições, conhecido como SUS – Sistema Único de Saúde.


Importante salientar que, embora sejam as ações relativas à saúde exemplo de competência comum dos entes federados (art. 23, II da CF/88), cuida-se de área em que há estrita divisão de atribuições entre União, Estado e Município.


Esta divisão é a própria essência do SUS, que por definição é um sistema descentralizado (art. 198, I da CF). Para apreender o alcance deste comando nos socorremos das lições de Marlon Alberto Weichert:[1]


“A questão central a entender na concepção do SUS é o conteúdo da unidade. O que deve ser único no sistema de saúde?


A resposta começa a ser dada pela própria Lei Maior, no art. 198, em especial o caput e o inc. I, acima transcritos.


A primeira mensagem que se obtém da leitura do dispositivo é a obrigatoriedade de todos os entes integrarem o sistema. Não é dado a qualquer ente público constituir um plano ou programa de saúde à parte do SUS. (…)


A segunda conclusão obtida, sem maiores dificuldades, é de que cada governo terá poder de direção sobre os seus serviços.(…)


No plano federal se situará a direção nacional do sistema, pois a unidade pressupõe a existência dessa instância última de gestão, que, com uma visão global, deverá coordenar a atuação de todos os membros do SUS e suas respectivas redes de assistência.


Essa direção federal, no entanto, não implica em aniquilamento do poder de autogestão pelos Estados Federados e pelos Municípios dos seus serviços. Dentro dos parâmetros gerais fixados para o plano nacional, terão esses gestores ampla liberdade para definir a melhor forma de execução dos serviços.


De lembrar que ao estabelecer a descentralização como uma das diretrizes do sistema, a Constituição remeteu para os entes locais a execução das ações e serviços públicos de saúde, que, próximos da população, possuem a melhor condição de avaliar as necessidades mais prementes e, dentro do contexto regional, desenvolver as condutas mais eficazes de prevenção e tratamento. (…)


Este é o ponto central da concepção do SUS: a obrigatória participação de todos os entes em um sistema coordenado no plano federal, mas executado, localmente, pelos Estados e, principalmente, pelos Municípios.”


A partir da promulgação da Constituição Federal em 1988, foram definidas como diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) a universalização, a eqüidade, a integralidade, a descentralização, a hierarquização e a participação da comunidade (art. 198 da CF/88).


Nos interessa aqui, para o deslinde da presente consulta, o princípio da descentralização (art. 198, I da CF/88). Nesta senda, a Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8080/90) estabelece qual o papel de cada um dos componentes do sistema, conforme requerido pelo artigo 200 da Constituição da República:


“Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:


IX – descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:


a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;


b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;”


O mesmo diploma legislativo cuida da competência da direção municipal do SUS em seu artigo 18:


“Art. 18. À direção municipal do Sistema Único de Saúde – SUS, compete:


I – planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde.”


O artigo 27 da Lei 8080/90 estipula que “A política de recursos humanos na área da saúde será formalizada e executada, articuladamente, pelas diferentes esferas de governo (…)“. É dizer, em síntese: cada ente federado componente do SUS tem uma esfera de atribuições a serem desempenhadas com autonomia, obedecidas as diretrizes nacionais do sistema.


Destarte, o SUS baseia-se na descentralização dos serviços de saúde para os Municípios, que, mais próximos da população local, têm melhores condições de mensurar suas possibilidades, necessidades e condições.


Foi justamente nessa esteira que foi concebido o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e Endemias. Aos Municípios, compete sua execução direta, que se realiza mediante a contratação dos Agentes Comunitários de Saúde e a conseqüente fiscalização de sua atuação.


Oportuno trazer à discussão os termos da Portaria do Ministério da Saúde nº 648/GM de 28 de março de 2006, que revisa as “diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS)“. Lê-se na referida Portaria 648/GM/2006:


“(…) 2 – DAS RESPONSABILIDADES DE CADA ESFERA DE GOVERNO


Os municípios e o Distrito Federal, como gestores dos sistemas locais de saúde, são responsáveis pelo cumprimento dos princípios da Atenção Básica, pela organização e execução das ações em seu território.


2.1 – Compete às Secretarias Municipais de Saúde e ao Distrito Federal:


VI – selecionar, contratar e remunerar os profissionais que compõem as equipes multiprofissionais de Atenção Básica, inclusive os da Saúde da Família, em conformidade com a legislação vigente; (…)”


Por sua vez, a Portaria 1886/GM-MS, no item 7.5 e 7.6, define a forma de recrutamento e credenciamento dos Agentes de Saúde a ser realizada pelo Município:


“(…) 7.5 – Recrutar os agentes comunitários de saúde, através de processos seletivo [sic], segundo as normas e diretrizes básicas do Programa.


7.6 – Contratar e remunerar os ACS…(…)”


Assim, com base na regulamentação realizada pelo Ministério da Saúde, compete aos municípios a implantação de tais Programas, realizando a seleção dos profissionais necessários para o atendimento dos munícipes. Os Programas, oportuno que se enfatize, são da União, sendo os municípios meros partícipes da política de saúde do Governo Federal.


Cada Município recebe verbas do Governo Federal para custear seu serviço, ficando fica a critério daquele a forma como vai empregar os recursos. A remuneração é previamente fixada por todo um período, paga em parcelas iguais, à conta de dotação orçamentária específica para o Serviço de Saúde do Município, com recursos financeiros repassados pelo Governo Federal.


Os recursos repassados ao Município podem ser utilizados como melhor entender o responsável pela condução dos negócios municipais. A preocupação da União e do Estado é apenas com a realização do serviço, através do acompanhamento de indicadores estipulados.


Donde se infere que o Projeto de Lei em análise, quando prevê a criação de empregos públicos de Agente Comunitário de Saúde do Estado de Goiás a serem ocupados pelos atuais Agentes Comunitários de Saúde dos Municípios goianos, encontra óbice no princípio constitucional da descentralização do serviço público de saúde (art. 198, I da CF/88), na lógica do Sistema Único de Saúde, e nas próprias diretrizes que norteiam o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).


b) Da afronta ao art. 37, II da CF/88


A Emenda Constitucional n. 51, publicada no Diário Oficial da União em 15 de fevereiro de 2006, visou disciplinar a relação dos entes federados e os agentes comunitários de saúde, determinando que, após a sua promulgação, estes somente poderão ser contratados diretamente pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios mediante processo seletivo público, observado o limite de gasto estabelecido na Lei de Responsabilidade Fiscal.


Por ser pertinente, transcrevemos, in verbis, o teor da referida emenda:


“Art. 1º O art. 198 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 4º, 5º e 6º:


“Art. 198…


§ 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação.


§ 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias.


§ 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício.” (NR)


Art 2º Após a promulgação da presente Emenda Constitucional, os agentes comunitários de saúde e os agentes de combate às endemias somente poderão ser contratados diretamente pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios na forma do § 4º do art. 198 da Constituição Federal, observado o limite de gasto estabelecido na Lei Complementar de que trata o art. 169 da Constituição Federal.


Parágrafo único. Os profissionais que, na data de promulgação desta Emenda e a qualquer título, desempenharem as atividades de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias, na forma da lei, ficam dispensados de se submeter ao processo seletivo público a que se refere o § 4º do art. 198 da Constituição Federal, desde que tenham sido contratados a partir de anterior processo de Seleção Pública efetuado por órgãos ou entes da administração direta ou indireta de Estado, Distrito Federal ou Município ou por outras instituições com a efetiva supervisão e autorização da administração direta dos entes da federação.


 Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data da sua publicação.”


Por sua vez, o parágrafo único do art. 9º da Lei n. 11.350, que regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispondo sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2º da Emenda Constitucional nº 51, de 14 de fevereiro de 2006, assim preceitua:


Art. 9  A contratação de Agentes Comunitários de Saúde e de Agentes de Combate às Endemias deverá ser precedida de processo seletivo público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para o exercício das atividades, que atenda aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.


Parágrafo único.  Caberá aos órgãos ou entes da administração direta dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios certificar, em cada caso, a existência de anterior processo de seleção pública, para efeito da dispensa referida no parágrafo único do art. 2o da Emenda Constitucional no 51, de 14 de fevereiro de 2006, considerando-se como tal aquele que tenha sido realizado com observância dos princípios referidos no caput.“


Nos interessa para o deslinde da presente consulta, a análise do parágrafo único do art. 2º do referido diploma normativo, e do parágrafo único do art. 9º da Lei n. 11.350, vez que disciplinam acerca da situação funcional dos profissionais que, à data da promulgação da emenda, desempenhavam suas atividades de Agentes Comunitários de Saúde.


Com efeito, tais dispositivos abrem a possibilidade de aproveitamento de agentes de saúde e de endemias sem a necessária subordinação ao processo seletivo público que determina o próprio art. 198, §4º e art. 37, II e §2º da CF, desde que à época de sua contratação tenham se submetido a processo de seleção pública.


A vexata quaestio, a nosso sentir, cinge-se, portanto, em determinar a extensão da expressão “seleção pública” enunciada no parágrafo único do art. 2º de referida emenda constitucional a fim de se definir se há amparo constitucional para o projeto de lei que objetiva a admissão de tais servidores, enfatize-se, contratados originariamente pelos municípios goianos, a título de empregados públicos do Estado de Goiás.


Impende registrar que as formas de acesso aos cargos, empregos e funções públicas subsumem-se às previstas na Carta Federal. Assim, de acordo com o texto constitucional, são apenas três as formas de ingresso no serviço público: por meio de aprovação em concurso público; contrato temporário para atender a necessidades de excepcional interesse público de que trata o art. 37, inciso IX; e admissão para cargo de provimento em comissão, de livre nomeação e exoneração. Qualquer outra forma de admissão no serviço público fere a Constituição Federal.


As contratações de Agentes Comunitários de Saúde pelos municípios goianos foram inegavelmente feitas à revelia dos comandos contidos no art. 37, II e IX da CF/88, isto porque adotaram formas de admissão afrontosas aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade, v.g. a contratação de tais profissionais por meio termos de credenciamento ou termos de parceria.


Justamente por considerar a forma de contratação adotada pelo Municípios ilegais e lesivas aos interesses dos trabalhadores, o Ministério Público do Trabalho tem ajuizado inúmeras ações civis públicas em face dos municípios integrantes do PACS, veiculando pretensão de declaração de nulidade das contratações realizadas sem concurso e condenação dos reclamados em obrigação de fazer admissão de pessoal por concurso/seleção pública; obrigação de demissão do pessoal admitido sem observância de tal requisito; e abstenção de admissão de pessoal sem concurso/seleção pública.


É inquestionável que o princípio do concurso público para a investidura em cargo ou emprego público advém do princípio da igualdade, pois justamente a dois fins destina-se a sua observância:  propiciar à administração pública a escolha do candidato mais capacitado e assegurar a todos os interessados oportunidade de integrar os seus quadros.


Francisco de Salles Almeida Mafra Filho, assim vaticina acerca do tema:[2]


“O ingresso por meio de processo seletivo público de provas ou de provas e títulos muito se aproxima dos concursos públicos de provas ou de provas e títulos utilizados para a investidura em cargo ou emprego público. Entretanto, processo seletivo público não é concurso público, conforme determina a Constituição. O processo seletivo público seria o procedimento utilizado para o recrutamento de empregados públicos, sem direito à estabilidade, conforme a nomenclatura utilizada pela mais recente reforma administrativa. Resta a leitura e exegese do inciso II, do artigo 37 da Constituição Federal para se descobrir que a exigência de concurso público para a investidura em cargo ou emprego público não pode ser desrespeitada. Além do mais, o próprio inciso prevê que o concurso público se dará de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma da lei.”


Obviamente que o legislador empregou a expressão “seleção pública” com o intuito de que a avaliação dos agentes comunitários contratados antes da EC 51 se realizasse com a observância dos princípios plasmados no caput do art. 37 e seu inciso II da Carga Magna, in verbis:


“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:


 II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;


Daí se infere insuperável inconstitucionalidade no dispositivo do Projeto de Lei em análise, porquanto confere status de empregado público do Estado de Goiás aos Agentes Comunitários de Saúde admitidos pelos municípios goianos por meio de formas de admissão distintas das previstas no art. 37, I e IX da CF/88, enfatize-se, sem a prévia aprovação em concurso público.


Destarte, tal dispositivo implicaria em modalidade de convalidação de vínculo empregatício com a Administração Pública maculada de flagrante vício de inconstitucionalidade, vez que burla a exigência contida no art. 37, II da CF/88, ferindo de morte os princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade.


c) Da transitoriedade da contratação


Como qualquer programa de governo, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) tem como traço característico a transitoriedade, o que significa dizer que pode ser interrompido ou suspenso a qualquer tempo.


Conclui-se, pois, que, caso tal programa venha a ser extinto, a permanência dos Agentes Comunitários contratados para a sua consecução tornará injustificada.


Malgrado tal constatação, o fato é que a Emenda Constitucional n. 51 possibilitou a contratação a título permanente de tais Agentes Comunitários, quando acrescentou o § 4.º do art. 198, que, juntamente com o caput e o parágrafo único do art. 2.º da Emenda, impõe aos gestores locais do sistema único de saúde a admissão de agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de “processo seletivo público”, a partir de sua edição.


Registre-se que, ao se admitir que tais profissionais sejam contratados pelo Estado de Goiás como empregados públicos, sem submeterem-se a exigência de previa aprovação em concurso púbico, estes passarão, inelutavelmente, a gozar da estabilidade prevista no art. 41 da Constituição Federal, eis que o Tribunal Superior do Trabalho possui o seguinte entendimento sumulado:


“Súmula nº 390 – TST – Res. 129/2005 – DJ 20.04.2005 – Conversão das Orientações Jurisprudenciais nºs 229 e 265 da SDI-1 e da Orientação Jurisprudencial nº 22 da SDI-2


I – O servidor público celetista da administração direta, autárquica ou fundacional é beneficiário da estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988. (ex-OJ nº 265 da SDI-1 – Inserida em 27.09.2002 e ex-OJ nº 22 da SDI-2 – Inserida em 20.09.00)


II – Ao empregado de empresa pública ou de sociedade de economia mista, ainda que admitido mediante aprovação em concurso público, não é garantida a estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988. (ex-OJ nº 229 – Inserida em 20.06.2001.“


Ora, a contratação de tais agentes se estriba na temporariedade, que não se coaduna, por certo, com a estabilidade conferida pelo art. 41 da CF/88. Por se tratar de um programa do Governo Federal, a realização de concurso público para admissão dos agentes comunitários traz insegurança em função do término do Programa, pois não se tem a garantia de que seja permanente.


Daí se vislumbra a inconciliabilidade existente na contratação dos atuais Agentes Comunitários de Saúde como empregados públicos do Estado de Goiás, porquanto gozarão da estabilidade do art. 41 da CF nada obstante sejam admitidos para atender programa do governo federal de caráter transitório.


d) Da afronta ao princípio da isonomia


Prescreve o caput do art. 5º da nossa Constituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”


Como é consabido, o cânone da igualdade veda atuações administrativas parciais, inadmitindo discriminações injurídicas na admissão para o quadro de pessoal do Estado. Ademais, o respeito à igualdade dos cidadãos pela Administração é também uma determinação do princípio da moralidade.


Pois bem. Objetiva o Projeto de Lei em análise que os Agentes Comunitários de Saúde admitidos antes da Emenda Constitucional sejam contratados pelo Estado de Goiás como empregados públicos, gozando da estabilidade preconizada no art. 41 da CF/88 e com remuneração fixada (fls. 78 e 80) em valores superiores aos daqueles ACS admitidos após referida emenda.


Ocorre que tal situação provocará um tratamento odioso e desigual entre os Agentes Comunitários admitidos antes e depois da edição da Emenda, vez que aqueles manterão seus vínculos funcionais com os municípios que os contrataram, sujeitando-se à remuneração em patamares inferiores aos Agentes Comunitários com vínculo funcional com o Estado de Goiás.


Sobre a matéria, José Afonso da Silva, esclarece da seguinte maneira:[3]


“São inconstitucionais as discriminações não autorizadas pela Constituição. O ato discriminatório é inconstitucional. Há duas formas de cometer essa inconstitucionalidade. Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos, discriminando o mesmo tratamento dado aos outros. O ato é inconstitucional, sem dúvida, porque feriu o princípio da isonomia. (…).”


Depreende-se, pois, que o Projeto de Lei em análise propiciará tratamento díspare entre os Agentes Comunitários egressos antes e depois da EC n.51, em violação direta ao princípio da isonomia (art. 5º, caput da CF/88).


CONCLUSÃO


Ante o exposto, manifesto pela inviabilidade da proposta do Projeto de Lei (fl. 03/04) que trata da criação de empregos públicos de Agente Comunitário de Saúde do Estado, a serem ocupados pelos atuais Agentes Comunitários de Saúde dos Municípios goianos, nos termos da fundamentação supra.


É o parecer.


 


Referências bibliográficas

WEICHERT, Marlon Alberto. O Sistema Único de Saúde no Federalismo Brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Ed. Saraiva, Ano 8, jul./set. 2000, n. 32.

MAFRA FILHO, Francisco de Salles Almeida. Dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias: uma análise da EC 51 e da Lei 11.350, de 2006. Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, n. 34, nov. 2006. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php. Acesso em: ago. 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

 

Notas:

[1] Weichert, Marlon Alberto. O Sistema Único de Saúde no Federalismo Brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Ed. Saraiva, Ano 8, jul./set. 2000, n. 32, p. 169.

[2] MAFRA FILHO, Francisco de Salles Almeida. Dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias: uma análise da EC 51 e da Lei 11.350, de 2006. Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, n. 34, nov. 2006. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php. Acesso em: ago. 2009.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 207/208. 


Informações Sobre o Autor

Alan Saldanha Luck

Procurador do Estado de Goiás, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP-LFG


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