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Exame de Ordem

Se é preciso avaliar, é preciso ser avaliado Com freqüência, a imprensa divulga números alarmantes referentes à reprovação no exame de ordem. Os altos percentuais de reprovação são tributados quase que exclusivamente à deficiência na formação. Ao ser indagado sobre o aumento nas reprovações no exame de ordem, o então presidente da OAB, Roberto Busato, afirmou categoricamente que “o exame não se tornou mais rigoroso, a curva de reprovação cresceu no mesmo ritmo dos cursos caça-níqueis”. Na mais recente publicação da OAB sobre ensino jurídico, falou-se na “irrecusável importância dos resultados do Exame de Ordem como elemento de avaliação do nível do ensino oferecido pelas instituições de educação superior que atuam nessa área.” Tais análises transmitem a falsa impressão que o ensino jurídico vai mal, mas o exame de ordem vai bem. Na verdade, embora as críticas sejam dirigidas ao ensino jurídico, o exame também tem problemas. Exemplos patentes desta deficiência qualitativa podem ser encontrados nos dois últimos exames de ordem de Minas Gerais. Vou me ater aqui apenas a questões de Direito Internacional, área em que posso melhor colaborar para o debate. Na prova de dezembro de 2006, a OAB/MG inseriu uma questão sobre o Tribunal Penal Internacional (TPI), na qual o aluno deveria assinalar o que estivesse correto. Enquanto duas assertivas eram completamente descabidas, outras duas tinham conteúdos bastante próximos. A letra “b” dizia: “É um tribunal permanente capaz de investigar e julgar indivíduos acusados das mais graves violações de direito internacional humanitário, os chamados crimes de guerra, de crimes contra a humanidade ou de genocídio.” E a letra “d” afirmava que o TPI “é um tribunal permanente capaz de investigar e julgar indivíduos acusados das mais graves violações de direito internacional humanitário cuja jurisdição retroage à sua instauração em 2002.” O gabarito da OAB trouxe como resposta correta apenas a assertiva “b”. De acordo com documento divulgado pela Comissão Revisora do Exame de Ordem, a alternativa “d” estaria errada pois a “jurisdição do TPI não é retroativa”. De fato, conforme o artigo 24 do instrumento constitutivo do TPI – o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional – nenhuma pessoa pode ser condenada por “uma conduta anterior a entrada em vigor do presente Estatuto”. Só que o Estatuto entrou em vigor em 1o de julho de 2002, o que vale dizer que sua jurisdição começa em 2002 ou, nos termos da alternativa “d”, retroage a 2002. No exame seguinte – em abril deste ano – o TPI foi novamente objeto de avaliação. O enunciado de uma das questões trazia a seguinte informação: “Recentemente, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) proferiu decisão relacionada a pleito indenizatório pelo genocídio praticado por para-militares (sic) sérvios no enclave de Srebrenica. Anteriormente, o Tribunal Penal Internacional (TPI) havia condenado autoridades sérvias pelo mesmo crime. A este respeito, assinale a resposta CORRETA (…)”. A resposta dada pela OAB como correta era “A CIJ tratou do pleito indenizatório contra a Sérvia, enquanto que o TPI cuidou especificamente da responsabilidade criminal das autoridades sérvias”. O problema é que tanto o enunciado quanto a resposta estão errados. O massacre de Srebrenica ocorreu em 1995, quando ainda nem existia o Tribunal Penal Internacional e bem antes de 2002, quando entrou em vigor o Estatuto de Roma. O órgão encarregado de julgar é outro – Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, criado pelo Conselho de Segurança da ONU (resolução 808/1993), composto por juízes e promotores distintos do TPI. Além disso, o pleito na CIJ não era relativo apenas a Srebrenica, como sugere o enunciado mas a várias localidades na ex-Iugoslávia (Prijedor, Banja Luka, Brčko, etc). Da comparação surge um resultado curioso: o examinador fez duas afirmações contraditórias e conseguiu errar em ambos os casos. No primeiro exame, a OAB retirou pontos dos candidatos sob a falsa impressão que o Estatuto de Roma não retroagiria a 2002; no exame seguinte, afirmou que o Estatuto seria aplicável a um massacre ocorrido antes de sua entrada em vigor e, erroneamente, retirou o ponto de quem não assinalou a assertiva que respaldava tal conclusão. Embora contivessem vícios evidentes, nenhuma das duas questões foi anulada pelos revisores e conforme deixa claro o edital, “a decisão proferida pela Comissão Revisora é irrecorrível”. Destarte, enquanto centenas de alunos “erraram” as questões equivocadamente formuladas, o pior erro – o de quem se acha capaz de separar o joio do trigo – permaneceu encoberto. Em uma outra curiosa questão que merece comento, o enunciado dizia que a Austrália era signatária da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em defesa do examinador, podia-se dizer que se tratava de uma hipótese. Tudo bem, mas cabe aqui um comentário: que hipótese bizarra a que coloca um país da Oceania para integrar um tratado do qual participam apenas países americanos – como o próprio nome da convenção indica. Observe o leitor que me ative apenas aos dois últimos exames e apenas a algumas questões de Direito Internacional. Poderíamos apontar mais problemas em outras partes destes exames ou em exames anteriores. Contudo, nosso objetivo, neste breve comentário, é outro: propor um “exame do exame”. Por que não discuti-lo com a comunidade acadêmica? Discutir, com os professores da respectiva seção, seu formato, seu conteúdo, seus resultados, os critérios para formação das bancas ou, talvez, como já ocorre em algumas seções da OAB, a contratação de uma entidade especializada para realização do exame (Fundação Carlos Chagas, CESGRANRIO ou CESPE, por exemplo). Se nos dispomos a avaliar, temos de nos dispor a ser avaliados. Mais do que a prerrogativa legal para avaliar, é necessário ter legitimidade, o que só se conseguirá com um amplo e democrático debate.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Aziz Tuffi Saliba

 

Advogado, professor de Direito Internacional, Doutor em Direito Internacional pela UFMG. Mestre em Direito pela University of Arizona. Autor da obra “Conselho de Segurança das Nações Unidas: sanções e limites jurídicos” (publicada pela ed. Juruá).

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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