Já disse, há muito tempo atrás, que cansei de falar
e escrever difícil. Ficava como letra de médico: ninguém entendia coisa alguma mas, se alguém entendesse, guardava o segredo a sete chaves
para que o povo não soubesse. Aliás, séculos atrás, ler e escrever constituíam privilégios das classes altas, dominando-se os
pobres, camponeses e cidadãos outros que, desprovidos de cultura, não
penetravam nos domínios da comunicação.
Firmado nesse princípio, examino projeto que,
substituindo na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6295/2002, altera o
artigo 84 do Código de Processo Penal, estendendo o foro privilegiado a
ex-ocupantes de cargos públicos em hipóteses de procedimentos penais e cíveis,
sem exceção de investigações referentes a atos de improbidade. Em outros
termos, se e quando processados durante a função, ou depois do exercício mas em razão da mesma, os ocupantes de cargos públicos
carregariam para a vida privada a prerrogativa de serem processados e julgados
de acordo com regras especiais, livrando-se do primeiro grau de Jurisdição.
O substitutivo referido foi aprovado durante a Copa
do Mundo. Todas as atenções estavam voltadas para a competição. Assim,
discretamente, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara
bateu o martelo sobre a pretensão, dispensando-se o substitutivo de
remessa a plenário.
Insurgiram-se eminentes membros do Ministério
Público. A OAB também não gostou. Estrutura-se a reação no repúdio a
privilégios que seriam odiosos, cerceando a ação dos persecutores
oficiais justamente num momento em que a corrupção exige resposta à altura.
Evidentemente, respeitando-se aqui a proposta de
não se complicar o vernáculo, todos deveriam ser iguais perante a lei: a
empregada doméstica, o catador de lixo, o açougueiro, o marceneiro, o merceeiro,
o presidente da República, o deputado, o senador, o promotor público, o juiz,
os ministros enfim, todos, mas todos mesmo, precisariam estar sob o mesmo
regime de averiguação de eventuais pecados, sem benesses quaisquer. Assim,
quando cometendo uma infração penal a ser apurada depois de deixar o cargo, ou
mesmo enquanto nele estivesse, o primeiro mandatário
da nação deveria ser investigado no distrito policial da esquina, sendo
conduzido debaixo de vara por um reles estafeta. Da mesma forma, o desembargador
presidente de um Egrégio Tribunal de Justiça, submetido a um procedimento
criminal, seguraria o restolho da toga, correndo pelas ruas para não se atrasar
na obediência a intimações. Ainda no mesmo diapasão, investigando-se um ilustre
procurador de justiça, não poderia este proteger-se em privilégios, pondo-se
abertamente, então, à disposição dos inquisidores. Uma loucura total. Perde-se-iam todas as graduações na hierarquia. O soldado
prenderia o 3.º sargento, que prenderia o 2.º, que
encarceraria o 1.º e assim por diante, significando que o taifeiro,
na Marinha, mandaria o Almirante às favas se este, fora de hora, o enviasse ao portaló para buscar um charuto. É mais do que loucura, é
burrice. Não pode ser assim. Sempre houve exceções. Estas são próprias à
natureza humana. Não só humana, mas até entre os animais inferiores. Tenho duas
cadelas: uma é a “Flor”, outra é a “Blimunda” (Aquela
do Saramago). Flor é mais velha. Blimunda só se
alimenta depois que Flor estiver saciada. Teimei em dar, concomitante, às duas, o mesmo direito. Não adiantou. Ou melhor, certo
dia, a pequenininha mordeu a maior. Aconteceu uma carnificina.
A tentativa de igualamento
de todos perante a lei esbarra nesse pressuposto básico: uns precisam mandar. E
outros devem obedecer. Por resistir a tanto, o cronista paga preço caro.
Pagam-no, igualmente, todos aqueles que querem estabilizar as relações entre o
povo e a autoridade, entendendo-se como autoridade todo aquele que detém uma
parcela qualquer do poder público. Portanto, o juiz manda no escrevente que,
por sua vez, manda no funcionário inferior. Este, de sua parte, não tendo em
quem mandar, há de inventar alguma coisa. Tenta exercer o poder de império
dentro do lar e leva uma panelada na cabeça quando a esposa estiver atenta ao Código
Civil.
No meio disso tudo, ninguém quer despir-se dos
privilégios. O juiz precisa ter foro diferenciado porque, se não o tiver, não
pode julgar. E o Ministério Público, este sim, é o supremo fiscal da nação. Tem
necessidade imprescindível de se guardar a investidas pois,
se assim não for, é posto em igualdade de condições, fragilizando-se na
investigação. Fica tudo muito esquisito. O presidente da República, dentro do
contexto da igualdade, vai para um xadrez cheio de pulgas, perto do catador de
papéis; quem o põe lá é o promotor público de primeiro grau. O ministro do
Supremo há de prestar contas ao juiz do foro distrital. E o Ministério Público?
Quem o põe na cadeia, levando-se em consideração que ele é proprietário do
direito de punir? Dir-se-á que existe uma solução: se processado por infração
penal cometida durante o exercício da função, deverá prestar contas a seu
chefe. Este o processará ou não. A resposta, nas hipóteses de abuso de poder e
exercício arbitrário de função pública, é sempre “não”, refletindo-se no fato
de predominar, em certa medida, o corporativismo. Quando o procurador-geral diz
“não”, inexiste a possibilidade de ação penal subsidiária. O “não” é
definitivo. Resta, em linguagem de Israel, um “pixulé”
na competência civil porque, ali, pode o promotor público ser réu em ação
movida na Vara Distrital do fim do quarteirão. Mas alguns setores da
Instituição protestam veementemente contra tal situação populista. Querem obter
anteparo legal a agressões judiciais desse tipo.
Já se vê que a questão não é tão simples assim. Os
vetustos constitucionalistas levariam horas e horas buscando, nos
alfarrábios (palavra bonita), expressões latinas aptas a diferenciar o
presidente da República, o carroceiro e o promotor público. Resolva-se o problema
pragmaticamente, relembrando-se a Revolução Francesa. A data comemorativa vem
aí (14 de julho). Liberdade, igualdade, fraternidade. O povo, em 1789,
literalmente nadou em
sangue. Duas mil cabeças cortadas num só dia. Danton, Robespierre, Saint Just e muitos outros perderam o pescoço depois de mandarem
centenas para o outro lado. Marat teve melhor sorte:
morreu no banho sob a faca de Charlotte. Esta foi degolada depois. Matou-se um
rei. A rainha prestou contas a “Madame Guilhotina”. Um
belo pescoço votado a ficar na história. Sobra tristíssima
conclusão: todos são iguais perante a lei, sim, mas as diferenças precisam ser
preservadas, em razão da necessidade de governança.
Já era assim na cidade grega e continua assim na demagogia moderna (dita
condução do povo). Entretanto, ao pretender-se criticar a extensão das
garantias, não se esqueçam os críticos de que a igualdade, tocante ao ponto
peculiar, significará a perda, para todos, de qualquer privilégio. Em outros
termos, se cabeças precisarem ser cortadas, deixe-se de lado a imunidade do
carrasco. Este, nas hipóteses adequadas, há de perdê-la também. Justifica-se,
só aqui, a igualdade de todos perante a lei.
Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.
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