Se for verdade a máxima que a voz do povo é a voz de Deus, então podemos
tirar duas conclusões, uma derivada da outra: o voz do
povo sempre reflete a verdade e o governo é o culpado por todos ao males.
Hoje, trafegava com meu veículo automotor por uma avenida da cidade na
qual resido quando, de repente, sem prévio aviso, um pedestre, vindo de detrás
de outro veículo, lançou-se na faixa logo à minha frente, em um semáforo que
para mim se encontrava aberto. A distância que me faltava percorrer até a faixa
não ultrapassava 10 metros
e, como estava à velocidade de aproximadamente 60 km/h, não conseguiria
parar o veículo antes de atropelar consistentemente o pedestre, como qualquer
teste da revista Quatro Rodas poderia comprovar.
Naquelas frações de segundo, que sempre parecem horas em momentos de
apuros, pensamentos diversos me ocorreram, um deles a de que o sujeito capaz de
atirar-se dessa maneira na frente de um veículo bem que merecia um
atropelamento consistentemente realizado.
Por uma felicidade do destino, esse pensamento não resultou em
conseqüência prática, nem sequer tive que jogar o veículo na direção de outro
veículo que se encontrava ao meu lado ou em direção a um poste ou árvore, uma
simples buzinada foi suficiente para paralisar o pedestre e me permitir passar,
embora bem próximo a ele.
Passado o susto, sobreveio a indignação, indignação com o pedestre, mas,
ao me lembrar de já ter vivenciado anteriormente mais de uma situação
correlata, a indignação aumentou e acabou direcionada a todos os pedestres do
mundo, até o momento em que me lembrei que eu também sou um pedestre.
Passada a
fase da indignação, veio a fase de revolta,
direcionada, não contra os pedestres, mas contra o governo, afinal foi ele o
responsável por diversas campanhas de trânsito extremamente mal concebidas e
elaboradas que deixaram o pedestre, aquele em tempo integral que não tem a
menor noção de como se comporta um veículo, com a percepção que ele tem
absoluta preferência sobre os veículos, mesmo em situações que isto contrarie todas
as leis da física.
Neste
momento, de forma muito coerente e consistente concluí que, como em relação a
todos os demais problemas existentes no mundo, a culpa é do governo, que
merecia, por sua incompetência habitual, ser consistentemente apedrejado à moda
taleban.
Imaginei-me
empilhando consistentemente os diversos políticos em relação aos quais não
nutro nenhuma simpatia e apedrejando-os, mas usando tão somente, e peço perdão
pela redundância, pequenos pedregulhos, de modo que o castigo a eles imposto
pudesse perdurar por uma pequena “eternidade”.
Mas
agora, relativamente distante dos fatos e parafraseando o grande filósofo Raul
Seixas, me desdigo de tudo que disse antes. A culpa pelo fato ocorrido talvez
não fosse do pedestre e provavelmente também não era do governo.
Temos o
costume de creditar ao governo todos os problemas do mundo, principalmente os
que diretamente nos afligem, como se fôssemos nós crianças e aquele nosso pai
ou mãe, o ser todo poderoso capaz de impedir a ocorrência de toda e qualquer
fatalidade, e que falha com sua função quando não consegue evitá-la. Todavia,
segundo o princípio da democracia os governantes nada mais fazem do que agir em
nome do povo, representando-o, por terem sido escolhidos, por meio do voto,
para desempenhar essa função.
Restou-me
outra máxima: A de que cada povo tem o governo que merece. Os governantes da
maioria dos países, inclusive do Brasil, não se encontram exercendo o poder em
virtude de tê-lo usurpado, mas sim em decorrência de terem sido legitimamente eleitos
para representar esse papel.
Segundo o Código Civil, ao qual me socorro para criar um paralelo, caso
eu outorgue a alguém uma procuração para agir em meu nome, e caso essa pessoa
venha a fazer algumas “besteiras”, desde que não ultrapasse os limites dos
poderes outorgados, sou eu o responsável e quem terá que suportar todas as
conseqüências, afinal, quem me mandou ser tão burro a ponto de passar uma
procuração para alguém que não sabia o que estava fazendo?
Repito
agora o parágrafo acima substituindo, porém, procuração por voto.
Caso eu vote em alguém para agir em meu nome, e caso essa pessoa venha a
fazer algumas “besteiras”, desde que não ultrapasse os limites dos poderes
outorgados por meio do meu voto, sou eu o responsável e quem terá que suportar
todas as conseqüências, afinal, quem me mandou ser tão burro a ponto de votar
em alguém que não sabia o que estava fazendo?
Revi meu
conceito inicial. Na verdade o povo não sabe o que diz e o governo não é
culpado por quase nada. Eu sou, assim como vocês que me lêem, o responsável por
grande parte dos problemas, não do mundo, mas que nos afligem aqui no Brasil, e
serei tanto mais responsável quanto mais me omitir.
Não basta
que eu e vocês nos conscientizemos de que votar é escolher alguém para agir, em
nosso nome, como se fôssemos nós mesmos, enquanto a maioria continuar a ver seu
voto como um mero instrumento de possível barganha.
Uma
pessoa sozinha não é capaz de mudar o mundo, mas pode influenciar alguém ao seu
lado e fazer disso uma corrente.
Mesmo quando
agimos de forma que acreditamos ser de extrema consciência e coerência,
continuaremos responsáveis pela maioria dos problemas que acontecem enquanto
nos abstivermos de participar da corrente, afinal, não há nenhuma consistência
em remar em uma direção se todos os demais ocupantes do mesmo barco estão
remando em sentido contrário. Ou desiste-se do esforço inútil ou tenta-se
convencê-los de que estamos todos indo na direção
errada. Qualquer outra atitude carece de qualquer consistência.
Antes que
me considerem um pateta no trânsito – aquele que é ótimo pedestre e
perigosíssimo motorista – e que um leitor um pouco mais consciente decida
apedrejar talebanamente o autor, gostaria de
esclarecer que a situação narrada é completamente fictícia, inspirada, contudo,
em depoimento obtido em autos judiciais nos quais se busca apurar
responsabilidade por acidente de trânsito.
Consultor Tributário, ex-Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado de Goiás e sócio da Dênerson Rosa & Associados Consultoria Tributária.
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