Categories: Revista 165Sociologia

Ideias sobre a origem da sociedade civil

Resumo: A proposta deste texto é reunir e organizar, de maneira breve e clara, pensamentos de grandes filósofos sobre a origem da Sociedade Civil. Trata-se de uma amostra, no campo das ideias, da saída da barbárie e a entrada na civilização.

Palavras-chave: Sociedade Civil, Barbárie e Civilização.

Abstract:The purpose of this text is to gather and organize, in a brief and clear way, thoughts of great philosophers about the origin of Civil Society. It is a sample, in the field of ideas, the departure of barbarism and the entry into civilization.

Keywords: Civil Society, Barbarism and Civilization.

Quando a vida humana surgiu na Terra só havia a natureza (como habitat e matéria prima). Tudo a ser construído, transformado, organizado, adaptado e desenvolvido.

A Humanidade estava na infância (ainda engatinhando), em semelhança, ao enigma criado pela Esfinge (monstro devorador dos habitantes de Tebas metade mulher e metade leão, parte da peça grega de Sófocles) ao personagem de nome Édipo (se errasse custaria a sua vida): “Qual animal tem, pela manhã, quatro patas, à tarde, duas, e à noite, três?”, cuja resposta fora: “O homem. Engatinha no começo de sua vida, com quatro patas; depois caminha com dois pés; e, no final de sua existência, anda com a ajuda de uma bengala, logo, com três apoios.”[1]

Embora o homem engatinhasse (em sentido figurado), já era dotado de todas as aptidões para sair da primitividade, as quais, com grande acerto, são assim descritas por Comenius: “temos em nós por natureza as sementes da instrução, das virtudes e da religião.”[2]

A lei que reinava era a da sobrevivência e, para tanto, o homem fora movido a utilizar todos os recursos que estavam ao seu alcance (internos e externos).

Noutras palavras, o que importava era comer, beber, abrigar, dormir, reproduzir e se defender.

Não há a noção entre o certo e o errado, justo e o injusto, bem e o mal, virtude e o vício, amizade e inimizade, meu e o seu (muito menos o nosso).

Neste sentido esclarece Jean Jacques Rosseau[3]:

Parece, à primeira vista, que os homens nesse estado, não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem de deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus, nem tinham vícios nem virtudes, a menos que, tomando essas palavras em um sentido físico, se chamem vícios, no indivíduo, as qualidade que podem prejudicar a sua própria conservação, e virtudes as que podem contribuir para a sua própria conservação.” [4](destaque nosso).

Impossível, ainda, entender minimamente os atos e suas consequências. Portanto, inexiste responsabilidade. A vida é puramente instintiva.

Desse modo, por exemplo, a antropofagia, hoje considerada abominável, era prática comum (mesmo porque a caça humana era bem mais simples e menos perigosa se comparada com a da maioria dos animais da época)[5]

O ser humano é incapaz de elaborar qualquer pensamento ou ideia que não fosse para a satisfação das necessidades básicas. Não havia a menor possibilidade de cogitar a respeito das 3 grandes questões humanas: Quem eu sou (natureza)? De onde vim (origem)? Para onde vou (destino)?

Montesquieu denominou como sendo o “Estado de Natureza”:

“Antes de todas estas leis, estão a lei da natureza, assim chamadas porque derivam unicamente da constituição de nosso ser. Para bem conhecê-las, deve-se considerar um homem antes do estabelecimento das sociedades. As leis da natureza seriam aquelas que receberia em tal estado. […] O homem no estado de natureza teria mais a faculdade de conhecer do que conhecimentos. Está claro que suas primeiras ideias não seriam especulativas: pensaria na conservação de seu ser, antes de buscar a origem do ser. Tal homem sentiria no início apenas sua fraqueza; sua timidez seria extrema; e, se precisássemos sobre este caso de alguma experiência, foram encontrados nas florestas homens selvagens; tudo os faz tremer, tudo os faz fugir.”[6] (destaque nosso).

Como a fala era transmitida por meio de grunhidos, tais sons não eram capazes de promover a interação, o entendimento, o diálogo, o debate, a organização, a tomada de decisões coletivas, etc…[7]

A união que existia entre o homem e a mulher era exclusivamente voltada para a cópula (sem qualquer tipo de afeto e fidelidade) e, por efeito, à criação instintiva do filho até que atingisse a independência[8].

O grande avanço surgiu quando o homem foi capaz de buscar alimentos em grupo e permitir a divisão da refeição, gerando, aos poucos, o abrigo em comum, a segurança coletiva, a constituição de novas famílias, e, consequentemente, a convivência (sociedade natural)[9].

Afinal de contas, dirá o maior impulsionador da Independência dos Estados Unidos pelas letras, Thomas Paine: “a força de um homem é tão desigual às necessidades, e o seu espírito tão inadequado à solidão perpétua que não tarda em ser obrigado a procurar assistência e alívio com outra pessoa que, por sua vez, quer a mesma coisa.”[10]

Pode-se dizer que a necessidade gera a sociedade.

Marco Túlio Cícero teve ocasião de expressar a respeito do instinto de sociabilidade inerente a todo ser humano:

“Pois bem: a primeira causa dessa agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum.”[11] (destaque nosso).

Isto porque, conforme demonstra Aristóteles, o homem é um “animal político” e a cidade é criação da natureza (família → aldeia→cidade):

“A família (oikía), é, pois, a associação estabelecida pela natureza para atender às necessidades do dia-dia do homem […] A sociedade que se forma em seguida, formada por várias famílias, constituídas não só para apenas atender às necessidades cotidianas, mas tendo em vista uma utilidade comum, é a aldeia (Komé). […] E quando várias aldeias se unem em uma única e completa comunidade, a qual possui todos os meios para bastar-se a si mesma, surge a Cidade (pólis), formada originariamente para atender às necessidades da vida e, na sequência, para o fim de buscar viver bem. Fica evidente, pois, que a Cidade é uma criação da natureza, e que o homem, por natureza, é um animal político (isto é, destinado a viver em sociedade), e que o homem que, por sua natureza e não por mero acidente, não tivesse sua existência na cidade, seria um ser vil, superior ou inferior ao homem. Tal indivíduo, segundo Homero, é “um ser sem lar, sem família, sem leis”, pois tem sede de guerra e, como não é freado por nada, assemelha-se a uma ave de rapina.” [12] (destaque nosso).

Desse modo, gradativamente (provavelmente milhões de anos)[13], foi sendo criado, fortalecido e estendido o laço de união até o advento da sociedade civil, cujo pensamento político moderno de Hobbes a Hegel, é assim sintetizado por Norberto Bobbio:

“O pensamento político moderno, de Hobbes a Hegel, caracteriza-se pela constante tendência – ainda que no interior de diferentes soluções – a considerar o Estado ou sociedade política, em relação ao estado de natureza (ou sociedade natural), como o momento supremo e definitivo da vida comum e coletiva do homem, ser racional; como o resultado mais perfeito ou menos imperfeito daquele processo de racionalização dos instintos ou das paixões ou dos interesses, mediante o qual o reino da força desregrada se transforma no reino da liberdade regulada.”[14]  (destaque nosso).

Portanto, a civilização iniciou quando a Humanidade atingiu a sua maioridade/maturidade intelectual, moral e espiritual, sendo capaz de criar regras de convivência com o objetivo de promover o bem comum.

O primeiro passo foi dado saindo da barbárie e entrando na civilização (passado). O segundo é a universalização do reconhecimento e da garantia dos direitos do homem (presente). O terceiro será a incorporação do reino do amor, da pureza, da sabedoria, da paz e da justiça (futuro).

 

Notas
[1] José Roberto de Castro Neves. “A Invenção do Direito – As lições de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófanes”. Edições de Janeiro, 2015, p. 166-167.
[2] Didática Magna. Martins Fontes. São Paulo, 2006, p. 57.
[3] Considerado o “Pai da Antropologia”, segundo o célebre antropólogo belga Lévi Strauss. Informação extraída da obra: “Manual de Antropologia Jurídica” de Olney Queiroz Assis. Editora Saraiva, 2015, p. 56.
[4] Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Edição eletrônica.
[5] “Durante o Período Paleolítico — que durou 2,6 milhões de anos e terminou dez mil anos atrás —, alguns bandos de humanos antigos e hominídeos (ou seja, espécies humanas extintas e todos os nossos ancestrais imediatos) se engajavam em práticas canibais, comendo a carne de seus próprios. Sabemos disso por causa das pistas que deixaram para trás — restos humanos exibindo traços de retirada da carne, marcas de cortes intencionais em torno das articulações, mordidas humanas e ossos quebrados para chegar à medula. “ Disponível em: http://gizmodo.uol.com.br/canibalismo-paleolitico/. Acesso em 22/09/2017.
[6] O Espírito das Leis. Editora Martins Fontes, 2000, p. 13-14.
[7] Conforme esclarece Rosseau: “A primeira linguagem do homem, a linguagem mais universal, enérgica e a única de que teve necessidade antes que fosse preciso persuadir homens reunidos, foi o grito da natureza […] Quando as ideias dos homens começaram a se estender e a se multiplicar, e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais estreita, procuraram sinais mais numerosos e uma linguagem mais extensa; multiplicaram as inflexões da voz e lhe juntaram os gestos […] os primeiros vocábulos de que os homens fizeram usos tiveram no seu espírito uma significação muito mais extensa do que as que se empregam nas línguas já formadas.” (Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Edição eletrônica).
[8] “A fome, outros apetites, fazendo-o experimentar, alternativamente, diversas maneiras de existir, houve uma que o convidou a perpetuar sua espécie; e esse pendor cego, desprovido de todo sentimento de coração, não produziu senão um ato puramente animal: satisfeita a necessidade, os dois sexos nunca mais se reconheciam e o próprio filho nada mais representava para mãe logo que podia passar sem ela.” (Rosseau. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Edição eletrônica).
[9] Mesmo assim, o relacionamento era brutal e predominava o mais forte.
[10] Senso Comum, p. 51-52.  Extraído da coleção “Os Pensadores”, XXIX, 1973.
O homem entregue à pura condição natural, de acordo com Samuel Pufendorf, está reduzido a pouco mais que um animal: só, ele é mudo, desprovido de proteção, está em luta com os outros animais, sem auxílio, entregue a um auto abastecimento rudimentar, até que a morte advenha. Segue-se, então, que qualquer vantagem que acompanhe a vida humana será devida a ajuda mútua que os homens dão uns aos outros. (Os deveres do homem e do cidadão de acordo com as leis do direito natural, 2007, p. 92-93. Pensamento citado no livro: “Curso de Filosofia do Direito” de Eduardo C. B. Bittar e Guilherme Assis de Almeida. Editora Atlas, 8ª edição, 2010, p. 283). (destaque nosso).
[11] A República. Edição eletrônica.
[12] Política. Editora Martin Claret, 5ª ed., 2008, p. 55-56.
[13] Voltaire, ao abordar o termo “Política” na obra “Dicionário Filosófico”, menciona que: “nenhum homem sozinho pode garantir-se contra o mal e promover seu próprio bem. Precisa de auxílio. A sociedade é, pois, tão antiga, quanto o mundo […] Somente com gênio podem-se inventar todas as artes que promovam a longo prazo um certo bem estar, único objetivo de toda política. Para tentar essas artes é preciso auxílio, mãos que vos ajudem, mentes bastantes abertas para vos compreender e bastante dóceis para vos obedecer. Antes de encontrardes e reunirdes tudo isso, escoam-se milhares de séculos de ignorância e de barbárie, milhares de tentativas abortadas. Por fim, uma arte se esboça, e são necessários milhares de séculos para aperfeiçoá-la.” (Coleção Os Pensadores, Editora Abril, 1ª Edição, 1973, p. 273). (destaque nosso).
Segundo Hannah Arendt existem 3 (três) atividades humanas fundamentais (trabalho, obra e ação): “O trabalho assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. A obra e seu produto, o artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo. A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a História.” (A Condição Humana. Editora Forense Universitária, 12ª edição, 2014, p. 9 e 11).  (destaque nosso).
[14] “O Conceito de Sociedade Civil”. Editora Graal. 1ª edição, 1982, p. 19. Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/Terceiros/Cursos/09.Bobbio,Noberto.O_Conceito_de_Sociedade_Civil.pdf. Acesso em: 03/09/2017.
Kant assim descreve: “Assim, a menos que queira renunciar a quaisquer conceitos de direito, a primeira coisa que tem a resolver é estabelecer o princípio segundo o qual é preciso abandonar o estado de natureza, no qual cada um segue o seu próprio critério, unir-se com todos os outros (com os quais a interação é inevitável), submeter-se a uma coação legal externa pública, e, assim, ingressar numa condição na qual o que tem que ser reconhecido como a ela pertinente é determinado pela lei e lhe é atribuído pelo poder adequado (não o que lhe é próprio, mas sim um poder externo); em síntese: deve-se, acima de tudo o mais, ingressar numa condição civil.” (Metafísica dos Costumes. 1ª edição, 2003, p. 154). Disponível em: https://saudeglobaldotorg1.files.wordpress.com/2013/08/te1-kant-metafc3adsica-dos-costumes.pdf. Acesso em: 03/09/2017. (destaque nosso).
John Locke, por exemplo, assim entende: "Aqueles que se reúnem num só corpo e adotam uma lei comum estabelecida e uma magistratura à qual apelar, investida da autoridade de decidir as controvérsias que nascem entre eles, se encontram uns com os outros em Sociedades civis; mas aqueles que não têm em comum nenhum direito de recurso, ou seja, sobre a terra, estão ainda no estado de natureza.” (Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Editora Vozes, 1994, p. 133). (destaque nosso).

Informações Sobre o Autor

Luciano Chacha de Rezende

Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp LFG; Especialista em Direito Público pela mesma Instituição; Especialista em Direito Tributário pelo IBET; Assessor Jurídico da SEFAZ/MS junto ao Procurador do Estado


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