A Constituição Federal declara que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza […] (art. 5º caput)”. Então, por quê falar em discriminação? – Infelizmente a discriminação é histórica e sempre existiu, sendo praticada pelos indivíduos, pelos governos e pela própria sociedade. Todavia, hoje, observamos que as nações, inclusive o Brasil, têm o deve de diminui as desigualdades e contribuir para a inclusão social. Afinal, igualdade formal e igualdade real significam a mesma coisa? O quê é discriminação? Preconceito, discriminação e racismo significam a mesma coisa? E o estereotipo? Ação afirmativa e cotas significam a mesma coisa? Toda discriminação é negativa? Para responder essas indagações precisamos fazer algumas reflexões conceituais, legais, ou seja, com base na lei e sobre a realidade brasileira, no que diz respeito à igualdade e a discriminação. No entanto, os objetivos destas reflexões, como veremos, é contribuir para eliminação gradativa da discriminação e a promoção da igualdade, para provocar uma mudança de comportamento.
Ao enfrentarmos o desafio deste tema, devemos evitar opiniões de natureza emocional ou ideológicas e voltadas unicamente para casos particulares para generalizar, sem levar em consideração à lei, os valores das pessoas e da sociedade, bem como a realidade social. Para tanto, precisamos inicialmente definir e compreender os termos: preconceito, racismo, estereotipa e discriminação, ação afirmativa, cotas, para depois contextualizar.
a) Preconceito – É um julgamento prévio ou pré-julgamento de uma pessoa com base em estereótipos, ou seja, simples carimbo. Este conceito prévio nada mais é do que preconceito. “Trata-se de umas atitudes negativas, desfavoráveis, para com um grupo ou seus componentes individuais. É caracterizado por crenças estereotipadas, mas ninguém nasce com preconceitos, daí precisamos estar muito atentos quando formos proferir julgamentos sobre uma pessoa, uma idéia ou sobre uma crença”.A atitude resulta de processos internos do portador e não do teste dos tributos reais do grupo.”(Dicionário de Ciências Sociais – Fundação Getúlio Vargas – MEC). P. (962)”.
O preconceito localiza-se na esfera da consciência e/ou afetiva dos indivíduos e, por si só, não fere direitos. Aliás, embora violando as normas do bom senso e da afetividade, o preconceito não implica necessariamente em violação de direitos. Isto porque ninguém é obrigado a gostar, por exemplo, do portador de deficiência, do homossexual, do idoso, do índio ou do afro-brasileiro. Mas todos somos obrigados a respeitar os seus direitos.
b) Racismo – É um doutrina ou ideologia que defende a existência de hierarquia entre grupos humanos, ou seja, algumas raças são superiores a outras, assim os superiores teriam o direito de explorar e dominar os inferiores. As teorias racistas surgem na Europa, em meados do século XIX, preconizando superioridade do povo europeu em contrapartida à inferioridade dos povos não-europeus. E atualmente, em várias partes do mundo, as teorias racistas servem para justificar a exploração e dominação de determinados grupos humanos sobre outros. Trata-se de um equívoco, pois além das dificuldades de definir uma raça pura, não existem raças superiores, e sim culturas e valores diferentes.
c) Estereotipo – O termo deve ser claramente distinguido do preconceito, pois pertence à categoria das convicções, ou seja, de um fato estabelecido. Uma vez “carimbados” os membros de determinado grupo como possuidores deste ou daquele “atributo”, as pessoas deixam de avaliar os membros desses grupos pelas suas reais qualidades e passam a julgá-los pelo carimbo. Exemplo: todo judeu é sovina; todo português é burro; todo negro é ladrão; toda mulher não sabe dirigir.
d) Discriminação – Diferentemente do preconceito, a discriminação depende de uma conduta ou ato (ação ou omissão), que resulta em viola direitos com base na raça, sexo, idade, estado civil, deficiência física ou mental, opção religiosa e outros. A Carta Constitucional de 1988 alargou as medidas proibitivas de práticas discriminatórias no país. Algumas delas como, por exemplo, discriminação contra a mulher, discriminação contra a criança e o adolescente, discriminação contra o portador de deficiência, discriminação em razão da idade, ou seja, a discriminação contra o idoso, discriminação em razão de credo religioso, discriminação em virtude de convicções filosóficas e políticas, discriminação em função do tipo de trabalho, discriminação contra o estrangeiro e prática da discriminação, preconceito e racismo. A propósito, segundo o jurista constitucionalista José Afonso da Silva:
“A discriminação é proibida expressamente, como consta no art. 3º, IV da Constituição Federal, onde se dispõe que, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, está: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Proibi-se, também, a diferença de salário, de exercício de fundações e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor, estado civil ou posse de deficiência (art. 7º, XXX e XXXI).” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 2003, p. 222).
A discriminação racial está em foro Constitucional, que considera prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, incisos XLI e XLII), Para o direito penal brasileiro, a prática da discriminação e preconceito por raça, etnia, cor, religião ou procedência nacional consiste em delito previsto na lei 7.716/89, alterada pela lei 9.459/97. Segundo art. 140, parágrafo terceiro do Código Penal: Se a injúria utilizar elementos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena é de reclusão, pena é de reclusão de 1(um) a 3(três) anos e multa. De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de judeu, pretão, negão, crioulo, miserável, preto, fanático religioso, pobretão, etc., desde que com intenção ou vontade de lhe ofender a honra e a dignidade relacionada com a cor, religião, raça ou etnia, [1] sujeita o autor a uma pena prevista na lei pena. Da mesma forma a prática da discriminação constitui-se, em matéria civil (art. 186 do Código Civil) um ato ilícito praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo individual. Causa dano à vítima comete ato ilícito, criando o dever de repará-lo. (MARTINS, Sergio, 1999, p. 27). A discriminação racial ocorre com a manifestação exteriorizada do preconceito do racismo.
Para Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1966:
“Discriminação racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseados em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha por objeto ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública.”[2]
Uma das mais graves discriminações ocorre quando o direito de ser educado de uma pessoa é atingido, porque o direito à educação é um direito social fundamental para o ser humano:
“O termo discriminação abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, opinião pública ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino”. (Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino – adotada pela conferência Geral da Unesco em Paris, 1960 – promulgada pelo Decreto nº 63.223, de 6 de setembro de 1968) 3[3]
O repúdio ao racismo nas relações internacionais foi, também, expressamente estabelecido no art. 4º inciso VIII da Constituição Federal: “A república Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios […] repúdio ao terrorismo e ao racismo”. Nele se encontra, também, o reconhecimento de que o preconceito de origem, raça e cor, especialmente contra os negros, não estão ausente das relações sociais brasileiras. Disfarçadamente ou, não raro, ostensivamente, pessoas negras sofrem discriminação até mesmo nas relações com entidades públicas. [4]
Vale lembrar, que o Estado e a sociedade brasileira demoraram a perceber que o princípio da igualdade de todos perante a lei não é suficiente para defender uma ordem social justa e democrática, pois as desigualdades foram acumuladas no processo histórico. Além da base geral em que assenta o princípio da igualdade perante a lei, ou seja, a igualdade formal, é necessária o tratamento desigual a situações desiguais, ou seja, a igualdade real ou material. Aliás, quando afirmamos que todos são iguais perante a lei, é preciso responder a duas perguntas: a) igualdade entre quem. e b) igualdade em quê? Todos são iguais, porém alguns são mais iguais do que outros. (BOBBIO, Norberto, 1996, p. 12). Para erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, III), se faz necessário tratar os desiguais de forma desigual, através de políticas e ações afirmativas.
Por isso, surgem às inovações na Constituição Federal e nas demais leis ordinárias. Uma inovação constitucional importante encontra-se na situação jurídica do trabalhador deficiente. A Constituição Federal estabelece a “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”. (art. 7º XXXI); a outra em nível Constitucional ocorreu com a superação do tratamento desigual fundado no sexo, ao equiparar os direitos e obrigações de homens e mulheres (art. 5º, I). A questão mais complexa consiste na discriminação sofrida pelos homossexuais. Aqui, embora a constituição não mencione a expressão textualmente, entende-se que é proibida a discriminação de qualquer natureza, inclusive em razão de opção sexual”. Quanto à criança e o adolescente, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar com absoluta prioridade todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana previstos no art. 227 da Constituição Federal:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Da mesma forma, o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, conforme dispõe o art. 9º do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 01/10/2003):
“É obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.”
A concepção de uma igualdade puramente formal, ou seja, com base apenas na lei está sendo questionada, pois contribui para aumentar as desigualdades. Neste contexto, não podemos deixar de destacar as ações e políticas afirmativas, que vem sendo adotadas desde o Programa Nacional de Direitos Humanos de 1995. [5] No ordenamento jurídico brasileiro, como exemplo de modalidade de ação afirmativa, podemos citar as Leis nºs 9.100/95 e 9.504/97, que estabeleceram cotas mínimas de candidatas mulheres para as eleições. Outro exemplo está no art. 37, VII, da Constituição Federal, e nas Leis nºs 7.835/89 e 8.112/90, que regulamentaram o dispositivo constitucional referido, no qual há reservas de vagas em concurso público para os portadores de deficiência física. Cabe destacar, como mais uma forma de Ação afirmativa, o que contém a Lei nº 10.173/01, na qual se deu prioridade de tramitação aos procedimentos judiciais onde figure como parte, pessoas com idade igual ou superior a sessenta e cinco anos. [6]
Na área da educação, temos o Programa Universidade para Todos (Prouni), que é destinado à concessão de bolsas de estudos integrais e bolsas de estudos parciais de 50% (meia bolsa), para curso de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de Ensino Superior com ou sem fins lucrativos. E aqui, há cotas para negros e indígenas. O percentual terá que ser, no mínimo, correspondente ao percentual de cidadãos autodeclarados negros, pardos e indígenas no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de cada Estado. [7]
Contudo, afinal! O quê é Ação afirmativa? Significa a mesma coisa que cotas? – Ação afirmativa é o reconhecimento de que o princípio da igualdade de todos perante a lei é insuficiente para garantir a plena cidadania. É oportuno lembra que podemos implementar ações ou políticas afirmativas, sem utilização de cotas, pois esta é apenas uma modalidade ou forma de ação afirmativa. É o caso, da iniciativa do Frei David, que em diversos bairros da baixada fluminense criou o chamado pré-vestibular para negros e carentes (PVNC). Este movimento ganhou tamanha dimensão nacional e internacional que, em 1994, a PUC-RIO resolveu dar bolsas de estudos para alunos provenientes do PVNC, que passassem no vestibular e o governo brasileiro passou a apoiar a iniciativa. [8] Além disso, ação afirmativa pode ser pública e privada. Aqui, Joaquim Barbosa Gomes nos dá uma definição de ação afirmativa:
Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vista ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. (Ação afirmativa, 2001: p. 40).
As primeiras experiências de ações afirmativas surgiram nos Estados Unidos, em 1963, editando-se a lei sobre igualdade de salário, em 1964, referente a direitos civis, e alei a respeito da igualdade de oportunidades no emprego, em 1972. [9] O termo, também, surgiu nos Estados Unidos, no pós-guerra, já na década de 1960, quando as sociedades ocidentais cobravam a presença de critérios mais justo na reestruturação dos Estados de Direito (V. www.politicasdacor.net). No campo da educação, os primeiros programas de ação afirmativa foram postos em prática no início dos anos 60, logo após o Presidente Kennedy haver determinado, através de decreto executivo, que fossem tomadas medidas positivas no sentido de promover a inserção dos negros no sistema educacional de qualidade, historicamente reservado às pessoas de raça branca, como diz Joaquim Barbosa Gomes, atualmente Ministro do Supremo Tribunal. [10]
No caso brasileiro, a expressão “ação afirmativa” ou “políticas afirmativas” alcança não apenas os afro-brasileiros [11], mas todos os segmentos sociais historicamente discriminados e atualmente excluídos, como já vimos. Vale lembrar, ainda, que as chamadas ações e políticas afirmativas são consideradas discriminação positiva, pela finalidade de inclusão social dos segmentos historicamente excluídos.
Enfim, a síntese divulgada pelo IBGE, em 2003, confirmava que a desigualdade é uma característica histórica da sociedade brasileira, [12] embora, lentamente, nos últimos anos as desigualdades sociais estão diminuindo. Percebe-se, por um lado, que as ações políticas afirmativas ou compensatórias, que sejam de iniciativas institucionais pública ou privada, principalmente na educação e no trabalho, podem contribuir efetivamente para diminuir as desigualdades. Além disso, por outro lado, é fundamental a participação da sociedade, não só reconhecendo a existência das desigualdades sociais, mas, sobretudo exigindo medidas do poder público, assumindo atitudes compensatórias no cotidiano e no exercício da cidadania. Essas mudanças de concepções ou de atitudes por parte da sociedade e do Estado, certamente vão contribuir para diminuir a discriminação e o preconceito na sociedade brasileira.
Advogado (UFRJ), mestre em Direito (UGF), Pós-graduação em Direito Civil, Romano e Comparado (UFRJ), Pós-graduação com especialização em Educação à Distância (SENAC), Professor universitário de curso de graduação em Direito, ministra a disciplina de Direito Educacional no Curso de Pós-graduação de Gestão Educacional e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)
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