Resumo: O presente artigo analisa a imunidade tributária, a importância desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro e a atuação das normas imunizantes como instrumentos realizadores de justiça fiscal. Através do método teórico-descritivo, apresenta-se a Teoria dos Sistemas e o fenômeno da interpretação/aplicação do direito, temas basilares para o desenvolvimento do estudo. Analisa-se, ainda, a importância das imunidades tributárias no sistema jurídico brasileiro e a atuação das normas imunizantes como instrumentos realizadores dos objetivos constitucionais. Aborda-se a estrutura das imunidades tributárias e a influência das regras de intributabilidade na interpretação/aplicação do direito. Estabelecidas essas considerações preliminares necessárias ao pleno desenvolvimento do tema proposto, adentra-se na análise das características da imunidade tributária dos templos de qualquer culto, a relevância jurídica e econômica que deve ser conferida à destinação religiosa dada ao imóvel e as limitações decorrentes da classificação da imunidade tributária dos templos em subjetiva, propondo-se a classificação de imunidade tributária híbrida.
Palavras-chave: teoria dos sistemas; interpretação/aplicação do direito; imunidade Tributária dos Templos; afetação de imóvel a fins religiosos; classificação da norma imunizante.
Abstract: This article analyzes the tax immunity, the importance of this institution in the Brazilian legal system and the role of immunities as instruments of fiscal justice. Through the theoretical-descriptive method, presents the Systems Theory and the phenomenon of interpretation and application of the law, basic subjects basic of this monograph research. After this, the study analysis the importance of tax immunities in the Brazilian legal system and the performance standards immunizing makers as instruments of constitutional objectives. It also examines the structure of tax immunities and the influence of these rules on law interpretation. With these preliminary considerations realized for full development of the main subject, this academic works analysis the characteristics of the tax immunity of the temples of any cult, the legal and economic importance that should be accorded to religious destination given to the property and the limitations arising from the classification of tax immunity of the temples in subjective, proposing the classification as hybrid tax immunity.
Keywords: systems theory; law interpretation; tax immunity of the temples; allocation of property to religious purposes; immunity’s classification.
Sumário: Introdução. 1. O sistema jurídico e a interpretação aplicação do direito. 1.1. Conceitos e características da teoria dos sistemas. 1.1.1. Sistemas jurídicos estático ou dinâmico. 1.1.2. Sistemas jurídicos simples ou complexos. 1.2. O fenômeno da Interpretação/Aplicação do Direito. 1.2.1. Características gerais e evolução da interpretação do direito. 1.2.2. A interpretação/aplicação do direito. 1.2.3. Regras, princípios e a concretização do direito. 1.3. O sistema (autopoiético) jurídico e a interpretação/aplicação do direito frente às necessidades econômicas e sociais. 2. As imunidades tributárias e o sistema jurídico. 2.1. Evolução histórica das imunidades tributárias. 2.2. Contornos caracterizadores das Imunidades Tributárias. 2.2.1. Distinções necessárias. 2.2.2. Classificação doutrinária das imunidades: análise e crítica. 2.3. As Imunidades Tributárias e as Regras de Estrutura e de Comportamento. 2.3.1. Regras de Estrutura e Regras de Comportamento. 2.3.2. Imunidade Tributária como Regra de Estrutura e os reflexos decorrentes dessa classificação no sistema jurídico brasileiro. 2.4. Conceito de Imunidade Tributária. 3. A imunidade tributária dos templos de qualquer culto. 3.1. A afetação de determinado local a fins religiosos e os efeitos tributários decorrentes. 3.2. Imunidade tributária dos templos entendida como imunidade híbrida. 4. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
As imunidades tributárias são institutos de extrema importância na realização da justiça fiscal brasileira. Através das normas imunizantes, os direitos e garantias fundamentais que as alicerçam são efetivados na sociedade, pois estarão protegidos dos efeitos deletérios da tributação.
As situações de intributabilidade constitucional, que se viabilizam através das imunidades, existem, normalmente, em função de determinada coisa e sua importância social (como ocorre com a imunidade tributária dos livros, que são instrumentos auxiliadores na concretização da liberdade de pensamento) ou em razão de entidades que desenvolvem atividades de nítido interesse público. A imunidade tributária dos templos de qualquer culto, previsto no art. 150, VI, “b” da Constituição Federal de 1988, é exemplo de norma imunizante que existe em virtude das características e finalidades a que se propõem determinadas pessoas, tendo em vista a importância social dos serviços e atividades de cunho religioso.
A imunidade tributária dos templos impossibilita a instituição de qualquer imposto sobre as entidades que, ao desenvolverem suas atividades, estão efetivando o direito fundamental à liberdade religiosa. Como não objetivam lucros e, comumente, estão desprovidas de recursos, a tributação dessas entidades acarretaria em clara ofensa aos objetivos e fins da Constituição que reconheceu a liberdade de culto em inúmeros dispositivos constitucionais[1].
Em virtude da importância das instituições que efetivam a liberdade religiosa na sociedade brasileira, o presente trabalho destina-se à análise das relações jurídico-tributárias que decorrem da imunidade dos templos de qualquer culto.
Em proveito desse estudo, o segundo capítulo destina-se a um breve exame da Teoria dos Sistemas e do fenômeno da interpretação/aplicação do Direito. Nele, são apontados os tipos de sistemas comunicacionais, seus elementos e modalidades de operacionalização. Define-se também o que é interpretação/aplicação do direito, os modos de interpretação jurídica e evolução desses meios e distinguem-se os tipos normativos existentes e suas participações na formação das normas de decisão. No final do capítulo, são apontadas as principais razões de se considerar a importância da interpretação/aplicação do direito frente às necessidades econômicas e sociais dentro de sistemas autopoiéticos, como são os sistemas jurídicos e econômicos. As bases interpretativas são estabelecidas no capítulo segundo e utilizadas nos demais capítulos da monografia.
O terceiro capítulo destina-se a uma análise genérica das imunidades tributárias. Estabelece-se a evolução das normas imunizantes, define-se imunidade tributária, diferencia-se esse instituto de outros e se aponta as principais classificações das imunidades. Ainda no mesmo capítulo, aborda-se a importância das normas imunizantes nos Sistemas Jurídico e Econômico brasileiro. Com base nas teorias dos imperativos e juízos categórico e hipotético, que servem de alicerce para a distinção das regras de condutas das regras de estrutura, conclui-se que as imunidades tributárias estão alocadas nesse último grupo. Enquadradas como regras de estrutura, características das imunidades evidenciam-se, como a influência delas na elaboração de leis e, principalmente, a atuação suplementar das normas imunizantes na interpretação/aplicação do Direito Tributário e do Direito Econômico.
No último capítulo, explora-se o tema que dá nome a este trabalho. Abordando inicialmente as razões para existência da imunidade tributária dos templos de qualquer culto, adentra-se, logo em seguida, nos elementos econômicos que estão imunes à tributação por pertencerem às instituições religiosas, como a renda, os serviços e o patrimônio, desde que, consoante mandamento constitucional, destinados aos seus fins essenciais.
Em seguida, analisa-se a necessidade de se relevar juridicamente a afetação de determinado local aos fins religiosos. Para esse intento, adentra-se nas acepções do termo “templo” e as implicações econômicas lesivas decorrentes de uma interpretação que não atenda aos fins constitucionais e que permita que a tributação apresente-se como óbice à liberdade de crença. Na interpretação/aplicação do direito, evidencia-se a influência das imunidades tributárias na conclusão pela tributação, ou não, no caso concreto.
Finalmente, as limitações que decorrem da classificação da imunidade tributária dos templos em subjetiva são objeto de estudo, retomando-se a idéia defendida por Aliomar Baleeiro de se considerar, necessariamente, a repercussão tributária dos impostos na renda dos entes imunes, no caso, as pessoas jurídicas que garantem o direito fundamental ao culto religioso. Com o objetivo de facilitar os estudos jurídicos, propõe-se a classificação da imunidade dos templos de qualquer culto como híbrida ou mista, apresentando contornos de imunidade tributária subjetiva e objetiva.
As imunidades tributárias, dentre as quais está a imunidade dos templos, são mecanismos essenciais para a atual ordem econômica brasileira, pois, como acima dito, resguardam da tributação pessoas ou bens fundamentais para a sociedade. O objetivo desse estudo é evidenciar as potencialidades das normas imunizantes nesse contexto jurídico-econômico.
1. Os sistemas jurídicos e a Interpretação/Aplicação do direito
1.1 Conceitos e características gerais da teoria dos sistemas
O Direito e o regramento das condutas humanas revelam-se fundamentais para a coexistência pacífica entre os indivíduos que compõem determinada sociedade. A multiplicação das inter-relações estabelecidas, ou potencialmente estabelecidas, trouxe aos ordenamentos jurídicos dois grandes problemas.
O primeiro deles consiste na constatação de que num Estado Democrático de Direito são necessárias normas para regulamentar os variados comportamentos dos homens, assim como as situações que apresentam relevância jurídica, o que demanda a elaboração de um elevado número de dispositivos legais[2]. O segundo problema é conseqüência do primeiro: devido à proliferação de atos legislativos, os operadores do direito devem contar com mecanismos e regras que viabilizem um estudo de todo o ordenamento jurídico, tendo em vista que a análise isolada de um determinado dispositivo dificilmente permitirá a compreensão da norma que se objetiva veicular na sociedade[3].
Com o objetivo de viabilizar soluções técnicas para os ordenamentos jurídicos, o estudo científico do Direito se desenvolveu com a contribuição de muitos jusfilósofos da Escola do Positivismo Jurídico, destacando-se, dentre eles, Hans Kelsen. O pensamento kelseniano possui como principal característica o escopo de analisar as principais estruturas comuns dos ordenamentos a fim de solucionar racionalmente as questões jurídicas. A Teoria Pura do Direito, que apartava as considerações valorativas, políticas e sociológicas dos ordenamentos, centrava-se nos estudos de validade, vigência e eficácia das normas, com o objetivo de conferir uma operacionalidade científica e segura do Direito[4].
A Ciência do Direito, impulsionada pelo pensamento kelseniano, desenvolveu-se cada vez mais, o que colaborou com o fortalecimento do estudo sistemático dos ordenamentos jurídicos. Por mais que existam pensamentos pela não sistematicidade do ordenamento jurídico, como é o caso da Tópica, aplicada ao Direito por Theodor Viehweg, que propugna a argumentação como meio para se alcançar casuisticamente decisões jurídicas[5], adotar-se-á no presente trabalho a compreensão do Direito como Sistema. E, afinal, o que é Sistema?
Sistema pode ser definido como todo o complexo de elementos e relações estabelecidas entre eles de acordo com uma estrutura paradigma própria, responsável pela diferenciação do sistema do ambiente[6] e de outros sistemas que com ele se relacionem[7]. Do conceito de sistema, percebem-se duas características basilares que devem estar presentes para caracterização como tal, quais sejam, elementos e estrutura.
Os elementos são os componentes básicos, as partes que se apresentam como próprias de um sistema, dentro de um critério estrutural selecionador. Como exemplos de elementos, têm-se os astros nos sistemas solares, as hemácias nos sistemas sanguíneos e as normas nos sistemas jurídicos.
Os elementos de um sistema apresentam características semelhantes que permitem a inclusão deles no complexo sistêmico. Os elementos que não tenham ou passem a não ter notas de caracterização próprias de um sistema não pertencem ao mesmo, devendo ser desconsiderados ou expurgados. Essa afirmação, entretanto, não significa que não haja dessemelhanças entre os elementos. Elementos diferentes podem coexistir em um mesmo sistema, como é o caso de satélites e planetas no sistema solar, hemácias, leucócitos e plaquetas no sistema sanguíneo, normas de estrutura e normas de comportamento no sistema jurídico. Situações como essa são possíveis – e necessárias, eis que elementos diferentes realizam funções diversas, o que viabiliza a manutenção do próprio sistema. Diferentes elementos estão num mesmo Sistema, exatamente por terem funções e peculiaridades próprias, necessárias no desenvolvimento de um dado complexo sistemático. As características mínimas necessárias que viabilizam a inclusão de elementos distintos são fornecidas pela estrutura do sistema.
Estrutura, por sua vez, é o paradigma simultaneamente formado pelo sistema e pelos elementos, que viabiliza ordem e funcionalidade num sistema. Através da estrutura os elementos desempenham suas variadas funções, relacionam-se com outros, são criados e, quando não mais se coadunam com o paradigma do sistema, são excluídos.
As estruturas variarão de acordo com os sistemas, mas não são deles unicamente provenientes. As estruturas também resultam dos elementos que o compõem. Exemplificando: no sistema jurídico brasileiro, há a possibilidade de edição de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal. A norma realizada pela Corte Constitucional Brasileira é permitida pelo sistema jurídico e, quando emitida, tem a potencialidade de alterar as inter-relações estabelecidas entre as normas, ou seja, apresenta-se também como elemento estrutural do sistema. Elementos e estrutura, dessa forma, apresentam igual importância para o sistema, compondo-o e diferenciando-o do ambiente.
1.1.2 Sistemas jurídicos estático ou dinâmico
Ao se fazer uma análise dos sistemas, percebe-se que existem algumas diferenças entre eles, em função da forma como se comportam frente ao ambiente e frente a outros sistemas. Das diferenças, surgiram algumas classificações na Teoria dos Sistemas, como é o caso dos sistemas estáticos e dinâmicos.
Sistema estático é aquele que se comporta de forma passiva, não estabelecendo um processo comunicacional completo com o ambiente. Os sistemas dinâmicos, por sua vez, estão em constante interação comunicativa com o ambiente e demais sistemas. A estrutura dos sistemas dinâmicos permite que eles troquem informações com o ambiente, de modo a se adequar as variações ambientais, assim como influenciar o ambiente.
Vários são os exemplos de sistemas dinâmicos e estáticos. O organismo humano é um sistema dinâmico, capaz de controlar a temperatura corpórea em função das variações térmicas ambientais, assim como produzir células constantemente para o regular funcionamento do homem. Exemplo de sistema estático é um avião, composto de variadas peças, que desempenham igualmente funções diversas. Nenhuma delas, entretanto, pode ser gerada automaticamente pelo próprio veículo em caso de quebra ou defeito, sendo necessário um agente externo que viabilize a troca, no caso, um mecânico.
Adaptando os conceitos de sistemas às ciências humanas, percebe-se que os sistemas e subsistemas sociais estabelecem inter-relações tanto internamente, quanto com o ambiente através da comunicação.
Comunicar significa transmitir e receber informações. O ato comunicacional para se estabelecer e produzir sentido necessita de uma linguagem comum entre receptor e emissor das mensagens. A linguagem é o código que os utentes comunicadores possuem ou estabelecem para que a comunicação seja a mais eficiente possível dentro do objetivo de fornecer informações dotadas de sentido[8].
O processo comunicacional se estabelece da seguinte forma: ao receber a mensagem, o receptor se valerá do código estabelecido para conferir sentido às informações enviadas pelo emissor. Analisando o teor da mensagem e se valendo do contexto comunicacional, o enunciatário reduzirá a ambigüidade e vaguidade possivelmente presentes nas informações emitidas pelo enunciador para viabilizar a comunicação e a construção de sentidos pelo receptor[9].
O sistema jurídico, enquanto subsistema social, caracterizar-se-á como dinâmico ou estático em função da estrutura organizacional interna ter ou não dado relevo à comunicação que se estabelece entre o ordenamento jurídico sistêmico com o complexo sistema social e os demais subsistemas (político, econômico, dentre outros).
Um sistema jurídico, por exemplo, será estático quando não estabelecer uma abertura comunicacional com a sociedade. Esse tipo de sistema não se altera com as mensagens enviadas pelo contexto histórico no qual está inserido, deixando de acompanhar as evoluções sociais, o que acarreta na ineficácia de suas normas, eis que não mais são cumpridas ou aplicáveis.
Um sistema jurídico dinâmico, por sua vez, tem a capacidade de promover mudanças no ordenamento jurídico, com a finalidade de coadunar as normas aos eventos sociais que apresentem relevância jurídica. Na estrutura dos sistemas jurídicos dinâmicos, há uma abertura comunicacional que permite o processamento das informações enviadas pela sociedade e a produção de normas novas, quando necessárias, que atendam aos anseios sociais.
Para viabilizar esse processo comunicacional circular que se estabelece entre sistema jurídico e sociedade, a estrutura do sistema deve contar com instrumentos que viabilizem a adequação do ordenamento ao ambiente social. Os mecanismos de retroalimentação (ou feedback) do sistema possuem essa função.
O feedback pode ser negativo ou positivo. Na retroalimentação positiva, o sistema sofre desequilíbrio em função das informações emitidas pela sociedade. Essa desestabilização pode acarretar a ruína do sistema jurídico (como ocorre nos casos em que um povo é dominado por outro) ou a mudança de sua estrutura (como acontece no caso de promulgação de nova Constituição sem que tenha ocorrido revolução).
Na retroalimentação negativa, entretanto, a resposta enviada pelo sistema jurídico à sociedade não alterará o equilíbrio interno do ordenamento. Exemplificando: havendo o constante descumprimento de uma determinada regra, o sistema jurídico poderá recrudescer a sanção pela não atenção à modalização da conduta veiculada na norma, estabelecer incentivos a pratica do comportamento desejado ou excluir a norma descumprida, de forma a se adaptar ao contexto social[10].
A sociedade que compõe um Estado Democrático de Direito necessita das informações do ordenamento jurídico para garantir a realização de diversas atividades e comportamentos. O feedback negativo, portanto, apresenta-se como fundamental para a evolução dos sistemas jurídicos. Inexistindo esse mecanismo calibrador, o ordenamento não tem como acompanhar as mudanças sociais, o que culminará, cedo ou tarde, com a sua ruína.
1.1.3 Sistema jurídico simples ou complexo
A classificação de um sistema jurídico em estático ou dinâmico não abarca todas as características desse sistema comunicacional. Para uma plena apreensão da teoria dos sistemas, aplicada ao Direito, fundamental se mostra a distinção entre os sistemas simples dos complexos.
Sistemas simples são aqueles em que as relações de casualidade entre seus elementos são conhecidas de antemão. Para um determinado evento, um resultado previsto pelo sistema. Essa relação linear entre causa e efeito pode até aparentar um nível desejado de segurança, pois se saberia a priori os efeitos desejados quando implementada uma causa prevista sistemicamente. Entretanto, o determinismo traz inúmeros óbices para a manutenção do próprio sistema, tais como a impossibilidade de se reinventar e auto-organizar. O sistema jurídico simples continua com as mesmas mensagens prescritivas, pouco importando se as normas não estejam dotadas de eficácia social[11].
Já os sistemas complexos apresentam características que viabilizam a sua adaptação ao ambiente. Como possuem em sua estrutura abertura comunicacional com a sociedade, recebem e transmitem informações com o objetivo de gerar sentido. Quando as mensagens enviadas pelo sistema não mais produzem sentido, o sistema complexo se auto-organiza, produzindo elementos novos e expurgando os que não se compatibilizam[12]. Essa constante busca de construção de sentidos num sistema comunicacional, como é atualmente compreendido o sistema jurídico brasileiro, implica no estabelecimento de um emaranhado de interações complexas entre os elementos do sistema, que não existe nas relações de causalidade dos sistemas simples.
Os sistemas jurídicos complexos evoluem em função das mutações sociais ocorridas na sociedade. Esses sistemas estão em constante transformação, pois assim tem que ser, se desejarem se compatibilizar com as mudanças sociais que necessitam de um disciplinamento jurídico.
A homoestase, ou equilíbrio interno do sistema, pode ser eficazmente alcançado pelo próprio sistema, desde que complexo e dinâmico. Com as informações recebidas do ambiente, o sistema jurídico as processará através dos mecanismos de feedback negativo ou positivo com a finalidade de manter seu principal objetivo, qual seja, regrar coercitivamente o comportamento dos indivíduos. Se a mensagem puder ser assimilada pelo sistema através dos instrumentos calibradores, ter-se-á feedback negativo, o que resulta na produção de novos atos comunicacionais normativos. No entanto, ocorrerá feedback positivo nos sistemas complexos quando as informações enviadas pela sociedade não tenham como ser calibradas[13]. Essa situação pode culminar na formulação de todo um novo sistema jurídico, que substitui o antecessor que desmoronou, ou uma mudança de paradigma estrutural, como aconteceu no Brasil com a promulgação da Constituição de 1988.
O sistema jurídico brasileiro mudou sua estrutura com o advento da Carta Constitucional de 1988. Uma vasta gama de ideologias influenciou o texto constitucional, o que repercutiu na previsão de direitos e garantias antes não colacionados constitucionalmente.
Não foi necessária uma formulação de um novo sistema jurídico, uma vez que houve o aproveitamento dos dispositivos legais que estivessem de acordo a Constituição Federal, o que se denomina doutrinariamente como recepção constitucional. O sistema jurídico mudou de paradigma estrutural, mas se manteve como sistema, tendo em vista que leis anteriores à Constituição de 1988 continuaram válidas e eficazes no ordenamento jurídico brasileiro, quando condizentes com as finalidades da estrutura constitucional.
Positiva ou negativa, a retro-alimentação ocorrida no sistema tem o escopo de alcançar a homoestase. Isso não quer dizer que no sistema não há desordem, não há entropia. De fato, a entropia é o que faz o sistema evoluir: a existência de desordem em um sistema jurídico é uma consequência da abertura comunicacional com a sociedade. São exemplos de desordem provocada em um sistema jurídico a precária redação de um dispositivo legal, o elevado número de leis que tratem de um assunto específico e a falta de eficácia social de uma norma.
Para se manter uma homoestase inalterada no ordenamento jurídico, seria necessário o fechamento comunicacional, o que resultaria nos problemas de ineficácia dos atos normativos próprios dos sistemas estáticos. Em virtude disso, pode-se concluir que se apresenta muito mais interessante o objetivo de se alcançar a homoestase através de um sistema complexo, caótico e de difícil previsibilidade, porém evolutivo e condizente com o contexto social no qual esteja inserido, do que efetivamente alcançar o equilíbrio sistêmico por meio de um sistema estático e ineficaz.
Com essas linhas gerais traçadas sobre a Teoria dos Sistemas, aplicada à Ciência do Direito, adentra-se agora no fenômeno jurídico que representa o trabalho desenvolvido pelo receptor das mensagens prescritivas do ordenamento na construção de sentido, qual seja, a Interpretação/Aplicação do Direito.
1.2. O fenômeno da Interpretação/Aplicação do Direito
1.2.1. Características gerais e evolução da interpretação do direito
A interpretação é um dos temas mais importantes do Direito. Variados são os métodos interpretativos, que variam conforme os valores e finalidades que estejam presentes no ordenamento jurídico, assim como o grau evolutivo alcançado pela ciência jurídica.
A interpretação do direito foi inicialmente concebida como o ato de subsunção do texto legal ao caso concreto. Trata-se da jurisprudência dos conceitos, em que uma interpretação formalista, de cunho meramente literal é utilizada pelo operador do direito para saber se determinado dispositivo aplica-se ou não ao fato social. Esse modo de interpretar objetiva garantir uma maior segurança jurídica aos cidadãos, eis que só precisariam consultar os textos legais para saber se determinado comportamento era lícito ou não. A jurisprudência dos conceitos resume o trabalho do juiz a ser a “boca da lei”.
Com o tempo, percebeu-se que esse método interpretativo não atendia às necessidades existentes dos operadores do direito, seja pela obscura redação dos dispositivos legais ou em virtude do surgimento constante de novos comportamentos dotados de relevância social, portanto, merecedores de disciplinamento jurídico.
Desenvolveu-se a jurisprudência dos interesses para atender as constantes necessidades da Hermenêutica Jurídica. Nessa nova corrente interpretativa, o receptor das mensagens jurídicas deveria valer-se da interpretação teleológica ou finalística para compreender os instrumentos legais e, principalmente, compatibilizar os dispositivos aos fins do ordenamento jurídico nos casos em que dúvidas surgissem na operação de subsunção do dispositivo legal ao caso concreto.
Por mais que os fins almejados pelos que desenvolveram esse método de interpretação do direito fossem louváveis, a jurisprudência dos interesses trouxe novos problemas para os que possuíam determinadas situações levadas ao Poder Judiciário. O principal deles é o de insegurança jurídica, uma vez que a interpretação deixou de ser o mero ato de subsumir o dispositivo legal ao fenômeno social, para ser uma análise do caso concreto frente às finalidades do ordenamento jurídico.
Ilustrando o que até agora foi traçado no que concerne ao estudo das jurisprudências, observa-se o quão diferente é o tratamento da elisão tributária nas duas formas de se interpretar o direito. Na jurisprudência dos conceitos, a elisão é sempre permitida, pois o que não esteja contrário ao direito não pode ser considerado ilícito. Essa situação ocasiona inúmeras situações de abuso do direito, em que os particulares se valem de complexos e despropositados mecanismos jurídicos com o único objetivo de se evadir da tributação. Na jurisprudência dos interesses, surge a denominada interpretação econômica, que permite ao aplicador do direito desconsiderar o respaldo legal de determinadas atividades, para fins de tributação, uma vez que o comportamento do indivíduo não se coaduna aos objetivos do ordenamento jurídico. Vale destacar que a conclusão pela ilicitude do comportamento do contribuinte decorre da interpretação feita pela autoridade administrativa que tem a função pública de arrecadar tributos, no caso, o auditor fiscal. A elisão, desse modo, passa a ser reiteradamente considerada ilícita.
Percebe-se que as duas situações são extremas. Como a virtude se apresenta, na maioria das vezes, na mediania[14], buscou-se nos pontos positivos de cada método interpretativo uma maneira de se interpretar o direito de modo a compatibilizar os interesses públicos e os privados. Surge, dessa forma, a jurisprudência dos valores, que demanda a utilização de vários métodos de interpretação, de acordo com os valores envolvidos no caso concreto e ínsitos à norma[15].
Na jurisprudência de valores, a elisão tributária é permitida, desde que não haja abuso. Manifestação dessa forma de se interpretar o direito foi o surgimento da doutrina do propósito mercantil (business purpouse), em que se caracteriza a elisão abusiva nos casos em que o contribuinte se afaste dos propósitos mercantis de sua atividade empresarial com o único objetivo de obter benefícios na área fiscal[16]. Por meio da jurisprudência dos valores, pautam-se as atividades dos contribuintes e do fisco em um mínimo segurança, eticidade, liberdade e justiça.
Sendo a Ciência Jurídica um Sistema Lingüístico que tem o objetivo de viabilizar comunicação e construção de sentidos, a interpretação do direito também pode ser analisada enquanto processo comunicacional. Dessa forma, apresenta-se como fundamental a observância dos três planos da Semiótica[17] na interpretação das mensagens prescritivas modalizadoras do comportamento humano, para que as mensagens jurídicas enviadas pelo sistema Jurídico possam resultar na construção de sentidos pelos receptores, os operadores do direito.
O primeiro dos planos é a Sintaxe que é o estudo dos signos ou símbolos lingüísticos e das inter-relações estabelecidas entre eles. No sistema jurídico, observa-se a função sintática, por exemplo, nas relações existentes entre uma regra jurídica genérica e outra específica, posteriormente editada, que trata de algumas situações antes disciplinadas pelo comando legislativo genérico. Com o advento de mensagem prescritiva específica, aquela deixa de produzir efeitos nos casos por esta albergada.
O plano semântico, por sua vez, consiste no estudo das relações estabelecidas entre o signo e o(s) significado(s) produzido(s). A semântica jurídica é a responsável por estabelecer a relação entre linguagem normativa e o comportamento humano que se deseja modalizar. A conduta será proibida, permitida ou tolerada numa determinada sociedade em função do teor das mensagens prescritivas, vertidas em linguagem, enviadas pelo direito positivo.
Por último, o plano pragmático da linguagem desempenha a função de analisar a influência comportamental exercida pelas mensagens nos receptores. O objeto da pragmática jurídica é a motivação exercida na conduta dos indivíduos de uma determinada comunidade através das mensagens prescritivas coadunadas aos valores do sistema jurídico.
A interpretação das mensagens prescritivas enviadas pelo sistema jurídico, como se observou, deve percorrer os planos da Semiótica para que seja atribuída significação ao produto legislativo[18].
Assentadas essa premissas, adentra-se no procedimento da interpretação/aplicação do direito.
1.2.2. A interpretação/aplicação do direito
No Direito, o disciplinamento jurídico de eventos e situações ocorre quando eles apresentam relevância social, seja por ofenderem bens reputados fundamentais para a sociedade, ou para resguardar finalidades e valores próprios do Estado e dos indivíduos. Através dos dispositivos legais emitidos pelo Poder Legislativo ou por meio dos precedentes jurisdicionais regra-se o comportamento humano.
Como o Sistema Jurídico Brasileiro é baseado principalmente em leis, o ordenamento nacional apresenta problemas de hermenêutica jurídica próprios dos países que adotam a codificação do direito, tais como a dificuldade de subsunção de dispositivos legais ao caso concreto, a multiplicidade de significações de termos e expressões presentes nos textos normativos e a insegurança jurídica decorrente, assim como a superveniente incompatibilidade da lei com a situação social que ensejou a produção do dispositivo normativo, em virtude das mutações próprias do complexo sistema que é a sociedade.
Esses problemas, entretanto, decorrem da concepção meramente declaratória dada ao fenômeno interpretativo, ainda concebido por alguns como o ato de subsumir o texto legal ao caso concreto. A potencialidade da interpretação para o Sistema Jurídico, por sua vez, é muito maior.
A imprecisão dos vocábulos presentes nos enunciados normativos, assim como a pluralidade de regras aparentemente aplicáveis ao caso concreto não são os únicos motivos que ensejam a interpretação do direito. A interpretação do direito apresenta caráter constitutivo de norma jurídica, o que significa que o resultado do trabalho do intérprete é a criação de norma regente do caso concreto[19].
Com o escopo de compreender os dispositivos legais disciplinadores e aplicar o direito, o jurista deve realizar a interpretação dos textos modalizadores de conduta e, concomitantemente, dos fatos sociais que se apresentam como disciplináveis pelos veículos normativos analisados. As normas estão potencialmente albergadas nos textos normativos, cabendo ao aplicador do direito a descoberta ou construção das mesmas[20].
A interpretação dos fatos é fundamental no trabalho do intérprete, uma vez que a evolução constante das inter-relações pessoais e da relação existente entre cidadão e Estado exige uma avaliação do caso concreto para que se possa concluir pela aplicabilidade ou não das normas disciplinadoras. A função social da propriedade, por exemplo, está prevista no art. 5º, XXIII da Constituição Federal de 88 e, assim como os demais dispositivos constitucionais, deve ser objeto de interpretação.
A noção do que vem a ser “função social” dependerá não apenas das pré-concepções políticas e filosóficas do aplicador do direito. Resultará, fundamentalmente, do contexto histórico e social no qual o problema relacionado à determinada propriedade esteja inserto. A função social da propriedade atual não é a mesma da época em que foi erigida constitucionalmente, assim como a noção de função social de determinada porção de terra localizada no Acre não é a mesma de um terreno localizável em Natal. O operador do direito deve ser sensível às nuances contextuais para que a norma a ser aplicada seja a mais harmônica possível, consoante o texto constitucional e o caso concreto.
A expressão “interpretação/aplicação” do direito confere o dinamismo necessário para a resolução de problemas sociais que necessitem de disciplinamento jurídico. Interpretam-se os textos normativos e os fatos para que o direito seja aplicado ao caso que se apresente. O fenômeno é um só: ao se interpretar, aplica-se o direito, daí a construção do termo “interpretação/aplicação” do direito[21]. O resultado do trabalho do intérprete é a constituição da norma de decisão que irá disciplinar o caso concreto.
Analisando a interpretação/aplicação do direito como procedimento comunicacional, constata-se que as normas são os sentidos jurídicos construídos pelos receptores das mensagens legislativas, no caso, os intérpretes. Como a comunicação é processo cíclico estabelecido entre receptor e emissor das mensagens, ao término da concretização da norma, mensagem do receptor será enviada ao sistema jurídico. É nesse momento que sobreleva a importância da Constituição para a ordem jurídica brasileira.
Se a mensagem proveniente da norma jurídica construída se coadunar ao sistema jurídico constitucional, será reputada como válida. Caso contrário, ou seja, se a norma concretizada pelo intérprete contrariar a Constituição, que é, ao mesmo tempo, estrutura do sistema jurídico brasileiro e texto veiculador de mensagens normativas de elevado grau hierárquico, a norma será inválida e deverá ser afastada.
A Constituição Federal, portanto, apresenta-se como parâmetro para o intérprete jurídico. A interpretação válida no direito brasileiro é aquela realizada consoante os preceitos constitucionais, que atende as necessidades do caso concreto, efetiva direitos e garantias fundamentais, e concretiza os objetivos sociais presentes no texto constitucional. Em virtude disso, não há que se falar em interpretação extensiva ou restritiva de textos normativos, eis que ambas estarão erradas. A interpretação deve ser constitucional para ser válida.
A interpretação constitucional impõe ao operador do direito a consideração de todo o sistema jurídico quando no seu trabalho. O texto normativo presente em decretos, leis e até mesmo em excertos da Constituição não se interpreta fragmentariamente[22]. A análise isolada de dispositivos legais não configura interpretação jurídica, eis que contraria a essência dinâmica e interdependente da relação estabelecida entre o sistema jurídico e as mensagens jurídicas (normas) decorrentes da interpretação/aplicação do direito, processo comunicacional gerador de sentidos de caráter jurídico.
1.2.3. Regras, princípios e a concretização do direito
Norma é o sentido jurídico adequado que o intérprete constrói quando analisa os dispositivos normativos que se apresentam como hábeis a disciplinar um caso concreto. Daí a necessária conclusão de que o ordenamento jurídico é o resultado das interpretações dadas aos textos normativos[23].
Sendo o ordenamento jurídico resultado das interpretações realizadas, apresenta-se evidente a distinção entre texto normativo e norma. O ordenamento não é o conjunto dos dispositivos ou enunciados legais, mas das normas que podem ser construídas a partir desses instrumentos veiculadores de mensagens jurídicas[24]. Texto de norma é apenas um dos parâmetros que devem ser utilizados para se encontrar a norma.
Analisando determinadas características presentes nas normas, a doutrina realizou a classificação das mesmas com o intuito de auxiliar a compreensão do direito e identificar as funções de cada uma das espécies normativas no sistema jurídico. Variadas são as concepções, sendo a adotada no presente trabalho a distinção existente entre regras e princípios jurídicos.
As regras são normas que apresentam como principal característica a descrição de condutas, ainda que indiretamente – como é o caso das regras disciplinadoras do processo legislativo, que não modalizam explicitamente o agir humano, mas regulam ou complementam a produção de regras proibitivas, permissivas ou obrigatórias.
No que concerne à aplicabilidade ao caso concreto, as regras preveem comportamentos para que o aplicador possa decidir acerca da consonância de determinada conduta com o sistema jurídico. Nas regras há uma elevada pretensão de decidibilidade, uma vez que a correspondência entre a descrição normativa das condutas e os fatos sociais enseja a aplicação da regra jurídica presente no dispositivo legal. O objetivo precípuo das regras é disciplinar condutas, sempre com atenção aos princípios e aos fins que lhes dão suporte.
Os princípios são normas finalísticas que objetivam a promoção de um estado ideal de coisas[25]. Essa situação social desejada somente pode ser alcançada com a adoção, pela sociedade, de determinados comportamentos. Com o escopo de inserir socialmente modos de agir necessários à promoção desse estado ideal, textos normativos veiculadores de condutas são editados e utilizados na tomada de decisões pelos destinatários das mensagens jurídicas. As regras jurídicas, normas imediatamente modalizadoras do agir humano, portanto, decorrem dos princípios.
Quanto à aplicação, os princípios atuam complementando as decisões jurídicas. Como não pretendem gerar uma solução específica para os casos concretos – pretensão essa das regras – os princípios auxiliam o aplicador do direito quando convocado para decidir.
Por possuírem campos de atuação diferentes na elaboração da norma de decisão e por serem as regras normas que objetivam concretizar os valores e finalidades dos princípios, não há antinomia entre esses dois tipos de normas.
Do trabalho do intérprete resulta a norma de decisão que irá disciplinar o caso concreto oferecido à análise. Do abstrato disciplinamento jurídico previsto nos enunciados normativos, dos quais podem decorrer tanto regras como princípios, o direito concretizar-se-á na interpretação dada pelo jurista. A norma de decisão é a concreção do direito – de todo o direito[26], necessária à solução do problema social que reclame disciplinamento jurídico.
1.3. O sistema (autopoiético) jurídico e a interpretação/aplicação do direito frente às necessidades econômicas e sociais
Assentadas as premissas de que o estudo científico do direito analisa o ordenamento jurídico como um sistema que deve ser dinâmico e complexo para ser eficiente no seu objetivo de regrar o comportamento dos indivíduos, adentra-se na crucial importância da interpretação/aplicação do direito na constituição de um sistema jurídico autopoiético.
No processo comunicacional que se estabelece entre o sistema jurídico e o ambiente – composto de outros sistemas como o político e o econômico, a interpretação/aplicação do direito é a etapa realizada pelos receptores das mensagens jurídicas na qual ocorre a construção de sentidos dotados de relevância jurídica.
Essa relação comunicacional que se estabelece entre sistema jurídico e sistema social é cíclica: o sistema jurídico envia mensagens prescritivas de conduta humana aos demais sistemas sociais, recebendo, em seguida, novas informações dos subsistemas. O teor das respostas emitidas pelo ambiente revelará o efeito provocado pelas mensagens jurídicas: se as mensagens veiculadas nos dispositivos normativos estiverem sendo harmonicamente assimiladas, a resposta enviada pelo ambiente social estará de acordo com os objetivos do sistema jurídico e não ensejará mudanças no ordenamento.
Situação diversa ocorre quando a mensagem modalizadora de comportamento não esteja sendo cumprida ou surtindo qualquer efeito social. O sistema jurídico, a par dessas mensagens, encontrar-se-á num trilema: 1) poderá reforçar as mensagens, seja emitindo novas mensagens com mesmo teor semântico ou recrudescendo a pena pela não observância das informações emitidas; 2) poderá assimilar essa mensagem contrária, enviada pelo ambiente, o que acarretará na retirada da norma do sistema jurídico que não mais apresenta respaldo social; 3) ou ruir, frente à impossibilidade de se adaptar à evolução social, a qual tenha atingido a sociedade, o que ensejará a formulação de novo sistema jurídico.
De uma forma ou de outra, percebe-se que o sistema jurídico deve estar em constante processo comunicativo. Essa troca de informações entre os sistemas só é possível quando exista no sistema emissor de mensagens modalizadoras de comportamento abertura cognitiva, mecanismo que viabiliza a comunicação entre sistema e ambiente.
Quando o sistema se fecha, a comunicação deixa de ser plena, cíclica e, dessa forma, eficaz. Somente num sistema aberto cognitivamente e fechado operacionalmente pode ocorrer adaptação do sistema jurídico às necessidades sociais que reclamem regramento[27].
A operabilidade interna e autônoma do sistema jurídico dotado de abertura comunicativa requer determinados instrumentos que promovam a sua independência funcional frente aos demais sistemas e ambiente. Esses mecanismos responsáveis por conferir identidade e auto-organização aos sistemas jurídicos são encontrados nos estudos realizados a respeito dos sistemas autopoiéticos.
Sistema autopoiético pode ser definido como aquele capaz de se auto-gerar e auto-organizar, estando em constante busca de homoestase, equilíbrio entre os elementos que compõem o sistema. A entropia, ou seja, a desorganização interna gerada pela abertura cognitiva dos sistemas autopoiéticos, é a mola propulsora de constante renovação do sistema.
A autopoiese nos sistemas jurídicos reclama a existência de três características fundamentais: a auto-regulação, a auto-geração e a auto-referenciabilidade.
A auto-regulação e auto-geração já foram tratadas no estudo dos sistemas dinâmicos e complexos. Relembrando, a auto-regulação consiste na propriedade que o sistema jurídico tem de, através dos mecanismos de feedback, alcançar o equilíbrio desejado, em virtude de entropia que exista. A auto-geração é a capacidade do sistema de gerar novos elementos, em virtude das mensagens enviadas pelo ambiente e por outros sistemas.
A auto-referenciabilidade, portanto, apresenta-se como a fulcral característica dos sistemas autopoiéticos, sendo pressuposto da auto-produção. Pode a auto-referenciabilidade ser definida como a propriedade que o sistema comunicacional tem de reproduzir novos atos comunicativos em função dos comandos emitidos pela estrutura, pelo sistema e, principalmente, por elementos que apresentam como conteúdo a produção de outros elementos.
No sistema jurídico constitucional brasileiro, a auto-referenciabilidade apresenta-se mediatamente nos princípios coordenadores do todo sistêmico a fins e objetivos determinados na Constituição Federal de 1988 e imediatamente nas regras de estrutura previstas no texto constitucional, que se caracterizam por atribuir efeitos a outras regras e por estabelecer condições e procedimentos para a produção de novas fontes normativas[28].
A auto-referenciabilidade dos princípios se faz presente com a produção de elementos normativos coadunados ao estado ideal de coisas guardado pelo sistema jurídico e por princípios como os da segurança jurídica, devido processo legal e certeza. Norma que não possua suporte principiológico, seja porque o princípio no qual foi inspirada não mais pertence ao sistema jurídico, seja porque o elemento normativo contraria princípios reputados como fundamentais pela sociedade num dado momento histórico, deve ser afastada.
As regras de estrutura – também denominadas constitutivas[29] – são as principais responsáveis por desempenhar a auto-referenciabilidade no plano sintático do sistema jurídico. Objetivam as regras de estrutura conferir uma coerência nas relações que se formam entre as normas de um ordenamento jurídico. São exemplos de regras de estrutura as que disciplinam o processo legislativo e atribuem competência tributária: as primeiras fixam os parâmetros para a elaboração dos dispositivos normativos, as segundas delimitam o poder tributário[30].
No entanto, será na interpretação/aplicação do direito que a auto-referenciabilidade dos princípios e das regras sobrelevará a importância do aplicador do direito, destinatário das mensagens jurídicas e das mensagens do ambiente social, na renovação do sistema jurídico. O intérprete será o responsável pela construção de novas normas de decisão, muitas vezes com base nos mesmos dispositivos normativos, frente às necessidades políticas, econômicas e sociais. Em virtude do papel desempenhado pela Constituição Federal de 1988, toda norma construída pelo aplicador do direito, adequada ao disciplinamento do caso concreto, deverá ser realizada em consonância com os objetivos e fins previstos no texto constitucional.
As considerações doutrinárias e jurisprudenciais erigidas a respeito de determinados dispositivos constitucionais ou acerca de determinados temas presentes no texto constitucional foram feitas em um determinado momento histórico, consoante as circunstâncias sociais. As mutações sócio-econômicas implicam em envio de novas mensagens ao sistema jurídico, que deverá enviar mensagens regradoras dos novos eventos sociais. Caberá ao intérprete, com base nos dispositivos constitucionais e legais que disponha, concretizar o direito através da construção da norma de decisão adequada ao caso concreto.
No sistema constitucional brasileiro, os dispositivos legais e constitucionais são os parâmetros iniciais do intérprete. A edição de novas leis e emendas à Constituição é o meio democrático e legítimo para a elaboração de novas fontes normativas, mais específicas e condizentes com a situação evolutiva na qual se encontre a sociedade.
Todavia, a edição de dispositivos legais e emendas ao texto constitucional, quando necessárias, demanda considerável lapso temporal, o que, em muitas situações, não pode ser suportado pela sociedade. A construção normativa adequada, nessa situação, resultará da interpretação/aplicação do direito, realizado com as mesmas fontes normativas, coadunadas às necessidades sociais, em atenção aos objetivos do sistema constitucional brasileiro.
A interpretação jurídica adequada é aquela que tende a alcançar a homoestase no sistema jurídico. Interpretação que causa somente entropia não se coaduna ao sistema, pelo menos ao sistema posto. O que determinará a classificação de uma atividade interpretativa em entrópica ou não será a análise do caso concreto, frente aos objetivos, fins e valores presentes na Constituição.
2. Imunidades Tributárias no sistema jurídico brasileiro.
As imunidades tributárias apresentam-se como normas constitucionais que delimitam o poder de tributar. Ao estabelecerem os contornos das competências tributárias, as imunidades impõem situações de intributabilidade que inviabilizam a cobrança de tributos em determinadas hipóteses.
Como de um dispositivo da Constituição podem decorrer regras e princípios[31], uma lei que tenha o escopo de impor gravames fiscais às hipóteses abarcadas por imunidades tributárias não só é inconstitucional, como pode atentar simultaneamente contra direitos fundamentais e princípios jurídicos. Exemplo disso é a promulgação de lei que objetivasse a cobrança de Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) sobre a produção de livros. Essa lei não só contrariaria o art. 150, VI, “d” e § 4º da CF, como ofenderia os direitos fundamentais a livre manifestação de pensamento e acesso a informação, previstos no art. 5º, IV e XIV, da CF/88.
O juiz, aplicador do direito aos casos levados ao Poder Judiciário, conta com vasto acervo doutrinário e jurisprudencial para rechaçar tentativas estatais de se tributar as situações protegidas por imunidades tributárias. Entretanto, a não efetivação dos objetivos constitucionais que alicerçam determinada hipótese de imunidade nem sempre aparecem de forma explícita para os julgadores. A edição de leis tributárias inconstitucionais, como é o caso acima visto, é apenas um dos variados meios de se contrariar a Carta de 1988.
Os valores prestigiados pela Constituição Brasileira devem ser efetivados, cabendo aos intérpretes a função de viabilizar a adaptabilidade do sistema jurídico aos valores e objetivos sociais fundantes da atual ordem constitucional.
Os anseios sociais são diversos e devem ser atendidos na medida do que se apresente como razoável. Para tanto e com base na premissa fundada no capítulo 2 de que o sistema jurídico deve evoluir com o objetivo de melhor enviar mensagens normativas compatíveis com os objetivos do próprio ordenamento e com as necessidades sociais e econômicas, apresenta-se fundamental o estudo das imunidades tributárias, seus campos de atuação no ordenamento jurídico e a análise da potencialidade das normas imunizantes como instrumentos de que podem se valer os operadores do direito para realizar as finalidades estatais e sociais constitucionalmente respaldadas.
2.1 Evolução histórica das imunidades tributárias
Desde o surgimento do dever de entregar valores à título de tributo para o Estado são constatadas situações de desoneração tributária. Inicialmente esses privilégios eram gozados por poucos e quase sempre as desonerações fiscais estavam desprovidas de justificação, que não fosse a concentração de poder nas mãos dos que estabelecem os tributos.
Com o desenvolvimento da sociedade, foi-se percebendo que determinadas atividades ou pessoas não tinham possibilidade de contribuir para as despesas do Estado, seja pela ausência de capacidade contributiva, seja pela ilogicidade em se tributar. No Império Romano, por exemplo, havia o instituto da immunitas, que impedia a tributação de templos religiosos e bens públicos. Já na Índia, havia previsão no Código de Manu de intributabilidade de pessoas portadoras de enfermidades ou limitações físicas[32].
No específico caso do Brasil, os tributos e as relações jurídicas que deles decorrem estão presentes na história do país desde o seu descobrimento. A primeira relação jurídico-tributária envolvendo terras brasileiras ocorreu entre Fernando de Noronha e o rei Manuel I. Aquele teria o direito de explorar as terras da capitânia da Ilha de São João, hoje Ilha de Fernando de Noronha, e o dever de pagar à Coroa Portuguesa os tributos do quarto e do dízimo que incidiam sobre os rendimentos anuais[33].
No que atine à evolução das imunidades tributárias no sistema jurídico brasileiro, constata-se que na fase do Governo-Geral, mais precisamente, em 18 de março de 1578, foi celebrada uma Concórdia, modalidade de avença realizável entre Igreja Católica e Estado, no caso, o Reino de Portugal, que, dentre outras garantias conferidas à Igreja, vedava a inspeção alfandegária sobre suas rendas[34]. Esse acordo estendia-se sobre todo o reino português e, conseqüentemente, sobre a colônia brasileira. Estava nessa Concordata a primeira das manifestações do que se consolidaria como Imunidade Tributária dos Templos.
A proclamação da independência do Brasil, em 1822, culminou com a edição da primeira Constituição pátria, a Carta de 1824. Na primeira Constituição brasileira encontram-se positivadas poucas situações de intributabilidade, todas baseadas no que se denomina atualmente imunidade do mínimo existencial: não se realiza a tributação quando inexiste capacidade contributiva e se percebe que a tributação nesses casos apresentaria evidente contorno confiscatório e desumano[35]. Estavam livres de tributação os socorros públicos e a instrução primária gratuita.
Ainda sem um ordenamento jurídico tributário coeso, foi promulgada a Constituição Republicana de 1891, a qual trouxe avanços para o direito tributário nacional, como a discriminação de competências tributárias, a vedação do embaraço aos cultos pela tributação e a previsão da imunidade recíproca entre Estados e União (art. 10). A existência no texto constitucional da imunidade recíproca demonstra uma forte influência jurídica norte-americana sobre formação acadêmica do principal redator da Constituição, o jurisconsulto baiano Rui Barbosa, uma vez essa norma imunizante surgiu nos Estados Unidos da America[36].
Nessa esteira evolutiva, a Constituição de 1934 manteve os casos de imunidades tributárias previstos na Constituição anterior e inovou ao incluir expressamente os Municípios na imunidade recíproca. A Carta de 1934 instituiu também a imunidade tributária em relação a impostos que onerassem a profissão de escritor, jornalista e professor.
A Carta de 1937 foi a mais modesta na temática das imunidades, tendo positivado inicialmente apenas a imunidade dos templos. A imunidade recíproca somente foi erigida ao texto da Constituição de 37 com Emenda Constitucional nº 09 de 1945.
Já a Constituição de 1946 veio reafirmar avanços anteriores ocorridos, trazendo em seu texto diversas imunidades fundadas em direitos fundamentais. Pode-se afirmar que a base das imunidades tributárias previstas na Constituição de 1988 são baseadas no que ficou estabelecido na Carta de 46, principalmente após a edição da Emenda Constitucional nº. 18 de 1965.
Inovações pontuais foram realizadas pela Constituição de 1967 e pela EC nº. 01/69, tendo sido mantidas as principais linhas da reforma tributária levada a efeito pela EC nº. 18/65, juntamente com a Lei nº. 5.172/66 (Código Tributário Nacional), que ganhou o status de Lei Complementar através do Ato Complementar nº 36, de 1967.
A Constituição de 1988, por sua vez, trata, no capítulo intitulado “Do Sistema Tributário Nacional”, dos mais importantes princípios e regras aplicáveis aos fenômenos tributários do ordenamento jurídico brasileiro. Dentre os principais institutos do direito tributário, destacam-se, para o presente estudo, as Imunidades Tributárias.
2.2 Contornos caracterizadores das Imunidades Tributárias
O instituto da imunidade tributária apresenta contornos que o torna típico do direito tributário brasileiro. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos e na Argentina, em que este tipo de impossibilidade de tributação decorre dos entendimentos jurisprudenciais das cortes constitucionais de cada um desses países[37], as imunidades tributárias estão positivadas na Constituição Brasileira. Interessante observar que a existência de imunidade tributária não depende da previsão expressa de um dispositivo constitucional. A imunidade recíproca, por exemplo, embora prevista no art. 150, VI, “a” da Constituição Federal, deriva necessariamente do princípio do federalismo. Mesmo que o constituinte originário não tivesse o cuidado de explicitar no texto constitucional a impossibilidade de tributação entre os entes que compõem o Estado Federal Brasileiro, a imunidade recíproca existiria[38].
A previsão constitucional das normas imunizantes confere às mesmas uma de suas principais características, qual seja, a de serem regras que estabelecem os contornos da competência tributária. As normas imunizantes, assim como os princípios jurídicos tributários, atuam reduzindo a amplitude das normas atributivas de poder. Da conjugação de normas negativas e atributivas do Poder de Tributar, surgem as competências tributárias.
Ainda em relação à forma de atuação das imunidades tributárias no desenho das constitucionais competências tributárias, apresenta-se fundamental para a plena compreensão do instituto em análise a atenção ao “princípio da simultaneidade da dinâmica normativa”. Esse princípio – desenvolvido inicialmente para a explicação da fenomenologia do instituto da isenção tributária – traz a idéia de que as normas e princípios que limitam o poder tributário atuam simultaneamente com as normas atributivas. Em outras palavras, não ocorre uma sucessão dos efeitos atributivo e restritivo do poder tributário na criação de tributos: a possibilidade de criá-los decorre da conjugação das normas antagônicas[39].
Peculiaridades das imunidades tributárias se evidenciam quando se analisa as inter-relações estabelecidas entre as normas que conferem ao Estado o poder de tributar e as normas imunizantes. A primeira constatável é a endogenia, pois as imunidades tributárias atuam dentro do potencial alcance das normas atributivas do Poder de tributar.
Como são endógenas, as normas imunizantes não tem sentido se consideradas sozinhas, constituindo verdadeiro non sense[40]. A segunda característica das imunidades tributárias, portanto, é que elas partem do pressuposto da existência de uma norma atributiva de poder de tributar.
O terceiro aspecto decorre do primeiro e se refere à redução sempre parcial do plano normativo das normas que atribuem ao Estado o poder de tributar – se fossem reduções totais, as imunidades eliminariam a possibilidade de se instituir tributos.
2.2.1. Distinções necessárias
O constituinte, em inúmeros dispositivos, tratou de imunidades tributárias utilizando o termo isenção[41]. Esses institutos, conquanto apresentem semelhanças[42], não se confundem e a atecnia empregada no texto constitucional não pode acarretar em prejuízos àqueles que se enquadram numa situação albergada por uma determinada imunidade tributária.
As imunidades e isenções tributárias, embora regras de intributabilidade, são institutos diversos. As normas imunizantes definem constitucionalmente as competências tributárias e quando baseadas em direitos fundamentais não podem ser objeto de emendas à Constituição (somente com um novo Poder Constituinte Originário poderiam ser retiradas da ordem jurídica).
As imunidades tributárias configuram direitos fundamentais quando garantem princípios, valores e objetivos sociais reputados como necessários para o desenvolvimento harmônico da sociedade brasileira. O exercício das liberdades política, sindical, religiosa e de pensamento, por exemplo, não pode ser obstado pela tributação por força das imunidades tributárias previstas no art. 150 da CF. Essas normas imunizantes situam-se dentre os direitos fundamentais de primeira geração, de aplicabilidade direta e imediata, pois veiculam vedações ao Estado ao núcleo de liberdades titularizado pelos indivíduos.
As isenções tributárias, entretanto, atendem a políticas fiscais dos entes tributantes, pois estão relacionadas ao exercício da competência tributária. As isenções existem dentro do campo tributável conferido pelas normas imunizantes, podendo ser revogadas ou ampliadas por meio de lei. Com a revogação de uma isenção fiscal, o exercício da competência tributária restabelece-se e as hipóteses tratadas na lei revogada passam a ser regradas pela que institui o tributo. Conjecturável semelhança, ante o exposto, apresenta-se como decorrente de um estudo perfunctório do direito tributário.
Outra confusão terminológica que costuma ocorrer entre imunidade tributária e os casos incompetência ou não-competência tributária. A Constituição Federal de 1988 definiu quais tributos podem ser cobrados por cada um dos entes políticos que o integra. Em nenhum dispositivo constitucional foi atribuída a mais de um ente federativo a competência para criar o mesmo imposto.
Com a definição constitucional dos arquétipos tributários e a atribuição dos tipos de tributos a cada um dos entes que compõem o Estado brasileiro, conclui-se que a impossibilidade de uma unidade federativa criar e exigir imposto próprio de outra não decorre de uma vedação imposta por imunidade tributária, mas sim da não atribuição de competência tributária a mais de uma entidade federativa.
Exemplo de incompetência tributária é a impossibilidade de Município cobrar o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. Aos Municípios não foi conferido o poder originário para exigir os tributos decorrentes da concretização dos fatos-geradores típicos do IPVA. Equivocado, portanto, afirmar que os cidadãos estão imunes ao IPVA cobrável pelo Município, pois este não tem competência tributária para instituir esse imposto.
Finalmente, deve-se distinguir imunidades tributárias de princípios jurídicos tributários. Com base na prévia distinção realizada entre os tipos de normas e suas principais características (vide subitem 2.2.3), alocam-se as normas imunizantes no grupo das regras jurídicas e não no grupo dos princípios jurídicos, como alguns respeitáveis juristas podem entender[43]. As imunidades tributárias aplicam-se a situações específicas, delimitadas pelo constituinte, tendo, portanto, clara vocação para decidir os casos levados ao Poder Judiciário. As imunidades, embora destinadas imediatamente aos legisladores e aplicadores do direito, modalizam indiretamente condutas, na medida em que, ao preverem situações de intributabilidade, determinam a não tributação de comportamentos que ensejariam imposições fiscais.
A alocação das imunidades tributárias no segmento das regras jurídicas, não deve extremar as normas imunizantes dos princípios jurídicos. Ao contrário, os aplicadores do direito deverão aplicar as regras sempre tendo em mente que elas foram produzidas com o objetivo de se alcançar uma situação ideal, uma finalidade. Da análise das imunidades tributárias da ordem constitucional brasileira é possível identificar que as mesmas estão baseadas em princípios jurídicos. Exemplo disso é imunidade recíproca, decorrente da existência e aplicação dos princípios do federalismo e da capacidade contributiva.
Sem importar em confusão ontológica entre imunidades tributárias e princípios, evidencia a aproximação desses dois institutos a dupla função que exercem no desenho das competências tributárias: ao mesmo tempo em que estabelecem os limites às exações fiscais, delimitam os contornos do que é possível tributar, conferindo legitimação ao poder de tributar[44]
2.2.2. Classificação doutrinária das imunidades: análise e crítica.
Com o escopo de melhor orientar os estudos sobre as imunidades tributárias, a doutrina pátria realiza algumas classificações desse instituto. Cumpre destacar, desde logo, que as classificações não são unânimes, atendo-se alguns doutrinadores a determinados pontos que são negligenciados por outros.
A falta de homogeneidade poderia fragilizar o rigor científico necessário na ciência jurídica. No entanto, deve-se ter em mente que as classificações têm claro fim didático, pois servem para auxiliar na compreensão do instituto das imunidades tributárias por aqueles que estudam o Direito Tributário. A classificação das imunidades tributárias, portanto, variará conforme a análise e os pontos relevantes que um doutrinador entender pertinente à determinada classificação. Abordar-se-á neste trabalho as classificações mais comuns.
1. – As imunidades tributárias, quanto à abrangência, podem ser específicas ou genéricas[45]. As normas imunizantes gerais estão previstas no art. 150, VI da Constituição Federal e inviabilizam a cobrança de qualquer tipo de imposto que recaia sobre o patrimônio, renda ou serviços dos entes previstos nesse dispositivo constitucional, como é o caso das entidades sindicais de trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, desde que sejam atendidas as exigências legais.
As imunidades tributárias específicas, entretanto, destinam-se a um tipo de tributo e, conseqüentemente, limitam o poder tributário de apenas um dos entes federativos. Exemplo de imunidade específica é a impossibilidade de se cobrar Imposto sobre a Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis (ITBI) em relação aos direitos reais de garantia, por força do art. 156, II da CF. Essa norma imunizante atua na definição da competência tributária dos Municípios e inviabiliza a cobrança de ITBI sobre hipoteca, prevista no art. 1.473 do Código Civil.
2. – No que pertine à fruição das imunidades tributárias, são elas classificadas em condicionadas ou incondicionadas[46]. Essa classificação decorre de outra, qual seja, a das normas constitucionais quanto à carga eficacial e aplicabilidade[47]. As imunidades condicionadas caracterizam-se por dependerem do atendimento a exigências legais instrumentais para que o beneficiado goze dos efeitos decorrentes da impossibilidade de tributação, como ocorre com a imunidade dos partidos políticos prevista no art. 150, VI, “c”, da CF. As imunidades condicionadas enquadram-se nas normas constitucionais de eficácia contida, pois se aplicam de imediato aos casos concretos, independentemente da lei prevista constitucionalmente existir ou não. Entender que as imunidades condicionadas alocam-se dentre as normas constitucionais de eficácia limitada implicaria, em alguns casos, na limitação dos direitos fundamentais protegidos por essas normas imunizantes devido à inércia do legislador infraconstitucional. Essa conclusão contrariaria as finalidades que embasaram a elaboração de determinadas limitações constitucionais ao poder de tributar e, portanto, não deve ser aceita.
As imunidades tributárias incondicionadas, normas constitucionais de eficácia plena, operacionalizam seus efeitos imediatamente sendo impossível a limitação de sua carga eficacial por meio de lei ordinária ou complementar, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Para exemplificar, podemos apontar a imunidade tributária recíproca, prevista no art. 150, VI, “a”, como caso de norma imunizante incondicionada.
3. – A classificação das imunidades tributárias em subjetiva e objetiva[48] leva em consideração o fato da regra constitucional de intributabilidade existir em função das características de determinadas pessoas – imunidade subjetiva – ou devido a determinados fatos, bens e situações que o constituinte entendeu por bem proteger do Poder tributário – caso de imunidade objetiva.
Essa classificação, assim como as outras, é meramente doutrinária, não atende às finalidades das normas imunizantes quando seguida peremptoriamente pelos aplicadores do direito. Interessante se revela a observação de Carrazza, que entende que as normas imunizantes, a rigor, são sempre subjetivas, pois beneficiam pessoas, direta ou indiretamente[49]. Caberá aos aplicadores do direito, na analise do caso concreto, a conclusão de ocorrência ou não de imunidade tributária para que os objetivos da norma constitucional se aperfeiçoem no mundo real, independentemente de qualquer classificação doutrinária erguida sem atentar para conseqüências sociais mínimas.
2.3 As Imunidades Tributárias e as Regras de Estrutura e de Comportamento
2.3.1 Regras de Estrutura e Regras de Comportamento
Antes do estudo da classificação das regras em estruturantes ou comportamentais, se faz necessária a realização de alguns comentários acerca da Teoria dos juízos e do estudo dos imperativos. O Direito é uma ciência lógica e da mesma não pode se dissociar sob pena de incoerências e contradições no ordenamento jurídico. O pensamento lógico decorre do estabelecimento de juízos, que, por sua vez, podem ser definidos como relações feitas entre dois ou mais objetos, seja negando ou afirmando algo.
Os juízos apresentam variadas classificações. Os principais para o estudo ora traçado são o juízo hipotético e o juízo categórico. Juízo hipotético é o estabelecido para negar ou afirmar uma relação de implicação feita entre uma condição prévia e uma hipótese. Um exemplo é a assertiva: se você estudar, passará no vestibular. O juízo hipotético (passar no vestibular) depende da concretização da premissa (se você estudar) para que se efetive.
Nos juízos categóricos, no entanto, as afirmações ou negações independem de condição ou alternativa. Tem-se como exemplo a seguinte afirmação: Luíza é bonita. O fato de Luíza ser bonita não necessita de condição prévia para ocorrer. Luíza é bonita porque assim o crossing over determinou.
Trazendo os conceitos lógicos dos juízos para a Filosofia, Immanuel Kant desenvolveu o estudo dos imperativos. Os imperativos são mandamentos e dividem-se em categóricos e hipotéticos[50]. Imperativos categóricos são ordens que prescrevem uma conduta racionalmente necessária por si mesma. Independem os imperativos categóricos de um fim externo, pois apresentam ações exigíveis e fundamentais para a manutenção da sociedade. Imperativos hipotéticos, entretanto, são proposições que guardam um fim alcançável pela realização de uma ação-meio. Os mandamentos hipotéticos assemelham-se a conselhos que o homem deve seguir para atingir um fim[51].
Com base na doutrina dos imperativos de Kant, Karl Engish propôs uma nova abordagem das normas jurídicas. Entende Engish que as regras jurídicas são essencialmente imperativos categóricos, pois exigem de forma incondicional, como é o caso da norma penal que proíbe o homicídio[52]. Não se deve matar porque tal conduta praticada livremente, sem as devidas sanções morais e estatais, impossibilitaria a coexistência dos homens. Atenta o jurista para o fato de que a análise da regra que impõe o dever de não matar não deve ser analisada sob a perspectiva de que se o homem estivesse preparado para passar a vida encarcerado estaria ele livre para escolher entre matar ou não. O dispositivo legal proíbe categoricamente o homicídio porque essa abstenção é um dever para o homem, ser social que é.
As normas jurídicas também são imperativos hipotéticos (prefere Engish a denominação imperativos condicionais), pois estão ligados a pressupostos, expressos ou tácitos[53]. Quer o doutrinador afirmar que um comando jurídico seria aplicável no momento em que uma conduta humana realizasse o suporte fático previsto na regra jurídica, como acontece, por exemplo, na realização “in concreto” do fato gerador de um tributo previsto legalmente.
A classificação das normas jurídicas em regras de estrutura ou regras de comportamento, fundamental para a qualificação das normas imunizantes, encontra alicerce nas análises jusfilosóficas dos imperativos. As regras de comportamento prescrevem condutas modalizáveis em proibidas, permitidas e obrigatórias. Como disciplinam comportamentos humanos, as regras exigem suporte fático para se aperfeiçoarem.
Comparando o conceito de regras de comportamento com o de normas jurídicas como imperativos hipotéticos, percebe-se que essas definições possuem mesmas características: ambas necessitam de suporte fático e a sua realização in concreto para serem aplicadas. Somente com a perpetração (ou abstenção) da conduta prevista em lei, a hipótese legal será aplicável. Conclui-se, portanto, que as regras de comportamento são normas que se apresentam como imperativos hipotéticos.
Regras de estrutura, entretanto, caracterizam-se por estabelecer condições e procedimentos para a produção de outras normas jurídicas, independendo de acontecimentos fáticos para a sua densidade normativa se materializar[54]. São exemplos as regras que disciplinam o processo legislativo. Objetivam as regras de estrutura conferir uma coerência nas relações que se formam entre as normas de um ordenamento jurídico, sejam estas regradoras do comportamento humano ou disciplinadoras das influências recíprocas estabelecidas entre as normas.
Por possuírem como objeto os meios adequados para a elaboração de dispositivos legais, as regras de estrutura prescindem de suporte fático, ou seja, não prevêem uma conduta humana para que a norma seja aplicável. Como não necessitam de uma condição para operar os seus efeitos, as regras de estrutura possuem a essência dos imperativos categóricos.
2.3.2 Imunidade Tributária como Regra de Estrutura e os reflexos decorrentes dessa classificação no sistema jurídico brasileiro
Analisando as imunidades tributárias, percebe-se que elas se enquadram na categoria das regras de estrutura. Ao delimitar constitucionalmente a competência tributária dos entes que compõem a República Federativa do Brasil, as normas imunizantes inviabilizam a criação de leis que tenham o escopo de tributar as situações, pessoas ou objetos albergados nas imunidades tributárias.
Os destinatários imediatos das normas imunizantes não são os indivíduos, pois, como regras de estrutura que são, não modalizam diretamente o comportamento humano. As imunidades tributárias destinam-se ao legislador, responsável pela criação legal dos tributos – dentro do que for permitido constitucionalmente, e ao juiz, que exerce a jurisdição e é o responsável pela interpretação/aplicação do direito e pela formação da norma de decisão que irá disciplinar o caso concreto levado ao Judiciário. Em existindo imunidade não há que se falar em competência tributária e, portanto, inviabilizam-se quaisquer tentativas de tributação.
Destaca-se, desde já, a importância suplementar das imunidades tributárias (imperativos categóricos) na interpretação/aplicação das normas regradoras de conduta, quais sejam, as leis impositivas de tributos (imperativos hipotéticos). O juiz, na análise dos casos levados ao Judiciário, não poderá negligenciar a influência exercida pelos valores e objetivos das normas imunizantes – regras de estrutura – sobre lei que veicule determinada exação fiscal – típica regra de comportamento.
As imunidades tributárias funcionam como regras de estrutura mutiladoras de competência tributária e como vetores interpretativos fundamentais na análise dos casos que envolvam direito tributário levados ao Poder Judiciário. Deverá o aplicador do direito ao analisar lei tributária sempre atentar ao que está resguardado nas regras de estrutura para sanar a transgressão, direta ou oblíqua, e a não efetivação dos preceitos constitucionais que embasaram as imunidades tributárias.
A Carta Magna não se interpreta fragmentariamente[55], sendo fundamental uma análise sistemática do texto constitucional para que se averigúe a possibilidade ou não da tributação. Essa interpretação sistêmica transcende a mera leitura dos arquétipos tributários e a verificação da ocorrência ou não deles no mundo fenomênico, recaindo, necessariamente, na análise das limitações constitucionais ao poder de tributar. Como já mencionado anteriormente, os tributos existem dentro do campo tributável fornecido pela Constituição, sendo os princípios jurídicos tributários e as normas imunizantes os elementos que delineiam as competências tributárias. As leis tributárias, portanto, devem respeitar não somente os mandamentos das regras de estrutura, mas, principalmente, aos objetivos destas, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
As leis tributárias impositivas de tributos derivam do permitido pelas imunidades tributárias. A competência tributária, portanto, pode ser entendida como decorrente dos limites permitidos pelas imunidades. Olvidar dos princípios e valores que inspiraram a elaboração das normas imunizantes implica na não concretização dos fins constitucionais e no distanciamento da situação ideal de coisas guardada por esses princípios constitucionais.
2.4 Conceito de Imunidade Tributária
Com base nos elementos previamente expostos e elegendo as principais características do instituto, define-se imunidade tributária como regra de estrutura de intributabilidade constitucional, que impossibilita a tributação em função de qualidades específicas de pessoas, coisas ou situações, com o objetivo de viabilizar a concretização de direitos fundamentais ou assegurar o alcance de objetivos estatais estratégicos fundados em princípios constitucionais reconhecidos pelo sistema jurídico brasileiro.
3 A Imunidade Tributária dos templos de qualquer culto
As imunidades tributárias previstas nos incisos do art. 150 da Constituição Federal existem no ordenamento brasileiro em função dos valores e objetivos que estão imanentes nesses dispositivos constitucionais. Uma das principais limitações constitucionais ao poder de tributar é a imunidade tributária dos templos de qualquer culto, que protege da tributação todas as possíveis manifestações religiosas e garante a promoção da liberdade de culto, direito fundamental previsto no art. 5º, VI da CF.
Razões para essa proteção tributária não faltam. A hipossuficiência das entidades religiosas é clara, pois, como não objetivam lucros, as rendas auferidas servem para custear suas atividades e, quando possível, implementá-las, o que demonstra clara ausência de capacidade contributiva.
Cumpre destacar que capacidade econômica há, pois se não houvesse, inexistiria razão para previsão de imunidade tributária. Não há que se confundir capacidade de contribuir com a capacidade de gerar riquezas ou auferir valores. A regra de intributabilidade constitucional parte do pressuposto da existência de fatos econômicos, por exemplo, a propriedade de imóvel ou veículo. Como esses bens pertencem à determinada entidade religiosa e estariam sujeitos, em tese, ao IPTU e ao IPVA, fundamental que se observe a existência de imunidade tributária e que se conclua pela intributabilidade dos fatos econômicos mencionados.
Constatando-se interesse lucrativo em entidades religiosas, entretanto, a imunidade tributária deve cessar. Esse objetivo de lucro é visível quando a instituição religiosa destina suas rendas a fins diversos dos essenciais, não mais sendo desenvolvida atividade religiosa, que é o serviço de caráter público que alicerça a ocorrência de imunidade tributária. No caso concreto, levado ao Poder Judiciário, caberá ao juiz analisar a permanência ou não dos efeitos tributários decorrentes da norma imunizante.
Quanto à classificação da norma imunizante em análise, compreende-se a imunidade tributária dos templos como incondicionada, não dependendo de outros expedientes legais para produzir seus efeitos[56]. Essa afirmação, consoante a redação do dispositivo constitucional que prevê a imunidade dos templos, está correta. Isso não significa, entretanto, que a norma imunizante não possui limites. Até o direito à vida, direito fundamental da maior relevância, em casos específicos, poderá ser excepcionado, como ocorre em tempos de guerra declarada, consoante o art. 5º, XLVII, “a” da CF.
Não são inválidas, em virtude dos postulados da proporcionalidade e razoabilidade[57], exigências instrumentais por parte do Estado, que comprovem a regularidade, o caráter público e eminentemente social dessas entidades. O Estado deve saber quais são as entidades que gozarão de imunidade tributária para não cobrar tributo indevido e, principalmente, é sua obrigação ter ciência de quais são as instituições religiosas existentes para impedir que indivíduos torpes se utilizem desse benefício constitucional tributário em interesse próprio. Previsão legal dessas exigências há, no caso, o art. 9º, § 1º do Código Tributário Nacional (CTN).
Exemplos dessas exigências são a inscrição devida como pessoa jurídica de direito privado (consoante o art. 44, IV do Código Civil), a escrituração de suas rendas que atestem a ausência de finalidades lucrativas e, principalmente, a destinação, ou não, das rendas decorrentes de atividades típicas e atípicas à consecução de suas finalidades essenciais. Essas condições exigidas pelo Estado não podem configuram limites ao exercício das liberdades religiosas, sob pena de clara inconstitucionalidade. De fato, essas exigências instrumentais legitimam as instituições que se enquadrem no benefício da imunidade religiosa, pois, com base na escrituração devida, poderão se opor contra inconstitucionais imposições fiscais.
Ao se analisar o art. 14 do CTN, dispositivo legal que elenca algumas condições para determinadas entidades gozarem dos benefícios das normas imunizantes, percebe-se que o objetivo do legislador foi preservar as imunidades tributárias de possíveis distorções que contrariassem os interesses públicos em benefício de alguns particulares. Mesmo que o texto constitucional não faça qualquer menção a lei complementar instituindo requisitos legais para que a imunidade dos templos se aperfeiçoe, como faz nas imunidades das entidades sindicais e dos partidos políticos, defende-se o entendimento de que o art. 14 do CTN é aplicável à imunidade dos templos, porém, não como dispositivo legal que estabelece condições para o gozo da imunidade, mas como regra norteadora do aplicador do direito que, em suspeitando de desvirtuamento dos fins institucionais, tenha mecanismos de investigação.
O intérprete não pode olvidar o fato de que quando não se tributa as entidades protegidas por normas imunizantes, a sociedade arca com essa receita tributária, que se dilui entre os demais contribuintes. Ilustrando o que se afirma, imagine-se que numa rua que esteja sendo saneada e asfaltada há a sede de um partido político. Os recursos que viabilizam as obras estatais têm origem nos impostos (IPTU, IR, ICMS, dentre outros). Mesmo não tendo contribuído financeiramente, em virtude dos efeitos da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “c”, o partido político sediado no imóvel em análise gozará dos benefícios da atuação estatal. Essa repartição coletiva do ônus tributário é legitima, desde que as instituições albergáveis por regra imunizante desenvolvam as atividades e finalidades de caráter público, em benefício da sociedade brasileira, que suporta a carga tributária não recolhida por essas entidades.
Em face ao exposto, deve-se concluir pela possibilidade de tributação da renda das entidades religiosas quando remetidas ao exterior ou investidas em fins impróprios. Como a renda decorrente dos serviços e atividades desenvolvidas pela entidade religiosa não está sendo aplicada em território brasileiro ou destinada a consecução das finalidades essenciais da instituição, o que beneficiaria a sociedade que arca com a carga tributária não recolhida por essas instituições, os benefícios decorrentes da norma imunizante devem cessar.
Essa conclusão é de fundamental importância para o sistema concorrencial brasileiro. No sistema econômico, os agentes econômicos que formam a iniciativa privada se valem de seus recursos financeiros para alcançar seus objetivos lucrativos. E as perspectivas muitas vezes são desafiadoras: os recursos são escassos, a concorrência com empresas transnacionais é difícil e a burocracia tributária é elevada, dentre outros exemplos que ilustram o quão desafiador é atuar no sistema econômico brasileiro.
Além dessas complicações típicas surgem outras que podem inviabilizar a concorrência, como é o caso de instituições que tenham o único objetivo de eliminar a carga tributária de suas atividades e aparentam se enquadrar numa situação de intributabilidade constitucional, como o da imunidade tributária dos templos de qualquer culto.
Esse abuso no enquadramento de imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “b” da Constituição da República pode ocorrer de duas maneiras: a instituição se diz religiosa e não é ou a sociedade é, de fato, religiosa, mas não destina os valores auferidos através de suas atividades às suas finalidades típicas, ao contrário, revertem o obtido para empresas que possuem exclusivo objetivo de lucro como forma de beneficiar os integrantes da instituição religiosa.
Essas situações, se não forem controladas pelo Estado brasileiro, acarretarão em claro falseamento de concorrência. Empresas que estejam legitimamente concorrendo no cenário econômico enfrentarão sociedades que não possuam tributação ou sejam destinatárias de recursos livres de impostos. Essas últimas sociedades poderão manter preço abaixo do praticado do mercado e ainda assim auferir lucro, o que ocorrerá em detrimento de empresas que não se valeram desse tipo de artimanha tributária. Não se trata de planejamento tributário, mas de desvirtuamento dos objetivos constitucionais que embasam a imunidade dos templos.
Pela possibilidade de desvirtuamento da imunidade tributária dos templos é que determinados preconceitos vão se sedimentando na sociedade brasileira. Instituições religiosas sérias são equiparadas a outras que se valem do título de religiosa para escapar da tributação.
A pré-concepção do que consiste imunidade religiosa é percebida em obras jurídicas e até em julgados das cortes brasileiras. A desfavorável situação tributária dos locais de culto, tema a seguir analisado, é reflexo desse preconceito que já se instalou a respeito dos temas que envolvam entidades religiosas, a norma imunizante prevista no art. 150, VI, “c” da Constituição e a liberdade concorrencial.
3.1 A afetação de determinado local a fins religiosos e os efeitos tributários decorrentes
Consoante redação da regra prevista no art. 150, VI, “b” da Constituição Federal, a imunidade tributária é conferida aos “templos de qualquer culto”, o que remete o leitor, imediatamente, à conclusão pela impossibilidade de tributação do IPTU e ITR dos imóveis destinados à realização de cultos, pertencentes ou não a instituições religiosas. Outras situações de intributabilidade, entretanto, derivam desse dispositivo constitucional quando conjugado com o parágrafo 4º do mesmo artigo, que veda a tributação da renda, patrimônio e serviços de entidades religiosas, desde que relacionados com suas finalidades essenciais.
O alcance da imunidade tributária dos templos de qualquer culto, portanto, configura-se amplo, tendo clara vocação para proteger todas as manifestações do exercício da liberdade religiosa dos efeitos deletérios da tributação. Essa tendência protetora, entretanto, não se concretiza plenamente em muitas situações, tendo o princípio da livre concorrência sido utilizado pelo STF como um dos argumentos para se afastar a imunidade dos templos em situações que deveriam ser de intributabilidade.
A norma imunizante, que de imediato teria o escopo de proteger os locais destinados a culto dos impostos prediais, não vem sendo aplicada de forma a impossibilitar a tributação de cemitérios, assim como de entidades religiosas desprovidas de imóveis e que arcam economicamente com o peso do IPTU ou ITR quando locatárias, ainda quando desenvolvem suas atividades nesses locais.
Consoante o atual quadro de entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritários, pouco importa a destinação ou o uso de determinado imóvel para efeitos tributários. Uma igreja que esteja começando suas atividades religiosas e aluga um prédio para celebrar seus cultos arcará com o IPTU da mesma forma que um particular-locatário quando aluga imóvel para estabelecer comércio ou qualquer atividade de cunho privado. O mesmo raciocínio vale para o caso dos cemitérios: uma atividade dotada de elevada carga religiosa e, portanto, protegida constitucionalmente da tributação, é equiparada a qualquer atividade empresarial. Essa situação decorre de alguns fatores que agora serão enfrentados.
Inicialmente, o problema reside na definição do que seria o termo “templo” e o seu respectivo alcance no mundo jurídico, em especial, no campo tributário. Algumas discordâncias ocorrem nesse tema, havendo doutrinadores que entendem que os veículos utilizados pelas instituições religiosas na manifestação de seus pensamentos religiosos estão enquadrados no termo templo[58], enquanto outros defendem que a residência de padres, bispos e demais chefes religiosos são extensões dos templos e, portanto, também imunes[59]. A doutrina é unânime ao menos em um ponto: as propriedades das instituições religiosas onde se realizam os cultos são imunes aos impostos que possam incidir sobre eles. Resta evidenciada, dessa forma, a importância conferida à destinação do prédio ao culto para efeitos de imunidade tributária, sendo o prédio afetado ao fim religioso o mínimo que deve ser protegido da tributação.
A convergência doutrinária, entretanto, considera somente os impostos relativos ao patrimônio das instituições religiosas, não atentando à tributação indireta da renda delas através do IPTU ou ITR embutido em contrato de aluguel. Do mesmo modo ocorre com os cemitérios: quando essa atividade é desenvolvida por particulares, a tributação pelos impostos prediais é indevidamente exigida e posteriormente repassada aos familiares do morto quando do pagamento pelos ritos funerais.
É cediço que os tributos diretos, como o IPTU, podem ser transferidos para terceiro, contribuinte de fato, que arcará com o ônus tributário[60]. Logo, a classificação doutrinária de impostos em diretos e em indiretos, alheia à realidade econômica, não protege as instituições jurídicas religiosas desprovidas de patrimônio próprio.
No Brasil, muito já se debateu, principalmente nas décadas de 60 e 70, sobre a repercussão dos tributos na capacidade econômica dos entes imunes, quando figuram como contribuintes de fato. A controvérsia doutrinária, decorrente da classificação dos tributos em direto e indireto, estava em saber qual a interpretação correta: a interpretação jurídica (encampada por Bilac Pinto, que entendia ser estranha a figura do contribuinte de fato na relação jurídica tributária) ou a interpretação econômica (patrocinada por Aliomar Baleeiro, defensor da importância do contribuinte de fato na interpretação das imunidades tributárias, em especial, da imunidade recíproca)[61]. Em benefício do Fisco, a primeira tese prevaleceu e até hoje é a dominante.
A despeito das interessantes teses supracitadas, a solução do problema posto não decorrerá do embate das interpretações jurídica e econômica e a escolha de uma delas, uma vez que na interpretação/aplicação do direito devem ser levados em consideração não só os efeitos jurídicos, como também os políticos, sociais e econômicos. A interpretação correta é aquela que atende aos fins constitucionais no caso concreto[62].
A necessidade de se considerar quem suporta de fato o ônus tributário torna-se claro ao se considerar as seguintes situações que demonstram a repercussão do IPTU no patrimônio de instituições religiosas ou, em outros casos, no patrimônio dos familiares do de cujus.
Primeira hipótese: Entidade religiosa aluga imóvel para particular. Exemplo clássico, tratado por quase todos os doutrinadores que escrevem sobre a imunidade dos templos, que serve para ilustrar a permanência de imunidade ao IPTU, desde que o produto obtido dos alugueres seja revertido para a consecução das finalidades essenciais da Igreja. Por mais estranho que possa parecer não se vislumbra aqui, no que pertine ao IPTU, verdadeiro benefício da norma imunizante prevista no art. 150, VI, “b” e § 4º da CF para a entidade religiosa. A explicação é simples: o particular ao realizar contrato de locação com instituição beneficiada por regra de intributabilidade sabe que poderá melhor negociar a parcela do aluguel, uma vez que a igreja não paga o imposto que repercute no valor do contrato. O beneficiado, quanto ao IPTU, nesse caso, é o particular, não a Igreja, que, entretanto, será beneficiada no que se refere ao Imposto de Renda (IR), pois não terá que pagar imposto sobre o produto proveniente dos alugueis, obviamente, desde que destine esses valores à consecução de suas finalidades essenciais[63].
Segunda hipótese: entidade religiosa aluga propriedade para outra instituição de fins religiosos. Nessa situação as duas entidades restarão beneficiadas pela imunidade tributária dos templos, a primeira, no que se refere ao IR que incidiria sobre o produto proveniente dos alugueis, e a segunda quanto ao IPTU, que repercute economicamente no valor do aluguel, quando exigível, o que não ocorre no caso.
Terceira hipótese: particular que aluga imóvel para entidade religiosa realizar cultos. Atualmente, o imposto sobre a propriedade continua a ser exigido do particular, o qual, provavelmente, transferi-lo-á ao contribuinte de fato (igreja) incorporado ao valor das mensalidades cobradas. Por mais que se trate de um imposto direto, a tributação indireta da renda da igreja é patente e, conseqüentemente, contrária aos objetivos da norma imunizante prevista no art. 150, VI, “b” da CF.
Quarta hipótese: particular explora terreno como cemitério. E esse é caso emblemático do estudo aqui realizado. Os objetivos constitucionais de intributabilidade das manifestações de religião não são observados na realidade brasileira, tendo em vista que a tributação pelo IPTU e ITR continuarão. A injustiça fiscal se apresenta ainda mais flagrante quando se constata que a tributação imposta ao proprietário ou locatário de imóvel destinado a exploração de cemitério será repassada aos familiares do morto. O Fisco não respeita sequer a última morada do cidadão brasileiro.
Na realidade posta, o não atendimento aos fins constitucionais é tão marcante que ao compararmos a situação aqui trazida com a da primeira hipótese verificaremos que a manifestação religiosa em determinado espaço – atividade de nítido caráter público e social que embasou a proteção constitucional contra a tributação estatal – pouco importa para a inexigibilidade do tributo. No primeiro caso, a instituição religiosa, detentora de mais de uma propriedade – o que já denota razoável caráter econômico e a possibilidade de tributação – aluga imóvel seu para particular, deixando de exercer os objetivos primários a que se destina, qual seja, a de propagar o seu culto. No terceiro exemplo, que é o da igreja que aluga imóvel de particular para celebrar eventos religiosos, a instituição religiosa arca financeiramente com o gravame fiscal do IPTU. Na quarta hipótese a situação jurídico-fiscal é ainda pior: tributa-se local destinado a culto e a carga fiscal é arcada por indivíduos em um dos piores momentos de suas vidas, qual seja, o da perda de um ente familiar.
A não consideração para efeitos tributários da destinação de imóvel afetado a promoção da liberdade religiosa contraria os objetivos constitucionais, conforme interpretação da imunidade dos templos prevista no art. 150, VI, “b”, conjuntamente com o art. 156, § 1º, II da CF. Este dispositivo constitucional informa que o uso do imóvel pode influenciar na alíquota do IPTU a ser fixada. Evidente, portanto, a influência sócio-econômica do uso de imóvel na tributação[64].
Sensível ao problema de instituições religiosas que arcam indiretamente com o IPTU e com base nos fins protegidos pela Constituição Federal, o legislador paulista elaborou a Lei 13.250/01 concedendo isenção para os imóveis que forem alugados a entidades religiosas e que sejam utilizados como locais para a promoção de culto religioso. Trata-se aqui de isenção que decorre diretamente da imunidade tributária dos templos, que é regra de estrutura, e do art. 156, § 1º, II da CF.
Como já se abordou em tópico anterior, as imunidades tributárias possuem ampla atuação, pois são, ao mesmo tempo, vetores interpretativos, regras de estrutura responsáveis pelo estabelecimento de competências e, consequentemente, normas que disciplinam a elaboração de leis. A Lei 13.250/01 apenas explicita o que o constituinte objetivou ao estabelecer a imunidade tributária dos templos, no caso, livrar das entidades religiosas o peso dos impostos em suas rendas, serviços e patrimônio[65].
A lei supramencionada apenas explicita a intributabilidade nos casos em que entidades religiosas figurem como locatárias de imóveis e não trate do caso dos cemitérios explorados por particulares. Entretanto, a existência de lei que traga regra de intributabilidade de imóvel afetado a liberdade religiosa não é condição sine qua non para que o aplicador do direito decida pela impossibilidade de tributação de imóvel afetado a fim religioso. Pouco importa quem é o proprietário do imóvel, se particular, entidade religiosa ou não. Havendo destinação de terreno à atividade recamada de religiosidade há que se respeitar a imunidade prevista no art. 150, VI, “b” da Constituição.
O juiz, com respaldo na Constituição e atentando aos efeitos prejudiciais que decorrem da tributação indireta do IPTU, poderá decidir pela intributabilidade no caso concreto prescindindo de lei que traz regra de isenção e decorre necessariamente de imunidade tributária.
O aplicador do direito deve ser sensível ao efeito econômico do IPTU sobre a igreja que aluga imóvel para realizar cultos, ainda que o imposto seja pago pelo contribuinte de direito, no caso, o particular, sob pena de não concretizar o objetivo maior da imunidade tributária dos templos, qual seja, proteger as entidades religiosas dos óbices decorrentes da tributação.
O problema na interpretação acerca da imunidade dos templos surge quando o intérprete parte do pressuposto de que a imunidade dos templos classifica-se como subjetiva.
3.2 Imunidade tributária dos templos entendida como imunidade híbrida.
Numa primeira leitura do texto constitucional, pode o intérprete entender que a norma imunizante prevista no art. 150, VI, “b” da CF enquadre-se como imunidade objetiva, protegendo da tributação somente os lugares destinados ao culto religioso, que é a primeira acepção dada ao termo templo. Entretanto, com base no § 4º do mesmo artigo constitucional, que impossibilita a tributação das rendas, serviços e patrimônios das entidades religiosas, desde que destinados a realização de suas finalidades essenciais, e levando em conta as características das entidades religiosas, quais sejam, prestação de serviço e exercício de atividades de caráter e interesse público, não objetivação de fins lucrativos e garantia de que o princípio da liberdade de crença seja respeitado, concluiu a doutrina majoritária brasileira que a norma imunizante existe em função das características da instituição religiosa sendo, portanto, imunidade tributária subjetiva[66].
Sendo imunidade subjetiva, resta protegido da tributação aquilo que é de propriedade da igreja, como terrenos, prédios e veículos. A conclusão pela classificação da imunidade dos templos em subjetiva, entretanto, negligencia a atual situação das sociedades que desenvolvem as atividades de cemitério e ignora a repercussão tributária de determinados impostos.
De acordo com o texto constitucional, inviabiliza-se a cobrança de impostos sobre os templos de qualquer culto. Templos, dessa forma, podem ser conceituados como locais públicos destinados às manifestações religiosas[67]. Conclui-se, portanto, pelo claro objetivo da Constituição Federal em tornar imunes ao IPTU ou ao ITR as propriedades afetadas a fins religiosos.
Fortalecendo essa forma de pensar, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, no julgamento do Recurso Extraordinário 544.815/SP, se manifestou no sentido do dever de se reconhecer a imunidade tributária dos imóveis afetados a fins religiosos. O caso levado ao STF trata de um terreno que é alugado a uma empresa privada que o explora como cemitério particular. De acordo com o ministro, os cemitérios estão recamados de religiosidade, de um sentimento puro, valendo o local do culto, para fins de imunidade tributária, por si mesmo, não importando o fato de que a entidade que o mantenha seja empresa privada e que mantenha o local explorando atividade econômica[68].
Esse preciso pronunciamento do ministro Ayres Britto foi realizado após o voto do relator ministro Joaquim Barbosa que entendeu pela inexistência de imunidade no caso em análise. Partindo do pressuposto de que a imunidade dos templos configura imunidade subjetiva e de que a imunidade não deveria existir nos cemitérios explorados por sociedades que objetivam lucro como forma de se atender ao princípio da livre concorrência, o ministro esposou voto pela necessidade de se tributar os terrenos explorados pela sociedade como cemitério particular. O voto foi seguido por outros ministros e após o voto do ministro Ayres Britto, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do ministro Celso de Mello.
Da análise da situação que se apresenta e do texto constitucional, percebe-se que a Constituição objetivou tornar os locais recamados de religiosidade imunes ao IPTU, seja diretamente (quando igrejas proprietárias de imóvel) ou indiretamente (quando particulares desenvolvem atividades de cemitério, ou quando igreja figura como locatária de imóvel de particular, estando o mesmo afetado ao fim a que as entidades religiosas se destinam, qual seja, a promoção de cultos – afetação finalística bem).
Não há argumento plausível que possa sustentar a tributação de situação constitucionalmente intributável. Argumentar aprioristicamente que terrenos explorados por empresas como cemitérios particulares devem ser tributados por respeito ao princípio da livre concorrência se equipara a alegar que livros ou revistas devem ser tributados como forma de se aumentar a arrecadação estatal. Não adiante se valer de finalidade prestigiada pelo sistema jurídico ou de argumento respeitável se inaplicável ao caso concreto.
Não há que se falar em ofensa ao princípio da livre concorrência no caso de existência de imunidade dos cemitérios explorados por sociedades com intuitos lucrativos. Essas instituições não são as únicas que exercem atividades com objetivo de lucro e que se encontram protegidas constitucionalmente por norma imunizante. São exemplos disso as empresas beneficiadas pela imunidade dos livros e imunidade das exportações. Nessas situações, assim como no caso levado ao STF, em nada importa para a configuração de imunidade a existência ou não de fins lucrativos pela empresa.
A classificação da imunidade tributária dos templos em objetiva ou subjetiva finda por não efetivar o princípio da não obstância dos direitos fundamentais por via da tributação, pois negligencia os objetivos constitucionais e os familiares do de cujus como contribuintes de fato.
O Direito brasileiro não ignora o contribuinte de fato, que é uma realidade jurídica[69], econômica e, principalmente, social. Não relevar essa realidade devido a construções jurídico-doutrinárias, como a divisão dos tributos em direto e indireto, imunidade subjetiva e objetiva, bem como imunidade incondicionada e condicionada, acarretará na não concretização dos fins constitucionais.
No específico caso da imunidade tributária dos templos de qualquer culto, a tributação apresenta-se ofensiva aos direitos fundamentais quando um particular desenvolve a atividade de cemitério e é tributado pelo imposto predial e repassa aos familiares do morto o peso da carga tributária. Essa situação contraria os objetivos constitucionais de proteção aos locais de culto, bem como onera indevidamente os indivíduos num momento tão difícil, que é o enterro de um integrante da família. O também fundamental direito à livre concorrência não pode ser utilizado para se viabilizar tributação de situação protegida pelo texto constitucional dos efeitos deletérios da imposição fiscal.
Para fins doutrinários, poder-se-ia classificar a imunidade dos templos de qualquer culto como imunidade híbrida ou mista[70], apresentando contornos de imunidade subjetiva – em função da pessoa jurídica responsável pelo exercício de atividades de cunho religioso – e objetiva – em virtude da afetação de determinado local a pratica de cultos. Somente com essa dupla atuação da norma imunizante poderá ser realizada justiça fiscal, inviabilizando-se a cobrança de impostos daqueles que não devem e daqueles que não podem arcar com pesado ônus tributário.
4 Considerações finais
A imunidade tributária dos templos de qualquer culto é norma constitucional que possui uma potencialidade ampla de ser utilizada na interpretação/aplicação do direito para efetivar o direito fundamental à liberdade religiosa.
Infelizmente, devido à falta de sensibilidade dos juristas brasileiros, que não atentam para a tributação indireta da renda das entidades que exercem atividades de cunho religioso, e em função de construções doutrinárias, em especial, a classificação da imunidade dos templos como imunidade subjetiva, os objetivos constitucionais que embasam a norma imunizante em analise não são concretizados na realidade.
Atualmente, as instituições religiosas que estão razoavelmente consolidadas não pagam tributos que poderiam ser exigidos em virtude do patrimônio, renda e serviços que possuem e desenvolvem. Essa impossibilidade decorre diretamente da Constituição de 1988. Agora, quem sequer tem capacidade econômica para comprar prédio e promover culto religioso e tem que alugar imóvel para esse intento paga pelo IPTU que se dilui nas parcelas de locação. Tributa-se, portanto, as instituições mais carecedoras de proteção dos efeitos prejudiciais que decorrem da exigibilidade de tributo.
O problema da repercussão tributária na renda das entidades protegidas por imunidade não se refere apenas às instituições religiosas. Sindicatos, partidos políticos e instituições de educação e de assistência social também arcam com o tributo que se dilui nos contratos de aluguel em que figurem como locatárias. Essa situação contraria os objetivos constitucionais previstos no art. 150, VI, “c” da CF, como também os dispositivos da Constituição que asseguram a liberdade política, sindical e o livre acesso à educação.
As imunidades tributárias estão sendo interpretadas (e aplicadas) parcialmente, não tendo seus intentos protetivos efetivados na sociedade. Com o objetivo de facilitar a compreensão de como as imunidades tributárias podem atuar nos casos concretos, propõe-se a classificação da imunidade tributária dos templos como híbrida, em decorrência da necessária atenção que deve ser dada a afetação de determinado local a fins religiosos. A imunidade dos templos, portanto, configura-se tanto em função da entidade religiosa, como em decorrência da destinação de prédio ou imóvel a atividades religiosas, mesmo que a igreja não seja a proprietária de imóvel, e sim, particular.
Exigências poderiam ser estabelecidas pelo juiz, no caso concreto, para que os benefícios da intributabilidade fossem percebidos pelos que desenvolvem atividades de cunho religioso e são locatários de imóveis, como a escrituração contábil das rendas auferidas pelas entidades e a permanência no determinado local por um ano ou período maior, bem como a fiscalização tributária para conferir se a propriedade, de fato, está voltada a fins religiosos.
Poderia ser ventilada a possibilidade de existirem fraudes contra o Fisco em função desse entendimento que está sendo proposto ao instituto da imunidade tributária. Porém não é por falta ou falha de fiscalização que não se deve garantir a efetivação dos valores inerentes às imunidades tributárias na sociedade.
As imunidades tributárias configuram direitos fundamentais e com base nos objetivos e dispositivos da Constituição devem ser aplicadas e entendidas. Não se trata de interpretação extensiva, mas de interpretação conforme o texto constitucional, a única forma de se interpretar e entender o ordenamento jurídico que deve existir num Estado Democrático de Direito.
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2008) e especialização em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2010).
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