Resumo: A Constituição de 1988 restituiu ao Tribunal do Júri a soberania de seus veredictos nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida e os delitos que lhes forem conexos. Os princípios do contraditório, da ampla defesa e o devido processo legal são os pilares do exercício do processo penal, sob a perspectiva da processualidade democrática, que pressupõe uma atuação jurídica garantidora dos direitos fundamentais. Este trabalho pretende desmistificar a atuação do Tribunal do Júri sob a égide do Estado Democrático de Direito, e demonstrar sua total incompatibilidade com o sistema processual vigente (acusatório), pautado na epistemologia da incerteza, tendo por base a racionalidade crítica. Os resultados apontaram que a atuação arbitrária desse instituto, centrada nas mãos dos jurados e no poder autoritário do juiz, contribui para alijar os interessados da isonomia da prestação jurisdicional democrática, ferindo a garantia dos direitos fundamentais. Concluiu-se, portanto, pela inconveniência da manutenção do Tribunal do Júri no Brasil, haja vista suas raízes inquisitoriais, em contraposição aos princípios do devido processo legal e do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Tribunal do Júri. Estado Democrático de Direito. Desmistificar. Racionalidade crítica.
Abstract: The 1988 Constitution restored the Jury Court sovereignty of its verdicts in trials of crimes against life and crimes that are related to them. The principles of "contradiction", defense and due process of law are the basis of the criminal proceedings, from the perspective of democratic processuality, which presupposes a guarantee of fundamental rights in legal action. This paper aims to demystify the Jury Court's atuation under the principles of the Democratic State of law, and demonstrate its utter incompatibility with the current procedural system (adversarial), based on the epistemology of uncertainty, based on the critical rationality. The results showed that the arbitrary action of this institute, centered in the hands of jurors and the authoritarian power of the court, contributes to jettison those interested in the equality of democratic adjudication, injuring the guarantee of fundamental rights. Therefore it was concluded, the inconvenience of maintaining the Jury Trial in Brazil, given its inquisitorial roots, as opposed to the principles of due process and the Rule of Law.
Keywords: Jury Trial. Democratic State of Law. Demystify. Critical rationality.
INTRODUÇÃO
O Júri no Brasil foi instituído pela Lei de 18 de junho de 1822, cujo objetivo era o julgamento dos crimes de imprensa e dos crimes políticos, e se integrou ao Código de Processo Criminal do Império em 29 de novembro de 1832. A Constituição do império de 25 de março de 1824 dispunha sobre o Júri em seu artigo 151, o qual previa a independência do poder judiciário, composto de juízes e jurados, que atuavam tanto no crime quanto no cível.
Na Carta de Lei de 20 de setembro de 1830, o Júri foi mantido para julgamento dos crimes de imprensa, em seus artigos 14 e 15, sendo abolido definitivamente para esse fim, em face da lei 5.250, que entrou em vigor em 14 de março de 1967. A Constituição Republicana de 1891 o previu expressamente na Declaração dos Direitos, no § 31º do artigo 72.
O governo de exceção do presidente Getúlio Vargas não contemplou a soberania do Júri na Constituição Federal de 1937. O advento do Decreto 167 de 1938 alterou definitivamente a instituição, regulamentado de modo a subtrair-lhe a soberania. Pela Carta de 1946, o Tribunal do Júri passou a figurar no capítulo dos direitos e garantias individuais, e no § 28º, de seu artigo 141, devolveu-se a sua soberania. Novamente triunfou a legalidade sobre os efeitos deletérios causados pelo Diploma anterior. A Constituição de 1967 e sua emenda Constitucional de 17 de outubro de 1969, em seu artigo 153, § 18º, limitavam a atuação do júri. Entende-se que a intenção daquela malsinada Carta Constitucional, imposta de forma ditatorial, vislumbrava nessa restrição mais uma forma de intimidar e de impor a vontade do regime de exceção.
Com o advento da Constituição cidadã de 1988, restabeleceu-se de forma clara e precisa, a soberania do Tribunal do Júri, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII. Ficou, assim, restabelecida a soberania do Júri, que se caracteriza pela imutabilidade, em tese, de seus veredictos.
No Brasil ainda se mantém as formas clássicas ou tradicionais do Júri. Inscrito na Constituição Federal, no capítulo dos direitos e garantias fundamentais, o Tribunal do Júri pertence ao Poder Judiciário.
Necessário cientificar que, mesmo sendo parte integrante do Poder Judiciário, a citada instituição oferece ao jurisdicionado, principalmente ao sujeito ativo de direitos – réu –, todas as “benécias” que teria perante o Juiz togado, o que não se mostra suficiente, a ponto de poder ser classificado como garantia[1] fundamental pelo artigo 5º da Constituição, visto ser uma leitura bastante reducionista de direitos.
Em linguagem analítica e bem simples, pode-se afirmar que o Júri é um tribunal constituído por sete pessoas, maiores de dezoito anos, alfabetizadas, que são sorteadas para compor um conselho presidido por um magistrado, cuja função é julgar os crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados, e os delitos que lhes forem conexos. Só o Brasil[2], dentre os países latino-americanos de maior importância, se mantém fiel ao júri.
INCONGRUÊNCIAS DA INSTITUIÇÃO DO JÚRI FRENTE AO ATUAL MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO
Nesse diapasão far-se necessário compreender que o Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-Lei n.3689/41) tem notória e evidente natureza inquisitorial, por ser caracterizado como reprodução do Código Fascista Italiano (Código Rocco). O que decerto exige uma compreensão sistemático-constitucionalizada, com o advento do Estado Democrático de Direito.
De tal feita é imprescindível uma contextualização no que tange à reforma do Código de Processo Penal, com a atual conjuntura democrática, de cunho garantista e com o propósito implementador de assegurar a efetivação da celeridade e dos direitos fundamentais do acusado.
O Estado Democrático de Direito preceitua que o processo penal deve ser analisado sob o enfoque constitucional, a fim de que ele deixe de ser visto como mero instrumento para o exercício arbitrador e soberano da jurisdição e, passe a ser visto como uma instituição precisamente constitucionalizada e garantidora efetiva dos direitos fundamentais. Pensar o modelo constitucional de processo penal sob o enfoque democrático é o que se deve buscar para que haja por certo a concretização e efetivação dos direitos fundamentais do acusado. Dessa forma, busca-se no plano material e procedimental, o respeito aos princípios constitucionais do processo, corolários do devido processo legal.
Assim sendo, é essencial compreender a sistemática do Direito Penal. Tal “constitucionalização” pretendida com a reforma de 2008 não trouxe efeitos úteis ao Tribunal Popular[3], haja vista a manutenção da estrutura arcaica[4], desmedida e incompatível com o atual sistema processual vigente.
É necessário ater-se ao fato que, embora haja a previsibilidade do Júri na Constituição brasileira de 1988 como direito fundamental, tal previsão se mostra insuficiente para considerá-lo compatível com o Estado Democrático de Direito, uma vez que o referido instituto não condiz com a atual processualidade democrática prevista pela Constituição, por apresentar ampla parcela de suas características de feições essencialmente inquisitoriais.
Modernamente verifica-se que um dos graves problemas enfrentados pelo campo do saber reporta-se ao repouso dogmático[5]. Tal repouso é verificado na medida em que não se estudam mais e não se questionam as “verdades absolutas”. Constata-se que o Tribunal do Júri é um instituto cuja doutrina nacional desfruta de um extenso repouso dogmático, uma vez que há anos não lhe é questionada sua legitimidade e necessidade, em razão de não ousarem criticar a cláusula pétrea da Constituição, art. 5º, XXXVIII.
Decerto certifica-se, conforme já aclarado, que a qualificação atribuída ao Tribunal Popular não condiz com o atual sistema processual vigente, tendo em vista que a mera “participação popular” não o torna democrático, apenas representa um pequeno elemento dentro da vasta concepção de democracia. Este instituto ainda precisa passar por uma “reengenharia processual”, pautando-se na construção do provimento jurisdicional e incluindo a participação de todos aqueles interessados no provimento (inclusive o acusado), que ainda hoje é visto como um “objeto de investigação” e não como “sujeito de direitos”.
Países francamente democráticos estão abolindo a instituição do júri e, no máximo, elegendo uma nova forma de composição mista das cortes: o escabinado[6]. São os casos da França, da Alemanha, da Bélgica, da Itália e da Grécia.
A Constituição Federal de 1988 incluiu o Tribunal do Júri dentre o rol dos direitos e garantias individuais, e, sendo este rol uma cláusula pétrea, se mostra impossível a aprovação de uma emenda constitucional que vise abolir o Júri. Assim sendo, a extinção do Júri para a criação de um modelo diferenciado, conforme se verifica no escabinado, não será possível enquanto a Constituição Federal de 1988 se mantiver em vigência no país. Ressalta-se, ainda, que apenas o poder constituinte originário é capaz de abolir essa instituição atrasada desmedida e inquisitorial no Brasil.
Além dos argumentos já explanados far-se necessário destacar, que a forte influência midiática presente no Tribunal do Júri coloca em risco a independência, substituta do juiz, posto que, além dos julgamentos carregados de pré-conceitos, os acusados em plenário têm que se confrontar com um ordenamento “jurídico” individual e interno, muitas vezes, descomedidamente moral e ético.
Os jurados, em geral, diante do apelo midiático, são declinados à condenação, haja vista que os leigos são mais suscetíveis a pressões e quaisquer outros tipos de influências, principalmente midiáticas, na medida em que carecem de conhecimento técnico jurisdicional.
Assim sendo, compreende-se que o jurado ouve e “assimila” sem questionar, apenas repete sem qualquer fundamento aquilo que ouviu, utilizando de forma imprópria e muitas vezes desprezível, com ideias preconceituosas e discriminatórias, as redes sociais, com anseio de que veio ao mundo para fazer justiça. O “analfabeto” midiático não percebe que o enfoque pode ser uma simples escolha construída e que está sendo manipulado. Interpreta os fatos com ingenuidade, tendo certeza de que tudo o que ele vê, crê, lê e ouve é o suficiente e, portanto, corresponde à realidade. Toda essa influência do populismo presente no Tribunal do Júri causa um desequilíbrio da estrutura democrática do processo como um todo.
A ideia de julgamento pelos próprios pares advém de uma concepção conservadora e metodista de exercício arbitrário da autoridade, com uma falsa aparência democrática. Tal afirmação se concretiza, uma vez que os jurados fazem parte de um grupo seleto de pessoas que são “apropriadamente” escolhidas e autorizadas a proferir julgamentos.
Esses julgamentos proferidos não estão em consonância com o Estado Democrático de Direito, posto que violam em demasia princípios como o devido processo legal, o contraditório, ampla defesa, dentre outros, conforme já aclarado. Fala-se de indivíduos leigos[7] que não são instruídos intelectualmente para julgarem o acusado, uma vez que não compreendem a legislação pertinente, e, portanto, julgam conforme sua consciência e senso de justiça, sem ao menos terem o dever de prestar qualquer esclarecimento a alguém, posto que suas decisões não são fundamentadas. O Estado, não pode permitir que o cidadão seja julgado através de “qualquer elemento”, visto que a decisão imotivada, cerceando a liberdade de um indivíduo, é puro arbítrio.
A decisão tem de permitir a participação de todos aqueles envolvidos no processo, caso contrário há violação ao texto constitucional no que tange aos princípios corolários do Devido Processo Legal. A participação apenas dos jurados, excluindo a participação efetiva de todos aqueles interessados no provimento jurisdicional (inclusive do acusado) se mostra demasiadamente em desacordo com os ideais estabelecidos pela constituição e sua atual conjuntura democrática.
CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que o direito penal deve ser utilizado com base na Constituição brasileira, respeitando-a, dado que os direitos fundamentais têm por animus frear a atuação arbitrária do Estado e de seus institutos jurídicos, conferindo à instituição um caráter mais garantista e não meramente formal, através de uma plausível regulamentação infraconstitucional.
O Tribunal do Júri deve ser analisado de forma crítica e metódica, com o propósito de se compreender os mecanismos do sistema processual acusatório, através de uma construção científica do instituto adotado no Brasil.
Assim, mostra-se fundamental compreender que todos aqueles interessados na construção do provimento jurisdicional têm o direito garantido pela Constituição de participação, ampla e irrestrita, mas, como demonstrou os argumentos apresentados no presente trabalho, não é isso que se mostra hodiernamente na prática. O decisionismo encontra-se centrado nas mãos dos jurados, através da indevida exclusão dos interessados na construção isonômica do provimento jurisdicional, elemento esse de suma importância, por ser corolário do devido processo legal e considerado o sustentáculo do Estado Democrático de Direito, que está sendo corroído e violado, pouco a pouco, pela visão atrasada, autocrática e inquisitorial de processo. Fato é que o Tribunal Popular julga e continuará julgando bem mais pelo instinto do que pela própria lógica ou razão, ora absolvendo os culpados, ora condenando inocentes.
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG. Pós Graduanda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Ciências Penais. Advogada Criminal
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