Inacessibilidade à justiça e o fortalecimento das organizações criminosas

Resumo: Este artigo trata do conceito de acesso à justiça e contextualiza-o na atual sociedade brasileira, revelando que o processo judiciário, da forma como vem sendo gerido, não atende aos anseios deste Estado cunhado por Democrático de Direito, o que fundamentalmente dá margem ao fortalecimento das organizações criminosas, dentre as quais se destaca o PCC – Primeiro Comando da Capital.[1]


Abstract: This article is about the concept of access to justice and insert it in the actual Brazilian society, showing that the judiciary process, the way it has been managed, does not achieve the wishes of this State called by Law Democratic, which fundamentally gives opportunity to the strengthening of criminal institution, in special the PCC – Capital First Comand.


Palavras-chave: Acesso à justiça; Ausência do Estado; Organizações criminosas.


Key words: Access to justice; State absence; Criminal Institutions.


Da inacessibilidade à Justiça


O devido processo legal é um direito fundamental que deve ser observado em todos os modos de produção de normas jurídicas (jurisdicional, administrativo, legislativo ou negocial). Isto significa, na prática, que o princípio da proporcionalidade deve ser parâmetro de aferição da própria constitucionalidade dos atos estatais e que, a fim de evitar quaisquer privações de direitos, outras garantias devem ser consideradas. Destaca-se então o direito de acesso à justiça, cujo entendimento, genericamente tido como acesso aos tribunais, já não satisfaz, sendo necessário considerá-lo como um direito fundamental formal, em contraposição aos óbices postos, no Brasil, à consecução da justiça.


O processo é uma batalha onde a parte marcada pela pobreza não se vê, neste país, com as mesmas armas para influenciar efetivamente a decisão do conflito. Com isso, o direito fundamental à igualdade e ao contraditório não se tem concretizado e o processo que deveria atuar como instrumento de pacificação social perde o seu caráter democrático, predominando a ausência de diálogo e de equilíbrio, imperando o direito a uma “restrita” defesa.


O acesso à justiça é algo muito mais além do que institucionalizar o conflito por meio do processo. Vê-se que nem mesmo os equivalentes jurisdicionais (as formas de solução de conflitos autorizadas pelo ordenamento jurídico onde não há exercício da jurisdição estatal, quais sejam: autotutela, autocomposição, mediação e arbitragem) têm conseguido mitigar a sede de justiça, já que o Estado-juiz não se ausenta somente nessas situações excepcionais e que a solução altruísta do conflito normalmente se opõe a própria idéia de lide. Além disso, a mediação, na prática, distancia-se da idéia jurídica de presença de profissionais preparados que na ausência do Estado-juiz atuariam como mediadores.


A desconsideração desses fatos tem contribuído significamente para a existência e manutenção de um poder considerado paralelo a este legitimado pelo voto e pelas leis. O Estado, por meio do Direito, não tem conseguido colocar certa perspectiva de ordem e previsibilidade no universo complexo e dinâmico das relações interpessoais, gerando insegurança e dando espaço ao fortalecimento de organizações criminosas.


Parece ilusória a garantia do acesso ao Judiciário quando este se vê acusado de atender a uma faixa cada vez mais restrita da sociedade e o direito de ação, na prática, se torna ônus de ação, como bem coloca Joaquim Canuto Mendes de Almeida[2].


Os juízes e as instituições do Judiciário devem ter o compromisso de divulgar o direito e o princípio da cooperação alberga essa obrigação, ao defender a adoção de uma postura de diálogo do magistrado com as partes e demais sujeitos do processo, primando pelo equilíbrio processual.


Nesse sentido, e ultrapassando especificações casuísticas, Nalini propõe a distribuição de folhetos simples de linguagem acessível, com explicações facilitadoras do acesso à justiça, bem como a manutenção de serviço de atendimento facilitado para fornecer informações sobre andamento de processos, sobre o endereço da assistência judiciária, sobre problemas jurídicos concretos de toda ordem, por meio de telefone, fac-símile, guichês com funcionários treinados e conscientes de que o povo é o seu patrão. Ele continua dizendo que cada juiz quando julga exerce função docente, está ensinando Direito, demonstrando qual o sentido e alcance da lei e, por isso mesmo, deve ser claro e eficaz.


O momento histórico exige um plus do juiz, que antes de dizer o Direito, deve fazer conhecê-lo; se o principal operador jurídico não encontrar formas de se comunicar com o povo, com a media, estará apressando o projeto de sua substituição por outras alternativas de solução de conflitos que sejam mais eficazes, céleres e acessíveis, mesmo que ilegítimas para um Estado que se põe constitucionalmente como Democrático de Direito. O conhecimento do Direito significa o direito a ter direitos e, por isso mesmo, o Direito deverá quotidianizar-se[3].         


Apesar de o acesso à Justiça ser um dos valores fundamentais da própria democracia, a sua garantia não é efetivamente igual para todos, são gritantes as desigualdades econômicas, sociais, culturais e regionais. Não é suficiente a extinção das custas. Para ilustrar essa afirmação, basta lembrar que a necessidade de um advogado encarece a parte quando tem de litigar na Justiça e a nomeação de advogado gratuito possui inconvenientes por criar-se um préstimo de segunda classe, onde se percebe a nítida distinção entre o trabalho do advogado constituído e o do dativo.


O processo legal deve transcorrer na forma e substância devidas para promover a realização do direito material vinculado. Isso significa processo adequado aos litigantes, à função do procedimento, à natureza do direito material, à forma como se apresenta o direito material e à situação da urgência. Percebe-se que o direito material precisa ser o axioma presente na criação, interpretação e aplicação das regras processuais, a fim de que o processo realize os projetos do direito material, controlando o exercício do poder e, por conseguinte, efetivando os direitos fundamentais, dentre os quais ora se destacou o de acesso à justiça, que ao não ser garantido dá margem ao fortalecimento de organizações criminosas.


Do fortalecimento das organizações criminosas


Com o desenvolvimento do mercado de drogas – que é um dos mais rentáveis do mundo – a incorporação do não menos lucrativo mercado de armas, a compra de agentes estatais e a ausência do Estado enquanto promotor de uma vida digna garantida pelo efetivo acesso à justiça, foi perfeitamente possível compor organizações com recrutamento, formação e legislação próprias, para a prática de crimes.


Considerando-se o tema em questão, há que se falar no PCC, “Primeiro Comando da Capital”, que, além de exemplo, é espelho para as demais organizações criminosas.  Com estatuto, batismo, mensalidade, garantias de apoio aos seus membros e investimentos, o PCC construiu um poder paralelo e, mais, tornou-se uma irmandade, na qual a traição é inadmissível e, nem mesmo o dinheiro, deve estar acima das relações que, entre os traficantes e os que indiretamente se ligam a eles, devem ser limpas[4]. Corrobora essa realidade o nono artigo do estatuto do PCC que determina:


“O partido não admite mentiras, traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo, interesse pessoal, mas sim: a verdade, a fidelidade, hombridade, solidariedade e o interesse comum ao bem de todos, porque somos um por todos e todos por um[5].”


Para seus membros, fazer parte do PCC ou dar-lhe apoio significa uma forma de viver na adversidade e, neste ponto, a ineficiência estatal acaba dando “legitimidade” a essa organização que ocupa mais espaço, na medida em que menos a justiça convencional se faz presente. Marcola, líder do PCC, expõe essa realidade na seguinte frase: “A gente começa questionar esse poder do Estado, entendeu? Porque a gente é vítima dele. A partir de então a gente vai criando uma consciência um tanto revoltada, uma consciência que até então não tinha” [6]


O PCC basicamente conquistou espaços a tiro, motores e dinheiro, apoderando-se de mercenários e falsos ideólogos para tentar legitimar-se contra o poder estatal injusto. E então, falou-se em andar de cima enfrentando o andar de baixo; no morro descendo para o asfalto; em “eles”, os novos opressores, e “nós”, os genericamente ameaçados[7]


Fica claro, ante o exposto, que segurança pública no mais alto sentido, não se restringe à polícia e nem às prisões. As organizações criminosas precisam de membros e são fundamentalmente as atuais políticas públicas e a inacessibilidade à justiça que têm promovido o atendimento dessa demanda. E esse membro, então, pensa que ao menos a coordenação criminal existente tem feito alguma coisa pelos muitos que se encontram totalmente desprovidos de uma vida digna, enquanto o Estado apenas assiste. 


“A sociedade quer paz, mas paz não é apenas vestir-se de branco e fazer caminhadas de curta duração, estilo self promotion.


O governo ainda não aprendeu que se trata de uma sincronia de ações. A maior parte dos chamados que o centro de comunicações da polícia recebe são de natureza social. Periferia liga pedindo viatura porque ambulância não vai buscar doente. Mulheres dão à luz no carro da polícia, que em alguns bairros só aparece depois que um fato grave aconteceu. É a ausência do Estado[8].”


Conclusões


Vê-se que a concreção do acesso à justiça tem importância incomensurável para a efetivação de direitos fundamentais e conseqüentemente para desarticulação das organizações criminosas que teriam então sua base ideológica e material abalada.


Para todos os cidadãos deve haver uma perspectiva lícita, por mais remota que seja, de melhoria de qualidade de vida; se não for assim, tanto faz como tanto fez se envolver ou não com o crime; quando nada se tem a ganhar ou perder, o crime passa a ser a lei, porque ele “se justifica” e ela não.


Quando o indivíduo, numa visão contratualista, abre mão dos seus direitos naturais, em favor da existência e harmonia social, ele passa a ter obrigações para com a sociedade e esta também os tem para com ele, permitindo assim o surgimento do Estado. E tem a sociedade cumprido o seu papel? Tem a sociedade, com todos seus esforços prevenido o crime? Tem a sociedade procurado, em todos os tempos, evitar as causas do crime? Não.


Dessa forma, cumpre salientar que o Judiciário, como elemento integrante dessa sociedade, precisa começar a agir no intuito de efetivar os valores essenciais que norteiam a constituição do Estado brasileiro, dentre eles o da dignidade da pessoa humana e a garantia de acesso à justiça.   


 


Referências Bibliográficas

DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito processual civil. Salvador: Jus Podivm, 2007.

NALILI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Disponível em: http://www.cjf.gov.br/revista/numero3/artigo08.htm. Acesso em: 24 set. 2007.

PASSOS, J.J. Calmon. Direito, poder, justiça e processo. Rio de janeiro: Forense, 1999.                                                                                                                                               

SOUZA, Percival de. O Sindicato do Crime. São Paulo: Ediouro, 2006.


Notas:

[1] Trabalho realizado sob a orientação da Profa. orientada por Flávia Almeida Pita, Professora Assistente de Direito Processual Civil da UEFS, Mestra em Direito pela UFPE, Especialista em Direito Processual pela UNIFACs e Procuradora do Estado da Bahia.

2. Joaquim Canuto Mendes de Almeida apud NALILI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Disponível em: < http://www.cjf.gov.br/revista/numero3/artigo08.htm>. Acesso em: 24 set. 2007.

3. NALILI, José Renato. Ob. cit.

4. SOUZA, Percival de. O Sindicato do Crime. São Paulo: Ediouro, 2006. p. 17.

5. Ibidem, p. 93.

6. Ibidem, p. 59.

7. Ibidem, p. 215.

8. Ibidem, p.229.

Informações Sobre o Autor

Aline Guimarães Matos de Santana

Acadêmica de Direito da UEFS


Equipe Âmbito Jurídico

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