Resumo: A garantia de acesso à Justiça concernente ao Estado Democrático de Direito estatuído na Constituição Federal de 1988 trouxe ao ordenamento jurídico a proliferação de demandas judiciais, sobretudo as que discutem questões de direito repetitivas. Com o advento do Novo Código de Processo Civil, inovou o legislador ao trazer a lume o instituto do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), que permite ao Tribunal fixar tese jurídica para questões de direito repetitivas, formando um precedente obrigatório que passará a vincular os órgãos judiciários inferiores, a fim de que a disparidade de decisões sobre questão controversa não comprometa a isonomia e a segurança jurídica. Nesta toada, pretende este artigo trazer à baila as principais características do instituto, bem como demonstrar o impacto desse mecanismo de uniformização de questões repetitivas no Poder Judiciário e na credibilidade da sociedade no sistema de justiça. O trabalho funda-se em pesquisa bibliográfica, sobretudo doutrina, e palestras audiovisuais, ensejando o tema, em razão de sua relevância jurídica e social, inúmeros debates na comunidade jurídica.
Palavras-chave: incidente processual; questões de direito repetitivas; caso-piloto; isonomia; segurança jurídica.
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento 3. Conclusão. 4. Referências
Introdução
Um dos objetivos fundamentais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a criação de uma sociedade livre, justa e igualitária, premissa que, num Estado Democrático de Direito, perpassa pela garantia de acesso à justiça.
Contudo, a ampliação do acesso à justiça descortinou o Poder Judiciário a um número cada vez maior de pessoas e de causas, ocasionado uma crise numérica de demandas, as quais, em sua maioria, reavivam questões de direito repetitivas.
O legislador brasileiro, através de minirreformas no Código de Processo Civil de 1973, buscou a implementação de técnicas para o tratamento dos processos repetitivos, como por exemplo, a criação de súmula vinculante do STF; aferição, por amostragem, da repercussão geral da questão constitucional perante o STF; julgamento de recursos especiais por amostragem, dentre outras.
Com o advento do Novo Código de Processo Civil – Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, foram inseridos novos institutos no ordenamento jurídico, revelando-se o incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR – previsto nos artigos 976 a 987 – como uma de suas grandes inovações.
Segundo Gonçalves (2016, p. 843),
“a finalidade do instituto é assegurar um julgamento único da questão jurídica que seja objeto de demandas repetitivas, com eficácia vinculante sobre os processos em curso. Pressupõe, portanto, múltiplas demandas envolvendo a mesma questão de direito. O novo incidente vem tornar mais efetivos os princípios da isonomia e da segurança jurídica, assegurando um julgamento uniforme da questão jurídica que é objeto de processos distintos”.
Neste contexto, pretende o presente artigo trazer a lume as principais características do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e os impactos de aludido instituto no ordenamento jurídico brasileiro.
Cabe registro acerca do recurso metodológico utilizado, que perpassa pela pesquisa bibliográfica correlata à literatura publicada, sobretudo em artigos e palestras audiovisuais, fundando-se o que ora é pontuado no entendimento de doutrinadores como Fredie Didier, Humberto Theodoro Júnior, Marcus Vinícius Rios Gonçalves e Araken de Assis.
Desenvolvimento
Com o enorme agigantamento na quantidade de litígios, fez-se mister a implementação de técnicas para tentar “desafogar” o Poder Judiciário, notadamente no que tange à litigiosidade seriada.
Entende Didier (2016, p. 584) ser praticamente ilusório tentar conter tal crescimento, havendo fatores que contribuem para o aumento constante de litígios em massa, tais como:
“[…] a ampliação dos meios de comunicação social, o aumento da consciência jurídica dos cidadãos, o desenvolvimento desenfreado de novas tecnologias e da oferta de novos produtos, aumentando as necessidades do consumo humano, a fúria legislativa, entre outros”.
Para a solução, com força de precedente obrigatório, de uma questão de direito repetitiva, seja ela de direito material ou processual, foi desenvolvida a técnica de “julgamento de casos repetitivos” (art. 928, CPC). Para tanto, há vários mecanismo, tais como, a súmula vinculante, o recurso especial, o recurso extraordinário, o recurso de revista repetitivos, bem como o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR).
Nas lições de Araken de Assis (2016, p. 458) o incidente de resolução de demandas repetitivas “[…] presta-se a formular precedente, desvinculado dos processos concretos, individuais ou coletivos, mas vinculando, posteriormente, os órgãos judiciários inferiores […], à tese jurídica”.
Theodoro Júnior (2016, p. 905), na mesma linha, argumenta que:
“O incidente de resolução de demandas repetitivas não reúne ações singulares já propostas ou por propor. Seu objetivo é apenas estabelecer a tese de direito a ser aplicada em outros processos, cuja existência não desaparece, visto que apenas se suspendem temporariamente e, após, haverão de sujeitar-se a sentenças, caso a caso, pelos diferentes juízes que detêm a competência para pronunciá-las. O que, momentaneamente, aproxima as diferentes ações é apenas a necessidade de aguardar o estabelecimento da tese de direito de aplicação comum e obrigatória a todas elas. A resolução individual de cada uma das demandas, porém continuará ocorrendo em sentenças próprias, que poderão ser de sentido final diverso, por imposição de quadro fático distinto. De forma alguma, entretanto, poderá ignorar a tese de direito uniformizada pelo tribunal do incidente, se o litígio, de alguma forma, se situar na área de incidência da referida tese.”
Portanto, sempre que determinada questão de direito se repetir em diversos processos, mesmo que os processos não sejam repetitivos, é possível suscitar o IRDR.
Para Didier (2016, p. 590), o microssistema de formação concentrada de precedentes obrigatórios, “[…] tem natureza híbrida: servem para gerir e julgar casos repetitivos e, também, para formar precedentes obrigatórios”.
Nesta toada, são requisitos cumulativos e simultâneos para a admissibilidade do IRDR, nos termos do art. 976 do CPC, que haja efetiva repetição de processos e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica; que a questão seja unicamente de direito e que haja causa pendente no tribunal.
Busca-se com aludido incidente, decisões mais unânimes, prestigiando o tratamento igualitário entre as partes como forma de garantir a estabilidade jurídica, o que justifica também a vedação à instauração do incidente de forma preventiva, vez que imprescindível a existência e repetição de determinada questão jurídica.
De acordo com Theodoro Júnior (2016, p. 906),
“exige o NCPC que seja atual a efetiva pluralidade de processos, com decisões díspares acerca da interpretação da mesma norma jurídica. O incidente, em outros termos, não foi concebido para exercer uma função preventiva, mas repressiva de controvérsias jurisprudenciais preexistentes.”
Portanto, para a comprovação da divergência, tem-se como pressuposto que os casos repetitivos contenham sentenças proferidas em sentidos divergentes, que possam gerar risco à isonomia e à segurança jurídica. Desta forma, torna-se possível a análise de um maior número de possível de argumentos, com o exame de todos os pontos de vista.
Há dois sistemas de resolução de causas repetitivas: através de um caso-modelo ou de um caso-piloto. Na primeira hipótese, usa-se o caso como pretexto, sem o julgamento do feito, apenas fixando-se a tese. E, na segunda, escolhe-se um caso, que será julgado para a fixação da tese.
No Brasil, por força do parágrafo único do art. 978 do CPC, o incidente é instaurado através de um caso-piloto, porquanto o tribunal julga a causa e fixa o entendimento a ser aplicável aos demais casos repetitivos. Contudo, ainda que haja desistência do feito, a tese será fixada no processo que houver sido escolhido para representar a controvérsia.
O prazo para o julgamento do recurso é de um ano (art. 980 do CPC).
Acerca da legitimidade, podem suscitar o IRDR o juiz ou relator do feito, as partes, o Ministério Público e a Defensoria Pública (art. 977 do CPC).
Quanto à forma de processamento, vale ressaltar que o IRDR se processa separadamente da causa originária, e sob a competência de órgão judicial diverso, qual seja, o tribunal de segundo grau, cuja competência cinge-se ao julgamento do incidente, cabendo aos órgãos de primeiro ou segundo grau julgar a ação ou recurso, cujo processamento foi suspenso para a fixação da tese.
Contudo, conforme pontua Theodoro Júnior (2016, p. 910),
“[…] o tribunal pode enfrentar o incidente de resolução de demandas repetitivas antes que o recurso tenha provocado a devolução de competência para rejulgamento da causa em segundo grau, como pode fazê-lo em relação a recurso ou causa de competência originária já em tramitação. No primeiro caso, o processo causador do incidente fica suspenso no juízo originário, no aguardo do pronunciamento do tribunal, que se restringirá à definição da tese de direito a ser posteriormente aplicada nos julgamentos de todas as demandas que versem sobre a mesma questão. O tribunal, portanto, não avança até a solução das causas ainda não resolvidas nos juízos de primeiro grau. Esse julgamento permanecerá sob a competência do juiz originário da causa (NCPC, art. 985).
Quando, porém, o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária já se encontrarem em andamento na instância superior, o tribunal ao decidir o incidente julgará também a causa que lhe deu origem (art. 978, parágrafo único)”.
No que tange à força vinculante da tese fixada, dispõe o art. 985 do CPC que ela será aplicada aos processos individuais e coletivos pendentes, em que seja controvertida a questão de direito, suspensos ou não e que tramitem na área de jurisdição do tribunal, incluindo juizados especiais; bem como aos processos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo ulterior revisão da tese.
Conclui-se, portanto, que o incidente de resolução de demandas repetitivas é precedente obrigatório.
Por fim, no que concerne aos recursos, do julgamento de mérito do IRDR caberá embargos de declaração, e recurso especial ou extraordinário, com efeito suspensivo, presumindo-se a repercussão geral da questão constitucional eventualmente discutida.
Conclusão
As inovações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil ainda contém inúmeras caixas de pandora que só serão exploradas com o deslinde dos casos concretos. Contudo, o incidente de resolução de demandas repetitivas, tal como outras inovações trazidas por este Diploma Legal já representam grande avanço na busca por uma redução significativa no número expressivo de recursos que chegam aos tribunais superiores.
Com efeito, a diminuição das decisões controversas através da fixação de tese em recursos repetitivos, por si só constitui óbice à interposição de recursos meramente protelatórios. Afinal, sobre o IRDR não incidem custas, o que não se aplica aos recursos constitucionais, os quais exigem um investimento financeiro que, nas teses fixadas elidem o êxito de um recurso que sustente entendimento contrário.
Observe-se que a previsão de possibilidade de revisão das teses fixadas impede o engessamento do ordenamento jurídico, porquanto não se pode olvidar que as interpretações e entendimentos dos tribunais se modificam com a evolução da sociedade.
Por fim, o IRDR representa o resgate da falta de credibilidade da sociedade no sistema jurídico, eis que um ordenamento jurídico que ostenta posicionamentos jurídicos distintos para situações de direito idênticas não traz credibilidade. Portanto, contribui o incidente para um Poder Judiciário mais eficiente e menos abarrotado.
Graduada em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos/Barbacena em 2004. Pós-graduanda em Direito Penal Militar e Processual Penal Militar pela Academia da Polícia Militar de Minas Gerais. Tecnóloga em Gestão Pública pela Faculdade Estácio de Sá em 2016. Analista Judiciária do Ministério Público de Minas Gerais
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