INTRODUÇÃO
É comum a afirmação de que o Direito brasileiro, e muitos dos seus institutos, adequaram-se a determinadas teorias, sejam elas jurídicas, sociológicas ou políticas, oriundas, sobretudo, da Europa Ocidental.[1] No Direito Penal e Processual Penal brasileiros, afirmam os dogmáticos do Direito Penal (doutrinadores) que o direito de punir (ius puniendi) pertence exclusivamente ao Estado e que este direito está consagrado na Lei[2], segundo os princípios insculpidos na Constituição Federal e nas leis chamadas infraconstitucionais.
Sem mencionar as críticas que podem e devem ser formuladas à teoria do Estado Soberano e ao positivismo jurídico[3] – sendo este entendido como um paradigma científico que sustenta a idéia de que o direito deve ser compreendido sem a interferência de outras fontes que não seja a própria lei[4] –, no presente artigo se intenta indicar algumas antinomias criadas pelo legislador brasileiro no tocante ao Direito Penal e Processual Penal, pois parece que as autoridades estatais desviam a função precípua do Direito, que se destina à resolução dos conflitos oriundos da sociedade e, por vezes, acabam por produzir declarações legais opostas e contraditórias, gerando mais problemas institucionais do que indicando uma solução para os já existentes. Para tanto, serão apresentados alguns dos institutos jurídicos produzidos pela Lei no 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais) e, mais recentemente, pela Lei no 11.340/06 (Lei Maria da Penha – sobre a violência doméstica contra as mulheres), visto que situações jurídicas idênticas podem ser tratadas de maneiras diversas no Direito Penal e Processual Penal, mesmo que existam princípios constitucionais que visem estabelecer a igualdade entre as pessoas no tocante à aplicação da norma penal.
PROCESSO PENAL FORMAL E EFICÁCIA DO IUS PUNIENDI
A formalização do Processo Penal é uma das maneiras de se racionalizar a aplicação das normas penais e de garantir o exercício dos princípios do contraditório e da ampla defesa aos acusados em geral no ius peresequendi estatal. Todavia, o excesso de instâncias – Delegacias de Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário – para a formalização dos procedimentos penais é uma das causas da morosidade nos processos – tanto nas infrações tidas como “graves” quanto nas menos lesivas –, formando uma imagem negativa pela “opinião pública”[5], que, observando que a “criminalidade” não é combatida com eficácia pelas autoridades estatais investidas de poder de coerção, passam a ver o Sistema Penal como se estivesse em crise[6], exigindo maior rigor na punição dos “criminosos.”
Sem adentrar em questões teóricas a respeito da falsidade e perversidade do discurso jurídico-penal[7], por ora destaca-se que as instituições estatais brasileiras sistematizadas para a segurança pública, na forma do artigo 144 e ss. da Constituição Federal de 1988, continuam sendo simbólicas e débeis e, como subjacente à persecução criminal oficial subsiste o interesse subjetivo dos lesados de resolver os seus problemas decorrentes de algum ato ilícito, acaba ocorrendo que as pessoas vitimizadas por uma lesão aos seus interesses não possuem mecanismos jurídicos hábeis para solucionar seus conflitos de maneira informal[8], e, tampouco, podem contar com uma estrutura estatal eficaz para resolvê-los. Enfim, a crise é ocasionada pelo próprio discurso prospectivo do Estado e, como argumenta Alessandro Baratta ao se referir ao fracasso histórico das instituições penais em suas funções declaradas:
Los órganos que actúan en los distintos niveles de organización de la justicia penal (legislador, policia, ministerio público, jueces, órganos de ejecución) no representan ni tutelan interesses comunes a todos los miembros de la sociedad, sino, prevalentemente, intereses de grupos minoritarios dominantes y socialmente privilegiados. Sin embargo, en un nivel más alto de abstracción, el sistema punitivo se presenta como un subsistema funcional de la producción material e ideológica (legitimación) del sistema social global, es decir, de las relaciones de poder y de propriedad existentes, más que como instrumento de tutela de interesses y derechos particulares de los individuos.[9]
A ineficácia estrutural do Estado para a resolução de todos os conflitos intersubjetivos oriundos de infrações penais recebe o nome de “cifra negra da delinqüência”[10], que demonstra que a quantidade de infratores que são submetidos formalmente ao Processo Penal é de proporção extremamente reduzida em relação à quantidade de condutas delituosas que ocorrem cotidianamente na sociedade. Se o Estado não possui estrutura suficiente para aplicar suas próprias normas penais, parece utópica a sua função declarada de regulador da sociedade, garantidor da ordem pública e instância formal de resolução de conflitos, fato este que, naturalmente, desprestigia o Estado em relação à sociedade por ele discursivamente comandada.
Embora seja fato público e notório a incapacidade estatal de aplicar suas próprias normas penais a todos os ilícitos tipificados no ordenamento jurídico, mesmo assim o Poder Legislativo brasileiro busca contornar as dificuldades estruturais por intermédio da renovação constante de um discurso jurídico eminentemente ordeiro, ora relegitimando o ius puniendi através da elaboração de normas processuais que pretendem uma flexibilização nas normas processuais penais, permitindo a resolução de conflitos penais entre os próprios envolvidos na infração (Lei no 9.099/95), e ora negando essas mesmas práticas processuais “informais” e supostamente “despenalizadoras” para aumentar a repressão e a punição para determinadas condutas indesejadas na sociedade (Lei no 11.340/06).
Ao que tudo indica, há uma incoerência insanável entre o discurso jurídico produzido pela Lei no 9.099/95, que em seu artigo 62 permite que conflitos penais de “menor potencial ofensivo” sejam resolvidos de forma alternativa ao modelo clássico de pena-castigo, especialmente no que tange às penas privativas de liberdade; e a Lei no 11.340/06, que, embora trate de algumas condutas delitivas consideradas de “menor potencial ofensivo”, em seu artigo 41 simplesmente nega a possibilidade de se aplicar a Lei dos Juizados Especiais Criminais aos crimes decorrentes de violência doméstica contra as mulheres.
A seguir, serão abordadas algumas características que regem ambos os institutos jurídicos contraditórios, mas sem a intenção de se apontar uma solução para as questões que naturalmente surgirão no decorrer deste texto e que estão vinculadas à prática processual penal brasileira.
A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
Foi bastante difundida na doutrina penal brasileira a idéia de que a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, também conhecida como “Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais”, estabeleceu um novo paradigma no que concerne à administração da Justiça Penal no Brasil, prevendo princípios que, de início, causaram uma verdadeira “revolução”[11] no Processo Penal brasileiro, vez que, autorizado pelo artigo 98, inciso I, da Constituição Federal de 1988, o legislador infraconstitucional estabeleceu uma definição técnica para “delitos de menor potencial ofensivo”; sendo que essa definição, atualmente, foi estabelecida pela Lei no 11.313/06, que deu nova redação ao artigo 61 da Lei dos Juizados Especiais Criminais:
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
A Lei dos Juizados Especiais Criminais surgiu no Ordenamento Jurídico brasileiro como sendo um mecanismo importantíssimo para o aprimoramento da prestação jurisdicional pelo Estado. Embora tenham surgido discursos entusiastas a respeito da consubstanciação de um Direito Penal revolucionário, menos conflitivo, condizente a uma justiça célere, justa, eficaz, “despenalizadora”, promotora da “conciliação” entre as partes e criadora de uma nova mentalidade a respeito do Direito Penal[12], a verdade recôndita é que ocorreu uma potencialização na capacidade estatal de efetivar o seu ius puniendi, que tradicionalmente produzia a chamada “cifra negra da criminalidade”. Isso porque a flexibilização do Processo Penal, por intermédio dos princípios instituídos no artigo 62 da Lei no 9.099/95, permitiu uma maior celeridade por parte do Estado em conhecer os delitos praticados na sociedade e ampliou a possibilidade de aplicação “formal” de penalidades oriundas do Direito Penal, mesmo que o ius peresequendi fosse declarado “informal”.
Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.
Com tal dispositivo penal, parece que a vítima foi redescoberta pelo legislador do final do século XX, e surgiram vários elogios para a inovação dada pela Lei no 9.099/95, visto que a tradicional – e falida – punição de encarceramento para os infratores da lei penal agora seria praticamente banida, isto é, os delitos de “menor potencial ofensivo” seriam punidos com penas “não privativa de liberdade”. Todavia, deve-se verificar que a Lei dos Juizados Especiais Criminais não revogou os dispositivos da parte especial do Código Penal de 1940 e de outras normas penais extravagantes, por isso os “infratores” continuam sendo aquelas pessoas que violam as normas penais soberanamente editadas pelo Estado, sendo que este é considerado a vítima constante no Direito Penal.[13] A inovação dos Juizados Especiais criminais foi apenas no procedimento do ius persequendi para efetivar de maneira mais vasta e melhor o ius puniendi.
O fato é que o Poder Judiciário pôde, a partir da Lei dos Juizados Especiais Criminais, contar com princípios como a “informalidade” para acelerar os Processos Penais em busca da sua função declarada de “pacificação da sociedade”; especialmente procurando punir as “pequenas infrações” que o Estado há tanto tempo vinha desprezando por falta de estrutura.[14] Entrementes, a importância declarada que o Legislador deu para a “vítima” e a instituição de critérios como a “reparação do dano” e a “informalidade” são elementos discursivos do Direito em prol de uma evidente relegitimação do Direito Penal – simbólico, perverso e inoperante –, inclusive nos “delitos de menor potencial ofensivo”, que tradicionalmente escapavam à jurisdição do Estado. Em síntese, a Lei no 9.099/95 veio para “desafogar” os problemas estruturais do Poder Judiciário e do Sistema Carcerário; e subsidiariamente a isso, solucionar os conflitos intersubjetivos oriundos da sociedade.
Michel Temer, Deputado Constituinte e autor do Projeto original da Lei 9.099/95 – parte criminal –, oportunamente declarou em uma palestra:
Eu começo, portanto, dizendo aos amigos um pouco a respeito da origem dos chamados Juizados Especiais, tanto cíveis para julgamento das causas cíveis de menor complexidade. [sic] Diz o Art. 98 da Constituição, quanto aos Juizados Penais para julgamento, diz a Constituição, das causas penais de menor potencial ofensivo. Apenas para rememorar, quero dizer que durante a Constituinte de 88 havia uma grande preocupação com a chamada morosidade do Poder Judiciário, havia uma preocupação extraordinária em fazer do Poder Judiciário um poder mais rápido, mais veloz, mais ágil. O que era buscado como exemplo naquela oportunidade era a experiência dos chamados Juizados de Pequenas Causas criados em nível infraconstitucional, em nível legal. E ao lado dos Juizados de Pequenas Causas também os chamados Juizados Informais de Conciliação. Criaram-se, paralelamente aos Juizados de Pequenas Causas, esses juizados que visavam única e simplesmente à conciliação entre partes envolvidas num conflito de natureza civil. Este exemplo foi levado para a Constituinte com o objetivo de criar alguns instrumentos na Constituição que tornassem mais ágil a prestação jurisdicional.[15]
A Lei no 9.099/95, portanto, surgiu com a necessidade de se aprimorar a prestação jurisdicional penal para manutenção do ius puniendi simbólico pelo Estado, isto é, ampliar sutilmente, de maneira eminentemente discursiva, a capacidade de se aplicar penas oriundas do Direito Penal de forma simplificada, informal e, portanto, mais célere. Assim, o intuito declarado pelos dogmáticos de que a Lei no 9.099/95 surgiu como meio de se evitar a aplicação de pena privativa de liberdade ou “humanizar” o Direito Penal – que continua intacto – é falso, pois não ocorreu uma renúncia por parte do Estado em aplicar penalidades, ao revés, o número de casos apresentados formalmente ao Estado aumentou, mas sem que ocorresse uma diminuição no chamado “índice de criminalidade” no Brasil.[16]
Como pode ser observado no próprio procedimento adotado na Lei dos Juizados Especiais Criminais, o famigerado Inquérito Policial foi substituído pelo chamado “termo circunstanciado” – conhecido na prática processual penal por “TC”:
Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
Parágrafo único: Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança.
Observa-se, desde já, que a “informalidade” preconizada na lei em questão diz respeito à desnecessidade que o Estado (soberano) outorgou a si próprio de desconsiderar determinados comandos tradicionais oriundos do Código de Processo Penal, visando a formalização do Processo Penal; mas, o critério adotado para a competência dos Juizados Especiais Criminais é fornecido exclusivamente pelas antiquadas normas penais, isto é, as “infrações” penais continuam intactas.
Dentre os institutos chamados – erroneamente – de “despenalizadores” da Lei no 9.099/95, pode-se destacar quatro institutos fundamentais: a) o artigo 74, parágrafo único, que impõe a renúncia ao direito de representação e/ou de queixa nos crimes de Ação Penal Pública condicionada à representação do ofendido e Ação Penal privativa deste, no caso de ocorrer acordo de composição de danos entre vítima e autor do fato[17]; b) o artigo 76, que criou a chamada “transação penal”, em que o Ministério Público propõe a aplicação imediata de “pena” restritiva de direito ou de multa ao autor do fato que, aceitando e cumprindo as condições do acordo homologado pelo Juiz, tem declarada a extinção da punibilidade; c) o artigo 88, que exige a “representação” do ofendido no caso de lesões corporais leves e lesões culposas; e d) o artigo 89, que permite a chamada “suspensão condicional do processo”, inclusive nos crimes que não são considerados de menor potencial ofensivo.[18]
Enfim, a Lei no 9.099/95 mostra que o Estado tentou efetivar de maneira mais vasta o seu ius puniendi, permitindo, para tanto, que sejam aplicadas penalidades sumárias para se evitar o aprisionamento das pessoas que cometam infrações declaradas como de “menor potencial ofensivo”, visto que a falida pena de encarceramento, além de não cumprir sua função declarada de “ressocialização” – pois provoca a promiscuidade entre pessoas de índoles diversas, causando uma série de problemas sociais e institucionais que estão cada vez mais em evidência – ainda exige uma mega-estrutura prisional inexistente no Brasil.
A LEI MARIA DA PENHA
A recente Lei no 11.340, de 07 de agosto de 2006, também chamada de “Lei Maria da Penha”, surgiu no ordenamento jurídico brasileiro com a função declarada de controlar e erradicar a violência doméstica sofrida pelas mulheres, sendo que sua ementa indica claramente a idéia do legislador do século XXI:
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
O primeiro questionamento surge em relação à ênfase que o legislador deu em estabelecer diferenças baseadas no gênero das pessoas, agravando a intervenção penal somente para os homens, no caso de “violência doméstica”. O artigo 42 da Lei no 11.340/06, que acrescentou o inciso IV no artigo 313 do Código de Processo Penal, permite a prisão preventiva – “sepulcro provisório” – dos homens no caso de violência doméstica:
Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV:
Art. 313.
[…]
IV – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.”
Verifica-se que a Lei Processual Penal prevê uma medida extraordinária de prisão preventiva contra os homens no caso de “violência doméstica”. Todavia, se um homem for vítima de infrações penais perpetradas por uma mulher, mesmo que seja no âmbito doméstico, então a Lei não prevê a prisão preventiva à mulher; embora o Código de Processo Penal admita a “aplicação analógica” em seu artigo 3o. Ainda, hipoteticamente, se uma mulher for vítima de qualquer outra pessoa desconhecida – mesmo sendo do gênero masculino – e se tratar de delito de “menor potencial ofensivo”, também não haverá motivos para a decretação da prisão preventiva e a competência será da Lei no 9.099/95. Assim, surge uma antinomia jurídica entre as disposições processuais penais infraconstitucionais e o famigerado artigo 5o, caput e inciso I da Constituição Federal de 1988, que declaram:
Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
[…] (sem grifo no original)
No que concerne às lesões corporais leves (artigo 129, caput do Código Penal), com o advento da Lei no 9.099/95, o seu artigo 88 determinou que há a necessidade de representação da vítima para o seu processamento, isto é, a representação é pressuposto processual fundamental para que ocorra o Processo Penal válido no caso de lesões leves. Com a Lei no 11.340/06, o seu artigo 44 alterou o §9o do artigo 129 do Código Penal:
Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 129. […]
§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
Nesse caso, observa-se que se uma pessoa qualquer agride outra, causando-lhe lesões corporais leves, a competência para o processamento e julgamento do caso é do Juizado Especial Criminal, eis que o artigo 129, caput, do Código Penal, é considerado como crime de “menor potencial ofensivo” e depende de representação da vítima. Todavia, se um homem determinado agride uma mulher com quem convive, causando-lhe lesões corporais leves, então o crime é considerado grave e é passível de prisão preventiva, além de “medidas protetivas de urgência” previstas nos artigos 18 e ss. da Lei no 11.340/06. Ainda, a Ação Penal volta a ser “pública incondicionada” e uma vez oferecida a Denúncia (ou Queixa-crime) em Juízo, a Ação Penal somente poderá ser encerrada com a prolação de sentença condenatória ou absolutória ao homem agressor, visto que o artigo 41 da Lei Maria da Penha prescreve:
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Dessa forma, determinados crimes como, por exemplo, lesões corporais leves (art. 129, caput, do Código Penal) ou ameaça (art. 147, do Código Penal), mesmo que as lesões ao “bem jurídico especialmente tutelado pelas normas penais” sejam idênticas, recebem tratamento jurídico penal diverso em se tratando de violência contra a mulher no âmbito doméstico, sendo incabíveis alguns dos institutos “despenalizadores” da Lei no 9.099/95, como a audiência preliminar de conciliação (artigo 74), a transação penal (artigo 76) e a suspensão condicional do processo (artigo 89). Ao revés – e de maneira desproporcional –, delitos contra a pessoa, tidos como “graves”, como, por exemplo, homicídio culposo (artigo 121, § 3o do CP), aborto (artigos 124 e 126 do CP), abandono de recém-nascido (artigo 134 do CP), seqüestro e cárcere privado (artigo 148, caput do CP), entre outros, podem ser “beneficiados” com a suspensão condicional do processo, vez que a pena mínima não é superior a 1 (um) ano.
Registre-se que não se está fazendo uma crítica ao “mérito” da Lei Maria da Penha – pois a violência doméstica é uma chaga vergonhosa digna de atenção da sociedade –, mas sim ao legislador brasileiro do século XXI, que certamente está retrocedendo a um discurso jurídico-penal ultrapassado, notadamente inútil e anteriormente modificado em busca da celeridade processual, do consenso entre as partes e da aplicação de penas não privativas de liberdade, para tornar o Poder Judiciário mais célere e eficaz.
Se na Lei no 9.099/95 o legislador reconheceu a falência do sistema penal brasileiro para a prevenção e punição de delitos considerados de “menor potencial ofensivo”, e flexibilizou as normas processuais penais em busca da diminuição da “cifra negra da criminalidade”; com a Lei Maria da Penha, o legislador renovou a instauração do caos no Poder Judiciário, pois aumentou consideravelmente a repressão penal com pena privativa de liberdade para determinados delitos, mas isso, sem que ocorresse uma modificação na estrutura administrativa dos Poderes estatais. Em suma, se na Lei dos Juizados Especiais ocorre uma aceleração processual por intermédio da “informalidade”, da possibilidade de “transação penal” ou da “suspensão condicional do processo”, com a Lei Maria da Penha os Processos Penais ficarão emperrados no Poder Judiciário pela necessidade de sua perfeita formalização e processamento para a punição dos infratores, sendo vedada a suspensão do feito antes da sentença final.
No tocante à aplicação de prisão preventiva e à impossibilidade de se aplicar a Lei dos Juizados Especiais Criminais nos crimes decorrentes de violência contra a mulher no âmbito doméstico, sendo que alguns desses delitos, em sua essência, constituem crimes de “menor potencial ofensivo”, a Lei Maria da Penha demonstra que o legislador pátrio desconhece e/ou despreza a realidade penal brasileira, visto que a mera alteração das normas penais em busca de uma agravação na pena privativa de liberdade e no tratamento penal diferenciado a determinados sujeitos, ao contrário de “erradicar” as condutas delitivas na sociedade, restabelece e agrava a situação precária do penitenciário brasileiro.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226 caput e § 8o institui:
Art. 226 A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[…]
§ 8o O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
É lamentável a pouca criatividade do legislador brasileiro de regulamentar o artigo 226 da Constituição Federal por intermédio da reconstituição de um discurso jurídico-penal falso, conflitivo e ultrapassado, acreditando que o mero reforço punitivo nas normas penais e processuais penais possui o condão de alterar uma realidade social que o Estado, historicamente, demonstra ser incapaz de modificar. Nesse caso, pertinente as palavras de Loïc Wacquant:
A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto no Primeiro como no Segundo Mundo.[19]
O Estado brasileiro se declara garantidor da igualdade, da liberdade e da “fraternidade” (arts. 5o, caput e 3o, inciso I, ambos da CF/88) entre as pessoas viventes no Brasil e, ainda, afirma que é sua a função de assegurar “a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram” (art. 226, §8o CF/88). A inépcia do Estado brasileiro em concretizar tal discurso jurídico-político é notório; mas, enfim, questiona-se: é através do Direito Penal que o Estado brasileiro vai resolver as questões decorrentes da vida privada das pessoas? O Direito Penal é a forma adequada de se regulamentar a moralidade cotidiana da vida social dos brasileiros carentes de governos sérios e compromissados com a dignidade da pessoa humana? É por intermédio da utilização de um instrumento terrível de arbitrariedade – prisão e segregação dos homens de sua residência – que serão erradicados os conflitos de ocorridos em ambiente doméstico?
Certamente há uma falta de visão histórica e crítica das instituições penais no Ocidente por parte do nosso legislador infra-constitucional no século XXI. As prisões estão superlotadas, insalubres, repletas de miseráveis e as verbas, que deveriam ser aplicadas para a “harmônica integração social do condenado e do internado” (art. 1o da Lei no 7.210/84), são utilizadas para diversos outros fins institucionais da “máquina administrativa”, produtora de uma burocracia inútil e esclerosada, que pouco serve para a melhoria da vida das pessoas, mas que é precisa em selecionar, condenar e punir determinados sujeitos indesejados na sociedade. Ainda, homens agressivos que possuem recursos financeiros satisfatórios sempre poderão pleitear um “arbitramento de fiança” (artigo 321 e ss. do Código de Processo Penal) para se verem soltos; mas os miseráveis são simplesmente neutralizados nas prisões, à espera de uma decisão judicial que lhe devolva, provisoriamente, a liberdade. Por fim, se for feita uma pesquisa de campo para verificar quantas mulheres, vítimas de violência doméstica, acabam prestando fiança em favor de seus algozes encarcerados, talvez o legislador perceba que algumas “vítimas” da violência doméstica acabarão por ser vítimas, também, do próprio ius persequendi do Estado e suas formalidades simbólicas e caras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil do século XXI claramente está retrocedendo em matéria de Direito Penal e Processo Penal, pois, se no final do século XX foram criados os Juizados Especiais Criminais em busca de uma maior eficácia das Lei Penais em prol da redução da chamada “cifra negra da criminalidade”, atualmente se busca um maior alargamento da repressão estatal em determinadas condutas, mesmo que para tanto se tenha que desprezar direitos e garantias fundamentais e prever sanções que, na prática processual penal cotidiana, servem apenas para agravar a situação social dos miseráveis, sepultando-os provisoriamente nas prisões, sob o fundamento de “proteção” e “assistência” à família e “erradicação da violência” doméstica contra a mulher.
Com o advento da “Lei Maria da Penha”, ao revés da ementa declarada pelo legislador pátrio, a tendência é que ocorra uma diminuição na solução formal de conflitos oriundos de “violência doméstica”, pois a falta de estrutura estatal e as conseqüências advindas da persecutio criminis, além de agravarem a situação jurídica dos homens e das mulheres que ingressam nas instituições formais de repressão, poderão produzir um aumento considerável na chamada “cifra negra da criminalidade”, visto que o caos já instaurado no sistema penitenciário tende a se alargar com o encaminhamento de homens “violentos”, em seu ambiente doméstico, para a promiscuidade e insalubridade das penitenciárias brasileiras, além de onerar as famílias menos favorecidas economicamente que terão que desembolsar quantias de dinheiro razoáveis em prol da liberdade provisória com prestação de fiança e custas processuais.
Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá (UEM), lecionando na matéria de Direito Processual Penal. Advogado Criminalista. Mestre em Direito, Estado e sociedade pelo Curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Doutorando em Direito pelo CPGD/UFSC.
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