Resumo: Trata-se de análise da constitucionalidade dos requisitos arrolados para reconhecimento jurídico da união estável, previsto no art. 1723, § 1º do Código Civil em confronto com o art. art. 226, § 3º. da Constituição Federal Brasileira. Enquanto a Constituição Federal parte do princípio que a união estável é configurada pela convivência em comum de duas pessoas que visam constituir família, determinando que a lei deve facilitar sua conversão em casamento, há impedimento para que pessoas que mantém vínculo conjugal possam casar-se.
Palavras-chave: União estável. Casamento. Inconstitucionalidade. Separação judicial. Divórcio. Direito de Família. Emenda Constitucional 66.
Sumário: Introdução. 1. União estável: finalidade e premissas. 2. Requisitos para conversão à luz do Código Civil brasileiro. 3. Reflexos do reconhecimento da união estável. 4. Inconstitucionalidade dos requisitos para reconhecimento previstos no CCB. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O Constituinte Originário, pela Constituição Federal de 1988, buscou proteger a relação familiar, mesmo que não legalmente constituída, resguardando as relações que tenham tal aspecto, tutelando a união estável. Por corolário, o Código Civil de 2002, estabelece os requisitos para que sejam estas reconhecidas, abarcando até mesmo aquelas relações que um dos integrantes do casal esteja separado de fato ou judicialmente. Argui-se, pelo presente estudo, a constitucionalidade desta previsão.
1 DO VÍNCULO MATRIMONIAL NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
As primeiras constituições brasileiras não trataram da proteção, como instituição, à família. Iniciou esta preocupação a Constituição Federal de 1934, que em seu art. 144 asseverava ser a família “constituída pelo casamento indissolúvel” e recebendo esta “proteção especial do estado”. A constituição da família, segundo este instrumento normativo supremo, deveria ser realizado pelo casamento civil ou ter seu registro civil, segundo estabelecido no art. 146. Digno de nota é que o casamento era, uma vez estabelecido, indissolúvel, assim permanecendo até a Emenda Constitucional n°. 9, quando admitiu-se a separação judicial e o divórcio.
A Constituição de 1967, em seu art. 175, estabelece que “A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos” donde apreendemos que o Estado protegerá os laços familiares pela constituição do casamento. A vigente Constituição Federal, em seu art. 226, estabelece, nesta esteira, que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
A proteção do Estado para o círculo familiar encontra-se, em nosso atual sistema normativo, ampliado já que prevê sua formação não apenas pelo casamento, mas também pelo ânimus em constituir família, reconhecendo, no art. 226, § 3°. “a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Contudo, prevê este mesmo artigo, § 6°. sua dissolução.
2 DOS REQUISITOS PARA O CASAMENTO
Para que o casamento seja válido, é necessário o atendimento aos requisitos estabelecidos no Código Civil. Sob a égide do antigo Código Civil, Lei 3.071 de 1916, em seu art. 183, inciso VI, constatamos que está vedado o casamento de pessoa que já esteja casada. Mantem a mesma restrição nosso atual Código Civil, em seu art. 1521, inciso VI.
Compete-nos, neste momento, indagar: qual a situação jurídica daquele que está judicialmente separado, isto é, ainda não divorciado? Qual a diferença entre estas circunstâncias? Passemos a analisá-las.
O divórcio, pela redação do já mencionado art. 226, § 6°, preceitua que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano […]”. Desta forma, verificamos que a separação judicial não dissolve o casamento. O art. 1571, § 1º do CC/02, preceitua que o casamento válido somente será dissolvido pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio.
Destaque-se que a pessoa apenas separada judicialmente não desconstituiu o vínculo matrimonial ainda, isto é, ainda está casada, tanto que se desejar restabelecer a vida conjugal não necessita casar novamente, basta que apresente petição ao Juízo que, então, revogará a separação judicial. Todavia, se já estiver divorciado, somente novo casamento é que formalizarã, novamente, o vínculo familiar.
Em resumo, aquele que desejar se casar novamente com outra pessoa, está impedido enquanto separado judicialmente, necessitando proceder ao divórcio. Nulo será o casamento realizado entre duas pessoas se uma delas estiver separada judicialmente, pois estará, ainda, casada. Importante lição nos expõe VENOSA (2008, p. 202) que “dissolvida a sociedade conjugal pelo divórcio, os cônjuges podem contrair novas núpcias, desaparecendo o impedimento legal”.
3 DA UNIÃO ESTÁVEL
O convívio de duas pessoas com ânimus de constituir família é o pressuposto para o reconhecimento da união estável. A Constituição Federal, no já citado art. 226, § 3°, reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Apreendemos que o estado protegerá a convivência entre homem e mulher, protegendo-a como entidade familiar. Historicamente verificamos que o ordenamento jurídico protege a família monogâmica, isto é, aquela em que há apenas dois cônjuges, reciprocamente comprometidos. O reconhecimento de união estável, em sede judicial, concretiza a proteção que o Estado concede, devendo a lei propiciar sua conversão em casamento.
Em outras palavras, o reconhecimento da união estável, na forma que se apresenta hodiernamente no sistema jurídico, tem como pressuposto culminar no casamento, já que deve a lei facilitar sua conversão em casamento, conforme preceito constitucional acima enunciado.
Para regular o dispositivo constitucional em comento, o advento da Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, regulando a união estável. Assim, estabelece o art. 1°. que
“Art. 1 º. É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.”
Verifica-se que o requisito para reconhecimento da união estável, conforme já delineado pela ConstituiçãoFederal, é que exista o intuito de constituir família. Neste diapasão, é permitido requerer-se, nestas circunstâncias, a conversão em casamento, segundo estipula o art. 8°. desta lei, pois assevera que:
“Art. 8 º. Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio.”
Diante da plausibilidade, incentivada na Constituição Federal e regulada na lei específica, de converter-se a união estável em casamento, deve-se considerar que ambos estejam desimpedidos de se casar, ou seja, que não exista vínculo conjugal em relação a qualquer dos estavelmente unidos.
4 DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1723, § 1º do CC/02
Verificamos que a Constituição Federal concede especial importância ao vínculo familiar, constituído pelo casamento.[1] Protegerá, também, o vínculo formado pela união estável entre homem e mulher, não casados, cujo ânimo é de constituir família, tanto que determina-se ao legislador ordinário facilitar sua conversão em casamento. Neste diapasão, imprescindível verificarmos quais os requisitos para o reconhecimento jurídico desta união.
Dispõe o art. 1723, § 1º do Código Civil de 2002 (CCB/2002) dispõe que a pessoa casada, quando separada de fato ou judicialmente, pode constituir união estável. No entanto, é fato incontroverso que estas não podem casar, por força da vedação instituída pelo art. 1521, inciso VI deste mesmo instituto normativo. O art. 1727 do CCB/2002 diz que a relação entre homem e mulher, impedidos de casar (há a inclusão dos separados de fato e judicialmente) constituem concubinato impuro.
Observa-se, dessa forma, que os artigos em análise, ambos dispostos no Livro IV, Titulo III, se contradizem, ao passo que o primeiro admite a união estável entre os impedidos de casar, enquanto que o segundo trata a relação, no mesmo caso, como não sendo uma união estável, e sim, concubinato impuro[2], o qual, causa repulsa tanto no ordenamento jurídico como na sociedade.
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão de maio de 2010, corrobora com os enunciados acima esposados, senão vejamos:
“101000041833 – DIREITO CIVIL – FAMÍLIA – PARALELISMO DE UNIÕES AFETIVAS – RECURSO ESPECIAL – Ação de reconhecimento de união estável post mortem e sua consequente dissolução. Concomitância de casamento válido. Peculiaridades – […] – Nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC/02, que referendou a doutrina e a jurisprudência existentes sob a vigência da legislação civil anterior, o casamento válido não se dissolve pela separação judicial; Apenas pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio. Por isso mesmo, na hipótese de separação judicial, basta que os cônjuges formulem pedido para retornar ao status de casados. Já, quando divorciados, para retornarem ao status quo ante, deverão contrair novas núpcias – […] – Deve o juiz, ao analisar as lides de família que apresentam paralelismo afetivo, de acordo com as peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. Recurso especial não provido.” (STJ – REsp 1.107.192 – (2008/0283243-0) – 3ª T. – Rel. Min. Massami Uyeda – DJe 27.05.2010 – p. 1652. Repositório autorizado: Juris Síntese IOB disponível em www.iobonlinejuridico.com.br, acesso em 06.jul.2010. Grifos acrescidos).
Apreendemos, da decisão acima, da 3a. Turma do STJ, que o reconhecimento da união estável pressupõe o ânimo de constituir família. Ademais, ressaltou-se na espécie, que, vivendo numa sociedade monogâmica, não se poderia admitir como válida uma situação de paralelismo de relações conjugais. Ora, desta forma, quando o art. 1723 exclui das vedações para o reconhecimento da união estável, no § 1º, a pessoa casada ou separada judicialmente, está admitindo, expressamente, a possibilidade de bigamia, o que é, incontestavelmente, uma inconstitucionalidade.
5 DA EMENDA CONSTITUCIONAL 66
Aos 13 de julho de 2010, pela Emenda Constitucional nº. 66, de 13 de julho de 2010, determinou-se nova redação ao art. 226, § 6º estipulando que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Retirou-se dos requisitos da dissolução da união conjugal o interstício temporal de dois anos de separação de fato ou um ano de declaração da separação judicial.
Por advento desta Emenda Constitucional, ainda mais razão há para que não se reconheça a união estável entre pessoas que ainda não estão divorciadas, ou seja, aquelas que ainda mantém o vínculo conjugal com cônjuge anterior, estando separado de fato ou judicialmente.
CONCLUSÃO
A existência da previsão legal supra analisada evidencia a inconstitucionalidade existente ao se admitir o vínculo da UE entre aqueles separados judicialmente, vez que ainda persiste o vinculo matrimonial, o qual somente será extinto com o divórcio. Com mais razão, deve ser observada a inconstitucionalidade presente no reconhecimento da UE quando há “companheiro” casado, porém, separado de fato, vez que neste caso, encontram-se intactos os elementos constitutivos do casamento, sequer inexiste a sociedade conjugal.
É relevante observar que o direito acompanha a sociedade, suas mudanças e ainda, sua transformação sine qua non para que ele seja eficaz, seja efetivo, ou seja, tenha aplicabilidade, de outra forma: de nada adianta um direito arcaíco numa sociedade moderna. Nesse ínterim, é incontestável que o direito passou por mudanças, sendo elas positivas, vez que ao comparar o novo código civil com o código civil de 1916, relevantes foram as mudanças ocorridas no que tange ao conceito de família.
No entanto, com base nas analises feitas no tocante a instituição do casamento versus união estável resta claro e evidente que apesar do grande avanço, ainda há resquício da ideia predominante no civil de 1916, qual seja, a ideia de que o casamento deveria ser a única forma de constituição de família. É inegável que o código civil de 2002, apesar de representar o avanço na área de direito de família, em especial às disposições referentes ao instituto da união estável, ainda restou preconceito por parte dos legisladores, porque não dizer, por parte da sociedade, vez que a legislação é, ou melhor, deveria ser, o reflexo do anseio popular. Talvez seja este o ponto crucial, o fato que determinou a projeção descompromissada do instituto da união estável, o qual deveria ter sido objeto de profunda análise, vez que sua existência legitimaria muitas relações até então existentes na sociedade, conseqüência da natural “evolução” social.
Apesar de não saber ao certo qual o fato que deu ensejo à má projeção desse instituto, que apesar dos problemas que o envolve pode ser considerado um conquista para a sociedade, é relevante encontrar uma forma de adequar a sua aplicação nas relações sociais que continuam a evoluir, não podendo, no entanto, descuidar dos efeitos que a efetivação do instituto causa nas demais relações sociais, como por exemplo, no direito sucessório. É importante fazer menção que também neste há preconceito quando se analisa o direito sucessório concedido com companheiro, independente de seu estado civil.
É importante destacar que as disposições contidas na Carta Magna devem ser encaradas como diretrizes para as demais normas infraconstitucionais, assim sendo, as demais normas devem estar em acordo com elas. Então, a maneira menos errônea de adequar o direito positivado que rege as relações existentes entre “companheiros” separado de fato ou judicialmente, seria o reconhecimento da união estável putativa, ou seja, sua existência de fato, e não de direito, como vem ocorrendo hodiernamente ao fazer uma interpretação literal e isolada do art. 1723, § 1º. do Código Civil vigente. Essa aplicação, observando-se as disposições constitucionais a respeito da matéria, é a forma de efetivar o direito sem, no entanto, causar prejuízo às partes envolvidas, ou mesmo, um contrasenso no direito positivado, argumento reforçado pela nova redação do art. 226, § 3º. da Constituição Federal, determinado pela Emenda Constitucional nº. 66, de 13 de julho de 2010.
Mestre em Direito Constitucional e Especialista em Direito Processual Civil pela FDV/Vitória/ES. Professor de Direito Constitucional dos cursos de direito pós-graduação da Faculdade São Geraldo e da Faculdade Pitágoras. Professor orientador do Laboratório de Prática Jurídica-LPJ da Faculdade São Geraldo. Advogado. Diretor da Academia Brasileira de Direitos Humanos.
Acadêmica de Direito pela Faculdade Pitágoras – Campus Guarapari/ES
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